«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

BRASIL: respeitemo-nos!

Casas divididas

Ian Bremmer*

Na raiz da polarização estão as bolhas em que cada tribo se protege
das ideias alheias. Não se sabe a que isso nos levará

Qualquer nação que tenha sofrido uma desaceleração econômica tão acentuada, um aumento tão exacerbado da criminalidade e escândalos políticos e corporativos tão prevalentes sentirá certa dose de indignação pública. Mas as controvérsias ao longo do último ano envolvendo o ex-presidente Lula, o presidente eleito Jair Bolsonaro e muitas outras figuras públicas indicam uma perigosa diferença de opiniões quanto à identidade e aos rumos do Brasil.

É preciso reconhecer que as eleições dos últimos dois anos revelaram divisões profundas em vários países, e arrisco dizer que não há exemplo melhor disso do que meu país, os Estados Unidos. A intensidade da polarização nos Estados Unidos da América (EUA) continua em franca escalada. E minha hipótese é que um olhar mais detalhado sobre as causas dessa polarização poderá ajudar a esclarecer o que vem ocorrendo em outros lugares.

Já estamos quase em 2019 e os Estados Unidos são hoje o que o ex-presidente Abraham Lincoln, que governou de 1861 a 1865, chamaria de “casa dividida”. Quase duas dezenas de democratas estão prestes a anunciar planos de candidatar-se à Presidência para concorrer contra Donald Trump. E, se as eleições do Congresso americano no mês passado nos mostraram alguma coisa, é que esquerda e direita raramente estiveram tão separadas desde que nossa democracia foi criada.

Quão separadas elas estão? Primeiro, existem as formas tradicionais de pensar sobre polarização. Um estudo recente do instituto Pew Research revelou que, no espectro político entre a esquerda e a direita:
* 94% das pessoas que se alinham com o Partido Democrata hoje estão mais à esquerda do que um simpatizante médio do Partido Republicano, e
* 92% dos republicanos estão mais à direita do que um democrata médio, quanto às suas visões sociais, econômicas e políticas.

A conclusão óbvia, diante disso: o “centrão” político está desaparecendo. Essa é a grande mudança em relação à geração anterior, e tem a ver tanto com a emoção quanto com a ideologia. Metade dos republicanos agora diz que “odeia” os democratas, e um número quase igual de democratas afirma “odiar” os republicanos. 
POLARIZAÇÃO POLÍTICA:
quem ganha???
E de quem é a culpa?

Por mais reconfortante que possa ser, é importante não cairmos na tentação de pôr toda a culpa nos políticos por essa lastimável situação. Em vez disso, devemos observar as maneiras pelas quais os americanos estão se separando de seus compatriotas — e ampliar essa reflexão para os países onde a polarização se mostra patente. Comece com as maneiras pelas quais os cidadãos buscam novas ideias e informações sobre seu país e o mundo. Sim, parte do problema reside no fato de que americanos de esquerda e direita assistem a canais de televisão diferentes. Redes inteiras são dedicadas a alimentar seus preconceitos sobre outros americanos e pessoas em outros países. Isso dá aos consumidores de notícias e opiniões visões totalmente distintas do mundo e das ameaças que ele pode conter.

As diferenças ficam ainda mais evidentes na internet. Cada vez mais, meus colegas americanos se reúnem on-line dentro de suas chamadas filter bubbles (bolhas de filtro), aqueles sites que visitamos para encontrar opiniões e informações que confirmam nossos vieses e, especialmente, para nos conectar com outras pessoas que compartilham deles. Agora, somam-se a isso os algoritmos on-line que registram nossas buscas, interpretam nossos likes [= curtidas] e nos mantêm na companhia de amigos e formadores de opinião que pensam e agem como nós.

O mesmo ocorre nas mídias sociais, que nos permitem seguir aqueles com os quais concordamos e ignorar aqueles de quem discordamos. É uma pena, pois tira de nós a chance de conhecer o que outras pessoas estão vendo, ouvindo, pensando e sentindo. Isso torna mais difícil compreender melhor nosso país, o resto do mundo e a forma como ambos estão mudando rapidamente. Estamos nos privando das ferramentas de que precisamos para desafiar nossas crenças e mudar nossa maneira de pensar.
TRADUÇÃO:
BOLHAS FILTRO
Mesmas ideias, mesmas informações, mesmas crenças

Nos Estados Unidos, assim como no Brasil, estamos nos dividindo ao longo de linhas demográficas. Dados sobre as eleições de 2016 e 2018 mostram diferenças acentuadas da opinião política, que varia muito, dependendo de idade, faixa salarial, grau de escolaridade, identidade étnica e localização geográfica: quem mora em regiões metropolitanas tende a ter visões políticas opostas às de quem vive em áreas mais rurais.

Existe ainda outro fator: não há como olhar atentamente para a política dos Estados Unidos e a sociedade americana sem levar em consideração a questão de raça. Estudos recentes revelaram que os estudantes americanos estão agora mais segregados em termos de raça do que estavam no fim dos anos 1960, antes da imposição da dessegregação das escolas públicas por força de lei, com o avanço dos movimentos pró-direitos civis. Hoje, mais e mais americanos estão rodeados exclusivamente por amigos de sua raça. O resultado é que essa autossegregação está nos agrupando em tribos com pensamentos semelhantes. Isso ajuda a evitar pessoas com opiniões que possam divergir daquilo em que acreditamos. Como consequência, nós nos tornamos menos tolerantes.

Essa perspectiva é perigosa porque nossos políticos se aproveitam de tal divisão para piorar as coisas. Toda essa autossegregação incentiva os dois partidos políticos antagônicos — o Democrata e o Republicano — a enviar mensagens e adotar políticas direcionadas apenas àqueles grupos específicos de americanos que eles acham prontos a votar em sua legenda. Em outras palavras, os políticos republicanos não falam mais com os eleitores democratas, nem os democratas falam com os republicanos. Ninguém está tentando convencer ninguém de outra coisa além de que seus preconceitos mais profundos estão corretos e de que se correrá perigo caso não se vote nesse sentido.

Há quem argumente que países autoritários não têm esse problema. Não existe polarização publicamente aceitável na China, na Rússia ou na Arábia Saudita. Nesses países, o Estado trabalha arduamente para controlar o fluxo de informações dentro da sociedade e para ativamente formular a opinião pública sobre o futuro e o mundo. Não há espaço para o contraditório, e o debate é sacrificado. Até recentemente, muitos acreditavam que a internet e as mídias sociais tornariam impossível o controle das informações pelo Estado e que a fragmentação da opinião pública seria inevitável. Entretanto, hoje está ficando claro que o Estado autoritário encontrou novas maneiras de erguer muros, reais e virtuais, que desviam a opinião pública dos pontos de vista alternativos. A propaganda do Estado revelou-se mais eficaz, e não menos, porque penetra mais profundamente na vida das pessoas.

Não está claro se toda ditadura poderá continuar sendo uma ditadura da forma como se via décadas atrás. Avanços nas tecnologias de informação e comunicação podem ainda reservar surpresas para nós. Mas, por enquanto, democracias como o Brasil, os Estados Unidos e muitas outras estão enfrentando problemas de liberdade em consequência da fraqueza na natureza humana que elas inevitavelmente revelam.
IAN BREMMER
Autor deste artigo

Terreno comum

Como disse certa vez o notável filósofo americano Yogi Berra: “É difícil fazer previsões, especialmente sobre o futuro”. Há uma previsão, porém, que podemos arriscar sobre os Estados Unidos, o Brasil e os demais países, democráticos ou não: sempre haverá esquerda e direita. É um ponto pacífico. Qualquer um que leia o bastante os veículos de comunicação sobre política perceberá uma noção recorrente de que determinado lado conseguirá, de alguma forma, uma vitória final absoluta sobre o outro. É uma grande bobagem. A direita jamais eliminará a esquerda, nem a esquerda exterminará a direita.

Nos Estados Unidos, no Brasil e em qualquer outro lugar,
as pessoas de todas as tendências políticas precisam encontrar
um terreno comum para construir uma nação segura, saudável e próspera.

*IAN BREMMER é presidente do grupo Eurasia, professor da Universidade de Nova York e autor do livro Us vs. Them: The Failure of Globalism (Nós contra Eles: a Falência do Globalismo).

Fonte: revista VEJA – Edição 2614 – Ano 51 – Nº 52 – 26 de dezembro de 2018 – Páginas 48 e 49 – Internet: clique aqui.

BRASIL: mude-o ou esqueça-o!

Procura-se: vergonha

Roberto Romano*

A falta de verdade, o entusiasmo pelos favores, o desprezo pelo populacho, tudo isso faz do Brasil um arremedo trágico da vida democrática
Motorista sendo multado por estacionar em vaga reservada a idoso

Uma frase sempre vem aos lábios dos brasileiros deseducados, truculentos, egoístas e malandros quando postos em situação difícil de ser resolvida corretamente. Fulano ou fulana fura a fila do banco ostentando ares de superioridade, vê-se repelido pelos que exigem seus direitos e pode até não falar mas pensa: “O Brasil é assim mesmo”. Várias sandices estão reunidas aí, nessa lógica distorcida. Com ela, o inefável tolo quer dizer que ele, isso mesmo, o ser muito importante que está acima dos outros, não tem laços com a cultura de seu povo. A plebe não viaja para Nova York, Paris, Londres ou Roma. Logo, ela não percebe quão sublime é o personagem que reivindica o privilégio de romper normas comezinhas de civilidade, como respeitar o próximo, os lugares na fila e a vaga no estacionamento, entre muitas outras. Se topa com alguém que aponta sua falta de educação, o ser superior apela: “Que gente chata!”. E acabou, tudo se resolveu. Trata-se daquela finura de comportamento que espelha o gosto estabelecido. Tais indivíduos são finos em demasia, tomam champanhe com linguiça. “O Brasil é assim mesmo.”

Estacionou na vaga dos deficientes físicos? No worry! “Ficarei apenas uns minutinhos e já volto.” Berra nos restaurantes, gargalha a ponto de impedir a refeição alheia? Sem problema: os demais clientes que se danem, “quero ser feliz com os meus amigos e colegas”. Para na fila dupla quando leva os pimpolhos ao colégio? “O trânsito brasileiro é primitivo, insuportável.” Empurra um desprevenido no corredor do shopping center? “Desculpa, eu não vi.” Nem sequer desconfia o truculento que a segunda pessoa do singular é uma forma lastimável de desrespeito. E ademais o “não vi” prova uma inconsciência total no campo ético. Quando alguém se move no espaço público, o ético, o moral, o polido é ver o corpo alheio, tomar cuidado para não ferir.
 
Caricatura de Dom João VI, rei de Portugal, que veio para o Brasil
Antigamente, em algumas cortes, era comum um ritual em que as pessoas,
tivessem elas títulos de nobreza ou não, participavam de cerimônias em que se
beijava a mão direita dos reis, em sinal de reverência.
Portugal foi o último país a abolir essa prática e, mesmo em desuso,
Dom João VI resolveu introduzi-la aqui, em terras tropicais.
Na sociedade brasileira, condutas perniciosas de indivíduos e grupos são herança do que havia de pior no regime absolutista que regeu nossa história colonial. Os portugueses entram no cômputo dos povos europeus que sofreram, durante séculos, a centralização do poder nas mãos do rei. Aquela política repousava em alguns elementos estratégicos. Para dobrar a espinha de sacerdotes e nobres, o rei lhes distribuía favores, dava-lhes isenção de impostos, títulos, subvenções, cargos. Sem tal partilha, ou ele era assassinado, ou não conseguia governar. Para obterem os favores do rei, as “elites”, por sua vez, precisavam apelar para intermediários entre elas e o trono. Na indicação de um cargo, o rei pagava favores para, em troca, ganhar o favor da governabilidade. Nobres e o clero, por seu lado, pagavam favores aos intermediários e ao rei. Trata-se de um circuito poderoso cuja moeda é a bajulação universal, a compra e venda corrupta de favorecimentos.

Historiadores apontam na sociedade absolutista um dos regimes mais corrompidos da saga humana. No Antigo Regime tudo se comprava, tudo se vendia, tudo se obtinha com a prestação de favores tanto aos indivíduos no mesmo nível social e político quanto aos “superiores”, que facilitavam a outorga de empregos e recursos. A sociedade absolutista era um tecido muito denso no qual dominava o favor.

O indivíduo se rebaixava diante de alguém mais importante e
pisava na garganta de quem estava abaixo de sua posição.

Ocorre que a covardia subserviente se transforma, conforme a situação, em covardia arrogante. Assim foi gerada boa parte das elites do Antigo Regime, a cuja reiteração imaginária assistimos hoje quando o fulano pergunta, cheio da pior empáfia: “Sabe com quem está falando?”. Em terras polidas e cultas, a pergunta, em situações tensas e similares, é o contrário: “Quem você pensa que é?”. Ou seja, a igualdade no trato não pode ser quebrada, salvo em caso de vácua pretensão, por ninguém.

Mas no Brasil o FAVOR garante que o BAJULADOR se apresente como tirano,
se imagine estar diante de alguém inferior, “diferenciado”.

Não causa nenhuma surpresa que, já na carta em que Pero Vaz de Caminha anunciou ao rei de Portugal a descoberta do Brasil, cargos sejam pedidos humildemente como favor, em prol de parentes. E temos aí a forma pela qual foi moldada a sociedade brasileira. A prática do favor, a reivindicação de “superioridade” sobre quem não é nobre, rico ou padre, propiciou a formação de um coletivo sem a noção mínima da igualdade republicana. Como dizia o padre Antônio Vieira, os brasileiros não são “repúblicos”. Ao contrário do povo inglês, do francês e do americano, não praticamos as virtudes da responsabilidade diante do povo (accountability) e a igualdade política. Na Revolução Puritana do século XVII, que instaurou a monarquia constitucional na Inglaterra, o partido mais importante tinha como nome e slogan o termo levellers, ou seja, niveladores, anuladores das diferenças.

No Brasil, os igualitários sempre foram vencidos pelo Estado e
a vitória coube aos que beijam os pés dos governantes e
insultam os vencidos.
Gerou-se em 500 anos uma noção de elite sem paralelo nos centros civilizados.

Aqui, mesmo nos dias de hoje, vivemos como se estivéssemos no Antigo Regime. Os cargos nas empresas públicas e privadas são distribuídos segundo padrões do favor político, ideológico ou religioso. É a regra do “quem indica”. Sob o império do favor, indivíduos e grupos agem como se fossem melhores do que os “simples pagantes de imposto”. Ou, na linguagem de dom João VI, “a gente ordinária de vestes”. Daí o sentimento de impunidade nos setores que, por estarem em posições de poder ou prestígio, usam a famosa carteirada (em duplo sentido: cargos e bolsos repletos) para negar direitos aos cidadãos.

Quanto mais grosseiros e injustos, mais autorizados se sentem a romper o contrato social.

Na cidade de Atenas, onde se definiu a composição mais relevante da ordem democrática, algumas leis foram estratégicas nessa empreitada. A primeira tratava da responsabilidade nos serviços públicos. Só podiam ser eleitos aqueles que provavam por exame (Dokimasia) a posse de saber técnico e prudência ética para os cargos. Se no Brasil de hoje tal princípio vigorasse, muitos que se imaginam de elite estariam sem emprego. Outra lei essencial era a da Hybris (orgulho desmedido, arrogância). Um indivíduo mais bem aquinhoado pela sorte que humilhasse outro com menores recursos recebia penalidades físicas ou pecuniárias. Se aqui tivéssemos algo similar, os cofres públicos estariam abarrotados. A falta de respeito impera em nosso meio. Como o ser humano é mimético, costumes grosseiros se espalharam pelo corpo social. Não apenas a elite, mas também vastas camadas populares reiteram, sem nenhum recato, formas brutais de comportamento.

Por último, em Atenas uma forma de ser era fundamental: o indivíduo ganhava valor se manifestasse um sentimento de vergonha por atitudes incorretas. Faltar com o respeito aos idosos, às mulheres e crianças, aos mais fracos, era visto como uma indignidade sem tamanho. Quem não se ruborizasse por ter insultado algum concidadão deixava de ser um animal político e se transformava simplesmente em um animal. O termo Aidós (“vergonha”, “respeito”, “reverência”) servia para discernir quem era honesto e quem não merecia acatamento social e político. Em suma: entre as qualidades atenienses que fizeram a glória da pólis democrática, talvez a que mais faça falta ao Brasil seja a VERGONHA. Pensadores e políticos realistas, os atenienses democráticos sabiam que é impossível manter um coletivo unido se não há equilíbrio entre honra e pudor.
CENA MUITO COMUM
Jovens ocupando lugares reservados a idosos e pessoas especiais no interior do transporte público

Antes de encerrar, ressalte-se ainda outra lei ateniense, a que dizia ser proibido mentir ao povo. No livro Deception and Democracy in Classical Athens (Mentira e Democracia na Atenas Clássica), o historiador inglês Jon Hesk observa que, em Atenas, a honra política era interligada a um permanente respeito à verdade. Aristófanes e Platão caçoaram em muitas ocasiões dos demagogos que, levados pela sofística, prometiam mundos e fundos nos debates eleitorais. A falta de verdade, o uso da mentira deslavada, o entusiasmo pelos favores, o desprezo pelo populacho, tudo isso faz do Brasil um arremedo trágico e ridículo da vida democrática.

A honra traz a fé pública, condição da efetiva estabilidade econômica e política.

A lógica de tal aporia é tirada por Santo Agostinho: sem a justiça e a vergonha, 
os Estados não passam de grandes quadrilhas. 
E as quadrilhas formam pequenos Estados.
ROBERTO ROMANO
Autor deste artigo

O Brasil que decida: seguirá a honra e a vergonha ou ficará na lama, reclamando da corrupção alheia? A imagem que muitos brasileiros fazem de si mesmos é a de espertalhões que podem enganar os incautos. O “jeitinho” presente nos fura-filas, nos usurpadores de vaga no estacionamento e nos que mentem em público e no privado reitera uma sociedade cuja ética é tortuosa e beira o desastre. Não é possível ter bons governos com uma cidadania que ignora seus deveres. E assim caminha este país, de esperteza a esperteza, rumo ao desalento ressentido de todos contra todos. “O Brasil é assim mesmo…”

* O filósofo ROBERTO ROMANO é professor de ética e filosofia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autor de O Caldeirão de Medeia e Moral e Ciência: a Monstruosidade do Século XVIII, entre outras obras e inúmeros artigos.

Fonte: revista VEJA – Edição 2614 – Ano 51 – Nº 52 – 26 de dezembro de 2018 – Páginas 100 e 101 – Internet: clique aqui.

sábado, 22 de dezembro de 2018

4º Domingo do Advento – Ano C – Homilia

Evangelho: Lucas 1,39-45

39 Naqueles dias, Maria partiu para a região montanhosa, dirigindo-se, apressadamente, a uma cidade da Judeia.
40 Entrou na casa de Zacarias e cumprimentou Isabel.
41 Quando Isabel ouviu a saudação de Maria, a criança pulou no seu ventre e Isabel ficou cheia do Espírito Santo.
42 Com um grande grito, exclamou: «Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre!
43 Como posso merecer que a mãe do meu Senhor me venha visitar?
44 Logo que a tua saudação chegou aos meus ouvidos, a criança pulou de alegria no meu ventre.
45 Bem-aventurada aquela que acreditou, porque será cumprido, o que o Senhor lhe prometeu.»


JOSÉ ANTONIO PAGOLA
Biblista e Teólogo espanhol

MÃES DE FÉ

A cena é comovente. Lucas a compôs para criar uma atmosfera de alegria, satisfação profunda e louvor que há de acompanhar o nascimento de Jesus. A vida muda quando é vivida a partir da fé. Acontecimentos como a gravidez ou o nascimento de um filho adquirem um sentido novo e profundo.

Tudo acontece em uma aldeia desconhecida, na montanha de Judá. Duas mulheres grávidas conversam sobre o que estão vivendo no íntimo de seu coração. Não estão presentes os homens. Nem sequer José, que poderia ter acompanhado sua esposa. São estas duas mulheres, cheias de fé e de Espírito, aquelas que melhor captam o que está acontecendo.

Maria saúda Isabel. Deseja-lhe tudo de melhor, agora que está esperando um filho. Sua saudação enche de paz e de alegria a casa toda. Até o bebê que Isabel leva em seu ventre salta de alegria. Maria é portadora de salvação: é aquela que leva consigo Jesus.

Há muitas maneiras de «saudar» e de aproximar-nos das pessoas. Maria traz paz, alegria e bênção de Deus. Lucas recordará, mais tarde, que era isso justamente o que o filho Jesus pedia a seus seguidores: em qualquer casa em que entrardes, dizei primeiro: Paz a esta casa.

Transtornada pela alegria, Isabel exclama: Bendita és tu entre todas as mulheres e bendito é o fruto de teu ventre. Deus está sempre na origem da vida. As mães, portadoras de vida, são mulheres «abençoadas» pelo Criador: o fruto de seus ventres é bendito. Maria é a «bendita» por excelência: com ela chega-nos Jesus, a bênção de Deus ao mundo.

Isabel termina exclamando: Bem-aventurada aquela que acreditou. Maria é feliz porque creu. Aí está sua grandeza e Isabel sabe valorizá-la. Estas duas mães convidam-nos a viver e celebrar a partir da fé o mistério do Natal.

Feliz o povo onde há mães que creem, portadoras de vida, capazes de irradiar paz e alegria. Feliz a Igreja onde há mulheres abençoadas por Deus, mulheres felizes que creem e transmitem a fé a seus filhos e filhas. Felizes os lares onde mães boas ensinam a viver com profundidade o Natal.

FELIZ AQUELE QUE CRÊ

O filósofo francês Blaise Pascal (1623-1662) atreveu-se a dizer que «ninguém é tão feliz como um cristão autêntico». Porém, quem pode acreditar, realmente, nisso? A imensa maioria pensa que a fé pouco tem a ver com a felicidade. Em todo caso, teria de relacioná-la com uma salvação futura e eterna que fica distante, entretanto, porém não com essa felicidade concreta de cada dia que nos interessa.

Ainda mais. São muitos os que pensam que a religião é um estorvo para viver a vida de maneira intensa e espontânea, pois diminui a pessoa e mata a alegria de viver. Ademais, por que uma pessoa de fé iria se preocupar em ser feliz? Viver como quem tem fé não é cansar-se sempre mais que os outros? Não é seguir um caminho de renúncia e abnegação? Não é, em última análise, privar-nos da felicidade?

O certo é que os cristãos não parecem mostrar, com sua maneira de ser e de viver, que a fé encerre uma força decisiva para enfrentar a vida com alegria e plenitude interior. Muitos nos veem como Friedrich Nietzsche [filósofo prussiano, atual Alemanha: 1844-1900], para o qual aqueles que criam lhe davam a impressão de ser «pessoas mais acorrentadas que libertas por Deus».

* O que houve?
* Por que se fala tão pouco de felicidade nas igrejas?
* Por que muitos cristãos não descobrem Deus como o melhor amigo de sua vida?

Como acontece tantas vezes, parece que o cristianismo também perdeu a experiência original que no começo lhe dava vida e o animava em tudo. A alegria cristã foi-se obscurecendo ao:
* esfriar-se aquela primeira experiência e
* acumular-se, em seguida outras capas ideológicas e
* outros códigos e esquemas religiosos,
às vezes, bastante estranhos ao Evangelho.

Quantos, hoje, suspeitam que a primeira coisa que alguém ouve quando se aproxima de Jesus Cristo é um chamado para ser feliz e fazer um mundo mais feliz?

Quantos podem pensar que o que Jesus oferece é um caminho pelo qual podemos descobrir uma alegria diferente que pode transformar desde já a nossa vida?

Quantos creem que Deus busca somente e exclusivamente o nosso bem e felicidade, que não é um ser ciumento que sofre ao nos ver desfrutando a vida, mas alguém que nos quer, desde já, alegres e felizes?

Estou convencido que uma pessoa esteja a fim de levar a sério Jesus Cristo, quando intui que nele possa encontrar o que, ainda, falta-lhe para ser feliz com uma felicidade mais plena e verdadeira.

A saudação a Maria: «Feliz és tu que acreditaste» pode estender-se, de algum modo, a toda pessoa que verdadeiramente crê. Apesar de todas as incoerências e de toda a infidelidade que habita nossas vidas medíocres, feliz, mesmo hoje, aquele que crê no fundo de seu coração.

Traduzido do espanhol por Telmo José Amaral de Figueiredo.

Fonte: Sopelako San Pedro Apostol Parrokia – Sopelana – Bizkaia (Espanha) – J. A. Pagola – Ciclo C (Homilías) – Internet: clique aqui.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

A metamorfose de Deus

“Deus não mora mais aqui?”

Marco Rizzi
Professor de Literatura Cristã Antiga da Università Cattolica del Sacro Cuore, em Milão
Corriere della Sera
16-12-2018

O que acontece com a prática religiosa na Europa?
Livraria Waanders in de Broeren
Funciona dentro de uma igreja em estilo gótico na Holanda, após a venda o edifício

No final de novembro passado na Universidade Gregoriana de Roma - a universidade dos jesuítas - se reuniram clérigos, sociólogos e historiadores da arte para responder a uma pergunta um tanto surpreendente para aquele local: «Deus não mora mais aqui?» Mais prosaicamente, a conferência abordava o problema das igrejas que deixaram de ser usadas para o culto devido ao declínio na prática religiosa na Itália, identificando novas funções que permitam conservar uma continuidade com o passado, preservar o seu valor histórico e artístico e evitar a sua transformação em livrarias, bares ou - até - discotecas, como aconteceu, por exemplo, na Holanda e na França.

Quem, neste mesmo período, estivesse passeando pelo centro de Moscou, limpo e arrumado por ocasião da Copa do Mundo de Futebol no verão passado, teria encontrado igrejas e mosteiros lotados, pessoas fazendo o sinal da cruz (da maneira ortodoxa, tocando primeiro o ombro direito e depois o esquerdo), enquanto passavam na calçada em frente, e mesmo aqueles que não hesitavam em beijar e se ajoelhar diante do ícone da Trindade de Andrei Rublev, conservada no museu Tretyakov (que tomou prudentemente medidas para protegê-la com um vidro especial).

É suficiente concluir que, como já foi dito, «na Europa apenas os países ortodoxos ainda têm fé»?

Na verdade, uma leitura cuidadosa dos resultados da pesquisa realizada em 2017 e publicada no meio deste ano pelo Pew Research Center de Washington permite fazer considerações mais sutis. Embora, em termos gerais, – ou seja, considerando o conjunto dos indicadores, tais como a fé em um Deus, a importância da religião na vida, a frequência na liturgia e na oração - Romênia, Armênia e Geórgia ocupem o pódio com 50% da população que pode ser considerada muito religiosa, e no outro extremo encontramos Estônia, Dinamarca e República Checa, com um dado entre 7% e 8%, enquanto Portugal aparece em linha com a Polônia, cerca de 40%, deixando assim para trás muitas nações ortodoxas.

Se forem considerados os indicadores individuais, o quadro parece ainda mais complexo e, no mínimo, contraditório: por exemplo, os Países Baixos [Bélgica e Holanda] surpreendentemente ultrapassam a Rússia no que diz respeito ao número daqueles que rezam diariamente e se coloca logo atrás da Itália (20% e 21%, respectivamente, em linha com a média continental que é de 22%), mesmo que as posições entre as duas nações se invertam em relação ao percentual daqueles que creem com certeza absoluta em Deus.
Igreja Brew Works em Pittsburgh, Pensilvânia, Estados Unidos da América
Essa igreja foi dessacralizada e, hoje, é uma boate

No total, se consideram cristãos cerca de 7 em cada 10 europeus, que, no entanto, em sua grande maioria frequentam pouco ou nada as igrejas; além disso, aquela apresentada pela Bíblia continua a ser a imagem mais compartilhada de Deus para a maioria dos habitantes do Velho Continente.

Caso se queira uma interpretação geral, pode-se afirmar que se assiste a um processo de separação entre a prática religiosa, fé individual e identidade pessoal, em que a tradição cristã assume mais o caráter de um marcador cultural: por exemplo, apenas 12% dos ingleses acredita firmemente em Deus, mas 20% frequenta a igreja pelo menos uma vez por mês, algo que se explica pelo caráter ainda totalmente nacional da Igreja anglicana.

Trata-se de um processo confirmado por outros aspectos da pesquisa, entre os quais o recurso cada vez mais frequente a apelos religiosos ou até mesmo confessionais no debate político europeu.

Olhando melhor, no entanto, isso não é um fenômeno totalmente novo.

O que parece estar mais em crise não é a religião ou o cristianismo em si, mas a particular configuração que a religião cristã assumiu na Europa ocidental a partir do rompimento marcado pela Reforma Protestante e pela Contrarreforma, no século XVI.

A partir daquele momento as Igrejas, católicas, protestantes ou reformadas, elaboraram em conjunto com os Estados um sistema de normas doutrinais e comportamentais que efetivamente regulamentava a inteira sociedade e o indivíduo, enquanto os países de tradição ortodoxa permaneciam ligados a um modelo muito mais fluido e menos intelectualizado. A crise daquele sistema está, portanto, reconduzindo a Europa ocidental a formas de prática religiosa semelhantes àquelas ortodoxas, menos rígidas e mais ocasionais.

As igrejas institucionais não parecem ter entendido completamente a mudança que está ocorrendo. Uma reportagem realizada entre a Europa e as Américas pela revista Der Spiegel, reproduzida na Itália pela Internazionale, bastante crítica em relação ao atual pontificado, relata a opinião de um anônimo expoente da cúria de Mônaco da Baviera: «Quem pensa apenas no que está nas margens, logo se depara com um buraco no centro». Trata-se de uma crítica aberta à atenção do Papa Francisco pelas «periferias».

Observando os dados ao longo do tempo, imediatamente se percebe como no início do século passado:
* os católicos europeus fossem 67%,
* nas Américas 27%, enquanto
* África e Ásia/Oceania somavam, para o total, apenas 1% e 5%, respectivamente;
em 2015:
* a Europa contribui para o número total de católicos na medida de 22% (era 27 na virada do milênio),
* as Américas com 49%,
* a África 17,
* a Ásia/Oceania com 12%, sendo estes últimos continentes em crescimento constante.
Capela que transformada em restaurante em BRUTON, na Inglaterra

Quando se considera como no âmbito do cristianismo mais em expansão, aquele dos movimentos e das Igrejas livres evangélicas, que a Coreia do Sul seja o país que produz o maior número de missionários, ainda tem sentido pensar na Europa como centro do cristianismo?

Apesar das profecias, Deus não está morto, porém ele está mudando de casa e mudando de rosto.

Traduzido do italiano por Luisa Rabolini. A versão original do artigo é encontrável aqui.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Quarta-feira, 19 de dezembro de 2018 – Internet: clique aqui.

Corrupção, xenofobia e racismo, vergonha da política

Papa Francisco e sua mensagem para o
Dia Mundial da Paz

Andrés Beltramo Álvarez
Vatican Insider
18-12-2018
PAPA FRANCISCO
Tendo uma pomba em sua mão - Praça de São Pedro - Vaticano

O Papa não tem dúvidas: a corrupção, a xenofobia e o racismo são “uma vergonha para a política” e “colocam em risco a paz social”. São os vícios de uma atividade que deveria ser, na realidade, o mais alto estado da caridade. Mas, muitos daqueles que a exercem, caem no enriquecimento ilegal, na tendência de se perpetuar no poder, na apropriação indevida dos bens públicos e no aproveitamento das pessoas.

Uma denúncia contida na mensagem de Francisco para o próximo Dia Mundial da Paz, cujo conteúdo foi divulgado hoje à tarde, mas que a Igreja Católica celebrará no dia 1º de janeiro [52ª Jornada Mundial da Paz].

O documento, difundido em oito idiomas, leva como título “A boa política está a serviço da paz”. Em um de seus fragmentos, o Pontífice se referiu aos vícios dessa atividade humana, entre os quais incluiu também:
* a negação do direito,
* o descumprimento das normas comunitárias,
* a justificação do poder mediante a força ou com o pretexto arbitrário da razão de Estado,
* a rejeição ao cuidado da Terra e
* a exploração ilimitada dos recursos naturais por um lucro imediato.
[...]
o Papa se disse convencido de que a boa política é aquela a serviço da paz, aquela que respeita e promove os direitos fundamentais de todos, criando assim entre as gerações presentes e futuras um vínculo de confiança e gratidão. Ao mesmo tempo, afirma que esta atividade, realizada no respeito fundamental à vida, liberdade e dignidade das pessoas, pode se tornar uma “forma eminente da caridade”.
[...]
Para recordar como deveriam ser os políticos, o Papa citou as “bem-aventuranças” que o cardeal vietnamita François-Xavier Nguyen Van Thuan, falecido em 2002, dedicou a essa categoria de pessoas. Assim escreveu:

«Bem-aventurado o político que tem uma alta consideração e uma profunda consciência de seu papel,
* aquele “cuja pessoa reflete credibilidade”,
* o que “trabalha pelo bem comum e não por seu próprio interesse”,
* que “permanece fielmente coerente”,
* o que “está comprometido em realizar uma mudança radical,
* o que “sabe escutar” e “não tem medo”.»
François-Xavier Nguyen Van Thuan - Cardeal vietnamita (1928-2002)

Vale a pena ler a MENSAGEM NA ÍNTEGRA como segue abaixo.

«A paz esteja nesta casa!»

Jesus, ao enviar em missão os seus discípulos, disse-lhes:
«Em qualquer casa em que entrardes, dizei primeiro: “A paz esteja nesta casa!” E, se lá houver um homem de paz, sobre ele repousará a vossa paz; se não, voltará para vós»
(Lucas 10, 5-6).

Oferecer a paz está no coração da missão dos discípulos de Cristo. E esta oferta é feita a todos os homens e mulheres que, no meio dos dramas e violências da história humana, esperam na paz.[1] A «casa», de que fala Jesus, é cada família, cada comunidade, cada país, cada continente, na sua singularidade e história; antes de mais nada, é cada pessoa, sem distinção nem discriminação alguma. E é também a nossa «casa comum»: o planeta onde Deus nos colocou a morar e do qual somos chamados a cuidar com solicitude.

Eis, pois, os meus votos no início do novo ano: «A paz esteja nesta casa!»

O desafio da boa política

A paz parece-se com a esperança de que fala o poeta Charles Péguy;[2] é como uma flor frágil, que procura desabrochar por entre as pedras da violência. Como sabemos, a busca do poder a todo o custo leva a abusos e injustiças. A política é um meio fundamental para construir a cidadania e as obras do homem, mas, quando aqueles que a exercem não a vivem como serviço à coletividade humana, pode tornar-se instrumento de opressão, marginalização e até destruição.

«Se alguém quiser ser o primeiro – diz Jesus – há de ser o último de todos e o servo de todos» (Mc 9,35). Como assinalava o Papa São Paulo VI, «tomar a sério a política, nos seus diversos níveis – local, regional, nacional e mundial – é afirmar o dever do homem, de todos os homens, de reconhecerem a realidade concreta e o valor da liberdade de escolha que lhes é proporcionada, para procurarem realizar juntos o bem da cidade, da nação e da humanidade».[3]

Com efeito, a função e a responsabilidade política constituem um desafio permanente para todos aqueles que recebem o mandato de servir o seu país, proteger as pessoas que habitam nele e trabalhar para criar as condições dum futuro digno e justo. Se for implementada no respeito fundamental pela vida, a liberdade e a dignidade das pessoas, a política pode tornar-se verdadeiramente uma forma eminente de caridade.

Caridade e virtudes humanas para uma política ao serviço dos direitos humanos e da paz

O Papa Bento XVI recordava que «todo o cristão é chamado a esta caridade, conforme a sua vocação e segundo as possibilidades que tem de incidência na pólis. (…) Quando o empenho pelo bem comum é animado pela caridade, tem uma valência superior à do empenho simplesmente secular e político. (…) A ação do homem sobre a terra, quando é inspirada e sustentada pela caridade, contribui para a edificação daquela cidade universal de Deus que é a meta para onde caminha a história da família humana».[4] Trata-se de um programa no qual se podem reconhecer todos os políticos, de qualquer afiliação cultural ou religiosa, que desejam trabalhar juntos para o bem da família humana, praticando as virtudes humanas que subjazem a uma boa ação política: a justiça, a equidade, o respeito mútuo, a sinceridade, a honestidade, a fidelidade.

A propósito, vale a pena recordar as «bem-aventuranças do político», propostas por uma testemunha fiel do Evangelho, o Cardeal vietnamita Francisco Xavier Nguyen Van Thuan, falecido em 2002:

* Bem-aventurado o político que tem uma alta noção e uma profunda consciência do seu papel.
* Bem-aventurado o político de cuja pessoa irradia a credibilidade.
* Bem-aventurado o político que trabalha para o bem comum e não para os próprios interesses.
* Bem-aventurado o político que permanece fielmente coerente.
* Bem-aventurado o político que realiza a unidade.
* Bem-aventurado o político que está comprometido na realização duma mudança radical.
* Bem-aventurado o político que sabe escutar.
* Bem-aventurado o político que não tem medo. [5]

Cada renovação nos cargos eletivos, cada período eleitoral, cada etapa da vida pública constitui uma oportunidade para voltar à fonte e às referências que inspiram a justiça e o direito. Duma coisa temos a certeza: a boa política está ao serviço da paz; respeita e promove os direitos humanos fundamentais, que são igualmente deveres recíprocos, para que se teça um vínculo de confiança e gratidão entre as gerações do presente e as futuras.

Os vícios da política

A par das virtudes, não faltam infelizmente os vícios, mesmo na política, devidos quer à inépcia pessoal quer às distorções no meio ambiente e nas instituições. Para todos, está claro que os vícios da vida política tiram credibilidade aos sistemas dentro dos quais ela se realiza, bem como à autoridade, às decisões e à ação das pessoas que se lhe dedicam. Estes vícios, que enfraquecem o ideal duma vida democrática autêntica, são a vergonha da vida pública e colocam em perigo a paz social: a corrupção – nas suas múltiplas formas de apropriação indevida dos bens públicos ou de instrumentalização das pessoas –, a negação do direito, a falta de respeito pelas regras comunitárias, o enriquecimento ilegal, a justificação do poder pela força ou com o pretexto arbitrário da «razão de Estado», a tendência a perpetuar-se no poder, a xenofobia e o racismo, a recusa a cuidar da Terra, a exploração ilimitada dos recursos naturais em razão do lucro imediato, o desprezo daqueles que foram forçados ao exílio.

A boa política promove a participação dos jovens e a confiança no outro

Quando o exercício do poder político visa apenas salvaguardar os interesses de certos indivíduos privilegiados, o futuro fica comprometido e os jovens podem ser tentados pela desconfiança, por se verem condenados a permanecer à margem da sociedade, sem possibilidades de participar num projeto para o futuro. Pelo contrário, quando a política se traduz, concretamente, no encorajamento dos talentos juvenis e das vocações que requerem a sua realização, a paz propaga-se nas consciências e nos rostos. Torna-se uma confiança dinâmica, que significa «fio-me de ti e creio contigo» na possibilidade de trabalharmos juntos pelo bem comum. Por isso, a política é a favor da paz, se se expressa no reconhecimento dos carismas e capacidades de cada pessoa. «Que há de mais belo que uma mão estendida? Esta foi querida por Deus para dar e receber. Deus não a quis para matar (cf. Gn 4,1-16) ou fazer sofrer, mas para cuidar e ajudar a viver. Juntamente com o coração e a inteligência, pode, também a mão, tornar-se um instrumento de diálogo».[6]

Cada um pode contribuir com a própria pedra para a construção da casa comum. A vida política autêntica, que se funda no direito e num diálogo leal entre os sujeitos, renova-se com a convicção de que cada mulher, cada homem e cada geração encerram em si uma promessa que pode irradiar novas energias relacionais, intelectuais, culturais e espirituais. Uma tal confiança nunca é fácil de viver, porque as relações humanas são complexas. Nestes tempos, em particular, vivemos num clima de desconfiança que está enraizada no medo do outro ou do forasteiro, na ansiedade pela perda das próprias vantagens, e manifesta-se também, infelizmente, a nível político mediante atitudes de fechamento ou nacionalismos que colocam em questão aquela fraternidade de que o nosso mundo globalizado tanto precisa. Hoje, mais do que nunca, as nossas sociedades necessitam de «artesãos da paz» que possam ser autênticos mensageiros e testemunhas de Deus Pai, que quer o bem e a felicidade da família humana.
CENA IMPRESSIONANTE:
Mesmo em meio à forte tensão, uma mãe ergue, com alegria, seu filho em um acampamento de migrantes
próximo à fronteira do México com os Estados Unidos

Não à guerra nem à estratégia do medo

Cem anos depois do fim da I Guerra Mundial, ao recordarmos os jovens mortos durante aqueles combates e as populações civis dilaceradas, experimentamos – hoje, ainda mais que ontem – a terrível lição das guerras fratricidas, isto é, que a paz não pode jamais reduzir-se ao mero equilíbrio das forças e do medo. Manter o outro sob ameaça significa reduzi-lo ao estado de objeto e negar a sua dignidade. Por esta razão, reiteramos que a escalada em termos de intimidação, bem como a proliferação descontrolada das armas são contrárias à moral e à busca duma verdadeira concórdia. O terror exercido sobre as pessoas mais vulneráveis contribui para o exílio de populações inteiras à procura duma terra de paz.

Não são sustentáveis os discursos políticos que tendem a acusar os migrantes de todos os males e a privar os pobres da esperança.

Ao contrário, deve-se reafirmar que a paz se baseia no respeito por toda a pessoa, independentemente da sua história, no respeito pelo direito e o bem comum, pela criação que nos foi confiada e pela riqueza moral transmitida pelas gerações passadas.

O nosso pensamento detém-se, ainda e de modo particular, nas crianças que vivem nas zonas atuais de conflito e em todos aqueles que se esforçam por que a sua vida e os seus direitos sejam protegidos. No mundo, uma em cada seis crianças sofre com a violência da guerra ou pelas suas consequências, quando não é requisitada para se tornar, ela própria, soldado ou refém dos grupos armados. O testemunho daqueles que trabalham para defender a dignidade e o respeito das crianças é extremamente precioso para o futuro da humanidade.

Um grande projeto de paz

Celebra-se, nestes dias, o septuagésimo aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada após a II Guerra Mundial. A este respeito, recordemos a observação do Papa São João XXIII: «Quando numa pessoa surge a consciência dos próprios direitos, nela nascerá forçosamente a consciência do dever: no titular de direitos, o dever de reclamar esses direitos, como expressão da sua dignidade; nos demais, o dever de reconhecer e respeitar tais direitos».[7]

Com efeito, a paz é fruto de um grande projeto político, que se baseia na responsabilidade mútua e na interdependência dos seres humanos. Mas é também um desafio que requer ser abraçado dia após dia. A paz é uma conversão do coração e da alma, sendo fácil reconhecer três dimensões indissociáveis desta paz interior e comunitária:

- a paz consigo mesmo, rejeitando a intransigência, a ira e a impaciência e – como aconselhava São Francisco de Sales – cultivando «um pouco de doçura para consigo mesmo», a fim de oferecer «um pouco de doçura aos outros»;

- a paz com o outro: o familiar, o amigo, o estrangeiro, o pobre, o atribulado..., tendo a ousadia do encontro, para ouvir a mensagem que traz consigo;

- a paz com a criação, descobrindo a grandeza do dom de Deus e a parte de responsabilidade que compete a cada um de nós, como habitante deste mundo, cidadão e ator do futuro.

A política da paz, que conhece bem as fragilidades humanas e delas se ocupa, pode sempre inspirar-se ao espírito do Magnificat que Maria, Mãe de Cristo Salvador e Rainha da Paz, canta em nome de todos os homens: A «misericórdia [do Todo-Poderoso] estende-se de geração em geração sobre aqueles que O temem. Manifestou o poder do seu braço e dispersou os soberbos. Derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes (...), lembrado da sua misericórdia, como tinha prometido a nossos pais, a Abraão e à sua descendência, para sempre» (Lc 1,50-55).

Vaticano, 8 de dezembro de 2018.

FRANCISCUS
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Notas:

[1] Cf. Lc 2, 14: «Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens do seu agrado».
[2] Cf. Le Porche du mystère de la deuxième vertu (Paris 1986).
[3] Carta apostólica Octogesima adveniens (14/V/1971), 46.
[4] Carta encíclica Caritas in veritate (29/V/2009), 7.
[5] Cf. «Discurso na Exposição-Encontro “Civitas” de Pádua»: Revista 30giorni (2002 - nº 5).
[6] Bento XVI, Discurso às Autoridades do Benim (Cotonou, 19/XI/2011).
[7] Carta encíclica Pacem in terris (11/IV/1963), 24 (44).

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Quarta-feira, 19 de dezembro de 2018 – Internet: clique aqui; e aqui.