«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

sábado, 31 de dezembro de 2016

Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus – Ano A – Homilia

Evangelho: Lucas 2,16-21

Naquele tempo:
16 Os pastores foram às pressas a Belém e encontraram Maria e José, e o recém-nascido, deitado na manjedoura.
17 Tendo-o visto, contaram o que lhes fora dito sobre o menino.
18 E todos os que ou viram os pastores ficaram maravilhados com aquilo que contavam.
19 Quanto a Maria, guardava todos estes fatos e meditava sobre eles em seu coração.
20 Os pastores voltaram, glorificando e louvando a Deus por tudo que tinham visto e ouvido, conforme lhes tinha sido dito.
21 Quando se completaram os oito dias para a circuncisão do menino, deram-lhe o nome de Jesus, como fora chamado pelo anjo antes de ser concebido.


JOSÉ MARÍA CASTILLO & JOSÉ ANTONO PAGOLA

O primeiro dia do ano civil, segundo o calendário ocidental, está dedicado pela Igreja à recordação e à veneração de Maria, a mãe de Jesus. Esta festa da “maternidade”, associada a “Deus”, é importante para a fé dos cristãos. E é, além disso, um bom ensinamento para todas as pessoas, que, a partir de qualquer crença religiosa, buscam o significado de Deus para suas vidas. Por quê?

As religiões tiveram uma acentuada tendência em pensar e explicar Deus a partir dos modelos mais em evidência de cada cultura. Pois bem, sabemos que as culturas centradas no elemento masculino, patriarcais e machistas foram predominantes na história da humanidade. Por isso, os “deuses” masculinos e associados ao “masculino” foram os mais importantes.

Nas tradições bíblicas isso resultou exageradamente certo. Assim, Deus nos é apresentado como “varão”, como “Pai”. Porém, nunca deveríamos esquecer que não podemos associar Deus com um sexo determinado, nem o masculino nem o feminino. Deus, como varão, como homem, como pai..., tudo isso não é senão uma metáfora.

Ninguém jamais viu a Deus (Jo 1,18). E vê-lo como ancião com barbas é um antropomorfismo no qual projetamos sobre Deus o poder que, em nossas culturas, exercem os varões sobre as mulheres. Esta é uma das deformações mais perigosas que as religiões, quase sempre conduzidas por homens, projetaram sobre Deus.

É uma deformação poderosa porque associaram Deus com o poder, porém não com a bondade e, menos ainda, com a delicadeza e a ternura. Quer dizer, arrancamos de Deus “o aspecto materno”; e o vinculamos somente ao paterno, ao autoritário, ao forte, ao justiceiro. E, no entanto, “o rosto materno de Deus” é algo que buscamos sem cessar e jamais terminamos de encontrá-lo. Por isso, as milhares de devoções à Virgem Maria têm, entre outras qualidades, a função de ocupar o vazio do “materno” e do “feminino”, que todos vivemos inconscientemente. Eis aqui, portanto, a importância fundamental deste dia.

ANO NOVO

Não é fácil começar o ano novo. O desconhecido inquieta, não sabemos o que nos trará. Por isso, o festejamos de maneira ruidosa: já não é só a ceia da véspera e as ofertas especiais das cadeias de televisão; cada vez mais gente começa o ano lançando fogos de artifício ou fazendo explodir foguetes. Também os antigos romanos faziam barulho para afugentar os maus espíritos no início do ano.

Porém, pode-se começar o ano em silêncio. É, sem dúvida, a maneira mais lúcida de adentrarmos no mistério desse tempo que não podemos deter e que constitui a nossa vida.

Não é difícil recordar o ano que se vai: vivemos alegrias e dissabores, fizemos coisas boas e cometemos erros; encontramo-nos com pessoas novas; amamos e sofremos; algo cresceu em mim e algo se apagou. Essa é minha verdade, esse sou eu. Se em algum lugar de minha alma continua viva uma pequena fé, posso agradecer, pedir perdão e confiar nesse Mistério que os crentes chamam Deus.

Chega, agora, o ano novo. O novo não somente inquieta, também tem seu atrativo. O novo é algo intacto, inédito, pleno de possibilidades: produz um prazer especial conduzir um veículo novo, escutar pela primeira vez um CD, estrear uma peça de roupa. Porém, o que pode haver de realmente novo no ano que começa? Talvez, aquilo que mais novidade possa introduzir em nossa vida é a nossa maneira de vivê-la.

* Posso ser um “homem novo”, uma “mulher diferente”?
* Podem despertar em mim ideias e sentimentos novos?
* Posso percorrer caminhos não trilhados, encontrar gestos novos, amar com nova ternura, aproximar-me de Deus com coração renovado?

Não é preciso que eu mude tudo. Na realidade o novo está já em gérmen dentro de mim. O importante é que eu viva atento ao melhor que há em meu coração acolhendo aquilo que me pode fazer crescer. Por isso, é bom que nos desejemos mutuamente um Ano Novo feliz, porém é melhor ainda que nos perguntemos:
* o que desejo realmente para mim?
* O que eu necessito?
* O que busco?
* O que seria para mim algo realmente novo e bom neste ano que começa?

Traduzido do espanhol por Telmo José Amaral de Figueiredo.

Fonte: José María Castillo. La religión de Jesús. Comentario al Evangelio diario. Ciclo A (2013-2014). Bilbao: Desclée De Brouwer, 2013, p. 66-67; Sopelako San Pedro Apostol Parrokia – Sopelana (Bizkaia – Espanha) – J. A. Pagola – Ciclo A – Internet: clique aqui.

Brasileiro cada vez mais conservador

Conservador na medida

José Roberto de Toledo

O medo da violência é uma das principais motivações
do conservadorismo no Brasil no século 21
O desenho acima mostra bem a hipocrisia e incoerência que se escondem por detrás de vários
discursos e bandeiras de luta do conservadorismo

O brasileiro é cada vez mais conservador. OK, a frase está ficando batida, mas ninguém tinha tentado medir o fenômeno. Até agora: o Ibope acaba de criar o Índice de Conservadorismo do brasileiro, apresentado em primeira mão ao leitor desta coluna. Os conservadores aumentaram entre os habitantes do [País] Patropi de todas as faixas etárias e de renda, em ambos os sexos, em todas as religiões e em quase todas as regiões e níveis educacionais.

Baseado em cinco perguntas feitas à população, o Índice de Conservadorismo criado pelo Ibope acompanha as opiniões dos brasileiros sobre temas polêmicos e que costumam separar liberais de conservadores:
1) legalização do aborto,
2) casamento entre pessoas do mesmo sexo,
3) pena de morte,
4) prisão perpétua,
5) redução da maioridade penal.
O questionário foi aplicado pela primeira vez em 2010, e repetido agora.

O conservador dos conservadores respondeu ser contra os itens 1 e 2, e a favor dos demais – na escala do Ibope, ele marcará 1 de conservadorismo. Já o liberal dos liberais é a favor dos dois primeiros itens, e contra o resto: seu índice é zero. Entre um e outro, o Ibope dividiu os brasileiros em três faixas, conforme a quantidade de respostas conservadoras. A distribuição dos resultados ajuda a entender a projeção de um [Jair] Bolsonaro.

Nada menos do que:
* 54% da população brasileira alcançou um índice igual ou superior a 0,7, que o Ibope definiu como alto grau de conservadorismo.
* Outros 41% – com índice entre 0,4 e 0,6 – estão na faixa do conservadorismo médio.
* Só 5% ficaram no baixo.

Na média, o brasileiro marcou 0,686 – bem mais para conservador do que para liberal. Ainda mais relevante, esse índice médio cresceu nos últimos seis anos: em 2010, era de 0,657. Colocando de outra maneira, o grupo dos que atingiram alto grau de conservadorismo cresceu de 49% para 54% nesse período.

As questões que puxaram o conservadorismo nesta década foram as três ligadas à insegurança pública e supostas maneiras de diminuí-la. O apoio à pena de morte pulou de 31% para 49% nos últimos seis anos. A favorabilidade à redução da maioridade penal – para permitir que adolescentes sejam julgados como adultos – cresceu de 63% para 78%. E a defesa da prisão perpétua para crimes hediondos aumentou de 66% para 78% desde 2010. 
Frase que resume excelentemente bem como funciona a mente do conservadorismo.
O passado é idealizado e valorizado em detrimento do presente e do futuro!

“Observa-se um aumento do conservadorismo em função do maior apoio às medidas punitivas, seja em decorrência do aumento das taxas de violência no País, ou de um desejo de se acabar com a impunidade percebida”, analisa Marcia Cavallari, CEO do Ibope Inteligência. Mas ela acrescenta outras nuances: “As questões políticas, econômicas e sociais pelas quais o País passa também contribuem para o endurecimento em relação à punição”.

Nas questões comportamentais, o conservadorismo não cresceu. Os mesmos 78% de 2010 continuam se declarando contrários à legalização do aborto, mas a taxa dos favoráveis cresceu de 10% para 17% (os “nem contra nem a favor” caíram de 10% para 4%). E aumentou significativamente a aceitação do casamento entre pessoas do mesmo sexo: de 25% para 42%. Agora há um empate técnico com os contrários (estes caíram de 54% para 44%).

O medo da violência, portanto, é o principal drive do conservadorismo no Brasil do século 21. Mas não é o único. Pela ordem, os segmentos sociais e demográficos mais conservadores são:
* os evangélicos (índice 0,717 e crescendo),
* os homens (0,706 e em alta) e
* os menos escolarizados (0,701).
Na outra ponta estão os que não são católicos nem evangélicos (0,649) e quem fez faculdade: 0,650. Este é um dos raros estratos onde o conservadorismo diminuiu. Não é coincidência.

Fonte: O Estado de S. Paulo – Política/Colunistas – Quinta-feira, 22 de dezembro de 2016 – Pág. A6 – Internet: clique aqui.

Celebrar o quê?

Crime no metrô mostra retrocesso no país
que celebra a Lava Jato

Leandro Colon

É assustador como convivemos passivamente com a violência
e a barbárie no Brasil
À esquerda, foto do ambulante Luiz Carlos Ruas e à direita a cena em que dois primos
acabam de assassiná-lo cruelmente numa estação de metrô de S. Paulo

Há sinais de evolução em um país que coloca políticos corruptos na cadeia e de retrocesso, numa escala muito maior, em episódios como o que matou o ambulante Luiz Carlos Ruas.

Não deixa de impressionar a forma com que convivemos com a barbárie. Protestamos por um tempo e, de certo modo, a vida segue.

É tenebrosa a cena da morte de Ruas, a mais impactante da última semana de 2016. Caído no chão, ele recebe socos de um homem. Um primo do agressor pisa em sua cabeça.

O homicídio ocorreu no dia de Natal numa estação de metrô de São Paulo e foi gravado pelas câmeras do local. Durante o ano que passou, muitos Ruas podem ter morrido de forma semelhante, provavelmente sem registros de imagens.

A gravação feita no metrô choca pela crueldade e também pela ausência de segurança da estação e de solidariedade dos que assistiam ao espancamento — o vídeo ao menos facilitou a identificação e a prisão dos dois suspeitos dias depois.

A família do ambulante morto não tem o que comemorar na noite deste sábado (31 de dezembro), assim como os parentes de Jonathan Moreira Ferreira, Cesar Augusto Gomes Silva, Caíque Henrique Machado Silva, Robson Fernando Donato de Paula e Jones Ferreira Januário.

Os cinco moradores da periferia foram encontrados mortos em novembro, vítimas de uma chacina em Mogi das Cruzes. Só uma pessoa foi denunciada até agora pelo crime.

É um guarda-civil que confessou ter armado emboscada e negou envolvimento na morte dos jovens.

Um ex-governador do Rio, dois ex-ministros da Casa Civil e um ex-presidente da Câmara, todos figurões acusados na Lava Jato de integrar um esquema de corrupção, passarão a virada do ano numa cela.

Mas não faz muito sentido celebrar com efusão a punição de quem desvia verba pública se falhamos em proteger aqueles que deveriam ser os mais beneficiados por ela.

Fonte: Folha de S. Paulo – Colunistas – Sábado, 31 de dezembro de 2016 – 02h00 (Horário de Brasília - DF) – Internet: clique aqui.

Uma das grandes lições de 2016

A fome e a vontade de comer

Editorial

A Odebrecht não foi vítima, mas um dos pilares da corrupção


O acordo de leniência que a Odebrecht e a Braskem fecharam com autoridades judiciais do Brasil, dos Estados Unidos e da Suíça revelou que a empreiteira e sua subsidiária do setor petroquímico pagaram cerca de US$ 788 milhões em propinas desde 2003 — ano em que o PT chegou à Presidência — para ganhar contratos de obras em 12 países. O valor e o alcance do esquema de corrupção envolvendo a Odebrecht, considerado pelos norte-americanos como o maior da história, denotam que não se tratava de algo acidental ou eventual. A compra de agentes públicos no Brasil e no exterior para obter contratos era, de fato, um método de administração rotineiro, que contava até mesmo com um departamento específico dentro da empresa para a realização dessas negociatas.

“A Odebrecht e seus coconspiradores criaram uma estrutura secreta financeira que operou para contabilizar e desembolsar pagamentos de propina em benefício de políticos, partidos e candidatos”, diz o documento do Departamento de Justiça americano. Ou seja, no entender daqueles investigadores, a empresa não foi mera vítima de um sistema corrupto, e sim um de seus pilares. Como afirmou o jornal Financial Times, “a Odebrecht, o maior grupo de construção da América Latina, corre o risco de ser mais conhecida por criar uma das maiores máquinas de suborno da história corporativa”.

Essa constatação desmancha uma linha de defesa usada pela Odebrecht. A empresa buscou retratar sua participação no esquema de assalto aos cofres públicos durante os governos petistas como algo quase inevitável, pois, segundo essa versão, seria praticamente impossível fazer negócios com o Estado sem recorrer ao pagamento de subornos. Logo, a Odebrecht, a exemplo das demais empreiteiras envolvidas na Lava Jato, seria vítima, e não mentora, de um sistema ubíquo de corrupção. Foi isso o que a empresa sugeriu quando mandou publicar um pedido de desculpas por sua participação no escândalo, dizendo que cedeu a “pressões externas” e prometendo não tornar a “invocar condições culturais ou usuais do mercado como justificativa para ações indevidas”.

Ora, não pode se dizer simples subsidiária do poder político uma empresa que subornou autoridades do Brasil, Angola, Argentina, Colômbia, República Dominicana, Equador, Guatemala, México, Moçambique, Panamá, Peru e Venezuela. O pagamento sistemático de propinas nesses países resultou em contratos de cerca de 100 projetos, vários deles financiados por bancos públicos brasileiros e que renderam US$ 3,336 bilhões à empreiteira.

Nas contas do Ministério Público da Suíça, para cada US$ 1 milhão “investido”
em suborno, a Odebrecht teve US$ 4 milhões em contratos.

Em sua defesa, contudo, deve-se enfatizar que, nesse caso, a fome coincidiu com a vontade de comer: a Odebrecht construiu esse esquema muito bem-sucedido de corrupção porque encontrou, no governo petista, o comparsa ideal para tal empreendimento.

Se de um lado havia um clube de empresas, lideradas pela Odebrecht, cujo objetivo era monopolizar os preciosos contratos com o governo, de outro havia um governo que tinha um projeto de poder sem paralelo na história brasileira. Esse projeto dependia de amplo e permanente financiamento, que só se tornou possível graças ao acesso fácil ao dinheiro público, desviado na forma de contratos superfaturados com as empresas do tal clube.

Felizmente, por conta da Operação Lava Jato, toda essa farsa ruiu. De um lado, desmoronou o partido que pretendia eternizar-se no poder corrompendo a democracia; de outro, a Odebrecht, ante a perspectiva de insolvência, admite agora publicamente seus crimes, aceita pagar uma multa de R$ 6,9 bilhões — o maior valor já fixado em casos de corrupção em todo o mundo — e promete se regenerar.

Embora dramáticos, esses acontecimentos certamente apontam para um país melhor, em que a corrupção não seja mais encarada como algo natural, cultural ou inevitável no relacionamento entre empresas e o poder público.

Fonte: O Estado de S. Paulo – Notas e Informações – Sábado, 31 de dezembro de 2016 – Pág. A3 – Internet: clique aqui.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

MINISSÉRIE IMPERDÍVEL!

“Pode me chamar de Francisco”

Fernanda P. Garcia

É a América Latina no centro das grandes produções
Cena com o ator que interpreta padre Jorge Mario Bergoglio na minissérie

Pode me chamar de Francisco não é sobre a Igreja Católica, tão pouco é um testemunho de fé. A minissérie da Netflix é mais do que isso. Escrita e dirigida pelo italiano Daniele Luchetti, a produção mostra a juventude do Papa em Buenos Aires, quando ainda era conhecido por Jorge Mario Bergoglio, na década de 1960 e, ao contar a vida do padre, faz mais do que narrar seus passos desde o que ele chama de encontro com Cristo até a ascensão a líder maior da Igreja romana. A grata surpresa na produção da Netflix, é sua impetuosidade em mostrar ao mundo as chagas abertas das ditaduras latino-americanas, neste caso a da Argentina.

Assim, a minissérie em quatro capítulos não procura isentar a Igreja por tantas vezes ter ficado do lado errado da História. Mas destaca a importância de escolher, ainda que sua voz seja a única a levantar-se, o lado decente. Este é um daqueles casos raros de produção audiovisual que o lugar de onde se conta a história é mais importante do que a história em si. O que coloca a produção em um patamar além do mero entretenimento, fazendo dela uma leitura documental da América Latina, sua política, sua história e, acima de tudo, a história do seu povo.

Antes de ser o primeiro jesuíta e sacerdote latino-americano a ocupar o posto máximo da Igreja Católica, Bergoglio foi um padre que esperava ser mandado para o Japão como missionário, mas ele não estava pronto. Os caminhos que a própria Igreja traçou para ele foram muito diferentes do que o jovem padre almejava e, talvez, diferentes até mesmo do que seus superiores imaginavam. Formado em engenharia química, foi professor de Literatura, diretor de escola, estudante de Teologia na Alemanha, padre em comunidade pobre, cardeal argentino.

Apesar de já ter dado declarações polêmicas para um sumo pontífice, como quando declarou que a Igreja católica deve desculpas aos homossexuais ou que mães que não são casadas devem ser acolhidas e ter suas crianças batizadas se assim o quiserem, nós temos plena convicção de que não é um homem sozinho que vai mudar os dogmas patriarcais da Igreja Católica. No entanto, em um mundo onde a gente ainda morre por ser mulher e apanha por conta de orientação sexual, o posicionamento da maior figura de uma religião neste sentido é significativo.

E é este Bergoglio que lê as leis da Igreja de maneira a tentar ir ao máximo de encontro com os ensinamentos de Jesus, que a minissérie destaca. Antes de pensar em “como fica a Igreja neste caso”, Bergoglio preocupava-se em “como ficam as pessoas neste caso”, e foi isso que o fez abrigar e transportar perseguidos políticos, estar ao lado de favelados, convencer um cardeal a rezar uma missa, minutos antes de a polícia cumprir um mandado de reintegração de posse. Não, o papa Chico não vai redimir todos os pecados da Igreja e, muito provavelmente, talvez ele mesmo não os enxergue como pecado. Mas certamente a trajetória do padre Bergoglio narrada em Pode me chamar de Francisco, expondo a olhos nus a carnificina da Guerra Suja argentina, colocando a história da América Latina no centro das grandes produções audiovisuais, é digna de ser acompanhada, admirada e melhor entendida por todo aquele que se intitula cristão.

Assista ao trailer oficial da minissérie “Pode me chamar de Francisco”,
clicando abaixo:


Fonte: Séries por elas – Primeiras impressões / Tá no ar – Segunda-feira, 19 de dezembro de 2016 – Internet: clique aqui.

domingo, 25 de dezembro de 2016

Vergonha: a omissão do Ocidente

Alepo deixa lições sobre a omissão do Ocidente

The Economist

Quando os interesses prevalecem sobre os valores,
as consequências podem ser atrozes
Criança é socorrida após bombardeio que destruiu sua casa e matou sua família em Alepo.
A tristeza, o trauma, o choque são tão intensos que a criança nem chora!!!

Grozny, Dresden, Guernica: há cidades que fazem história com sua destruição. Alepo, que já foi o maior centro urbano da Síria, entrará para o grupo. Seu patrimônio histórico, que remonta ao século 12, foi reduzido a ruínas. Caças russos atacaram seus hospitais e escolas. Há mais de quatro anos, os habitantes da cidade são vítimas de mísseis, bombas, gás tóxico e fome.

Ninguém sabe quantos dos milhares de civis ainda abrigados no último enclave árabe sunita de Alepo perecerão sob os escombros que até agora lhes serviram de escudo. A carnificina pôs por terra o princípio de que os inocentes devem ser poupados dos efeitos mais destrutivos da guerra. Em seu lugar, emergiu uma realidade bárbara e cruel, que ameaça tornar o mundo um lugar mais perigoso e instável.

Para se ter uma ideia da dimensão da tragédia de Alepo, é importante lembrar que nas primeiras manifestações contra o presidente da Síria, Bashar Assad, em 2011, os sunitas marchavam alegremente ao lado dos xiitas, cristãos e curdos. Desde o princípio, com o auxílio inestimável do Irã, Assad tratou de inviabilizar qualquer tentativa de resistência pacífica a seu regime, recorrendo à violência para radicalizar o povo sírio.

No início, a acusação de que todos os rebeldes eram “terroristas” beirava o ridículo. Hoje, alguns deles de fato se enquadram na descrição. No desenrolar do conflito, sucederam-se alguns momentos críticos, em que as potências ocidentais poderiam ter intervindo, estabelecendo uma zona de exclusão aérea ou uma área protegida, onde os civis pudessem se refugiar, ou mesmo um programa para armar os rebeldes de maneira mais efetiva.

No entanto, paralisado pelo legado do Iraque e do Afeganistão, o Ocidente hesitou. Com o passar dos meses, a carnificina recrudesceu e a necessidade de intervir se tornou mais urgente. Mas os riscos e a complexidade de uma operação militar também aumentaram consideravelmente.
Aviões russos bombardeiam Alepo em socorro ao ditador sírio Assad

Com Assad prestes a cair, a Rússia resolveu meter sua colher, sem a menor consciência, e com efeitos devastadores. A queda de Alepo é prova de que Assad prevaleceu. Também evidencia a influência do Irã. Mas quem realmente saiu ganhando foi a Rússia, que voltou a ser um ator relevante no Oriente Médio.

Por sua vez, a derrota não é um golpe apenas para os adversários de Assad, mas também para a convicção ocidental de que, em política externa, os valores importam tanto quanto os interesses.

Depois do genocídio de Ruanda, em 1994, quando o mundo assistiu de braços cruzados ao massacre dos tutsis, a comunidade internacional reconheceu ser seu dever atuar para coibir a selvageria da força bruta. Com os países-membros da ONU assumindo a responsabilidade de proteger as vítimas dos crimes de guerra, as convenções contra o uso de armas químicas e o assassinato indiscriminado de civis ganharam importância renovada.

Ruínas e cinzas

Esse ideal de internacionalismo liberal foi seriamente abalado. As campanhas militares que os Estados Unidos lideraram no Afeganistão e no Iraque mostraram que nem a nação mais poderosa da história é capaz de impor a democracia à força. Ainda que não tão evidente, o impacto da tragédia de Alepo é igualmente grave.

Diante das atrocidades cometidas por Assad, as potências ocidentais se limitaram a proferir lugares-comuns diplomáticos. Esquivando-se de sair em defesa das coisas em que supostamente acredita, o Ocidente transmitiu a mensagem de que seus valores são apenas palavras, que podem ser impunemente ignoradas.

São muitos os responsáveis por isso. Em 2013, mesmo depois de Assad ter atacado áreas controladas pelos rebeldes com gás sarin, ultrapassando aquele que, segundo os americanos, seria o limite do tolerável, o Parlamento britânico votou contra a realização de ações militares, ainda que de alcance limitado.

Com milhões de sírios buscando refúgio em países vizinhos, como Líbano e Jordânia, os europeus preferiram, em sua maioria, agir como se não tivessem nada a ver com o problema; quando não levantaram barreiras para impedir a entrada de refugiados.

A dose de responsabilidade de Barack Obama não é pequena. Para o presidente americano, a Síria era uma armadilha a ser evitada. Sua previsão de que a Rússia acabaria atolada no pântano sírio revelou-se um gigantesco erro de avaliação.
Aquilo que sobrou de uma das ruas de Alepo, na Síria

Durante seu governo, Obama tentou fazer que o mundo trocasse um sistema em que, para defender seus valores, os EUA agiam frequentemente sozinhos, trazendo a reboque alguns países, como a Grã-Bretanha, por um arranjo em que todos os países arcassem com a tarefa de proteger as normas internacionais, uma vez que todos se beneficiam delas.

Alepo dá a medida exata do fracasso dessa política. Com os EUA relutando em desempenhar seu papel, o vazio foi preenchido não por países responsáveis, preocupados em preservar a ordem internacional, mas por nações como Rússia e Irã, que enxergam na defesa dos valores ocidentais um plano maquiavélico para promover mudanças de regime em Moscou e Teerã.

Bem-vindos ao bazar

Em tese, o próximo presidente americano poderia tentar reverter a situação. Mas Donald Trump acha que as intervenções liberais são coisa de gente trouxa.

A indicação de Rex Tillerson, principal executivo da multinacional de petróleo e gás ExxonMobil, para o Departamento de Estado, só reforça a mensagem que o republicano veiculou durante a campanha eleitoral: na Casa Branca, sua preocupação será realizar negociações em torno de interesses, não de valores.

Limites

Negociar interesses é parte essencial da diplomacia - especialmente nas relações com adversários, como a Rússia e o Irã, e concorrentes, como a China. Mas uma política externa que passa de uma negociação a outra, sem ser orientada por uma estratégia e sem estar ancorada em valores, comporta graves riscos.

Um deles é que os aliados sejam usados como moeda de troca. Trump já insinuou que, em contrapartida à redução no déficit comercial dos EUA com a China, pode abrir mão de seu apoio a Taiwan. Se Tillerson fechar um acordo abrangente com os amigos que tem na Rússia, envolvendo, por exemplo, a retirada das tropas americanas dos territórios da linha de frente da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), em troca de uma ação diplomática coordenada contra o Irã ou a China, isso deixaria os países bálticos expostos a agressões russas.
Mulher ferida e coberta de poeira após mais um dos tantos bombardeios em Alepo

Uma ordem com base exclusivamente em interesses também corre o risco de ser imprevisível e instável. Se Trump não conseguir fazer negócio com a Rússia, a tensão entre os dois países pode se agravar rapidamente - e então a cabeça fria de Obama fará uma falta enorme.

Quando o poder dita as regras do jogo, os países menores são excluídos das negociações ou têm de aceitar condições desfavoráveis, enquanto as grandes potências deitam e rolam. Sem uma estrutura que lhes sirva de referência, os acordos precisam ser frequentemente renegociados, com resultados incertos. A solução para problemas complexos, como as mudanças climáticas, torna-se ainda mais difícil.

O mundo está vendo o que acontece quando os valores não conseguem deter o caos e a anarquia da geopolítica. Na trágica e abandonada Alepo, os combates têm sido inclementes e atrozes. Quem mais sofre são os pobres e inocentes.

Traduzido do inglês por Alexandre Hubner.

Fonte: O Estado de S. Paulo – Internacional – Domingo, 18 de dezembro de 2016 – Pág. A18 – Internet: clique aqui.

Papa Francisco e seu discurso à Cúria Romana

Francisco ataca a “resistência maliciosa, nascida das mentes distorcidas”

Jesús Bastante

“A reforma da Cúria não é uma cirurgia para retirar rugas.
Não devemos temer rugas, mas manchas” 


Se alguém queria respostas, aqui vão umas tantas. O Papa Francisco lançou na manhã do dia 22 de dezembro, quinta-feira passada, uma dura, duríssima condenação contra algumas “resistências maliciosas” que vêm de “mentes distorcidas” patrocinadas “pelo diabo”, durante seu discurso de Natal à Cúria Romana. Um discurso no qual Bergoglio aproveitou para reivindicar a tarefa realizada e para insistir em uma dúzia de “mandamentos” para continuar reformando a Igreja.

Palavras que foram escutadas sob um silêncio impávido por parte dos responsáveis curiais, e que não passaram despercebidas aos quatro cardeais (que questionaram a exortação apostólica de Papa Francisco “Amoris Laetitia”), porém tampouco àqueles aos quais Francisco denominou como exemplos de “gatopardismo espiritual”: os que aplaudem o Papa, porém não fazem nada. Uma autêntica chamada de atenção que volta a colocar o centro da reforma curial não em uma mudança de figurinhas, mas “em uma autêntica conversão”.

Francisco entrou na Sala Clementina poucos minutos depois das dez e meia da manhã. Ali esperava-o a Cúria, capitaneada pelo cardeal Angelo Sodano que, como decano do Colégio Cardinalício, dirigiu uma palavras a Francisco, mostrando sua “proximidade” ao Pontífice. Trata-se da quarta ocasião na qual, antes de Natal, Bergoglio se reúne com os membros da Cúria. Sodano agradeceu ao Papa pelo Ano da Misericórdia, e frisou como o nascimento de Jesus “é a primeira prova da misericóridia”.

Sodano agradeceu ao Papa seu empenho pelo diálogo inter-religioso, assim como, seu trabalho pela paz no Oriente Médio, especialmente na Síria. “Venerado e amado Papa Francisco, desejamos continuar prestando nosso humilde serviço ao senhor, como pastor da Igreja e como bom samaritano e pastor do mundo”.

Francisco iniciou seu longo discurso, sublinhando que “a Natividade é a festa da humildade amante de Deus”, onde “a lógica divina supera nossa lógica humana”. Por isso, “no Natal somos chamados a dizer sim, com nossa fé, a Deus, que é o humilde amante”.

A partir dessa humildade, e dizendo não à “lógica mundana do poder, do comando, da lógica farisaica e determinista”, Francisco falou do quadro da reforma da Cúria que, como os exercícios espirituais inacianos, deve trabalhar nestes critérios: “deformata reformare, reformata conformare, conformata confirmare e confirmata transformare” (trad.: deformada reformar, reformada conformar, conformada confirmar e confirmada transformar). Um processo de mudança contínua.

A Boa Nova deve ser lançada a todos, especialmente aos pobres, humildes e descartados, conforme os sinais dos tempos e estando atentos aos homens e mulheres de hoje”, assinalou o Papa, que recordou que a Cúria tem, entre outras finalidades, “colaborar no ministério próprio do Sucessor de Pedro, e, por conseguinte, apoiar o Romano Pontífice no exercício do seu poder singular, ordinário, pleno, supremo, imediato e universal”.

“Não sendo a Cúria uma estrutura imóvel, a reforma é, antes de tudo, sinal da vivacidade da Igreja em caminho, em peregrinação, e da Igreja viva e, por isso – porque viva –, sempre reformando-se, necessitada de ser reformada porque está viva. Torna-se necessário reiterar vigorosamente que a reforma não é fim em si mesmo, mas constitui um processo de crescimento e sobretudo de conversão”, recordou Bergoglio, que acrescentou que a reforma “a reforma não tem uma finalidade estética, como se se quisesse tornar mais bela a Cúria; nem se pode entender como uma espécie de avivamento, maquilhagem ou truco para embelezar o velho corpo curial, e nem mesmo como uma operação de cirurgia plástica para tirar as rugas”. Porque “não são as rugas que se devem temer na Igreja, mas as manchas!”.

Neste ponto, o Papa insistiu em que “a reforma será eficaz única e exclusivamente se for implementada com homens «renovados» e não apenas com homens «novos»”. O Papa prosseguiu explicando que “a reforma da Cúria não se atua de forma alguma com a mudança das pessoas – que, sem dúvida, tem acontecido e acontecerá – mas com a conversão nas pessoas. Na realidade, não basta uma formação permanente, é preciso também e sobretudo uma conversão e uma purificação permanentes. Sem uma mudança de mentalidade, o esforço funcional não teria qualquer utilidade”.

Neste ponto, Francisco recordou como, nas ocasiões precedentes, denunciou as “enfermidades” da Cúria. E explicou o motivo: “Era necessário falar de doenças e tratamentos, porque cada operação, para ter sucesso, deve ser antecedida por diagnósticos profundos, por análises cuidadosas e deve ser acompanhada e seguida por prescrições concretas”. E entre elas, dos distintos tipos de resistências.

Em primeiro lugar, “a resistência aberta, que nasce da boa vontade e do diálogo sincero”. Em segundo, “as resistências ocultas, nascem dos corações assustados ou empedernidos que se alimentam das palavras vazias da hipocrisia espiritual de quem, com a boca, se diz pronto à mudança, mas quer que tudo permaneça com antes”.

E, finalmente, “as resistências malévolas, que germinam em mentes tortuosas e aparecem quando o diabo inspira más intenções (muitas vezes disfarçadas sob pele de cordeiros)”. Este último tipo de resistências às mudanças na Igreja, “esconde-se por trás das palavras justificadoras e, em muitos casos, acusatórias, refugiando-se nas tradições, nas aparências, nas formalidades, no conhecido, ou então em querer reduzir tudo a um caso pessoal, sem distinguir entre o ato, o ator e a ação”.

Isto não quer dizer que não se possa criticar, mas bem o contrário. E é que “a ausência de reação é sinal de morte! Por isso as resistências boas – e até as menos boas – são necessárias e merecem ser escutadas, acolhidas e encorajadas a expressar-se, porque é um sinal de que o corpo está vivo”.

O Papa continuou, “Tudo isto, para dizer que a reforma da Cúria é um processo delicado que deve ser vivido com fidelidade ao essencial, discernimento contínuo, coragem evangélica, sabedoria eclesial, escuta cuidadosa, ação tenaz, silêncio positivo, decisões firmes, muita oração – tanta oração! –, profunda humildade, clarividência, passos concretos em frente e – se necessário – passos também para trás, vontade decidida, vitalidade vibrante, poder responsável, obediência incondicional; mas, em primeiro lugar, com o abandono à orientação segura do Espírito Santo, confiando no seu apoio necessário”. E não com táticas secretas ou queixas formais ou ameaças de cisma.

Após a declaração de intenções, o Papa traçou os doze “critérios-guia” para a reforma da Igreja, que são os seguintes:

1- Individualidade (conversão pessoal)

Volto a reiterar a importância da conversão individual, sem a qual serão inúteis todas as mudanças nas estruturas. A verdadeira alma da reforma são os seres humanos que estão envolvidos nela e a tornam possível. Com efeito, a conversão pessoal sustenta e reforça a comunitária.

Há uma forte relação de intercâmbio entre o comportamento pessoal e o comunitário. Uma única pessoa pode fazer muito bem a todo o corpo, como poderia danificá-lo e fazê-lo adoecer. E um corpo saudável é aquele que sabe recuperar, acolher, fortificar, cuidar e santificar os seus próprios membros.

2- Pastoralidade (conversão pastoral)

Fazendo apelo à imagem do pastor (cf. Ez 34,16; Jo 10,1-21) e sendo a Cúria uma comunidade de serviço, «far-nos-á bem, também a nós, chamados a ser Pastores na Igreja, deixar que a Face do Deus Bom Pastor nos ilumine, nos purifique, nos transforme e nos restitua plenamente renovados à nossa missão. Que também nos nossos ambientes de trabalho possamos sentir, cultivar e praticar um forte sentido pastoral, antes de tudo em relação às pessoas que encontramos todos os dias. Que ninguém se sinta ignorado ou maltratado, mas cada um possa experimentar, antes de tudo aqui, a atenção carinhosa do Bom Pastor». Atrás dos papéis, há pessoas.

O compromisso de todo o pessoal da Cúria deve ser animado por uma pastoralidade e uma espiritualidade de serviço e comunhão, pois isto é o antídoto contra todos os venenos da vã ambição e da rivalidade ilusória. Neste sentido, o Beato Paulo VI advertiu: «Não seja, portanto, a Cúria Romana uma burocracia, como erradamente alguém a julga, pretensiosa e apática, apenas canonista e ritualista, um ringue de ocultas ambições e surdos antagonismos, como a acusam outros; mas seja uma verdadeira comunidade de fé e caridade, de oração e ação; de irmãos e filhos do Papa, que tudo fazem, cada um no respeito da competência alheia e com sentido de colaboração, para o servir no seu serviço aos irmãos e aos filhos da Igreja universal e de toda a terra».

3- Missionariedade (cristocentrismo)

É o fim principal de todo o serviço eclesial, ou seja, levar a boa nova a todos os confins da terra, como nos lembra o magistério conciliar, porque «há estruturas eclesiais que podem chegar a condicionar um dinamismo evangelizador; de igual modo, as boas estruturas servem quando há uma vida que as anima, sustenta e avalia. Sem vida nova e espírito evangélico autêntico, sem ‘fidelidade da Igreja à própria vocação’, toda e qualquer nova estrutura se corrompe em pouco tempo».[23]

4- Racionalidade

Com base no princípio de que todos os Dicastérios são juridicamente iguais entre si, era necessária uma racionalização dos organismos da Cúria Romana, para evidenciar que cada Dicastério tem competências próprias. Tais competências devem ser respeitadas, mas também distribuídas com racionalidade, eficácia e eficiência. Por isso nenhum Dicastério pode atribuir-se a competência doutro Dicastério, segundo o que está estabelecido pelo direito, e todos os Dicastérios fazem referência direta ao Papa.

5- Funcionalidade

A eventual incorporação num único Dicastério de dois ou mais Dicastérios competentes sobre matérias afins ou intimamente relacionadas serve, por um lado, para dar ao mesmo Dicastério uma maior relevância (mesmo exterior) e, por outro, a contiguidade e a interação das diferentes realidades no seio de um único Dicastério ajuda a ter maior funcionalidade (são exemplo disso mesmo os dois novos Dicastérios recentemente instituídos).

A funcionalidade requer também a revisão contínua das funções e da atinência das competências e responsabilidades do pessoal e, consequentemente, a realização de deslocamentos, assunções, interrupções e também promoções.

6- Modernidade (atualização)

Ou seja, a capacidade de ler e auscultar os «sinais dos tempos». Neste sentido, «providenciemos solicitamente para que os Dicastérios da Cúria Romana se coadunem às situações do nosso tempo e se adaptem às necessidades da Igreja universal». Assim o solicitara o Concílio Vaticano II: os Dicastérios da Cúria Romana «sejam reorganizados, segundo as necessidades dos tempos, das regiões e dos ritos sobretudo quanto ao número, nome, competência e modo de proceder de cada um, bem como no que respeita à coordenação recíproca dos trabalhos».

7- Sobriedade

Nesta perspectiva, são necessários uma simplificação e um aligeiramento da Cúria: incorporação ou fusão de Dicastérios segundo assuntos de competência e simplificação interna de cada um dos Dicastérios; eventuais supressões de Departamentos que se revelem desajustados das necessidades contingentes. Inserção nos Dicastérios ou redução das comissões, academias, comitês, etc. Tendo sempre em vista a sobriedade indispensável para um testemunho digno e autêntico.

8- Subsidiariedade

Reordenamento de competências específicas dos vários Dicastérios, deslocando-as, se necessário, de um Dicastério para outro, a fim de alcançar a autonomia, a coordenação e a subsidiariedade nas competências e a interconexão no serviço.

Neste sentido, é necessário respeitar também os princípios da subsidiariedade e da racionalização na relação com a Secretaria de Estado e no seio dela mesma – entre as suas diferentes competências – para que, no cumprimento das próprias funções seja a ajuda direta e mais imediata do Papa. E isto também para uma melhor coordenação dos vários setores dos Dicastérios e dos Departamentos da Cúria. A Secretaria de Estado poderá realizar esta sua importante função, precisamente na realização da unidade, interdependência e coordenação das suas Secções e dos seus vários setores.

9- Sinodalidade

O trabalho da Cúria deve ser sinodal: reuniões periódicas dos Chefes de Dicastério, presididas pelo Romano Pontífice; audiências regulares previstas dos Chefes de Dicastério; reuniões habituais interdicasteriais. A redução do número de Dicastérios permitirá encontros mais frequentes e sistemáticos dos diferentes Prefeitos com o Papa e reuniões eficazes dos Chefes dos Dicastérios, não o podendo ser com um grupo demasiado grande.

A sinodalidade deve ser vivida também dentro de cada Dicastério, dando particular realce ao Congresso e maior frequência pelo menos à Sessão ordinária. No seio de cada Dicastério, deve-se evitar a fragmentação que pode ser determinada por vários fatores, tais como a proliferação de setores especializados, que podem tender para serem autorreferenciais. A coordenação entre eles deveria ser tarefa do Secretário ou do Subsecretário.

10- Catolicidade

Entre os colaboradores, além dos sacerdotes e consagrados/as, a Cúria deve refletir a catolicidade da Igreja com a assunção de pessoal proveniente de todo o mundo, de diáconos permanentes e fiéis leigos, cuja escolha deve ser cuidadosamente feita com base na sua vida espiritual e moral exemplar e na sua competência profissional. É oportuno prever o acesso de um número maior de fiéis leigos, especialmente nos Dicastérios onde eles possam ser mais competentes que os clérigos ou os consagrados. Além disso é de grande importância a valorização do papel da mulher e dos leigos na vida da Igreja e a sua integração nas lideranças dos Dicastérios, com particular atenção à multiculturalidade.

11- Profissionalismo

É indispensável que cada Dicastério adote uma política de formação permanente do pessoal, para evitar o enferrujamento e a queda na rotina do funcionalismo.

Por outro lado, é indispensável a arquivação definitiva da prática do promoveatur ut amoveatur [trad. livre: promovido para ser removido]. Isto é um câncer.

12- Gradualidade (discernimento)

A gradualidade é o fruto daquele indispensável discernimento que envolve processo histórico, estipulação de tempos e etapas, verificação, verificação, correções, experimentação, aprovações ad experimentum [trad.: experimental]. Nestes casos, portanto, não se trata de indecisão, mas da flexibilidade necessária para se poder alcançar uma verdadeira reforma.”

Em seguida aos critérios de reforma da Cúria, o Papa valorizou todos os passos dados até agora, desde:
* a criação do C9 [Comissão dos 9 cardeais que assessoram o Papa Francisco]
* à reforma dos Estatutos da Academia pela Vida,
* passando pela instituição da COSEA (Pontifícia Comissão referente de estudo e orientação sobre a organização da estrutura econômico-administrativa),
* AIF (Autoridade de Informação Financeira),
* Secretaria para a Economia e o Conselho para a Economia,
* Pontifícia Comissão para a Tutela de Menores,
* Secretaria para a Comunicação,
* os motu proprio sobre a Negligência dos Bispos no exercício de seu ofício,
* a criação do Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida e
* o Dicastério para o Serviço Humano Integral (Justiça e Paz, Cor Unum, Imigrantes e Cooperadores Sanitários).

Papa Francisco encaminhando-se para a conclusão de seu discurso, disse: “Comecei falando do significado do Natal, o coração, o centro da reforma é Cristo. Quero concluir somente com uma palavra e uma oração. A palavra é que o Natal é a festa da humildade amante de Deus”. Em sua oração, o Papa pediu para “curar todo orgulho e toda arrogância”.

Ao término de suas palavras, o Papa anunciou um presente aos membros da Cúria Romana: a nova edição, revisada, em língua italiana, de um livro do jesuíta Claudio Acquaviva, “Aggiornamenti per curar le malattie dell’anima” (trad.: Atualizações para tratar as doenças da alma”). A ideia desse livro, curiosamente, foi dada, há dois anos atrás, pelo cardeal Brandmüller, um dos quatro que recentemente tiveram “dúvidas” sobre certas afirmações do Papa Francisco em sua exortação apostólica pós-sinodal Amoris Laetitia. Quem tem ouvidos...

Para ler, na íntegra, o discurso de Papa Francisco no encontro com a
Cúria Romana na apresentação de votos natalícios, clique aqui.

Traduzido do espanhol por Telmo José Amaral de Figueiredo.

Fonte: Religión Digital – Vaticano – Quinta-feira, 22 de dezembro de 2016 – 11h27 (Horário Centro Europeu) – Internet: clique aqui.