«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Solenidade da Santa Mãe de Deus – 01/01/2022 – HOMILIA

 Evangelho: Lucas 2,16-21

 Alberto Maggi *

Frade da Ordem dos Servos de Maria (Servitas) e renomado biblista italiano 

Acolher a novidade, eis o desafio!

O primeiro dia do novo ano se abre com um desejo, com uma BOA NOTÍCIA. E que notícia é essa, aquela que o evangelista Lucas nos traz? Que aqueles que a religião tratava e considerava como os mais distantes de Deus, na verdade, para Jesus, são os mais próximos do Senhor. Vamos ouvir o que o evangelista nos escreve no capítulo 2 de seu Evangelho, nos versículos 16 a 21. 

Para entender o que o evangelista está nos dizendo, precisamos dar um passo atrás e falarmos dos pastores. Os pastores eram considerados pessoas impuras por sua atividade, eram considerados marginalizados, eram excluídos como pecadores da religião, porque viviam de um modo fora da lei, eles certamente não poderiam participar das funções do templo ou da sinagoga. Acreditava-se que, quando o messias chegasse, ele os castigaria, ele os puniria. Pois bem, quando o Anjo do Senhor, que é o próprio Deus, entra em contato com os pastores, não os incinera na sua ira, mas os envolve com a sua luz, isto é, com o seu amor.

O evangelista refuta a doutrina tradicional de um Deus que recompensa os bons e pune os maus.

Quando Deus se encontra com os pecadores, não os repreende, não os castiga, não os pune, mas os envolve com o seu amor, este é o fato que precede esta cena. 

Lucas 2,16:** «Naquele tempo: Os pastores foram às pressas a Belém e encontraram Maria e José, e o recém-nascido, deitado na manjedoura.»

O filho de Deus, que lhes foi anunciado, não nasceu em palácio, nem mesmo em um templo, mas na condição que eles conhecem. Na realidade deles! 

Lucas 2,17-18: « Tendo-o visto, contaram o que lhes fora dito sobre o menino. E todos os que ouviram os pastores ficaram maravilhados com aquilo que contavam.»

O que o Anjo do Senhor lhes disse? O anjo do Senhor comunicou-lhes uma grande alegria pelo nascimento do salvador, portanto não a chegada do carrasco, daquele que recompensava os bons e punia os maus, mas do SALVADOR, e esta boa notícia seria para todas as pessoas. É estranho que, por parte de quem escuta, não haja reação de alegria a esta notícia, apenas perplexidade. Lucas escreve: «Todos os que ouviram ficaram maravilhados», isto é, ficam desconcertados, há algo errado, porque, na doutrina tradicional, Deus castiga os pecadores. Como essas pessoas (os pastores), que são pecadoras, impuras, dizem que Deus as rodeou, envolveu-as em seu amor? Então, eles ficam chocados com as coisas que os pastores lhes dizem. O que a religião lhes ensinava sobre Deus desaba:

... é a novidade, é o escândalo da MISERICÓRDIA, que será o fio condutor de todo o Evangelho de Lucas.

Lucas 2,19: «Quanto a Maria, guardava todos estes fatos e meditava sobre eles em seu coração.»

Até Maria ficou maravilhada, ficou desconcertada com essa novidade. Por isso, o evangelista diz que ela «examinava tudo em seu coração», interpretando-as, esse verbo usado pelo evangelista indica procurar o verdadeiro sentido de algo. Maria também fica perplexa com essa novidade, porque não corresponde ao que a religião sempre ensinou, mas ela não a rejeita, começa a pensar sobre isso, começa a refletir sobre isso. E o evangelista inicia a destacar o grande crescimento de Maria, que a levará até a cruz de seu filho.

Maria é grande não tanto por ter dado à luz Jesus, por ser sua mãe, mas por ter tido a coragem de segui-lo e tornar-se sua discípula.

Lucas 2,20: «Os pastores voltaram, glorificando e louvando a Deus por tudo que tinham visto e ouvido, conforme lhes tinha sido dito.»

Para entender o que o evangelista, agora, está nos dizendo, que é clamoroso, extraordinário, sensacional, precisamos nos referir à cultura da época. Onde, em um livro, o primeiro livro de Enoque, Deus é apresentado no alto dos céus, separado dos homens, ao redor do qual encontram-se sete anjos, chamados de anjos do serviço. O que esses sete anjos privilegiados, que estão mais próximos de Deus, estão fazendo? Eles têm o privilégio de, continuamente, glorificar e louvar a Deus. Bem, o evangelista nos diz que os pastores «voltaram, glorificando e louvando a Deus». Aqueles que a religião e a sociedade consideravam os mais distantes, os mais excluídos de Deus, uma vez que experimentaram o amor de Deus, são os mais próximos de Deus, assim como os sete anjos do serviço, «por tudo que tinham visto e ouvido, conforme lhes tinha sido dito». 

Lucas 2,21: «Quando se completaram os oito dias para a circuncisão do menino, deram-lhe o nome de Jesus, como fora chamado pelo anjo antes de ser concebido.»

Mas este projeto divino encontra a resistência dos seres humanos: a novidade trazida por Jesus dificilmente será aceita. A seguir, o evangelista escreve-nos que Maria e José vão circuncidar Jesus. Pretendem fazer daquele que foi anunciado como filho do Altíssimo, um filho de Abraão! Portanto, ainda há o apego à lei, à tradição e o Espírito vai lutar para entrar, para fazer florescer uma nova mentalidade, mas certamente o conseguirá. Posteriormente, veremos como Jesus colocará esse casal de pais em crise, porque eles esperam que Jesus siga os passos dos genitores, ao invés disso, Jesus seguirá o Pai. 

* Traduzido e editado do italiano por Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo.

** Todos os textos bíblicos citados foram extraídos de: BÍBLIA SAGRADA. Tradução oficial da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). 2. ed. Brasília (DF): Edições CNBB, 2016.

Reflexão Pessoal

Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo 

“Uma piedade mariana bem entendida não encerra ninguém no infantilismo, mas assegura em nossa vida de fé a presença enriquecedora do feminino. O próprio Deus quis encarnar-se no seio de uma mulher.” (José Antonio Pagola – biblista espanhol).

Maria, com o suceder dos acontecimentos, acabou se dando conta de uma verdade fundamental sobre Deus: Ele dá preferência aos frágeis, aos excluídos, aos rejeitados, aos abandonados, aos pobres deste mundo! Começou pelos pastores, em seu nascimento, como vimos hoje no Evangelho de Lucas, e prosseguiu até a cruz, com o perdão e promessa de salvação ao bandido crucificado ao seu lado (cf. Lc 23,42-43). 

A mãe de Jesus, logo, percebeu a presença da imensa MISERICÓRDIA divina, que nos desconcerta, que questiona a nossa teologia da retribuição: cada um receberá pelos seus méritos ou deméritos! Deus não é um gerente, um manager em busca de produtividade e de lucros por parte de seus subalternos, seus empregados! Ele não nos enxerga como réus em um tribunal, ele não nos trata segundo nossos pecados, mas é um Deus amoroso e terno, que deseja a salvação, a libertação e felicidade de todos, nesta Terra. 

Em Maria, nos damos conta de outra verdade fundamental: “o feminino é caminho para Deus e de Deus” (Leonardo Boff, teólogo e filósofo brasileiro). Como nos recorda, muito bem, José Antonio Pagola:

“A humanidade necessita, sempre, dessa riqueza que associamos ao feminino porque, ainda que também ocorra no varão, se condensa de modo especial na mulher: intimidade, acolhida, solicitude, carinho, ternura, entrega ao mistério, gestação, doação de vida”.

Mais do que nunca, a humanidade e nós brasileiros de modo especial, necessitamos recuperar essas qualidades em nossa vida pessoal! Fomos, nesses últimos anos:

* embrutecidos;

* insensibilizados, incapacitados de sermos empáticos;

* contaminados pelo ódio;

* dominados pelo preconceito, pelo egoísmo, pela aversão ao pobre;

* seduzidos pelo desprezo à mulher, ao indígena, àqueles de vida sexual diferente da nossa etc. 

A Igreja, neste início de Ano Novo, vem nos convidar a ver em Maria a Mãe de nossa fé e de nossa esperança, devido à:

* sua fidelidade e entrega à Palavra de Deus,

* sua identificação com os pequenos,

* sua adesão às opções de seu Filho Jesus,

* sua presença servidora na Igreja nascente e, acima de tudo,

* seu serviço de Mãe do Salvador. 

Com Maria e como Maria, teremos um autêntico NOVO ano!

Felicidades a todos e todas! 

Nossa missão para 2022: 

«Eu resisto,

Tu resistes,

Ela/Ele resiste,

Nós resistimos,

Vós resistis,

Elas/Eles resistem ! ! !

A QUÊ ? ? ?

A sermos como o mundo quer!

A sermos como os dominadores querem!

A sermos como os anticristos querem!

A sermos egoístas!

A sermos misóginos!

A sermos misândricas!

A sermos xenófobos!

A sermos nacionalistas!

A sermos violentos!

A sermos indiferentes!

A sermos incrementes!

A sermos negacionistas!

A sermos anticiência!

A sermos antivacinas!

A sermos anti-humanos!

A sermos antivida!

Eu esperanço,

Tu esperanças,

Ela/Ele esperança,

Nós esperançamos,

Vós esperançais,

Elas/Eles esperançam ! ! !

PARA QUÊ ? ? ?

Para que o mundo seja melhor!

Para que nosso país seja melhor!

Para que nós sejamos melhores!

Para que nossos filhos e filhas sejam melhores que nós!

Para que haja esperança para TUDO e para TODOS

em nosso PLANETA ! ! !»

(Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo – Diocese de Jales – SP)

Fonte: Centro Studi Biblici “G. Vannucci”– Videomelie e trascrizioni – Maria Santissima Madre di Dio – 1 Gennaio 2017 – Internet: clique https://www.studibiblici.it/videoomelie15.html (acesso em: 30/12/2021).

quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Entenda a explosão do custo de vida

 Sobre a inflação de alimentos no Brasil

 Fausto Augusto Júnior e Patrícia Lino Costa

Fausto é sociólogo e diretor técnico do Dieese; Patrícia é economista e supervisora da produção técnica do Dieese 

Entenda porque os alimentos estão custando tanto em um país que é um dos maiores exportadores de produtos agrícolas e pecuários do mundo

Desde 2020, o Brasil assiste estarrecido ao aumento de preços dos alimentos básicos em um contexto de pandemia de Covid-19, quando mais de 9 milhões perderam o emprego e a renda e o dinamismo da economia decresceu. Preços de alimentos como arroz, carne bovina, óleo de soja, açúcar e café em pó passaram a pressionar o índice médio de inflação. 

Para entender o que vem acontecendo, é interessante esclarecer alguns conceitos, a começar pela definição de inflação, que é o aumento persistente dos preços em geral, resultando em contínua perda do poder aquisitivo da moeda. As causas da inflação podem estar associadas ao aumento da demanda por bens, sem que haja alteração da oferta, o que faz que os preços subam. Também pode decorrer de problemas relativos à oferta ou aos custos de produção, especialmente no que se refere a taxas de juros, câmbio, salários ou preços das importações.[1] 

Um dos remédios mais comuns para a inflação é o aumento da taxa de juros, uma vez que juros altos inibem o investimento e a demanda, provocando a queda do nível de atividade econômica do país. Também atraem a entrada de moedas estrangeiras por meio de capital financeiro, valorizando a moeda local em relação ao dólar. 

Finalmente, vale lembrar que a taxa de câmbio desvalorizada encarece os produtos e insumos importados e estimula a exportação ao baratear os produtos nacionais no exterior e remunerar melhor o produtor local. Uma vez compreendidos esses conceitos, é possível entender melhor o que vem acontecendo com o preço dos alimentos no Brasil. 

A inflação de alimentos 

Em 2020, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), calculado pelo IBGE, acumulou 5,45%, média superior à de 4%, estipulada pelo Banco Central. O item “alimentação no domicílio”, porém, registrou variação de 18,88%. Alguns alimentos aumentaram muito acima da inflação no ano passado:

* óleo de soja (104,08%),

* arroz (75,36%),

* tomate (55,10%),

* leite longa vida (26,34%),

* açúcar cristal (25,47%),

* feijão carioquinha (16,87%), entre outros. 

O Dieese [Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos] calcula mensalmente o custo da cesta básica de alimentos em 17 capitais, composta por treze produtos básicos presentes na vida das famílias brasileiras, como carne bovina de primeira, arroz agulhinha, feijão, leite, farinha de trigo (ou mandioca, nas regiões Norte e Nordeste), batata (apenas nas capitais do centro-sul), tomate, manteiga, café em pó, açúcar, óleo de soja, banana e pão francês. 

Essa cesta, em 2020, acumulou variações entre 17,76%, em Curitiba, e 32,89%, em Salvador, diferenças que resultaram de custo de distribuição, produção regional e clima local. 

Mas por que esse aumento em plena pandemia? Apesar de o governo e alguns especialistas insistirem na ideia de que o auxílio emergencial no valor de R$ 600 fez que as famílias consumissem mais, é necessário lembrar que cerca de 8,8 milhões de brasileiros perderam suas ocupações e rendas no segundo trimestre de 2020, quando o isolamento social foi mais intenso. O auxílio emergencial foi um instrumento que assegurou à população de baixa renda, que perdeu trabalho e rendimentos, a possibilidade de se alimentar: essas pessoas não passaram a comer mais, apenas continuaram se sustentando. 

A explicação para a alta dos alimentos não está, portanto, no aumento da demanda, e sim na oferta.

O que importa é exportar alimentos: vender o máximo e não ter estoques reguladores para os brasileiros 

Com o aumento da incidência de Covid-19 e a adoção de medidas de isolamento em todo o mundo, o comércio internacional diminuiu, seja pela dificuldade de conseguir matéria-prima para a produção, seja por barreiras sanitárias e fechamento de portos, entre vários outros motivos. Entretanto, a demanda externa por alimentos cresceu, pois, para muitos países, a alimentação da nação em momentos de calamidade é assunto de segurança nacional. A manutenção de estoques de alimentos capazes de alimentar a população de diversos países fez, então, que a demanda internacional aumentasse. 

No Brasil, a exportação de alimentos cresceu.

Com o preço dos alimentos chamados de commodities em alta, os produtores de grãos viram na exportação a oportunidade de aumentar seus ganhos, o que levou o país a bater recordes de volumes de grãos e carnes exportados. A taxa de câmbio no patamar de cerca de R$ 5,50 era um estímulo adicional para a exportação. 

Para ter uma ideia do que ocorreu, pode-se analisar o caso do arroz, apresentado nos gráficos 1 e 2. Em 2020, o volume de arroz exportado pelo Brasil cresceu expressivamente em maio, junho, julho e agosto. Em maio, o país aumentou a exportação de arroz em mais de 140 milhões de toneladas, o que representa um volume 3,5 vezes superior ao registrado em abril. 

Gráfico 1

Quantidade mensal de arroz exportado no ano de 2020 / Brasil – janeiro a dezembro de 2020 e 2021 (em toneladas líquidas)

Fonte: Comex Stat, MDIC

Gráfico 2

Série histórica do grão arroz estocado na Conab / Brasil – 2000 a 2021

Fonte: Série histórica de estoques por produto, Conab

O governo federal, no entanto, atribuiu a responsabilidade pelo aumento do preço do arroz no varejo inicialmente ao isolamento social e, nos meses seguintes, ao auxílio emergencial. Em contrapartida, os estoques de arroz – e dos principais grãos que abastecem o mercado nacional – na Central Nacional de Abastecimento (Conab) estavam zerados.

Tabela 1 

Elevação dos preços dos alimentos nas 17 capitais em que o DIEESE realiza a Pesquisa Nacional da Cesta Básica de Alimentos (PNCBA) / Janeiro a dezembro de 2020 (em %) 

Capital              Variação

Salvador            32,89

Aracaju              28,75

Campo Grande  28,08

Belo Horizonte   27,79

João Pessoa      27,21

Brasília               24,88

São Paulo          24,67

Goiânia              23,98

Fortaleza           23,37

Porto Alegre      21,60

Belém                20,95

Florianópolis      20,30

Vitória                20,24

Rio de Janeiro   20,15

Natal                  19,55

Recife                19,20

Curitiba              17,76

Fonte: PNCBA, Dieese.

A política de estoques reguladores serve para que, em casos de falta do grão, o governo venda parte desses estoques para abastecer o mercado interno e evitar uma elevação de preços ou, no caso de excesso de oferta, compre parte dessa produção para garantir um preço mínimo ao produtor.

Porém, desde 2016, com o abandono da estratégia de estoques reguladores e com as exportações batendo recordes, o Brasil vendeu seus grãos e seus principais alimentos, desconsiderando o bem-estar da população.

No varejo, o povo brasileiro assistiu, entre abril de 2020 e outubro de 2021, à mudança de patamar dos preços do arroz, com aumentos expressivos nas principais capitais do Brasil. O quilo do produto chegou a R$ 6,53 em Recife e a R$ 5,78 no Rio de Janeiro. 

Importante analisar também a situação da carne bovina. Há uns três anos, o Brasil vem batendo recordes de exportação da carne, principalmente a de gado. A China é nosso maior comprador e, segundo a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), o Brasil é o maior exportador do mundo. Até se poderia comemorar essa notícia se isso não significasse que a carne bovina aqui produzida passou a ser inacessível para os brasileiros. 

No fim de 2019, os preços da carne começaram a aumentar. Ao longo da pandemia, o Brasil exportou grande quantidade de carne e, internamente, os brasileiros passaram a pagar mais pelo quilo: no município de São Paulo, em janeiro de 2016, o preço médio do quilo da carne bovina de primeira era R$ 24,78;[2] em dezembro de 2019, R$ 31,52; e, em outubro de 2021, R$ 44,02. Assim, no município de São Paulo, a carne acumulou elevação de 77,64% no período analisado. Esse movimento de alta dos preços associado à redução da renda das famílias é o que explica as cenas, em meados de 2021, das filas de pessoas para a compra de ossos de boi. 

Cabe ressaltar também que, no caso da carne, o grande volume exportado e a ausência de estoques reguladores de grãos como o milho e a soja – base da ração animal – aumentaram os custos de produção dos produtores de boi, impondo uma pressão adicional ao preço da carne e do leite. 

Gráfico 3

Índice de variação do preço da carne bovina de primeira / Cidades selecionadas – 2016 a 2021 (base 2016 = 100)

Fonte: Pesquisa Nacional da Cesta Básica de Alimentos, Dieese. Obs.: média dos tipos patinho, coxão mole e coxão duro.

Também o óleo de soja, o açúcar e o café sofrem os efeitos das exportações em alta e nenhum estoque regulador para minorar seus impactos. 

Em 2021, com o avanço da vacinação no mundo e sinais de retorno à normalidade, já se observa um arrefecimento na demanda externa por alimentos. Porém, o clima – excessivamente seco em alguns momentos e muito frio, com geadas no fim de julho de 2021 – impactou as plantações dos principais grãos e as pastagens do gado de corte e leiteiro. Como resultado, além das exportações em alta, houve redução da oferta por problemas na colheita e na produção, elevando novamente os preços dos principais produtos alimentícios. 

Nos dez primeiros meses de 2021, o conjunto de bens da cesta básica de alimentos acumulou taxas que variaram entre 1,78% em Salvador e 18,42% em Curitiba.

Para piorar, a crise hídrica e a má gestão da energia elétrica vêm impondo aos brasileiros um aumento quase mensal na conta de luz, que, de janeiro a outubro de 2021, acumula alta de 18,48%, segundo o INPC.

Além disso, desde a mudança da política de preços da Petrobras, que em 2018 pareou os preços do petróleo nacional ao preço internacional, os brasileiros passaram a conviver com o reajuste quase semanal do preço dos combustíveis e com a alta do preço do gás de botijão, essencial para todas as famílias. Em 2021:

* a gasolina subiu 38,09%;

* o gás de botijão, 33,23%; e

* o diesel, 38,52%. 

Vale lembrar que energia elétrica e combustível são custos de produção e distribuição para muitos alimentos, principalmente porque grande parte deles é produzida em uma localidade, processada em outra e depois distribuída para várias cidades do país. 

Evolução dos estoques públicos de arroz e milho | Fonte: Conab

Como sair desse problema? 

A inflação de alimentos ainda não está resolvida. Apesar da redução da intensidade de alta, os patamares de preço estão elevados e inacessíveis a uma parcela expressiva dos brasileiros. A exportação de grãos e carne segue em ritmo aquecido:[3]

* A quantidade de café exportado aumentou 10,4% em relação a 2021;

* a de soja, 2,5%; e

* a dos óleos brutos, 5,5% – entre estes,

* o óleo de soja e os farelos, 0,6%, que são insumos para produção da carne e do leite.

No varejo das principais cidades do país, café em pó, óleo de soja, açúcar e leite seguem em trajetória de alta de preços. 

Armazém da Conab - Hoje, estão vazios! O governo federal não tem poder de moderar os preços dos alimentos no Brasil

O que poderia ser feito para resolver a inflação?

O governo insiste no remédio tradicional da alta dos juros, com dois objetivos: reduzir a demanda e a atividade econômica e deixar o real valorizado em relação ao dólar, ou seja, baixar a taxa de câmbio. Remédio amargo e pouco eficiente para uma economia que não cresce, não gera empregos e precisa de investimentos públicos para estimular o crescimento.

É necessário mexer na OFERTA e nos CUSTOS.

Os ministros e assessores do atual governo têm ojeriza a taxar as exportações e não aceitam nenhum tipo de interferência sobre os preços, mas poderiam recompor a Conab para protagonizar as tão necessárias políticas de estoques reguladores e interferir nos altos patamares de preços dos alimentos praticados no Brasil. 

A AGRICULTURA FAMILIAR, uma das mais importantes políticas adotadas nos anos 2000 e que ajudou a tirar o Brasil do mapa da fome, foi esquecida desde o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, quando a política econômica brasileira passou a ter um forte cunho neoliberal. O Programa de Aquisição de Alimentos, responsável pela compra de grande parte dos produtos da agricultura familiar, repassados para entidades sociais, associações, escolas, hospitais e populações vulneráveis, veio perdendo recursos: em 2012, eram-lhe destinados R$ 1,2 bilhão; em 2018, R$ 253 milhões; em 2019, R$ 188 milhões; e, em 2020, R$ 101 milhões.[4] 

Investir em agricultura familiar seria extremamente oportuno para que, a médio e longo prazo, se conquistasse maior segurança alimentar e se garantisse abastecimento do mercado interno com alimentos de qualidade, dinheiro na mão dos pequenos produtores e diversificação das plantações. Recentemente, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) apresentou uma medida provisória visando à implantação do Programa Alimenta Brasil, que ressuscita o investimento em agricultura familiar em 2022; porém, o limite de gastos é sempre uma questão impeditiva para o atual governo. Sem contar que essa medida é aventada após parcela expressiva da população brasileira ter sido lançada à situação de fome e desesperança ao longo dos últimos anos. 

Por fim, como se pode constatar, os problemas de preço e acesso aos alimentos por parte da maioria da população estão além de uma questão sazonal ou temporária.

A inflação brasileira decorre da oferta e, para a resolução desse problema, é necessária a ação do Estado para garantir o bem-estar de sua população, e não os lucros dos acionistas e dos grandes produtores de commodities.

N O T A S

[1] Paulo Sandroni, Novíssimo dicionário de economia, Best Seller, 1999. 

[2] Média do quilo do patinho, coxão mole e coxão duro, segundo os dados da Pesquisa Nacional da Cesta Básica de Alimentos, realizada pelo Dieese. 

[3] A sanção da China à carne brasileira, por suspeita de doenças no gado, ainda não resultou em quedas expressivas do preço no varejo. 

[4] Lu Sudré, “População só terá acesso a alimentos de péssima qualidade durante pandemia”, Brasil de Fato, 27 abr. 2020. 

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil – Edição 173 – Brasil/A Explosão do Custo de Vida – 1 de dezembro de 2021 – Internet: clique aqui (Acesso em: 29/12/2021).

quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Desfazendo um mal-entendido

 Esquerda não é sinônimo de comunismo

 Paulo Galvão

Jornalista, mestre em Relações Internacionais, licenciado em História, apresentador do programa radiofônico “CBN Madrugada” 

PAULO GALVÃO

Querem confundir, de propósito, a sua cabeça para que você não dê ouvidos à realidade e não pense de modo crítico e autônomo

O título deste artigo parece óbvio para quem tem um mínimo de discernimento, um pouco de conhecimento histórico e uma boa compreensão da realidade atual, mas em tempos de pós-verdade, em que fatos são sobrepujados por crenças, e em que imperam o negacionismo e as fake news, tal debate nos parece não apenas necessário, mas urgente.

Jair Bolsonaro não perde uma chance de vincular os partidos e movimentos de esquerda ao comunismo.

Em visita ao Maranhão, em outubro de 2020, o presidente da República disse que “nós vamos, num curto espaço de tempo, mandar embora o comunismo do Brasil”, como se tal regime alguma vez tivesse sido implementado no país. Em setembro de 2021, no discurso de abertura da Assembleia Geral da ONU, o presidente da República afirmou que, quando assumiu o governo, “estávamos à beira do socialismo”. Não há dúvidas de que essa retórica atinge uma parte da sociedade. Nos recentes atos pró-Bolsonaro em diversas regiões do país, não faltaram gritos e cartazes nesta direção: “Presidente Bolsonaro, eu te autorizo. Nos livre do comunismo”, escreveu um apoiador, em São Paulo. Sobraram, também, mensagens como “Fora comunismo”, “Comunismo não” e “Vai para Cuba”. 

O modus operandi [= o modo de agir] é o mesmo de tempos atrás. Por meio de narrativa fantasiosa, incutir em parcela da população o receio da adoção de um sistema que já se mostrou, segundo relata Anthony Giddens, “inaceitavelmente autoritário” e “economicamente ineficaz”. A estratégia falhou em 1937, com o Plano Cohen, mas obteve sucesso em 1964, quando a “ameaça comunista” por parte do então presidente João Goulart levou mais de um milhão de pessoas às ruas, em São Paulo e no Rio de Janeiro, na histórica Marcha da Família com Deus pela Liberdade. A manifestação, na capital paulista, ocorreu em 19 de março, menos de uma semana depois do comício da Central do Brasil, quando João Goulart anunciou algumas medidas que integravam as Reformas de Base, entre elas a desapropriação de terras próximas a eixos rodoviários e leitos de ferrovias, e a encampação de cinco refinarias de petróleo particulares. A partir daquele momento, segundo Jango, tais instalações passavam “a pertencer ao patrimônio nacional”. No discurso, Jango citou “uma ordem social imperfeita, injusta e desumana” e reforçou seu lema de governo: “progresso com justiça, e desenvolvimento com igualdade”. 

Numa conjuntura mundial extremamente polarizada pela Guerra Fria, tal discurso foi a peça que faltava para o golpe civil militar. Duas semanas depois, o general Mourão, não o Hamilton, mas o Olympio, colocava suas tropas na rua, em Juiz de Fora, dando início aos 21 anos de ditadura militar no país. Coincidência ou não, o mesmo Olympio Mourão Filho fora o responsável por forjar a ameaça comunista em 1937, com o Plano Cohen. 

Jornal "Correio da Manhã" de 1 de outubro de 1937, anunciando a “apreensão” do Plano Cohen pelo Estado-Maior do Exército. (Imagem: Memorial da Democracia)

Os tempos, hoje, são outros, a Guerra Fria ficou para trás, a China já abandonou a ideia de comunismo há algumas décadas, mas a retórica bolsonarista permanece. Em certa medida, tal comportamento por parte do presidente Jair Bolsonaro e seus seguidores assemelha-se ao que observamos na Teoria da Securitização, desenvolvida pela Escola de Copenhagen, em que temas que não deveriam constar na pauta de segurança nacional são incluídos deliberadamente com fins escusos. Segundo Buzan, Waever e Wilde,...

... trata-se de um processo em que, por meio de atos de fala, o agente securitizador “utiliza o argumento da urgência de uma ameaça existencial para desrespeitar procedimentos e regras seguidas em situação de normalidade”.

Cria-se uma ameaça inexistente para justificar medidas de exceção. Isso é um perigo! Em discurso inflamado durante as comemorações do 7 de Setembro, em São Paulo, após afirmar que nosso sistema eleitoral “não oferece segurança” e tecer duras críticas ao STF, chamando o ministro Alexandre de Moraes de “canalha”, Bolsonaro disse que “se alguém quiser jogar fora dessas quatro linhas (da Constituição), nós mostraremos que poderemos fazer também”. 

Diante de tais ameaças, não nos cabe o silêncio. Não há dúvidas de que essa retórica fantasiosa atinge parcela significativa da sociedade.

Quem pensa diferente é chamado de “esquerdopata”, como se o viés ideológico à esquerda fosse uma doença.

Norberto Bobbio nos lembra que, historicamente, o ideal que mais diferencia a esquerda não é a busca por um Estado maior nem mesmo qualquer pauta de costumes, mas um “profundo sentimento de insatisfação e de sofrimento perante as iniquidades das sociedades contemporâneas”. O próprio Bobbio, em seu “Direita e Esquerda – razões e significados de uma distinção política”, recorre ao “princípio de retificação”, de Louis Dumont, para expor a forma distinta como a esquerda e a direita enxergam as enormes diferenças sociais de nosso tempo. Tal teoria parte do pressuposto de que essas desigualdades são injustificáveis, portanto, “devem ser reduzidas ou abolidas”. No entanto, de acordo com Dumont, para a direita, tal situação é considerada “natural, sacra, inevitável e inviolável”. 

Não nos surpreende, portanto, o fato de o conservadorismo ser um atributo vinculado à direita, enquanto a esquerda, historicamente, clama por mudança. Não se trata aqui de demonizar o capital. Para Bobbio, há, inclusive, “uma esquerda no interior do horizonte capitalista”. A própria “The Economist”, em editorial por ocasião dos 175 anos de fundação, pregou um “renascimento liberal”. Segundo a publicação, ...

...já passou da hora de “os liberais tomarem o lado dos necessitados contra os mais ricos”.

O ex-ministro da Fazenda Delfim Netto dizia que era necessário esperar o bolo crescer para depois dividi-lo. Décadas se passaram, alguns bolos já saíram do forno, mas a maioria da população brasileira ainda não sentiu nem o cheiro. 

A responsabilidade social exigida para o desempenho do trabalho jornalístico em um país tão desigual como o Brasil não nos permite fugir desta triste realidade. Nosso “lugar de fala”, mais do que nunca, tem de ser a Constituição. No inciso III do artigo 3º da Carta Magna está escrito que, entre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil estão “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”. Não me consta que tenham sido comunistas que elaboraram tais leis. Em sua “Oração aos Moços”, talvez inspirado por Aristóteles, Ruy Barbosa lembrava a necessidade de tratar de forma desigual os desiguais. Não há outra saída. Mãos à obra! 

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil – Opinião – 13 de dezembro de 2021 – Internet: clique aqui (Acesso em: 29/12/2021).

Genocídio? Sim, genocídio

 Isso não pode passar impune!

 Patrícia Valim & Felipe Milanez

Patrícia é historiadora do direito e professora da Ufop (Universidade Federal de Ouro Preto), Felipe é ecologista político e professor da UFBA (Universidade Federal da Bahia) 

Manifestação de índios na esplanada dos Ministérios, em Brasília (DF), em protesto pelo genocídio indígena praticado por Jair Bolsonaro, no Brasil. Foto: Ueslei Marcelino/Reuters

Farta documentação da CPI confere materialidade ao crime de Jair Bolsonaro

Como classificar as atrocidades cometidas pelo governo Jair Bolsonaro durante a pandemia, que atingiu de forma desproporcional segmentos específicos da sociedade brasileira, em especial os povos indígenas, sem promover um grande acordo nacional de silenciamento?

Por que e como a racionalidade jurídica foi mobilizada para retirar a acusação de crime de genocídio praticado pelo presidente Jair Messias Bolsonaro e seu estafe contra as populações indígenas durante a pandemia?

A farta documentação anexada no relatório da CPI da Covid no Senado confere materialidade ao crime de genocídio mesmo quando os relatores afirmam que a acusação é exagerada por «não parecer particularmente vultoso» o número absoluto de indígenas mortos (p. 581). O próprio relatório (p. 587) informa que o número de mortos não é determinante para a configuração do crime de genocídio, como decidiu o plenário do Supremo Tribunal Federal, em 2006, no caso do genocídio Yanomami, o massacre de Haximu cometido por garimpeiros. 

Sobre o dolo, alguns advogados rejeitam a intencionalidade do presidente de causar morte, apontando a sua defesa do «tratamento precoce» como evidência da tentativa de salvar vidas. No relatório, há pesquisas que comprovam que o «kit Covid» nunca salvou vidas, dá a falsa sensação de proteção e pode levar a óbito por alterações no batimento cardíaco e prejuízos nas funções hepáticas. Mas Bolsonaro assumiu os riscos e mandou que o Ministério da Saúde distribuísse 265 mil remédios do «kit Covid» para populações indígenas (cf. reportagem da Folha de S. Paulo de 24/05/2021 – clique aqui), sobretudo em territórios indígenas ameaçados pelo interesse econômico do agronegócio e garimpo ilegal. 

Medicamentos sendo embarcados para terras indígenas

Não há genocídio sem a promoção do inimigo interno. No relatório, a duração do «anti-indigenismo» de Jair Bolsonaro é mobilizada para refutar o crime de genocídio, desconsiderando o aceleramento dos «danos sofridos pelos povos originários, ainda que não tenha ele assassinado diretamente pessoa alguma» (p. 580). Suas armas são outras. 

Se esses fatos não são suficientes, o jurista polonês Raphael Lemkin foi o primeiro a formular o conceito de «genocídio» para designar o «crime dos crimes», nos termos de William Schabas, contra a população armênia em 1915-16. Mas ele não foi o único. Nas últimas duas décadas, os chamados «genocide scholars» [= estudiosos do genocídio] sofisticaram o conceito por meio da articulação entre o direito e a história. 

Israel Charny retoma a obra de Lemkin para demonstrar que o negacionismo histórico é a última etapa do genocídio, devendo ser penalizado por violação dos direitos fundamentais. Jean-Marie Le Pen, ex-líder extremista francês, foi acusado pelas próprias vítimas e condenado em última instância por espalhar negacionismo histórico sobre o Holocausto e incitar o genocídio. 

Por isso, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) apresentou no Tribunal Penal Internacional uma comunicação com argumentos das vítimas indígenas do genocídio de Bolsonaro, além de ter interposto uma ação no STF de descumprimento de preceito fundamental. Há outras sete denúncias em Haia contra ele. Genocídio? Sim, genocídio. 

Fonte: Folha de S. Paulo – TENDÊNCIAS / DEBATES – Terça-feira, 28 de dezembro de 2021 – Pág. A3 – Internet: clique aqui (Acesso em: 29/12/2021).