Genocídio? Sim, genocídio

 Isso não pode passar impune!

 Patrícia Valim & Felipe Milanez

Patrícia é historiadora do direito e professora da Ufop (Universidade Federal de Ouro Preto), Felipe é ecologista político e professor da UFBA (Universidade Federal da Bahia) 

Manifestação de índios na esplanada dos Ministérios, em Brasília (DF), em protesto pelo genocídio indígena praticado por Jair Bolsonaro, no Brasil. Foto: Ueslei Marcelino/Reuters

Farta documentação da CPI confere materialidade ao crime de Jair Bolsonaro

Como classificar as atrocidades cometidas pelo governo Jair Bolsonaro durante a pandemia, que atingiu de forma desproporcional segmentos específicos da sociedade brasileira, em especial os povos indígenas, sem promover um grande acordo nacional de silenciamento?

Por que e como a racionalidade jurídica foi mobilizada para retirar a acusação de crime de genocídio praticado pelo presidente Jair Messias Bolsonaro e seu estafe contra as populações indígenas durante a pandemia?

A farta documentação anexada no relatório da CPI da Covid no Senado confere materialidade ao crime de genocídio mesmo quando os relatores afirmam que a acusação é exagerada por «não parecer particularmente vultoso» o número absoluto de indígenas mortos (p. 581). O próprio relatório (p. 587) informa que o número de mortos não é determinante para a configuração do crime de genocídio, como decidiu o plenário do Supremo Tribunal Federal, em 2006, no caso do genocídio Yanomami, o massacre de Haximu cometido por garimpeiros. 

Sobre o dolo, alguns advogados rejeitam a intencionalidade do presidente de causar morte, apontando a sua defesa do «tratamento precoce» como evidência da tentativa de salvar vidas. No relatório, há pesquisas que comprovam que o «kit Covid» nunca salvou vidas, dá a falsa sensação de proteção e pode levar a óbito por alterações no batimento cardíaco e prejuízos nas funções hepáticas. Mas Bolsonaro assumiu os riscos e mandou que o Ministério da Saúde distribuísse 265 mil remédios do «kit Covid» para populações indígenas (cf. reportagem da Folha de S. Paulo de 24/05/2021 – clique aqui), sobretudo em territórios indígenas ameaçados pelo interesse econômico do agronegócio e garimpo ilegal. 

Medicamentos sendo embarcados para terras indígenas

Não há genocídio sem a promoção do inimigo interno. No relatório, a duração do «anti-indigenismo» de Jair Bolsonaro é mobilizada para refutar o crime de genocídio, desconsiderando o aceleramento dos «danos sofridos pelos povos originários, ainda que não tenha ele assassinado diretamente pessoa alguma» (p. 580). Suas armas são outras. 

Se esses fatos não são suficientes, o jurista polonês Raphael Lemkin foi o primeiro a formular o conceito de «genocídio» para designar o «crime dos crimes», nos termos de William Schabas, contra a população armênia em 1915-16. Mas ele não foi o único. Nas últimas duas décadas, os chamados «genocide scholars» [= estudiosos do genocídio] sofisticaram o conceito por meio da articulação entre o direito e a história. 

Israel Charny retoma a obra de Lemkin para demonstrar que o negacionismo histórico é a última etapa do genocídio, devendo ser penalizado por violação dos direitos fundamentais. Jean-Marie Le Pen, ex-líder extremista francês, foi acusado pelas próprias vítimas e condenado em última instância por espalhar negacionismo histórico sobre o Holocausto e incitar o genocídio. 

Por isso, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) apresentou no Tribunal Penal Internacional uma comunicação com argumentos das vítimas indígenas do genocídio de Bolsonaro, além de ter interposto uma ação no STF de descumprimento de preceito fundamental. Há outras sete denúncias em Haia contra ele. Genocídio? Sim, genocídio. 

Fonte: Folha de S. Paulo – TENDÊNCIAS / DEBATES – Terça-feira, 28 de dezembro de 2021 – Pág. A3 – Internet: clique aqui (Acesso em: 29/12/2021).

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