Como ter dinheiro para os mais pobres?
Zilda Arns, Dom Hélder e o Orçamento
Felipe Scudeler Salto
Diretor executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI) e
professor do Instituo Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) DOM HÉLDER CÂMARA (1909-1999): arcebispo emérito de Recife-Olinda (PE)
De Zilda Arns e de Dom Hélder Câmara vêm bons
exemplos de como fazer chegar os benefícios aos necessitados
Em dezembro de 1991, Dom Hélder Câmara discursou em Pernambuco:
“Que contradição, que negação clamorosa: cristãos
(...) excluindo do acesso às mais elementares condições de vida muitos daqueles
a quem proclamamos admitir como irmãos. (...) Será por incompetência? Será
por inconsciência? Será por alienação? Ou será por impiedade mesmo?”.
É a incompetência, Dom Hélder! Ela tem culpa maior. Muito foi feito a partir da redemocratização, mas há ainda uma situação que nos envergonha, que dói na alma de todos – cristãos ou não.
Dez anos depois, em 2001, no programa Roda Viva, na TV Cultura, Zilda Arns contou que a Pastoral da Criança gastava menos de um real (R$ 0,86) per capita ao mês. Em valores atuais, R$ 2,86 por criança. Os resultados colhidos – e a pastoral continua em operação – foram a redução da mortalidade infantil, a melhoria das condições de nutrição e a prevenção de uma série de doenças.
As práticas adotadas eram replicáveis e de baixo custo. As equipes visitavam as famílias para ensinar práticas de higiene, de aproveitamento de alimentos, pesagem dos recém-nascidos, enfim, uma estratégia baseada na informação de boa qualidade e na orientação cuidadosa. Zilda Arns respondeu com ações concretas à angústia de Dom Hélder.
Nasceu em 1934 (em Forquilhinha - SC), falecida em 2010 (em Porto Príncipe - Haiti) |
Mas a questão que ainda se coloca é: como
ampliar as boas iniciativas da sociedade civil? Onde foi que nos perdemos?
Seriam a “inconsciência” e a “impiedade” as responsáveis?
Segundo o FGV Social, havia 23,1 milhões de pessoas vivendo abaixo
da linha da pobreza em 2019. Agora, são 4,6 milhões a mais.
Compadecer-se do sofrimento alheio é humano, essencial e necessário. O segundo passo é cobrar do Estado a elaboração e a execução de políticas públicas com alcance e financiamento suficientes. O Estado é a junção da Lei à burocracia técnica e aos políticos eleitos. A Lei reflete os anseios da sociedade, que só saem do papel pela atividade política. Daí a responsabilidade de quem tem voto.
Ocorre que perdemos a capacidade de planejar. Uma pesquisa entre a elite dirigente revelaria, sem dúvida, a pobreza e a desigualdade como preocupações centrais. Então, por que a letargia? O que está faltando?
Poderíamos responder a Dom Hélder: a nossa incompetência é o mal maior. Sem planejamento adequado, o processo orçamentário entrou no piloto automático. Para ter claro, 93% das despesas estão dadas; não mudam no curto prazo. A fatia restante vai para gastos constitucionais com saúde, investimentos (cada vez menores) e custeio da máquina pública (limpeza, iluminação, água, etc.). Como reduzir a pobreza, se o financiamento está bloqueado? Como, se não se discutem a sério o lado da receita e o remanejamento e o corte de gastos?
A crise pandêmica desnudou a urgência do combate à fome. Os Três Poderes reagiram. E rápido, apesar de tudo. Um desdobramento dessas ações sociais foi o Auxílio Brasil, que tem seus méritos, mas é uma mudança apressada do Bolsa Família, programa bem avaliado. Melhor seria duplicar seu orçamento (para R$ 70 bilhões ao ano), cortando gastos não prioritários. Mas, ao que parece, a mobilização em torno do essencial não é a mesma em tempos menos atípicos.
A lógica da Constituição de 1988, com
o chamado Plano Plurianual (PPA), foi maltratada com o tempo.
A solução é modernizar o orçamento público. Concretamente,
conceber um plano de médio prazo a partir de cenários econômicos que
esbocem o quadro orçamentário prospectivo.
É o que defende há anos o economista Hélio Tollini, especialista no tema.
Se o gasto obrigatório só muda em prazo superior a um ano (em razão da rigidez), não faz sentido uma política fiscal anual. É um modus operandi obsoleto. A Lei Orçamentária tem de ser o locus da discussão das prioridades de políticas públicas. O PPA não pode ser independente, ligado ao Orçamento apenas por burocratismos.
Maílson da Nóbrega costuma explicar que o País evoluiu nessa matéria. De fato, nos anos 1980, havia dois orçamentos: o monetário e o geral. O primeiro era o “balanço consolidado” do Banco do Brasil e do Banco Central, que comandavam subsídios e uma série de gastos gestados no Conselho Monetário Nacional. Até uma parte do financiamento da Ponte Rio-Niterói estava ali. O segundo era para inglês ver.
Entre outros avanços, a transparência aumentou, a Lei de Responsabilidade Fiscal fixou diretrizes importantes, o Tesouro Nacional passou a comandar a emissão da dívida pública e o Plano Real, ao debelar a hiperinflação, conferiu realismo ao orçamento geral. Mas, nas democracias consolidadas, os avanços são incrementais e os retrocessos, por vezes, abruptos. O caso das emendas de relator-geral do Orçamento convida à discussão técnica e ampla. É grave.
O assunto da reforma fiscal é para 2023, por razões óbvias, mas precisa ser pensado desde já. O desafio da reconstrução e da modernização do Orçamento demandará rapidez e acurácia. As soluções deveriam ser forjadas à luz das perguntas de Dom Hélder Câmara e da sua indignação. Também pelo senso prático da doutora Zilda Arns. Mãos à obra.
Fonte: O Estado de S. Paulo – Espaço Aberto/Opinião – Terça-feira, 7 de dezembro de 2021 – Pág. A4 – Internet: clique aqui (Acesso em: 14/12/2021).
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