«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Como pacificar o Brasil após as eleições

 É preciso desinflar narcisismo de grupo que bloqueou capacidade de dialogar no Brasil, diz escritor

 Uirá Machado

Jornalista 

Entrevista com Francisco Bosco

Doutor em Teoria Literária pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e ensaísta, foi presidente da Funarte (Fundação Nacional de Artes) de 2015 até o impeachment de Dilma Rousseff (PT). Autor, entre outros livros, de "O Diálogo Possível - Por Uma Reconstrução do Debate Público Brasileiro" (Todavia, 2022). 

FRANCISCO BOSCO

Francisco Bosco afirma que fim da divisão também passa por qualificar o debate nas redes sociais

A pacificação social após a disputa eleitoral mais acirrada desde a redemocratização será uma das missões de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que derrotou o presidente Jair Bolsonaro (PL) por 50,9% a 49,1% e alcançou um terceiro mandato.

E, para Francisco Bosco, Lula é a pessoa mais indicada para essa tarefa. “Lula é um conciliador. Sempre foi e reafirmou isso no seu discurso”, afirma o autor do livro “O Diálogo Possível: Por Uma Reconstrução do Debate Público Brasileiro”.

Em entrevista à Folha de S. Paulo, Bosco afirma que a vitória de Lula não pode ser subestimada, assim como não se pode esquecer que ele terá uma margem de manobra muito estreita.

Segundo o escritor, o petista terá o desafio de conduzir o país também no caminho do fortalecimento institucional e do desenvolvimento social.

Ele afirma que, para superar a divisão, será necessária uma tarefa coletiva de reorganização do debate público, sobretudo nas redes sociais, onde, diz ele, a lógica de grupo reforça a polarização.

Eis a entrevista. 

Livro publicado pela editora TODAVIA, em maio de 2022

O que Lula precisa fazer para pacificar o país, que se mostrou muito dividido nesta campanha eleitoral?

Francisco Bosco: O Norberto Bobbio, cientista político italiano, dizia que o bom Estado é uma pluricracia. Ou seja, é uma democracia em que o poder é repartido, de forma que nenhum grupo social se sinta humilhado, oprimido, desfavorecido, ressentido. O Lula, consideradas as suas ideias políticas, é a pessoa mais indicada para encarar a tarefa de pacificação da divisão social brasileira. Lula é um conciliador. Sempre foi e reafirmou isso no seu discurso. O problema é que essa divisão transcende em muito a figura do Lula. E, ao mesmo tempo, está ligada a uma dimensão histórica da figura do Lula: o processo do chamado petrolão, que criou para uma grande parte da sociedade brasileira uma imagem de um Lula corrupto.

Essa imagem é parte importante da divisão social brasileira. Com Lula voltando ao poder, esse fator continuará a alimentar a divisão social, e o comportamento dele não tem como alterar isso.

Agora, no que depender do comportamento político do Lula no governo, eu não tenho dúvida de que será no sentido de realizar essa pluricracia. 

Em seu livro “O Diálogo Possível”, o sr. afirma que a polarização atual tem sua origem nas disputas entre PT e PSDB ao longo de mais de duas décadas. Poderia explicar?

Francisco Bosco: Durante a redemocratização, PT e PSDB se entregaram a um jogo perigoso para a democracia por objetivos estritamente eleitorais, que é o jogo de caricatura recíproca. O PT representava o PSDB para a sociedade brasileira como um partido neoliberal e que teria deixado a famigerada herança maldita. São dois termos falsos. O PSDB também fez uma caricatura do PT como um partido mais à esquerda do que efetivamente era, questionou a legitimidade da eleição de 2014, teve atuação de protagonista no impeachment, a meu ver ilegítimo, da presidente Dilma Rousseff [PT].

Esse conjunto de comportamentos de ambas as partes remete ao que os cientistas políticos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt chamam de autocontenção ou comedimento. É a obediência à consciência de que ganhos eleitorais imediatos em consequência de golpes baixos corroem a credibilidade das instituições a longo prazo e deveriam ser evitados.

Ambos os partidos não hesitaram em se entregar a esse jogo e, sem que se dessem conta, um estava desgastando a credibilidade do outro.

Quando a sociedade brasileira chegou a uma espécie de estado de anomia após os acontecimentos de 2013, esses partidos foram vistos como forças inviáveis, e isso preparou terreno para a emergência de um populismo de extrema direita

Leitura obrigatória! Publicado pela Zahar Editora, em agosto de 2018

O debate na internet também parece muito radicalizado. As redes sociais têm um papel nessa dinâmica?

Francisco Bosco: Sim. A arquitetura das redes sociais leva à formação dos grupos, ou das famigeradas bolhas. Quando você entra numa lógica de grupo por um laço identificatório, seja religioso, seja futebolístico, seja político-partidário, você é apoiado, você é reconhecido pelo seu grupo. Isso, em primeiro lugar, te dá um prazer narcísico do acolhimento, do pertencimento. A tendência dessas dinâmicas é recompensar a radicalidade e punir a dúvida, a crítica. Porque aquele que produz a repetição intensificada confirma o valor do grupo; quem critica premissas do grupo tende, no limite, a ser expulso.

Para que o debate público funcione, cada sujeito tem que ter uma atitude de boa-fé. Tem que ter abertura para permitir que evidências, argumentos, estatísticas e dados empíricos possam convencê-lo.

A lógica de grupo transforma essa atitude. O sujeito passa a ter um compromisso não com a interpretação mais precisa da realidade, mas com o próprio grupo. Se a melhor interpretação da realidade se chocar com os interesses do grupo, tanto pior para a realidade.

Essa talvez seja a razão principal para que nós tenhamos chegado a um estado de divisão social muito profundo. Quando as pessoas estão completamente submetidas a lógicas de grupo, elas ativam essa retroalimentação permanente da divisão, porque a dinâmica de radicalização do próprio grupo produz ressentimento no grupo adversário, que por sua vez leva a caricaturar o outro grupo –e você entra nesse círculo vicioso. 

Como escapar dessa lógica?

Francisco Bosco: Em primeiro lugar, considero que não é exagero retórico tratar a divisão social brasileira como uma guerra civil fria. Um dos livros fundamentais de 2018 foi “Como as Democracias Morrem”, de Levitsky e Ziblatt. Agora, o livro que tem cumprido o mesmo papel éComo as Guerras Civis Começam”, da Barbara Walter.

Um país entra em risco de ter uma guerra civil quando tem uma ou mais facções. O que é uma facção? É um grupo social com determinadas características que, em boa parte, são aplicáveis ao que já poderíamos chamar de facção bolsonarista:

* coesão,

* hiperengajamento,

* intimidação –incluindo violência física real—,

* disputa pelo poder institucional e

* tentativa de armar a sociedade.

A minha hipótese é que, embora o bolsonarismo seja um amálgama heterogêneo, o traço fundamental que o reúne é o que eu chamaria de tradicionalismo. Quase todos os subgrupos que formam o bolsonarismo são tradicionalistas. Eles se sentem profundamente ameaçados pela perspectiva moderna ou progressista.

Então a gente já não está mais falando de um processo de perda do diálogo. Isso já acabou faz tempo. Como é que você faz para resolver esse problema? É uma tarefa coletiva, e a gente deve repudiar qualquer perspectiva de resolução que vá na linha de uma ruptura, tanto pela esquerda quanto pela direita. Eu só acredito no caminho de dissolução da divisão social. Isso passa por um novo comportamento no espaço público. O Brasil saiu de um estado de participação social apático pré-2013 para um estado de hiperengajamento, sem passar por uma mediação civilizadora. A gente tem que ser capaz de qualificar o espaço público brasileiro e desinflar esse narcisismo de grupo que faz com que as pessoas tenham perdido a sua capacidade de dialogar. 

Leitura fundamental! Livro publicado pela Zahar Editora, em setembro de 2022

Em seu livro, o sr. mostra como o debate se desenrola em torno de caricaturas exageradas, com palavras como comunismo, fascismo, liberalismo, socialismo etc. sendo usadas em polarizações simplificadas. Se fosse para escolher uma dessas caricaturas para desfazer em primeiro lugar, qual seria?

Francisco Bosco: Neoliberal versus comunista. Essa é a caricatura mais tosca de todas. A esquerda hegemônica tende a amalgamar todo o espectro da direita por meio desse significante “neoliberal”. E a direita hegemônica, quase como um programa de humor, tende a reduzir toda a esquerda ao espectro do comunismo. Isso é uma piada.

O par conceitual mais abusado é esse. Mas o mais importante é conservador versus progressista. Esse é o eixo que estrutura a experiência social e institucional brasileira neste momento. Então esse é o que deveria merecer a maior atenção; e esse é também aquele cujas respostas são as mais difíceis. 

Por quê?

Francisco Bosco: Houve uma radicalização do campo conservador. O campo conservador intensificou muito a sua perspectiva, se tornou mais fechado e mais reativo à agenda liberal progressista. Isso aconteceu por razões que dizem respeito ao próprio campo conservador –como a emergência dos evangélicos nos espaços institucionais—, mas também porque estava acontecendo uma transformação de sentido contrário no campo da esquerda. Na última década e meia, a agenda progressista se radicalizou enormemente, a ponto de a esquerda hoje ser hegemonicamente progressista.

Em uma hipótese a ser estudada com mais profundidade, o que me parece que tem acontecido é que o progressismo saiu de campos não compulsórios, de campos voluntários, e passou para campos comuns. Para dar apenas um exemplo, a arte é um campo voluntário por excelência: faz quem quer, frui quem quer. Mas a língua é uma obra comum, feita com o tempo. Outros campos que dizem respeito à experiência comum são o do gênero e, mais recentemente, do sexo.

E eu não sei o que fazer com esse nó. Porque, para a minha concepção teórica, só a perspectiva progressista é moralmente aceitável. Para a tradição liberal civil também, porque a tradição liberal civil vai dizer que a liberdade de todo indivíduo só termina quando ela viola diretamente a liberdade de outrem. Ora, uma pessoa trans não viola a liberdade de outrem, para ficar em um exemplo. 

CULTO EVANGÉLICO NEOPENTECOSTAL - uma força política para reforçar o tradicionalismo e fechamento do campo conservador, no Brasil

Do ponto de vista das políticas públicas, o sr. propõe uma nova concepção de centro. Como seria?

Francisco Bosco: Existem duas imagens e práticas do centro na tradição brasileira. Uma é o centro fisiológico, corporativista e patrimonialista que hoje a gente conhece como centrão. A outra é o centro ideológico, programático: centro-esquerda, centro-direita e centro. Esse centro programático tem a virtude de governar tendo como critério o interesse comum, republicano. Para essa ideia de centro, você deve criar políticas públicas que corrijam desequilíbrios, mas elas não podem ser muito radicais nem à esquerda nem à direita.

Só que o Brasil tem um passivo histórico de desequilíbrios em todas as suas dimensões: racial, de gênero, socioeconômica, regional. São desequilíbrios tão grandes que exigem políticas públicas condizentes com essa radicalidade.

Então eu defendo uma ideia de centro que não seja centro como ponto de partida, mas como ponto de chegada. Um centro capaz de acolher políticas públicas radicais, sejam de esquerda, sejam de direita, dependendo da natureza do problema. Por exemplo, a direita tem uma contribuição enorme a dar para o aumento da produtividade. De outro lado, em relação à desigualdade brasileira, quem tem a maior contribuição a dar é a esquerda

Lula vai ser capaz de levar isso adiante, considerando a conjuntura social e política?

Francisco Bosco: Nós não podemos, de modo algum, subestimar a importância desse resultado, cujo significado é ter tirado o país do abismo. Mas não podemos ser ingênuos quanto à margem de manobra que o governo Lula terá.

Lula vai pegar um contexto global instável, envolvendo uma guerra na Europa, que pressiona a situação inflacionária no mundo inteiro. Vai pegar um Congresso com perfil conservador sem precedentes na redemocratização.

Vai pegar um problema sério de redução da parte discricionária do orçamento, por conta do orçamento secreto, que ele vai ter que se esforçar para reverter. E, finalmente, vai pegar um país socialmente muito dividido.

Então considero que esse novo governo Lula é sobretudo um governo cujo sentido consiste em recolocar o Brasil no trilho certo, do fortalecimento institucional, do desenvolvimento social e da pacificação dessa divisão do país.

Fontes: Folha de S. Paulo – Entrevista da 2ª – Caderno: eleições 2022 – Segunda-feira, 31 de outubro de 2022 – Pág. 24 – Internet: clique aqui (Acesso em: 31/10/2022 – às 16h30).

ALERTA ! ! !

 A humanidade já enfrenta uma emergência climática

 EcoDebate

28-10-2022 

Cientistas alertam em relatório que as mudanças climáticas levaram a Terra a “código vermelho”.

Escrevendo na revista BioScience [clique aqui], uma coalizão internacional liderada por pesquisadores da Oregon State University diz em um relatório publicado hoje que os sinais vitais da Terra atingiram o “código vermelho” e que “a humanidade está enfrentando inequivocamente uma emergência climática”

No relatório especial, “World Scientists’ Warning of a Climate Emergency 2022”, os autores observam que 16 dos 35 sinais vitais planetários que eles usam para rastrear as mudanças climáticas estão em extremos recordes

Os autores do relatório compartilham novos dados que ilustram:

a) o aumento da frequência de eventos extremos de calor,

b) o aumento da perda global de cobertura de árvores devido aos incêndios e

c) uma maior prevalência do vírus da dengue transmitido por mosquitos.

d) Além disso, eles observam que os níveis de dióxido de carbono atmosférico atingiram 418 partes por milhão, o mais alto já registrado. 

William Ripple, professor da Oregon State University College of Forestry, e o pesquisador de pós-doutorado Christopher Wolf são os principais autores do relatório, e 10 outros cientistas americanos e globais são coautores. 

“Olhe para todas essas ondas de calor, incêndios, inundações e tempestades maciças”, disse Ripple. “O espectro da mudança climática está à porta e batendo forte.” 

O relatório segue por cinco anos o “World Scientists’ Warning to Humanity: A Second Notice”, publicado por Ripple e colegas da BioScience e coassinado por mais de 15.000 cientistas em 184 países. 

“Como podemos ver pelos surtos anuais de desastres climáticos, estamos agora no meio de uma grande crise climática, com muito pior por vir se continuarmos fazendo as coisas do jeito que temos feito”, disse Wolf.

“A mudança climática não é uma questão isolada”, disse o coautor Saleemul Huq, da Independent University Bangladesh. “Para evitar mais sofrimento humano incalculável, precisamos:

a) proteger a natureza,

b) eliminar a maioria das emissões de combustíveis fósseis e

c) apoiar adaptações climáticas socialmente justas, com foco em áreas de baixa renda que são mais vulneráveis.” 

O relatório aponta que nas três décadas desde que mais de 1.700 cientistas assinaram o original “Aviso dos Cientistas Mundiais à Humanidade” em 1992, as emissões globais de gases de efeito estufa aumentaram 40%

“À medida que as temperaturas da Terra estão subindo, a frequência ou magnitude de alguns tipos de desastres climáticos pode realmente estar aumentando”, disse Thomas Newsome, da Universidade de Sydney, coautor do relatório. “Pedimos aos nossos colegas cientistas de todo o mundo que se manifestem sobre as mudanças climáticas.” 

Séries temporais de atividades humanas relacionadas ao clima. Os dados obtidos desde a publicação de Ripple e colegas (2021) são mostrados em vermelho (cinza escuro na impressão). No painel (f), a perda de cobertura arbórea não contabiliza o ganho florestal e inclui a perda por qualquer causa. Para o painel (h), hidroeletricidade e energia nuclear são mostradas na figura suplementar S1. No painel (j), os ativos desinvestidos refletem o total de ativos sob gestão com base em compromissos institucionais.
Fonte: World Scientists’ Warning of a Climate Emergency 2022

Referência:

William J Ripple, Christopher Wolf, Jillian W Gregg, Kelly Levin, Johan Rockström, Thomas M Newsome, Matthew G Betts, Saleemul Huq, Beverly E Law, Luke Kemp, Peter Kalmus, Timothy M Lenton, World Scientists’ Warning of a Climate Emergency 2022 [clique aqui], BioScience, 2022. 

Fontes: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Sábado, 29 de agosto de 2022 – Internet: clique aqui (Acesso em: 31/10/2022 – às 15h30).

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

31º Domingo do Tempo Comum – Ano C – Homilia

 Evangelho: Lucas 19,1-10 

Frei Alberto Maggi

Padre e biblista italiano dos Servos de Maria (Servitas)

 

A vida é obtida dando, e não acumulando

O evangelho de Lucas iniciou com a afirmação que nada é impossível a Deus (Lc 1,37). Não existem casos desesperadores, não existem pessoas que, qualquer que seja a situação delas, a condição delas, possam ser excluídas do amor de Deus. No entanto, no evangelho há duas categorias que parecem estar excluídas do amor de Deus, da salvação. A primeira é aquela dos publicanos, os coletores de impostos, que eram considerados transgressores de todos os mandamentos; pessoas impuras para as quais não havia alguma salvação.

A outra exclusão vem da parte de Jesus que exclui, taxativamente, a presença dos ricos na sua comunidade. Jesus disse claramente: “É mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha, do que um rico entrar no Reino de Deus” (Lc 18,25).

A comunidade de Jesus é composta por senhores, não gente rica! Qual é a diferença? O rico é aquele que tem e retém para si mesmo. O senhor é aquele que dá e partilha com os outros.

O evangelista apresenta-nos no capítulo 19, nos primeiros dez versículos, um caso que parece ser desesperador, sem solução. Mas vejamos. 

Lucas 19,1-2: «Tendo entrado em Jericó, Jesus passava pela cidade. Havia ali um homem chamado Zaqueu, que era chefe dos publicanos e muito rico.»

Ironia da sorte, pois, em hebraico, Zaccai significa puro, mas veremos que Zaqueu é a pessoa mais impura da cidade! Ele possui duas características que o excluem da salvação. Não somente ele é um publicano, um coletor de impostos, mas é o chefe deles! E, ainda mais, ele é rico! Portanto, do ponto de vista da sociedade religiosa, ele é um excluído de Deus, mas também para Jesus, ele não pertence à sua comunidade. Assim sendo, trata-se de um caso desesperador

Lucas 19,3: «Ele procurava ver quem era Jesus, mas não conseguia, por causa da multidão, pois era de baixa estatura.»

Aqui, a intenção do evangelista não é dar-nos uma indicação folclorista da estatura desse personagem. O termo que ele usa para “pequeno” é o grego micros, significando que ele não está à altura de Jesus! E por que ele não está à altura de Jesus? Porque a atividade que ele desenvolve o leva a enganar e roubar os outros, fazer o mal aos demais e, sobretudo, porque é rico. Os ricos não estão à altura de Jesus! 

Lucas 19,4: «Então ele correu à frente e subiu num sicômoro, para ver Jesus que devia passar por ali.»

Aqui está a primeira das mudanças que há nessa pessoa. Ele é o chefe dos cobradores de impostos, é uma pessoa desprezada, temida e reverenciada. E ele começa a correr. Correr nessa cultura é algo desonroso, porque ninguém jamais corre. O sicômoro é uma planta típica da região, mostro uma imagem, que se encontra na cidade de Jericó em memória deste episódio. É uma grande planta. Bem, Zaqueu pensa que para ver Jesus ele deve subir, em vez disso, Jesus o convidará a descer. 

Lucas 19,5: «Quando chegou ao lugar, Jesus olhou para cima e disse: “Zaqueu, desce depressa! Hoje eu devo ficar na tua casa”.»

Ele pensava de acordo com a mentalidade religiosa da época, a qual achava que para se aproximar de Deus era preciso subir, mas Jesus o convida a descer. O verbo “dever” usado pelo evangelista é um verbo técnico com o qual os evangelistas afirmam a vontade divina. Portanto, essa parada na casa de Zaqueu faz parte da vontade de Deus, do plano de salvação, deste Deus que veio oferecer seu amor a todos. 

Lucas 19,6: «Ele desceu depressa e o recebeu com alegria.»

Primeiro, Zaqueu corre, então, novamente, ele desce rapidamente. Qual o motivo da alegria? Não é apenas pela acolhida realizada pela figura de Jesus, a alegria vem do que ele está para fazer. Jesus, numa expressão que está contida nos Atos dos Apóstolos, dirá: “Há mais alegria em dar, do que em receber” (20,35).

E Jesus proclamou bem-aventurados aqueles que fazem a escolha da pobreza, da partilha.

Esta é a razão da alegria de Zaqueu. 

Lucas 19,7: «Ao verem isso, todos murmuravam, dizendo: “Foi hospedar-se na casa de um pecador!”»

Mas, à alegria de Zaqueu corresponde o mau humor dos outros. Os pecadores devem ser admoestados, censurados e, sobretudo, evitados. É impensável que uma pessoa pura entre na casa de uma pessoa impura, porque será infectada com essa sua impureza. Jesus mostra que não é verdade que o ser humano pecador deve se purificar para ser digno de acolhê-lo, mas é justamente acolher o Senhor que o purifica

Lucas 19,8: «Entretanto, Zaqueu se pôs de pé e disse ao Senhor: “Senhor, eu vou dar a metade dos meus bens aos pobres, e se prejudiquei alguém, vou devolver quatro vezes mais”.»

Assim, quem era rico, já não será mais rico, porque metade do que tem, dará aos pobres. É o acolhimento da bem-aventurança de Jesus. É claro que roubou, que prejudicou alguém! Zaqueu faz muito mais do que o estipulado na lei. De fato, no livro de Levítico, no capítulo 5, lemos que o culpado tinha que devolver o que roubou com o acréscimo de um quinto. Ele faz muito mais. Diz: “Eu vou devolver quatro vezes mais”. O que aconteceu? Ele era rico, agora não é mais rico, porém está em êxtase, na felicidade e na alegria. 

Lucas 19,9-10: «Jesus lhe disse: “Hoje chegou a salvação a esta casa, pois também este é um filho de Abraão. Com efeito, o Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido”.»

Jesus foi indicado neste evangelho, no início, como o salvador e pela primeira e única vez, o termo “salvação” aparece. As pessoas achavam que, por causa de sua conduta, Zaqueu fosse um excluído, um impuro, um maldito. Não, ele é filho de Abraão.

O Filho do Homem não espera que os pecadores venham a ele arrependidos, mas é ele quem vai ao encontro desses pecadores para comunicar a vida. Por que Jesus diz: “salvar o que estava perdido”? Porque a riqueza destrói as pessoas.

A vida é obtida dando, e não acumulando.

Esta é a BOA NOVA trazida por Jesus, então para ele não existem casos impossíveis, casos sem esperança. 

* Traduzido e editado do italiano por Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo.

** Todos os textos bíblicos citados foram extraídos de: BÍBLIA SAGRADA. Tradução oficial da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). 5. ed. Brasília (DF): Edições CNBB, 2021. 

Reflexão Pessoal

Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo 

“Não confieis na violência e não vos deixeis enganar pela rapina; se crescerem as riquezas, não prendais a elas o coração.”

(Salmo 62,11)

A cena de Zaqueu se situa ao final da viagem de Jesus até Jerusalém, iniciada no capítulo 9, versículo 51 de Lucas. Jericó é a última cidade antes de chegar em Jerusalém. Dois episódios significativos têm lugar nessa cidade: a cura do cego (Lc 18,35-43) e o encontro com Zaqueu (Lc 19,1-10). É impressionante como Lucas insiste que, até o final de seu trajeto ao lugar de sua prisão, julgamento, morte e ressurreição, Jesus continua a aliviar os sofrimentos humanos e acolher as pessoas marginalizadas. 

Portanto, o projeto de Jesus se consuma dessa maneira:

* o cego, aquele que não enxergava a vida, aquele que vivia à margem da estrada e da existência “segue” Jesus (Lc 18,43); e

* o chefe, o primeiro dos publicanos (grego: árchitelones), apegado ao seu “deus dinheiro” e à sua riqueza, dá seus bens a quem ele roubou (Lc 19,8).

Isso é levar Jesus e seu Evangelho (= Boa Nova) a sério! 

O teólogo espanhol José María Castillo enxerga nessas atitudes de Jesus o “programa da convivência”, isto é, o programa pastoral de Jesus não se fundamenta em ensinamento doutrinal, nem em imposição de normas! Porque, segundo Castillo:

«O Evangelho não se ensina, nem se impõe, mas se contagia. Quer dizer, o Evangelho se transmite por contágio... “O Evangelho se transmite, não porque se sabe, mas porque se vive”. Consequentemente, somente quem o vive é que está capacitado para evangelizar.»

E a conversão de Zaqueu não se deu porque ele mudou de religião, de crenças ou práticas religiosas. Ele ser converteu porque teve a coragem e a coerência de fazer a sua opção chegar em seu bolso, em seu dinheiro, em seus depósitos! Ao final, lhe restou bem menos da metade da riqueza que possuía! Não que a religião não interesse, mas a conversão passa pelo dinheiro, pois, assim, se demonstra o quanto se leva a sério a fé! 

Por fim, é de se destacar a alegria que toma conta de Zaqueu quando Jesus lhe anuncia seu desejo de ir até a sua casa. Alegria essa devido ao fato dele poder demonstrar, pessoalmente, a Jesus o quanto estava decidido a mudar de vida! A alegria é um tema caro ao evangelista Lucas! Seguramente, é neste evangelho que mais nos deparamos com essa palavra na forma substantiva (em grego chara: 9 vezes: 1,14; 1,44; 2,10; 8,13; 10,17; 15,7; 15,10; 24,41; 24,52) e na forma verbal (em grego chairō, synchairō 9 vezes: 1,14; 1,28; 1,58; 10,20 [2x]; 13,17; 15,6; 15,9; 15,32). Em geral, a alegria ou o alegrar-se é em referência à chegada do Messias, ao encontro com ele, como reação à sua atuação e às suas obras, e ao estado das pessoas diante daquilo que dele receberam. Afinal, a verdadeira alegria é realizar a vontade do Pai e de seu Filho, como experimentou Zaqueu! 

Oração após a meditação do Santo Evangelho 

«Ó Deus, que em teu Filho vieste buscar e salvar os perdidos, faze-nos dignos de teu chamado: realiza toda nossa vontade de bem, para que saibamos acolher-te com alegria em nossa casa para compartilhar os bens da terra e do céu. Por Cristo nosso Senhor. Amém.»

(Fonte: Oração da Coleta – missal italiano) 

Assista ao vídeo com a íntegra da homilia acima, clicando sobre esta imagem:


Fonte: Centro Studi Biblici “G. Vannucci” – Videomelie e trascrizioni – XXXI Domenica del Tempo Ordinario – Anno C – 3 novembre 2019 – Internet: clique aqui (Acesso em: 26/10/2022).

segunda-feira, 24 de outubro de 2022

A lavagem cerebral dos brasileiros

 Brasil é laboratório de criação de realidade paralela

 Bertha Maakaroun

Jornalista

 Entrevista com João Cezar de Castro Rocha*

JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA

Professor alerta para as consequências de “processo de lavagem cerebral” alimentado por engajamento em torno da desinformação e de teorias conspiratórias

Para o pesquisador e professor João Cezar de Castro Rocha, o Brasil assiste à consolidação das condições para a instauração de um estado totalitário fundamentalista religioso. Este é o propósito da extrema-direita brasileira, que compartilha as mesmas estratégias de seus aliados transnacionais: o uso das plataformas de mídias digitais para a produção da dissonância cognitiva coletiva, um Brasil paralelo, que fratura a espinha dorsal dos valores verdadeiramente cristãos e democráticos. É a opinião de Castro Rocha, ensaísta e professor titular de literatura comparada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), autor de Guerra cultural e retórica do ódio(Editora e Livraria Caminhos, Goiânia, 2021). 

“Está acontecendo diante dos nossos olhos. E há dezenas de milhões de brasileiros que parecem não compreender o perigo. E muitos desses brasileiros e brasileiras são pessoas que nós conhecemos, alguns são nossos parentes, não são pessoas más, cuja índole pudesse suspeitar que apoiariam o que está ocorrendo.

É um processo de lavagem cerebral coletiva, é um processo de criação de dissonância cognitiva coletiva”, afirma o professor.

“Nunca estivemos numa situação tão grave na história da República. Estamos hoje no Brasil em 1913, do filme alemão A fita branca” (de Michael Haneke), a geração que, posteriormente, participou da ascensão do nazismo. “Estamos vendo pessoas que conhecemos e respeitamos, e jamais imaginamos que pudessem ser cúmplices de um projeto totalitário de poder”, salienta o professor. 

Eis a entrevista. 

Como estudioso da extrema-direita no Brasil, que avaliação faz dos resultados das eleições presidenciais?

João Cezar de Castro Rocha: Do ponto de vista pessoal, Jair Bolsonaro não é vitorioso, é sobrevivente do primeiro turno: foi o grande derrotado e primeiro presidente de toda a história da Nova República que, buscando a reeleição, não passou ao segundo turno em primeiro lugar. Por outro lado, do ponto de vista político-partidário, o bolsonarismo foi vitorioso com a eleição para o Senado de Damares Alves, no Distrito Federal, Marcos Pontes, em São Paulo, e Hamilton Mourão, no Rio Grande do Sul, entre outros nomes. Isso quer dizer que, se em 2018 Bolsonaro elegeu grande número de parlamentares, governadores e senadores, em 2022, quem sustentou Bolsonaro foi o bolsonarismo. Isso exige compreender que alguns valores bolsonaristas se enraizaram na sociedade brasileira. 

Qual é o projeto político da extrema-direita no Brasil?

Castro Rocha: Criar as condições para instaurar um Estado totalitário e fundamentalista, do ponto de vista religioso. E a estratégia para alcançar esse propósito passa pela midiosfera digital e a produção de dissonância cognitiva coletiva. No Brasil, a dissonância cognitiva coletiva tornou-se esteio de um projeto político totalitário, o bolsolavismo [Bolsonaro + Olavo de Carvalho], que mira a despolitização da pólis, desviando com falsas e abjetas notícias o debate dos temas que realmente importam. O Brasil é um laboratório mundial de criação metódica de realidade paralela. O que a extrema-direita tem feito no plano da política é a despolitização do debate público para avançar o projeto político totalitário – de eliminação completa do adversário ou do outro que resiste – em algumas circunstâncias, mesmo teocrático. E como isso se realiza? Produzindo a dissonância cognitiva coletiva pela instrumentalização da midiosfera extremista. Por que as redes sociais são o sal da terra para a extrema-direita? O que se trata é trazer para o campo da política o alto nível de engajamento das redes sociais. Ora, qual é a finalidade da eterna guerra cultural da extrema-direita? Não é mudar o voto do campo adversário!

Assista ao professor João Cezar explicar quem foi Olavo de Carvalho, para isso, clique sobre a imagem abaixo:

Estão preocupados unicamente em aumentar a presença nas redes sociais, com conteúdo abjeto, absurdo, pois essa presença pode se materializar em votos, capturando o campo dos indecisos.

Quando isso acontece de forma vertiginosa? Na véspera das eleições, faltando poucos dias. A dissonância cognitiva coletiva é uma temível máquina eleitoral pela transferência para a política da alta intensidade de engajamento das redes sociais. É um engajamento em torno da desinformação e de teorias conspiratórias. Na iminência do segundo turno das eleições, a midiosfera extremista transformou-se em uma usina sórdida de desinformação e seus artífices incorrem nos mais variados tipos criminais como se não houvesse amanhã

O que diz a bibliografia internacional sobre a dissonância cognitiva?

Castro Rocha: O psicólogo social norte-americano Leon Festinger publicou, em 1957, um clássico chamado “Uma teoria da dissonância cognitiva”. Acrescento ao conceito da dissonância cognitiva de Festinger a perspectiva coletiva, que está associada à capacidade da produção de conteúdo das redes sociais. Dissonância cognitiva é um desconforto subjetivo causado pela consciência da distância entre crenças e comportamentos, ocorre sempre que há uma distância entre aquilo em que acreditamos e a maneira pela qual nos comportamos. Não há ser humano que não viva com certo grau de dissonância cognitiva. Diz Festinger que, quando essa dissonância cognitiva começa a incomodar, torna-se gritante e muito óbvia, há mecanismos para reduzir a dissonância cognitiva. São dois mecanismos principais, e você verá neles o próprio bolsonarismo e a extrema-direita de uma forma pervertida. Diz Festinger: o famoso exemplo do médico que fuma, ninguém melhor do que ele saberá que o tabagismo faz mal à saúde. Então, o que faz ele? Ou ele recusa fontes que demonstram cientificamente que o tabagismo é maléfico, ou, pelo contrário, só busca fontes que amenizam essa informação.

Publicado pela Zahar Editores, em 1975, atualmente esgotado

Ou você recusa informação que contraria a sua crença, ou você busca informação que reforça o que você já pensava.

É a própria midiosfera extremista. Agora aqui a coisa fica mais complexa, pois diz Festinger que sempre agimos para reduzir a dissonância cognitiva, não para aumentá-la ou cristalizá-la. Então, o que está acontecendo com o bolsonarismo é a cristalização, a consolidação de um Brasil paralelo.   

O que caracteriza o fenômeno no Brasil?

Castro Rocha: As pessoas que voluntariamente se submetem à midiosfera extremista estabelecem um pacto: somente se informar na midiosfera extremista; nunca aceitar outra fonte. Então, não há mais possibilidade objetiva de se demonstrar que há erro nessas informações, porque todas as outras fontes de informação foram desqualificadas e vedadas. Hoje, no Brasil, contamos com dezenas de milhões de brasileiros e brasileiras – e como diz Mário de Andrade, brasileiros e brasileiras como nós – que estão vivendo na ilusão, estão realmente convencidos de todo conteúdo dessa usina de desinformação, dessa máquina tóxica de produção de conteúdo com base em fake news e teorias conspiratórias, que domina a midiosfera bolsonarista. Para dizer de forma mais simples: essas pessoas estão vivendo numa dimensão paralela. Tenho uma hipótese na qual que estou trabalhando em um livro para o ano que vem. O bolsonarismo, como fenômeno de massa, enraizado em diversos setores da sociedade, é a manifestação no Brasil de uma onda transnacional que levou a extrema-direita a conquistar o poder por meio do voto em várias partes do mundo.

A extrema-direita está à frente em relação ao campo progressista no que se refere à compreensão profunda da forma própria do mecanismo do universo digital.

O que ela tem feito? É a inédita criação da dissonância cognitiva coletiva deliberada, por meio de:

* um conteúdo coordenado,

* estrategicamente produzido para desinformar e

* fazer circular teorias conspiratórias e fake news.

O universo digital e as redes sociais possibilitaram isso e não é casual o fato de que o principal instrumento de divulgação da extrema-direita bolsonarista sejam as redes sociais e plataformas digitais. 

O que ocorre quando a pessoa que vive nessa dimensão paralela é confrontada pela realidade brutal da vida, que contradiz a narrativa dominante desta midiosfera?

Castro Rocha: Em 1956, Leo Festinger publicou o livro “When prophecy fails” (“Quando a profecia fracassa”), que responde à sua pergunta. Ele trata de um caso que aconteceu em Chicago, em 1954, quando uma pacata dona de casa, Dorothy Martin, começara a receber supostas mensagens de extraterrestre de um planeta chamado Clarion. Em torno de Martin foi formada a Fraternidade dos 7 Raios, que acreditava no conteúdo das mensagens, que anunciava que, em 21 de dezembro de 1954, ocorreria um dilúvio de proporções bíblicas que destruiria boa parte da Terra. Contudo, um disco voador pousaria no quintal de Martin e resgataria aqueles que atendessem ao seu chamado. Festinger e pesquisadores associados conseguiram se infiltrar na seita. Na anunciada data, em 21 de dezembro de 1954, os adeptos da fraternidade foram ao jardim da casa de Martin. A madrugada chegou e o disco voador não pousou. Mas, em 22 de dezembro de 1954, o que aconteceu? Martin anunciou ter recebido novas mensagens do planeta Clarion e voltou com uma informação alentadora para os adeptos da seita: o dilúvio não acontecera porque a quantidade de energia positiva concentrada pelos integrantes da fraternidade sustara o dilúvio. Em outras palavras, em lugar de a profecia fracassar, o fracasso da profecia foi racionalizado e os adeptos da seita se tornaram salvadores do mundo. 

Há edições desta obra em italiano e espanhol, em português não houve edição

Que analogia pode ser feita entre esse caso de 1954 nos Estados Unidos e os eventos de massa convocados pelo bolsonarismo, com a promessa de execução de golpes contra as instituições democráticas, como o movimento de 7 de setembro, que não se concretizam?

Castro Rocha: O que aconteceu em Chicago é o bolsonarismo a que assistimos hoje. Os adeptos da Fraternidade não abandonaram a suas convicções, muito antes pelo contrário, racionalizaram o fracasso da profecia e dobraram a aposta, considerando ter sido a sua ação que teria prevenido a ocorrência do dilúvio. A última frase do livro de Festinger é espantosa e inaugura uma radicalidade para a qual o próprio Festinger não estava preparado, mas que explodiu no século 21: “Eventos conspiraram para oferecer aos membros da seita uma oportunidade verdadeiramente magnífica para que crescessem em números. Tivessem sido mais efetivos, e a fracassada profecia poderia ter sido o começo, não o fim”. A publicidade gerada pelo malogro da profecia teria permitido converter o insucesso em fator de crescimento, em uma fase inédita de expansão da fraternidade, em lugar de seu desaparecimento, o que só não ocorreu por não terem sido muito efetivos. Festinger conclui:

“Um homem convicto é resistente à mudança. Discorde dele, e ele se afastará. Mostre fatos e estatísticas, e suas fontes serão questionadas. Recorra à lógica, e ele não entenderá sua perspectiva”.

Se você acrescentar a essa certeza paranoica o caráter coletivo da poderosa midiosfera da extrema-direita, temos o caos cognitivo transformando-se em realidade alternativa. É o que vivemos no Brasil hoje. 

Se argumentos objetivos não são assimilados pelos participantes da midiosfera extremista – e o filme “Não olhe para cima” representa bem esse fenômeno –, o que pode ser feito para recuperar a perspectiva comum dos fatos na sociedade?

Castro Rocha: É possível demonstrar, objetivamente, que uma parte considerável da campanha bolsonarista é baseada em erro. Mas se permanecermos na chave do erro objetivo, nunca compreenderemos o fenômeno. Para compreendê-lo, é preciso resgatar uma distinção entre “erro” e “ilusão” que Freud propôs em ensaio de psicologia social muito importante, “O futuro de uma ilusão”. Erro está no campo do objetivo e pode ser demonstrado. Mas, diz Freud:

... o importante para compreender a sociedade não é o erro; o importante é a ilusão, a projeção de um desejo.

Quando estou diante da ilusão, pouco importa se posso demonstrar para a pessoa iludida que, do ponto de vista objetivo, há um erro. Dessa forma:

* um homem que se casou três vezes, porque sistematicamente trocou a esposa mais velha por outra mais jovem;

* um homem que, no seu último filho homem, teria concordado com o aborto ou deixado a questão para a decisão da mulher;

* um homem que foi incapaz de visitar um único hospital quando nos aproximamos de 700 mil mortos;

* um homem que nunca, nem simbolicamente, foi à casa de uma pessoa com parentes vítimas de Covid para expressar solidariedade, um gesto de compaixão.

* E ainda riu, imitou de maneira satânica uma pessoa morrendo asfixiada.

Obra publicada, no Brasil, pela editora Companhia das Letras, em 2014

E ainda assim os cristãos mantêm a ideia de que ele protegerá a família cristã, a própria família que ele não soube manter. Então, não estamos no plano do erro, mas no plano da ilusão, a primeira hipótese. Trata-se da projeção de um desejo.

E o desejo é de que as teorias conspiratórias e as fake news que circulam na midiosfera extremista, e que são confirmadas, por exemplo, pela Rádio Jovem Pan, sejam a verdade. 

Como é o processo de cooptação e manutenção das pessoas dentro dessa midiosfera extremista?

Castro Rocha: A midiosfera extremista é poderosa máquina de desinformação, talvez a maior da história da humanidade. É composta por cinco elementos:

1º) as correntes de WhatsApp;

2º) o circuito integrado de canais de Youtube com capacidade tóxica de desinformação;

3º) as redes sociais;

4º) aplicativos como o Mano, cujo garoto-propaganda é Flávio Bolsonaro; e um aplicativo do Facebook, a TV Bolsonaro, que se produz 24 horas, sete dias por semana, é conteúdo audiovisual de adesão incondicional a Bolsonaro.

5º) E há um quinto elemento, que é muito grave; como metonímia do processo, cito a Rádio Jovem Pan. Por esse veículo, todas as teorias conspiratórias e as fake news que circulam na midiosfera extremista são legitimadas, são validadas, porque são reproduzidas nesse veículo fora da midiosfera.

Obra publicada pela editora Companhia das Letras, São Paulo, em 2011

Bolsonaro passou boa parte de seu governo atacando instituições democráticas, universidades, professores, a ciência, a imprensa e jornalistas. Líderes populistas atacam instituições e o conhecimento porque buscam, nesse processo, se beneficiar da transferência da autoridade simbólica dessas instituições e pessoas que trabalham com a informação e o conhecimento. A transferência de autoridade está bem trabalhada por Freud no clássico “A psicologia das massas e a análise do eu”, de 1921, em que descreve...

... a relação de submissão das massas a um líder ao qual se atribui autoridade infalível e que há nessa submissão um aspecto libidinal, ligado ao prazer.

No caso de Freud, o líder é uma espécie de imã, o que implica subordinação da massa. Isso certamente é modelo perfeito para se pensar uma sociedade em que havia um centro emissor de conteúdo e uma massa receptora passiva de conteúdo. O modelo freudiano, de 1921, é interessantíssimo para pensar e antecipar de maneira notável o que ocorreu com o nazismo e o fascismo. Neste momento em que vivemos há uma diferença fundamental: hoje, o modelo de um centro irradiador para uma multidão receptora e passiva não dá mais conta da complexidade do presente. Há uma outra chave, um pouco diferente. Assim como a extrema-direita mundial, o bolsonarismo no Brasil investe numa campanha de conteúdo e microdirecionamento digital. Nesse sentido, de fato, é equívoco imaginar que as redes sociais sejam horizontais, pois as grandes plataformas fazem o papel do elemento verticalizador: determinam a lógica do algoritmo e as políticas aceitáveis de comportamento no interior das redes. Então, imaginar algo exclusivamente horizontal seria ingênuo, pois não estaríamos levando em consideração o poder que as grandes corporações e plataformas têm. Além disso há, no interior da midiosfera, a circulação sem cessar de produção audiovisual que difunde o sistema de crenças bolsolavista, com exortação incessante aos golpes de Estado e à eliminação física de adversários, entre outras teorias conspiratórias. Os integrantes compartilham e reproduzem horizontalmente esse conteúdo estrategicamente elaborado com as suas redes. 

Esta emissora de rádio paulista justifica e legitima toda a gama de notícias falsas e teorias da conspiração produzidas pelas redes midiáticas bolsonaristas

Quais são as semelhanças em relação à forma de operação da midiosfera bolsonarista com outros populistas da extrema-direita mundial?

Castro Rocha: Nas décadas iniciais do século 21, o grande fenômeno político foi o avanço transnacional da extrema-direita pelo voto, empregando as mesmas narrativas retóricas. Não se trata mais de uma extrema-direita que conquista poder pela botina e pelo tanque, mas que, na primeira eleição, chega ao poder seduzindo o eleitorado e conquistando corações e mentes.

Uma vez no poder, a extrema-direita passa a enfraquecer e corroer as instituições democráticas.

É a mesma estratégia de argumentação e conteúdo que foi usada por Rodrigo Duterte, nas Filipinas; por Donald Trump, nos Estados Unidos; por Viktor Orbán, na Hungria; por Andrzej Duda, na Polônia; por Jair Bolsonaro, no Brasil. Então, existe certo nível de coordenação. Steve Bannon, antes de ser preso por ter feito rachadinha ou rachadão com dinheiro arrecadado numa campanha chamada We build the wall, criou o The Movement, uma espécie de internacional da extrema-direita. Viajou a vários países da Europa fazendo seminários e conhecendo lideranças jovens para organizar ações combinadas e programadas. A extrema-direita transnacional conta com apoio maciço das megaplataformas e do capital internacional. Por que ela tem sido tão poderosa nas duas primeiras décadas do século 21? Porque aprendeu a combinar o incombinável: a verticalização com a horizontalidade. Combina uma estrutura das redes digitais que, na aparência do exercício cotidiano, é horizontal, mas é verticalizada tanto na produção do conteúdo quanto na configuração dos algoritmos que definem o seu alcance. Essa é a força da extrema-direita no mundo e da extrema-direita bolsonarista. Hoje, o bolsonarismo, assim como a extrema-direita transnacional, criou uma profissão: o MEI (microempreendedor ideológico): há muitas pessoas ganhando dinheiro com radicalização política em seus canais no YouTube.   

Como recuperar a consciência coletiva no Brasil?

Castro Rocha: O Brasil vive uma situação grave, nunca estivemos numa situação tão grave na história da República. E a analogia final que faço: estamos hoje no Brasil em 1913, o ano do filme “A fita branca”, que retrata a futura geração que viverá a ascensão do nazismo.

(Nota: O filme “Fita Branca”, cujo narrador foi testemunha de fatos reais, pode ser assistido no Youtube, com dublagem, clique aqui: https://youtu.be/gTQUNDHkYWs)

Estamos vendo pessoas que conhecemos e respeitamos, e jamais imaginamos que pudessem ser cúmplices de um projeto totalitário de poder.

O Brasil precisará de pelo menos uma década para tentar remediar o malefício causado pelo ensinamento da retórica do ódio e da lógica da refutação de Olavo Carvalho, que tornam o debate impossível.

Vamos enfrentar dezenas de milhões de brasileiros e brasileiras enredados numa realidade paralela. Vamos ter de trabalhar muito. 

Complementando essa entrevista, convido-lhe a assistir a este excelente vídeo sobre o processo de manipulação bolsonarista, clique sobre a imagem:

* Sobre João Cezar de Castro Rocha:

O ensaísta João Cezar de Castro Rocha é professor titular de literatura comparada da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e pesquisador do CNPq. Graduado em história e mestre e doutor em letras pela UERJ, fez um segundo doutorado em literatura comparada na Stanford University, Estados Unidos. Realizou estudos de pós-doutorado na Freie Universität (Berlim, Alemanha) e na Princeton University (Princeton, Nova Jérsei, Estados Unidos). Recebeu, em 2014, o prêmio Ensaio e Crítica Literária da Academia Brasileira de Letras, e, em 1998, o Prêmio Mário de Andrade da Biblioteca Nacional. É editor-executivo da revista Portuguese Literary & Cultural Studies, publicada pela University of Massachusetts-Dartmouth (Estados Unidos). Foi fellow da Universidade de Winsconsin, do Centre for Brazilian Studies da Universidade de Oxford, do St. John’s College da Universidade de Cambridge e da Beinecke Library da Universidade de Yale. Também ocupou a Cátedra Machado de Assis da Universidad del Claustro de Sor Juana, México. Autor de 13 livros, entre os quais “Guerra cultural e retórica do ódio”, é também organizador de mais de 30 títulos. Seu trabalho já foi traduzido para o mandarim, alemão, espanhol, francês, italiano e inglês. Eis algumas de suas obras:

Publicado pela CAMINHOS EDITORA E LIVRARIA, de Goiânia, em 2021

Publicado pela editora É REALIZAÇÕES, São Paulo, em 2011

Publicado pela editora É REALIZAÇÕES, São Paulo, 2017
Fonte: Estado de Minas – Pensar – Sexta-feira, 21 de outubro de 2022 – 04h00 (Horário de Brasília – DF) – Internet: clique aqui (Acesso em: 24/10/2022 - às 08h00).