Um país, dois destinos
Saiamos da bolha em que vivemos
Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e “Criar Filhos no Século XXI”. É doutora em psicologia pela USP
VERA IACONELLI |
A
urna é soberana e definirá o futuro que sonhamos
Sábado passado foi um dia inquietante para os brasileiros, no qual euforia e medo se alternaram. No meio de uma expectativa de proporções mundiais, já que as eleições no Brasil são parte importante do xadrez entre extrema direita e o resto, resolvi ir ao cinema. Ao sair da sessão, atravessei a rua e entrei num restaurante que não conhecia. Embora eu estivesse desarvorada, algo se passou nesse circuito cinema de rua-jantar. Algo que me permitiu olhar de relance para um país que pode, se quiser, ser coerente com sua população, majoritariamente não branca.
Cartaz oficial do filme "MARTE UM" |
Saí do filme “Marte Um”, com roteiro e direção de Gabriel Martins, um jovem preto, com elenco de atores pretos, e me dirigi ao restaurante Preto do chef Rodrigo Freire, outro jovem talentosíssimo e preto. O filme retrata uma família de classe média, socialmente inserida, estruturada, com acesso à educação, trabalho e sistema de saúde. Trata-se da parcela da população que ascendeu nos governos anteriores [de Lula e Dilma] e que viu os jovens alcançarem o ensino superior.
GABRIEL MARTINS - diretor e roteirista do filme "Marte Um" |
A mãe, empregada doméstica, e o pai, porteiro, são sucedidos por uma filha cursando direito e um menino almejando ir mais longe, no caso, Marte. A questão racial jamais é citada pelos personagens, o que poderia tornar o filme insustentável num país como o nosso. Mas não se trata de uma colagem artificial, na qual atores negros interpretam papéis usualmente dados aos brancos. De fato, a problemática racial é onipresente.
A angústia de Tércia, a mãe —magistralmente interpretada por Rejane Faria—, é exemplar daquilo que os trabalhadores da saúde mental vêm denunciando: os efeitos da patologia social sobre o indivíduo. Intuindo o “som ao redor” que ameaça sua família com a eleição de Bolsonaro, e que Gabriel Martins aponta de forma sutil, mas inequívoca, ela se pergunta se a ameaça que pressente é fruto da própria cabeça, do azar ou de encosto. A personagem é grande candidata a um diagnóstico de ansiedade, pânico ou afins, sacado às pressas do DSM*. Tércia, no entanto, encontrará saída mais promissora para o cruzamento entre os males sociais e suas questões pessoais. Que seu insight —não gosto de spoiler— nos sirva de guia nesse momento.
TÉRCIA nome da personagem (mãe) interpretada por Rejane Faria |
O Brasil que se vislumbra nesta fresta, no espaço de um
quarteirão entre o cinema e o restaurante, tem os negros —maior parte de sua
população— vistos e tratados como cidadãos. Sendo um cinema de rua, o
simples fato de andar a pé à noite também remete ao tipo de país que podemos
construir, caso escolhamos caminhos que diminuam as injustiças sociais e,
consequentemente, as violências urbanas.
O ato de caminhar pelas ruas em segurança, que os brasileiros
costumam elogiar em outros países, não é fruto do cidadão armado ou do
policiamento ostensivo, mas da inclusão social representada aí.
1) Nele, um senhor
constrangido pede na casa de massas algo para comer, ao que o
atendente responde de imediato trazendo-lhe um embrulho, para alívio dele, e de
quem assistia à cena.
2) Um jovem fala seu
mantra monocórdico, repetido à exaustão, para justificar que alguém vá ao
supermercado e lhe traga um chocolate que possa vender.
3) Uma mulher maltrapilha
desce perigosamente a rua entre os carros, falando coisas desconexas.
4) Uma casa improvisada no meio-fio, cheia de adereços meticulosamente garimpados, é habitada por um senhor que se lava às vistas dos transeuntes.
Sofremos, quando nos deparamos com o fato de que ainda somos um país
que simpatiza com o autoritarismo e passa pano para a injustiça e para a
violência social.
Mas sofremos ainda mais quando preferimos acreditar na nossa bolha, porque é nessa hora que nos tornamos impotentes e adoecemos. Se chegar a Marte requer muito esforço, então, não há um segundo a perder.
NOTA:
* DSM é a sigla para Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders ou Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. Esse documento foi criado pela Associação Americana de Psiquiatria (APA) para padronizar os critérios diagnósticos das desordens que afetam a mente e as emoções. Encontra-se, atualmente, na quinta edição, 2013 (DSM-5).
Fonte: Folha de S. Paulo – Cotidiano/Colunas e Blog – Terça-feira, 4 de outubro de 2022 – Pág. B2 – Internet: clique aqui (Acesso em: 04/10/2022 – às 16h50).
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