«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

4º Domingo do Tempo Comum – Ano A – Homilia

 Evangelho: Mateus 5,1-12a 

Frei Alberto Maggi

Padre e biblista italiano dos Servos de Maria (Servitas) 

Aceitar e viver as bem-aventuranças é tornar o Reino de Deus uma realidade

As bem-aventuranças são, sem dúvida, a obra-prima do Evangelho de Mateus, uma obra-prima não só do ponto de vista teológico, veremos sua riqueza espiritual, mas também literária. Então, vamos ver no capítulo 5, no Evangelho de Mateus, esse texto extraordinário. 

Mateus 5,1a: «Ao ver as multidões, Jesus subiu à montanha...»

O evangelista escreve: “Vendo as multidões, Jesus subiu ao monte”, vendo as multidões Jesus não se afastanão toma distância do povo, mas quer ativá-las, onde? Na montanha. Esta montanha é precedida pelo artigo definido, a montanha, não é qualquer montanha, mas não é dito que montanha é. Qual é o significado disso? A montanha, na tradição bíblica e judaica, indicava e o Monte Sinai, onde Deus, por meio de Moisés, deu e estipulou a aliança com seu povo, mas também significa entrar na esfera, na condição divina. Então Jesus, através da proclamação dessas bem-aventuranças, quer levar as multidões para alcançarem a condição divina, cada pessoa, por isso é um convite válido para sempre. 

Mateus 5,1b-2: «... e sentou-se. Os seus discípulos aproximaram-se dele. Então, abrindo a boca, começou a ensiná-los, dizendo:»

O ato de “sentar-se” é aquele de assumir a atitude de mestre, tanto que Jesus se põe a “ensinar” seus discípulos. E aqui o evangelista apresenta as bem-aventuranças. Mateus fez um trabalho meticuloso: calculou não só o número de bem-aventuranças, mas até a quantidade de palavras para compor essas bem-aventuranças, de acordo com as técnicas literárias da época. As bem-aventuranças são exatamente 8, porque o número 8, na tradição espiritual, no cristianismo primitivo, indicava a ressurreição de Jesus, que ressuscitou no primeiro dia após a semana. Por isso, os batistérios, local onde se recebia o batismo, sempre tiveram a forma octogonal. Então, o número 8 indica vida que não é interrompida pela morte. O evangelista quer indicar que,

... acolhendo estas bem-aventuranças, se tem uma vida dentro de si, que então será capaz de superar a morte.

Mas não é só isso: o evangelista também calcula o número de palavras para compor as bem-aventuranças, e são exatamente 72, e o evangelista só queria criar esse número porque, em determinado momento, vemos que há uma repetição de algo que não era necessário para o texto [cf. Mt 5,10-11]. Por que 72? Porque, segundo o cálculo contido no livro do Gênesis, no capítulo décimo, na versão grega, os povos pagãos, então conhecidos, eram 72. Qual é a intenção do evangelista? Enquanto, no Sinai, Moisés proclamava os mandamentos, que estavam reservados ao povo de Israel, neste monte, que substitui o SinaiJesus não recebe a nova aliança de Deus, mas Ele, que é Deus, proclama a nova aliança, que é válida para toda a humanidade. 

Mateus 5,3aα: «Bem-aventurados...»

primeira das bem-aventuranças é a mais importante de todas, porque é a chave para a existência de todas as outras, e Jesus começa por proclamar: “Bem-aventurados”. Qual é o significado desta expressão? É uma felicidade tão grande que foi considerada inatingível nesta terra. Naquela época, naquela cultura, os bem-aventurados eram os deuses, que gozavam de privilégios não concedidos aos humanos, ou seja, da máxima felicidade. Mas, para compreender as bem-aventuranças, esta aclamação de Jesus “bem-aventurado”, devemos sempre colocá-la após as situações, ou as indicações que ele apresenta. 

Mateus 5,3aβ: «... os pobres no espírito, ...»

Os primeiros bem-aventurados são os “pobres no espírito”. É preciso dizer imediatamente que Jesus nunca proclama bem-aventurados os pobres. Os pobres são infelizes, e é dever da comunidade cristã retirar-lhes da sua situação de infelicidade.

Jesus não pede aos seus discípulos que se juntem aos tantos pobres que a sociedade produz, mas que se comprometam a eliminar as causas da sua pobreza.

Jesus proclama: “Bem-aventurados os pobres no espírito”, ou de espírito. A partícula grega [τ] pode ser traduzida de três maneiras, vamos ver qual pode ser o significado:

a) Pobres “de” espírito, isto é, os que são carentes de espírito, idiotas, mas não é possível que Jesus proclame a estupidez como a mais alta aspiração do ser humano, por isso a descartamos.

b) Pode ser pobre “em” espírito, ou seja, uma pessoa que, embora possua bens, está espiritualmente desligada deles e, coincidentemente, foi justamente esta a explicação apresentada pela Igreja. Mas Jesus não pede pobreza espiritual, mas pede pobreza imediata. Quando ele encontra ou bate de frente com o rico, ele não lhe pedirá que se desligue espiritualmente de suas riquezas, mas pede um desapego imediato e real (cf. Mt 19,16-22; Mc 10,17-22; Lc 18,18-23).

c) Então a terceira possibilidade é pobre “pelo” o espírito, isto é, não aqueles que a sociedade empobreceu, mas aqueles que livremente, voluntariamente, pelo espírito, por essa força interior que possuem dentro, escolhem entrar nessa condição, o que faz não significa, como dissemos, ajuntar-se aos pobres que a sociedade produz continuamente, mas significa diminuir seu padrão de vidaseu nível de vida, para permitir que, aqueles que o têm muito baixo, aumentem um pouco. Estes são os pobres no espírito, são aqueles que aceitam partilhar generosamente o que são e possuem. 

Mateus 5,3b: «... pois deles é o Reino dos Céus.»

Os pobres em espírito, aqueles que fazem esta escolha, Jesus os proclama bem-aventurados “porque deles”, o verbo está no presente, não é uma promessa para o futuro, mas uma possibilidade imediata, no presente, “porque deles é o reino dos céus”. Infelizmente, no passado, este reino dos céus criou tanta confusão, era entendido como um reino no céu, como se fosse a vida após a morte, e, de fato, se dizia aos pobres que eles eram abençoados, porque iriam para o Paraíso. Nada disso. Mateus é o único evangelista que usa a expressão “reino dos céus”, enquanto todos os outros usam a expressão “reino de Deus”. Jesus já havia proclamado o necessário convite à conversão, porque o reino de Deus estava próximo:

... com a aceitação das bem-aventuranças, o reino de Deus torna-se realidade.

Mas o que esse “reino dos céus” significa? Que Deus governa os seus. E como Deus governa seu povo? Não emitindo leis externas ao homem, que ele deva observar, mas comunicando-lhe sua própria capacidade de amar. Então Jesus diz: quem escolhe isso de forma livre e voluntária, bem-aventurado porque, a partir do momento em que faz essa escolha, acolhe esta bem-aventurança, deixa que Deus se manifeste como Pai em sua existência. 

Depois dessa primeira bem-aventurança, seguem todas as demais em séries de três as três primeiras dizem respeito aos sofrimentos da humanidade [aflitos, mansos e puros de coração], os quais a comunidade cristã é chamada a libertar desses sofrimentos.

É preciso ficar bem claro que as bem-aventuranças não são para um indivíduo, são para uma comunidade!

Então, seguem os efeitos, o florescimento do amor nos indivíduos e na comunidade a partir da aceitação dessas bem-aventuranças.  

* Traduzido e editado do italiano por Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo.

** Todos os textos bíblicos citados foram extraídos de: BÍBLIA SAGRADA. Tradução oficial da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). 6. ed. Brasília (DF): Edições CNBB, 2022. 

Reflexão Pessoal

Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo 

“Eu desejo que você ganhe dinheiro / Pois é preciso viver também / E que você diga a ele, pelo menos uma vez, / Quem é mesmo o dono de quem.”

(Frejat – músico e compositor brasileiro: “Amor Pra Recomeçar”)

As bem-aventuranças de Mateus evidenciam algo que o teólogo espanhol José María Castillo exprime de modo sintético e claro: «O Evangelho não é apenas uma “teoria”, mas além disso – e acima de tudo – é um “modo de vida”».

Isso porque os Evangelhos não narram, apenas, aquilo que disse Jesus e os seus discípulos, mas também o que eles fizeram. Ao invés de “aulas de teologia ou doutrina”, os discípulos tinham “aulas de vida”! Eles aprendiam com a totalidade de sua vida e não apenas pelas suas palavras! 

Portanto, as bem-aventuranças nos trazem as características principais de toda pessoa que deseja ser seguidora de Jesus Cristo, ou seja, discípulo(a) dele! E qual é o traço principal dessa pessoa? Por onde Jesus começa a descrever a pessoa que deseja ser discípula do Reino dos Céus/Deus? 

Aqui, é útil recordar aquela cena do “jovem rico” (cf. Mateus 19,16-26), na qual não cabe dúvidas que além de cumprir os mandamentos da religião (cf. Mt 19,16-20), Jesus lhe propõe a “perfeição” de vida: «Se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens, dá aos pobres, e terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me» (Mt 19,21). O gesto mais importante para Jesus, que uma pessoa que deseja segui-lo deve realizar é, justamente, o desprendimento, a liberdade diante dos bens deste mundo! Pedro confirma essa atitude ao dizer a Jesus: «Olha! Nós deixamos tudo e te seguimos» (Mt 19,27a). 

Agora, somente isso bastou para que os discípulos de Jesus alcançassem a meta que ele desejava? Não! Infelizmente, eles não chegaram ao fim? Despojaram-se do dinheiro, da família, dos bens, da própria segurança, mas não chegaram às profundezas da vida. Eles não alcançaram ao despojamento de seu próprio “eu”, como bem observou o teólogo e psicólogo do profundo Eugen Drewermann. Isso porque após se darem conta do terrível fim que aguardava o Mestre em Jerusalém: prisão, julgamento, condenação e morte (cf. Mt 16,21; 17,22-23; 20,17-19), eles começaram, a partir do segundo anúncio da paixão, a preocupar-se e discutir qual deles era o mais importante ou deveria ser colocado em primeiro lugar! 

A reação de Jesus é imediata: “Em verdade vos digo, se não vos converterdes e não vos tornardes como crianças, não entrareis no Reino dos Céus. Quem se fizer pequeno como esta criança, esse é o maior no Reino dos Céus” (Mt 18,3-4). É isso que as bem-aventuranças nos propõem: primeiro, “despojar-nos dos bens deste mundo”; em segundo lugar e definitivamente, “despojar-nos de nós mesmos”. 

Se pensarmos seriamente sobre isso, sobre o futuro da Igreja, se pensarmos profundamente no número de cristãos, religiosos, clérigos, religiosos, bispos e cardeais, poderemos ver e constatar, de verdade, que nos despojamos de nossos bens e, mais ainda, de nós mesmos? 

Oração após a meditação do Santo Evangelho 

«O Senhor é fiel para sempre, / faz justiça aos que são oprimidos; / ele dá alimento aos famintos, / é o Senhor quem liberta os cativos. / O Senhor abre os olhos aos cegos, / o Senhor faz erguer-se o caído; / o Senhor ama aquele que é justo / É o Senhor quem protege o estrangeiro. / Ele ampara a viúva e o órfão, / mas confunde os caminhos dos maus. / O Senhor reinará para sempre! / A Sião, o teu Deus reinará / para sempre e por todos os séculos!»

(Fonte: Salmo Responsorial – Sl 145(146),7.8-9a.9bc-10)

Fonte: Centro Studi Biblici “G. Vannucci” – Videomelie e trascrizioni – IV Domenica del Tempo Ordinario – Anno A – 29 gennaio 2017 – Internet: clique aqui (Acesso em: 26/01/2023).

Não é desnutrição; é genocídio

 Empregando o termo correto e justo

 Thiago Amparo

Advogado, é professor de Direito Internacional e Direitos Humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste, Hungria) 

CRIANÇA YANOMAMI DESNUTRIDA no colo de seu pai, em Boa Vista (RR): existem pessoas que duvidam, acham tudo um exagero, uma invenção!!!

Os mentores do extermínio tem nome, sobrenome e endereço, alguns na Flórida

O que ocorre hoje contra o povo yanomami em Roraima é, tecnicamente, genocídio, termo cunhado na década de 1940 para nomear o inominável: quem discorda ou não entende de lei, ou entende e está de má-fé, ou, pior, possui as mãos sujas de sangue. Dissequemos as inverdades jurídicas sobre o termo genocídio

a)Crime de genocídio seria questão apenas para o Tribunal de Haia”: falso. O tipo penal de genocídio é previsto na lei brasileira desde 1956, cujo precedente é justamente o massacre contra yanomamis em 1993. Se a Justiça se mostrar incapaz ou indisposta a processar este crime, o próprio Estado brasileiro pode pedir que Haia o faça.

b)Genocídio pressupõe guerra”: falso. Na lei brasileira e internacional, genocídio refere-se a uma série de atos com intenção de destruição étnico-racial, sendo diferente dos crimes de guerra.

c)Genocídio exige destruição total”: falso. O crime prevê atos com intenção de extermínio no todo ou em parte.

d)Caso dos yanomamis seria de omissão”: falso. Série de atos por parte de agentes oficiais aponta para a prática genocida como política de Estado:

* aumento em 180% de invasões e garimpos sob Bolsonaro,

* autorização de exploração de ouro ao lado dos yanomamis,

* desvio de verba para medicamentos.

* O foco das violações em crianças yanomamis releva, inclusive, intenção de extermínio étnico das novas gerações

VEJA O QUE O GARIMPO FAZ dentro da terra indígena Yanomami, em Roraima, em 2020 - Foto: Chico Batata - 2020 / Greenpeace

Somos o país do genocídio por denegação. Lélia Gonzalez foi a primeira a utilizar a categoria freudiana de denegação para explicar a grande neurose à brasileira: somos o país que não suporta sua própria imagem no espelho e, portanto, desconta sua ojeriza a chamar de genocídio o que é justamente praticando-o contra aqueles que são o seu testemunho vivo. 

Ou olhamos no espelho e enquadramos as imagens desumanas não como tragédia, mas como extermínio cujos mentores têm nome, sobrenome e endereço, alguns na Flórida, ou, como escreveu o líder yanomami Davi Kopenawa, o céu continuará a cair sobre nossas cabeças

MAPA DAS TERRAS YANOMAMIS

Fonte: Folha de S. Paulo – opinião – Quinta-feira, 26 de janeiro de 2023 – Pág. A2 – Internet: aqui (Acesso em: 26/01/2023).

terça-feira, 24 de janeiro de 2023

As doenças do totalitarismo

 Em livro póstumo, Contardo Calligaris reflete sobre gozo de carrascos nazistas

 Christian Dunker

Psicanalista e professor titular do Instituto de Psicologia da USP. Autor, entre outros livros, de “Lacan e a Democracia: Clínica e Crítica em Tempos Sombrios” (Boitempo Editorial, 2022) e “Uma Biografia da Depressão” (Paidós, 2021) 

O psicanalista CONTARDO CALLIGARIS retratado por Bob Wolfenson em 2007

Como é possível que a violência nazista possa se repetir em nossos dias sob outras roupagens

[RESUMO] Obra recém-lançada de Contardo Calligaris, resultado de sua tese de doutorado, propõe que o masoquismo, variante fundamental da noção de narcisismo, é o fator determinante do gozo de ser um instrumento. Essa interpretação ajuda a explicar a crueldade de pessoas em tese inofensivas em situações de subordinação a papéis sociais rígidos, como os algozes em campos de concentração durante o Holocausto, e opera uma reversão crítica das categorias de perversão e fetichismo. 

O livro é composto de quatro movimentos, que refletem circunstâncias de escrita e interlocutores diferentes, desde o início da tese, com Roland Barthes e Jacques Lacan nos anos 1970, até sua defesa em 1991, além de breves revisões antes de sua morte, em 2021. O conjunto oferece, assim, uma síntese da sua trajetória e expressa a transformação da sua forma de pensar a psicanálise nos três continentes onde ele a praticou. 

“O Grupo e o Mal”, editado pela Fósforo, começa investigando a linguagem do nazismo e a forma como ele pode ser definido a partir do laço social envolvendo executores e vítimas nos campos de concentração. Mais que entender como Auschwitz foi possível, a questão é reconhecer o quanto disso permanece entre nós, como protótipo de um funcionamento social generalizado, latente, sempre passível de reaparecimento sob outras roupagens

A investigação parte:

a) dos relatos de membros do 101º Batalhão de Reserva da Polícia Alemã, que exterminou mais de 38 mil judeus,

b) passa pelo massacre de Józefów, na Polônia, e

c) ruma para um conjunto de perguntas que não podem ser respondidas nem pela soma das patologias individuais nem pela banalidade do mal

Campo de concentração nazista de Auschwitz, na Polônia, onde judeus eram mortos

O batalhão era formado de pessoas comuns, educadas antes da ascensão de Hitler, com baixos graus de convicção antissemita e com a liberdade para recusar a tarefa.

Por que, então, tantas se engajaram no que elas mesmas chamavam de “trabalho duro” e de “missão tão difícil”, cumprindo de modo tão zeloso as ordens de extermínio?

A ideia de que todos, aprisionados e perpetradores, faziam parte de uma gigantesca missão de trabalho, como peças de uma máquina sem finalidade que não a destruição, suspendia “argumentos racionais e razões políticas fundadas essencialmente na aplicação prática de um mito” (p. 41). Soldados que demonstrassem algum tipo de vilania, crueldade ou gosto pelo extermínio eram criteriosamente retirados da tarefa, que deveria ser cumprida de modo distanciado, higiênico e sem envolvimento pessoal

Isso fez Primo Levi perguntar: como alguém sem ódio ou ressentimento pode bater e maltratar outra pessoa? Responder a essa pergunta implica entender como e por que pessoas comuns, em tese inofensivas, agem de modo tão cruel e indiferente quando a vida institucional estabelece, como em uma peça de teatro, relações entre pessoas que se subordinam completamente ao manual de instruções que define seus papéis. 

Seria preciso postular uma identificação muito específica, para além do funcionamento em forma de massa, dirigida por um líder e cooptada contra um inimigo, para entender que tipo de gozo os envolvidos extraem dessa montagem. 

Adolf Hitler passa em revista às tropas do exército alemão

A junção destas quatro condições determina a paixão por ser um mero instrumento:

a) Sabe-se que isso demanda um conjunto de identificações de grupo (narcisismo),

b) no interior do qual a verdade deixa de produzir consequências esperadas (denegação),

c) indivíduos funcionam como personalidades dissociadas (clivagem) e

d) o sujeito se apreende como um objeto de sacrifício para o outro (fetichismo). 

Aqui, o texto enfrenta o difícil problema que é justificar a existência de uma forma de gozo que contraria a gramática corrente dos benefícios econômicos e dos ganhos ideológicos, bem como o modelo de sujeito baseado na racionalidade da relação entre meios e fins, na consecução e autoconservação de seus interesses. 

Nada disso se passa na paixão instrumental. Nela, o fetichista substitui:

* a parte pelo todo,

* o destino pelo caminho,

* a posição dessexualizada pelo prazer local da obediência.

Para justificar teoricamente essa hipótese, o texto navega entre diferentes leituras do conceito de narcisismo, mostrando como, longe da esfera egoísta, da bolha fechada ou do espelho de si, o narcisismo tem a estrutura de ilusão, miragem que precisa ser continuamente reposta

Para suturar o hiato entre o que sonhamos ter sido (eu ideal) e aquilo que nos orienta para o que queremos ser (ideal de eu), se supõe um momento fetichista. Nesse nível, ele não é uma patologia, mas uma estrutura constitutiva do sujeito, referida à experiência de ser um objeto que positiva a falta no outro, a sutura da distância entre as figuras imaginária e simbólica do narcisismo. 

Valorizando os últimos textos de Freud e confrontando-os com as teses lacanianas sobre o falo, como marcador da falta e da ausência, Contardo chega a uma leitura original da noção de narcisismo, capaz de compreender o masoquismo como uma de suas variantes fundamentais.

Disso, se conclui que é o masoquismo, como expressão generalizada de sacrifício ao outro —não o sadismo, como prática de encarnação violenta da identificação com o pai e defesa contra a castração—, o fator determinante do gozo de ser um instrumento.

A terceira parte do livro, aparentemente terminada já em terras brasileiras, traz os casos clínicos de Foudel, que “precisava” oferecer sua esposa para outros, enquanto se masturbava sem gozar, e Lydie, que sofria com a descontinuidade da montagem sexual pela qual ela se sacrificava a qualquer outro para manter o laço assexual com seu marido —ambos marcados pela mesma paixão burocrática. 

Eis aqui as quatro condições de gozo descritas nos perpetradores nazistas:

* ser ordenado como instrumento de um saber anônimo,

* se proteger da vergonha, da humilhação ou da culpa,

* encenar um simulacro masoquista e

* gozar como fetiche do outro. 

No entanto, onde muitos entenderiam se tratar de um diagnóstico comum de perversão social, encontramos justamente a reversão crítica da categoria de perversão. Há fetichismo generalizado, mas não perversão, a não ser que se redefina a perversão não mais como um tipo de gozo desviante, mas como uma montagem social. 

O famoso divã de Sigmund Freud

Não há deriva da clínica para o social porque, desde sempre, a categoria de perversão é apenas e tão somente social, ou seja, é um artefato jurídico, moral e teológico criado para generalizar coercitivamente um tipo de fantasia. Separar o conceito de fetiche da noção inútil de perversão é análogo à separação que Marx fez entre fetichismo da mercadoria, como patologia das trocas sociais, e a prática sexual ou simbólica do fetichismo supostamente presente em pessoas transgressivas e povos incivilizados. 

Em vez de patologizar o fenômeno social, atribuindo aos perpetradores falta de empatia, identificações sintomáticas ou alienações dissociativas, é o fenômeno social que reconfigura a psicopatologia psicanalítica. Contrariamente ao senso comum, que acredita que patologias psíquicas absolvem a responsabilidade dos sujeitos, isentando-os de consequência política ou moral sobre seus atos, a hipótese da paixão instrumental mostra que essa decisão pode se apresentar, para qualquer um, no cotidiano mais ordinário, repleta de implicações

Se não é o desvio da norma que define o patológico muito menos a transgressão ou o exotismo dos prazeres, Contardo abre, na última parte do livro, o programa de pesquisa que viria a desenvolver em torno da normalopatia, isto é, o estudo de como e a que custo conseguimos sobreviver aos modos patológicos de incorporação da norma. O pior diagnóstico possível, como ele sempre dizia, é a normalidade, pois é a única que não admite cura. 

Aqui, a escrita se torna mais irreverente, combinando alta erudição com exemplos prosaicos, discutindo e contrapondo autores de escolas psicanalíticas diversas, mas mantendo o diálogo tenso, nem incorporativo nem subordinativo. Seu estilo onívoro e sua trajetória de reformulações continua a ser um exemplo de pesquisa e de liberdade de pensamento em psicanálise, como se vê no ótimo trabalho editorial de Octavio Souza e na excelente introdução de Jurandir Freire Costa

Contardo ensinou gerações de psicanalistas a escutar com coragem e a não ceder à obediência doutrinária. Ele praticava boa clínica como crítica social feita por outros meios, e é a ele que podemos atribuir, justa e agradecidamente, parte da pujança crítica da psicanálise brasileira de nossos dias. 

L I V R O :

Título: O grupo e o mal: estudo sobre a perversão social

Autor: Contardo Calligaris

Editora: Fósforo (São Paulo)

Preço: R$ 89,90 (472 págs.); R$ 49,00 (ebook)

Link: https://www.fosforoeditora.com.br/catalogo/o-grupo-e-o-mal/

Fonte: Folha de S. Paulo – Ilustríssima – Domingo, 22 de dezembro de 2022 – Pág. C9 – Internet: clique aqui (Acesso em: 24/01/2023).

Um bispo profético

 Que o catolicismo atue “corajosamente na evangelização”, diz dom Angélico

 Bianka Vieria

Jornalista 

Entrevista com Dom Angélico Sândalo Bernardino

Bispo emérito de Blumenau (SC) e ex-bispo auxiliar de São Paulo e responsável pela Pastoral Operária da Arquidiocese de São Paulo nos tempos da ditadura militar 

DOM ANGÉLICO SÂNDALO BERNARDINO

Bispo fala sobre relação com o atual presidente, diz rezar por Bolsonaro e afirma nunca ter visto tanta miséria no país em 90 anos de vida

Dom Angélico Sândalo Bernardino afirma já ter vivido diversas fases de um mesmo Brasil. Do país predominante rural que tateou reformas ao que repousou sob a penumbra de uma ditadura militar, do que foi palco das greves do ABC paulista ao que se redemocratizava e via, novamente, a sua população ir às ruas e reivindicar melhores condições de vida. De todos eles, o clérigo guarda histórias e a lembrança de preservar um voto de fé. “Eu sempre, teimosamente, tenho esperança”, diz ele

O bispo emérito de Blumenau (SC) recebeu a coluna em sua casa no Jardim Primavera, na zona norte da capital paulista, um dia após completar 90 anos de idade —ou 90 anos e nove meses, como se apressa em corrigir. “Somados os nove meses no ventre da dona Catarina, minha mãe querida”, explica. 

Ao longo do dia de celebração, conta, não pôde desgrudar do telefone. “Foi gente da Espanha, do povo, de favela, de quando eu morei em Ribeirão Preto, gente branca, gente japonesa, gente negra. Ô, meu Deus do céu”, diz ele, entre um sorriso e um suspiro, ao revisitar as ligações que recebeu na quinta-feira (19 de janeiro). 

“Um deles [dos que telefonaram] é meu amigo de quando eu era bispo da Pastoral Operária e ele era do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. Ficamos amigos. Batizei o filho dele, o neto dele... Quando a segunda esposa estava no hospital —a primeira foi para o céu—, me perguntou: ‘Dom Angélico, o senhor viria aqui benzer a minha esposa?’. ‘É claro’. Quando ela morreu, fui abençoar o corpo. Depois, se casou. ‘Dom Angélico, viria celebrar o casamento?’. ‘É claro’”, emenda, antes de confirmar que o amigo de longa data a quem se refere é o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). 

Amigo do petista desde os anos 1970, quando comandava a Pastoral Operária, o bispo esteve ao lado de Lula em momentos de alegria, como o casamento com a socióloga Rosângela da Silva, a Janja, no ano passado, e de perdas irreparáveis. Um deles foi o sacramento dado a dona Marisa Letícia na véspera de sua morte, ocorrida em 2017. 

“Lula estava com as mãos postas, em silêncio, ao lado da cama. O salão [quarto] estava repleto de pessoas. Eu fiz a cerimônia da unção dos enfermos. Ao término, peguei a mão da esposa dele e pus a mão no ombro do Lula. Rezamos o Pai Nosso, que é a oração que Jesus nos ensina”, relembra o bispo. 

Nascido em Saltinho, no interior paulista, Dom Angélico cursou filosofia e teologia e atuou como jornalista em publicações como os jornais Diário de Notícias e O São Paulo, ambos de natureza católica. Nesta última profissão não chegou a se graduar, mas guarda até hoje, dentro de sua carteira, o seu registro junto ao Sindicato dos Jornalistas de São Paulo. 

Nesta conversa com a coluna, o bispo emérito defende que, diante da perda de fiéis no Brasil, o catolicismo atue “corajosamente na evangelização” e lance mão de meios modernos de comunicação, diz rezar constantemente pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), afirma nunca ter visto tanta miséria no país e defende que a Igreja e a sociedade discutam mais sobre sexualidade e alternativas ao aborto. 

Nós precisamos nos aprofundar. Nós não falamos claramente a respeito de pênis, a respeito de vagina, a respeito de bumbum, a respeito do prazer, a respeito da evolução”, afirma. 

Leia trechos dessa entrevista, abaixo: 

Dom Angélico, então bispo-auxiliar da Arquidiocese de São Paulo, reza missa em homenagem a líderes sem-terra presos, em frente ao Carandiru, na capital paulista - Foto de: Lalo de Almeida - 6 de novembro de 1995 / Folhapress

UM BRASIL DE LUTA

O Brasil do tempo da minha ordenação de padre era um Brasil que estava crescendo. Era um Brasil de muita esperança, de muita luta pacífica. Depois, conhecemos a ditadura —ou melhor, o golpe militar, que foi dado porque havia já movimentos reivindicatórios por condições melhores de vida, de maneira particularmente especial no campo. Eu era jornalista e diretor do jornal Diário de Notícias, da Arquidiocese de Ribeirão Preto. A gente estava ao lado dos trabalhadores rurais.

Já naquele tempo, era um Brasil de luta, mas também um Brasil de sofrimento e de repressão.

Fui nomeado bispo em 1974 pelo grande papa Paulo 6º. Naquela ocasião, eu morava na periferia. Sempre fui um bispo da periferia de São Paulo. Primeiro na Vila Carvalho, depois na Vila Fraternidade, e assim por diante.

Fui nomeado bispo-auxiliar em São Paulo e integrei, meu Deus do céu, a equipe de dom Paulo Evaristo [Arns]. Minha ordenação aconteceu na Catedral da Sé, em 1975. Era o Brasil de muita luta, de muita organização, e dom Paulo me encarregou, então, da Pastoral Operária. Fiquei durante 25 anos nela.

Quantas vezes não saímos da periferia, da praça do Forró lá em São Miguel, e caminhávamos —olhe!—, milhares de pessoas, até a praça da Sé.

Tive contato com o [ex-governador de São Paulo] Mario Covas [do PSDB]. E ele disse: “Vou lá numa assembleia de vocês”. Nós, então, esperamos. Havia muitas pessoas reunidas, reivindicando sarjeta na calçada, creche, saúde e uma porção de coisas de que tinham necessidade. Era o Brasil de então. Vi o povão, mas o Mario Covas não apareceu. Falei: “Ele não veio”. Daqui a pouco, ele chega e fala: “Eu tô aqui” [risos]. Ficamos amigos caminhando juntos

SANTO DIAS DA SILVA (1942-1979): líder comunitário e sindical assassinado por um policial militar em 30 de outubro de 1979, durante um piquete na fábrica Sylvania

A BALA ASSASSINA

Foi um tempo de muita luta na Pastoral Operária. Eu tive na equipe, por exemplo, trabalhadores que foram presos.

Eles não tinham nada a ver com subversão, e não eram subversivos, apenas reivindicavam trabalho e salário justo para todo trabalhador.

E eu cito de maneira especial o Santo Dias [metalúrgico assassinado por um policial militar quando participava de uma das primeiras greves da categoria em São Paulo]. Ele era da minha equipe de Pastoral Operária.

Dom Paulo chegou e falou: “Angélico, o corpo do Santo Dias está lá no Instituto Médico Legal. Vamos até lá?”. Eu falei: “Vamos”. Dom Paulo chegou, foi abrindo caminho, e eu atrás dele. Um dos corpos era do Santo Dias. Nu. E varado o corpo pela bala do repressor.

Tenho dito pelo Brasil afora: nunca vi a imagem de Jesus com o peito varado pela lança como naquele momento vi o corpo do Santo Dias, militante da Pastoral Operária. Varado pela bala assassina.

Era o Brasil de muita luta. E ressalto e insisto: mas luta pacífica. Nunca armados, a não ser alimentados por Jesus, que é o nosso mestre. 

Perfil de Dom Angélico

MINHA TEIMOSIA

Eu sempre, teimosamente, tenho esperança. Naqueles tempos de luta, dom Paulo sempre dizia o seguinte: “Coragem, vamos avante. De esperança em esperança, na esperança sempre”.

Eu, teimosamente, cultivo o positivo nas pessoas e na sociedade. Vejo erros enormes, mas, de esperança em esperança, vou caminhando.

Agora, o mundo de hoje, que tristeza a guerra da Ucrânia, a maldita guerra da Ucrânia. E depois o mundo dos armamentos militares, inclusive o Brasil entra nisso.

O dinheiro que é gasto em armas de destruição no mundo não tem cabimento.

Se uma parcela mínima fosse destinada para o pão, para o alimento, para a moradia, saúde, educação, todos os bens que Deus ensinou a todos, e que se acumulam nas mãos de poucos, não haveria miséria no mundo.

No Brasil, querido e amado, nós vemos também muita dificuldade, muita miséria. Na minha vida de 90 anos, nunca vi tanta miséria, tanto morador de rua, tanta gente batendo na porta [perguntando] “tem um pãozinho aí? Tem alguma coisa?”. Nunca vi também violência tamanha —contra a mulher, na família, na sociedade.

Por isso, nós gritamos com Jesus. E eu repito com alegria aquilo que o meu amigo pessoal, o arcebispo de Aparecida [dom Orlando Brandes], já disse e por isso foi até desrespeitado: o Brasil precisa de “amai-vos”, e não de “armai-vos”.

Sempre tenho esperança de um mundo e de um Brasil diferente. Mas eu tenho muita esperança no Brasil de agora

As igrejas pentecostais e neopentecostais têm uma forte e marcante presença nas periferias urbanas, local em que a Igreja Católica já foi mais ativa

O CATOLICISMO EM BAIXA

Precisamos nos renovar como Igreja. A Igreja, antes de tudo, tem a missão de ser comunidade de Jesus, atenta ao que Jesus manda. E ser uma Igreja em saída, que vá realmente às periferias. Bispos, padres, religiosos, religiosas, leigos e leigas formando realmente uma comunidade evangelizadora, anunciadora do Reino de Deus, que é feito de justiça, amor e paz.

Diminuiu muito o número das comunidades eclesiais de base. O que aconteceu? Irmãos evangélicos começaram a montar pequenas igrejas de culto na periferia. E em atendimento a que, prioritariamente? Às necessidades básicas do povo.

Eu sempre digo que eu não sou filho da Igreja, eu sou cria, porque eu não me compreendo a não ser na Igreja. Sempre acho que nós, cristãos, precisamos nos converter constantemente àquilo que Jesus quer de nós.


Porque muitas vezes a gente fica mais preocupado com edifícios, com organizações, isso e mais aquilo, quando o templo vivo do Espírito Santo é cada pessoa.


Tenho confiança de que as igrejas cristãs se renovem, e que, inclusive, certas igrejas que se proliferam nas periferias também sejam atentas não a promessas eleitoreiras, simplesmente alienantes, mas que se comprometam como nós, Igreja Católica, com as reais necessidades do povo. A Igreja precisa entrar corajosamente na evangelização, inclusive se utilizando desses meios moderníssimos de comunicação.

DOM ANGÉLICO COM LULA, ATUAL PRESIDENTE DA REPÚBLICA

RELAÇÃO COM A POLÍTICA


Eu não tenho nenhum partido político, eu tenho opções quando voto. Isso eu tenho. Tenho amigos de diversos partidos e faço questão de valorizar a política. Nós não estamos atrelados, como Igreja, a nenhum candidato. Não. Nós somos favoráveis àqueles candidatos que realmente lutam para que haja:


* emprego para todos,

* salário justo,

* trabalho para todos,

* moradia,

* saúde.


Aí nós apoiamos. E é nesse ímpeto que eu caminho também.

Quando me convidam, por exemplo, para a posse política disso e daquilo, eu digo não. Agora, para um ato religioso, eu vou. Preciso fazer essas distinções fundamentais.


Fui batizar o filho do Lula? Fui. O neto, a bisneta? Fui. Por quê? Eu sou ministro. Fui dar unção dos enfermos para a esposa do Lula, fui ao funeral? Fui. Marquei presença. Fui convidado para o casamento? É claro, estou lá, presente, com alegria. Querem que eu benza a casa onde vão morar? Conte comigo.

Dom Angélico na cerimônia religiosa do matrimônio de Lula e Janja

ABORTO


[Dom Angélico é questionado sobre revogações feitas pelo governo Lula de portarias que dificultavam o acesso ao aborto legal] Eu vi pelos jornais e não aprofundei ainda com a própria CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil]. O que eu faço votos é que esse governo dê muita esperança para esse país. Tenho confiança de que esse governo realmente seja favorável plenamente à vida.


A Igreja —de uma forma, eu digo, até radical— é a favor, e não contra isso ou aquilo. Ela é a favor. E, nesse caso, a Igreja é a favor da vida.


Na questão do aborto também é preciso que nós mudemos. Nós temos que mudar, mudar a educação na família, na escola, nos seminários, nos colégios e assim por diante.


A respeito do quê? Da afetividade e da sexualidade.

Nós precisamos nos aprofundar. Nós não falamos claramente a respeito de pênis, a respeito de vagina, a respeito de bumbum, a respeito do prazer, a respeito da evolução. Quando nós ficamos jovens, adolescentes, na puberdade vem a fecundidade. Nós precisamos falar da fecundidade. E qual é a finalidade e a prioridade disso tudo? É a vida.


Como é o funcionamento do sexo num casal? Um celibatário é diferente, como eu, mas como é que funciona a questão sexual? Nós não falamos sobre isto. Nós somos, afetiva e sexualmente, uma sociedade de tabus. Não se conversa. Então só é “eu sou contra aborto, eu sou favorável”. Espera um pouquinho.


Nós também precisamos nos perguntar se alguém que engravidou, se engravidou, muitas vezes, sendo profanada na própria família, aquela menina, aquela jovenzinha... Então engravidou, vai abortar? Não, a gente pode perguntar: não há outros meios de a gente adotar aquela criança e efetivamente apoiar aquela mãe?


A gente precisa se perguntar qual é o amparo que se dá a uma menina que muitas vezes é profanada dentro da própria família e comete um aborto.

Não basta condenar ou ser contra o ABORTO, é preciso ações concretas e eficazes de apoio e prevenção para que ele não aconteça! E, sobretudo, não deixar só para as mulheres o peso e consequências de uma gravidez indesejada ou forçada!

LULA E IGREJAS


O Lula realmente é católico, respeita profundamente todas as religiões e tem proclamado que o governo dele respeita o culto religioso. Essa é a posição dele. Vamos separar, não vamos instrumentalizar a religião.


Não vamos usar o nome santíssimo de Deus em vão.


Nós precisamos respeitar os Poderes para que não aconteça esse desastre que aconteceu no dia 8 [de janeiro], em que vimos realmente depredações verdadeiramente criminosas. Em nome de quê?


Não é por aí. Temos que respeitar realmente o voto popular, mesmo que seja contra o nosso candidato.

Só Deus para ter piedade dessa sua criatura!!!

JAIR BOLSONARO


Quando vejo que atacam o Bolsonaro dessa forma ou daquela forma, muitas vezes com desrespeito à pessoa, eu tenho dito: rezo constantemente pela saúde do ex-presidente.


Rezo, também, para que ele possa, quem sabe, mudar a maneira de agir.


Por quê? Porque eu reconheço, não estando de acordo com as ideias e atitudes dele, que ele é filho de Deus, é meu irmão. Somos todos irmãos, porque somos filhos do mesmo pai.


O Lula é meu irmão, meu amigo. Tem gente que diz: “Ah, mas ele é comunista”. É lamentável.


Nós precisamos, nos seminários, entre nós, bispos, evoluir no conhecimento da doutrina social da Igreja. A Igreja não é a favor do comunismo nem a favor do capitalismo que está aí. A Igreja anuncia uma sociedade numa economia verdadeiramente solidária. Não é possível que a riqueza se acumule vergonhosamente nas mãos de poucos, e multidões não tenham saúde, educação, moradia, não tenham nada.


A Igreja prega isto porque ela é fiel à mensagem de Jesus, de tal forma que aí nós precisamos evoluir no conhecimento e na prática da doutrina social da Igreja. 

A ALEGRIA DE CADA DIA

Para mim, é preciso que a gente viva. O que Jesus diz? Ele não diz “se preocupe com o passado” ou “se preocupe com o futuro”. Não. A cada dia, basta o seu peso, basta o seu fardo. Então, o meu empenho é viver diariamente com alegria e com entusiasmo.

Eu tenho dor, “ai”, na perna, e fico muitas vezes “ai, minha coluna”. Agora, quando me perguntam “como vai, dom Angélico?”, a minha resposta é a seguinte: eu vou bem, graças a Deus. Nas mãos de Deus que é Pai, forte e alegre, e vamos para frente.

É assim que procuro viver a cada dia.

E tendo um companheiro que nunca me abandona, que é o caminho, a verdade e a vida: Jesus.

Eu repito e grito a honra que eu tenho na vida. Eu devo tudo, mas tudo, a Ele

Fonte: Folha de S. Paulo – Ilustríssima / Mônica Bergamo – Domingo, 22 de janeiro de 2023 – Págs. C2–C3 – Internet: clique aqui (Acesso em: 24/01/2023).