«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

sábado, 26 de setembro de 2020

26º Domingo do Tempo Comum – Ano A – Homilia

 Evangelho: Mateus 21,28-32

 Para ouvir a narração deste Evangelho, clique sobre a imagem abaixo: 

O Importante é Fazer não Falar

Depois da entrada de Jesus em Jerusalém e a violenta expulsão dos comerciantes do Templo (Mt 21,1-27), a grande «parodia do poder», o evangelho de Mateus coloca três parábolas tremendas, todas elas dirigidas contra os dirigentes religiosos (não contra o povo de Israel):

a) a parábola dos dois filhos (Mt 21,28-32);

b) a dos vinhateiros homicidas (Mt 21,33-46);

c) a do banquete do Reino (Mt 22,1-14).

Com essas parábolas, Jesus provoca mais tensão na situação de enfrentamento com os responsáveis pela religião. E chega ao ponto de lhes dizer que eles são:

1) os que não fazem aquilo que Deus quer;

2) os que se apoderaram do poder e assassinam aqueles que lhes estorvam;

3) os que não entrarão no banquete de Deus. 

Compreende-se que, ali mesmo, quiseram matar Jesus (Mt 21,46a). E não o fizeram porque o povo estava da parte de Jesus e os homens do Templo tinham medo das pessoas (Mt 21,46b. Cf. Mc 11,18.32; 12,12; Mt 14,5; 21,26.46; Lc 20,19; 22,2). Aqueles homens tão religiosos, além de traidores, eram covardes. 

A parábola é imediatamente compreendida: 

A ética de Jesus não é a ética dos propósitos e das palavras, mas a ética dos fatos. 


Para Jesus o que «se diz» não conta; o que conta é o que «se faz». Sobretudo, quando o que se diz é exatamente o contrário do que se faz. Isso é o que aconteceu com os dois irmãos [da parábola deste domingo]. E é o que ocorre, tantas vezes, com a elite religiosa:

* em suas pregações falam contra o apego ao dinheiro, aqueles que se parecem com qualquer coisa, menos a um pobre;

* falam contra o orgulho aqueles que ocupam sedes de poder e honra;

* são severos censores do sexo aqueles que ocultam e protegem a delinquentes sexuais. 

Jesus acentua a sua denúncia ao afirmar que os grupos mais depreciados pela elite religiosa (publicanos e prostitutas) estão à frente dessa elite no caminho para o Reino. É de se notar que o verbo [grego] «proágousin» (Mt 21,31b) está no tempo presente, isto é, «agora» os publicanos e as prostitutas «vão à vossa frente» no caminho para o Reino. 

A juízo de Jesus, os mais recuados [atrasados] no caminho para Deus são, precisamente, os que acham estar à frente dos outros e aqueles que se veem a si mesmos como o exemplo a seguir.

 Traduzido do espanhol por Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo. 

Fonte: CASTILLO, José María. La religión de Jesús: Comentario al evangelio diario – 2020. Bilbao: Desclée De Brouwer, 2019, páginas 346-347.

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Tributar para progredir

 Lógicas tributárias fazem do Brasil a “galinha dos ovos de ouro” dos ricos

João Vitor Santos

Entrevista especial com Rafael Barbosa

Graduado em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), mestre e doutor em Desenvolvimento Econômico na área de concentração Economia Regional e Urbana pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Atualmente é pesquisador e pós-doutor em Política Social da Ufes.

Para o economista, “os quase quatro séculos de escravidão foram determinantes para que o Brasil seja hoje um dos países mais desiguais”, onde muitos trabalham para benesse de poucos

 

RAFAEL DA SILVA BARBOSA

IHU On-Line – O que a experiência da pandemia revela sobre a ocupação laboral dos brasileiros?

Rafael da Silva Barbosa – Mostrou a extrema fragilidade do mercado de trabalho brasileiro, em que poucas ocupações estão de fato protegidas contra as flutuações do mercado e situações adversas como da pandemia. De acordo com os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - Pnad, em apenas três meses [maio a julho de 2020], o número de desempregados aumentou em mais de 3 milhões, de 9,8 milhões de pessoas para 12,9 milhões de pessoas.

Se antes da Reforma Trabalhista (aprovada em julho de 2017), as condições já não eram boas, com ela, se mostrou muito pior. Os trabalhadores se viram totalmente desamparados, principalmente num contexto de extinção do Ministério do Trabalho promovido pelo governo Bolsonaro no dia primeiro de janeiro de 2019. O quadro só não é pior porque a oposição (PCdoB, PDT, PSB, PSOL, PT e REDE) propôs e conseguiu aprovar um auxílio emergencial que evitou a catástrofe.

IHU On-Line – E sobre o Estado e seu papel em financiar proteção social, o que a experiência pandêmica revela?

Rafael da Silva Barbosa – Ela mostrou a importância do Estado como instituição integradora e estabilizadora da sociedade. A falsa oposição entre Estado e mercado foi posta à prova. Diante da pandemia, todos os axiomas do mercado autorregulável desmoronaram. O vírus desnudou o mito, e fez isso mostrando que o individualismo econômico é uma mera ficção que não se sustenta ao menor tremor, nem de curto prazo.

Assim, mesmo no capitalismo mais selvagem, como o do Brasil, é necessário ter uma base social para não colapsar. O auxílio emergencial cumpriu seu papel no curto prazo, mas foi o Sistema Único de Saúde (SUS) que salvou milhares de brasileiros em última instância, apesar da sabotagem do próprio presidente da República. Ou seja, uma política de Estado guiada por funcionários públicos que fizeram e fazem a diferença na pandemia.

IHU On-Line – Como compreender o cenário brasileiro dos últimos anos em que a renda dos trabalhadores é achatada enquanto os rendimentos dos mais ricos se multiplicam? Onde está a origem dessa desigualdade?

Rafael da Silva Barbosa – Não há desenvolvimento nacional sem uma reforma tributária progressiva. Todos os países desenvolvidos tributam progressivamente o topo da pirâmide de renda e riqueza em seus respectivos países. A única exceção recente são os Estados Unidos, que têm seguido o caminho da regressividade e, por isso, têm visto o seu nível de desigualdade subir.

Como sabido, o sistema capitalista é inerentemente concentrador de renda e riqueza, e, num Estado desenvolvido, a tributação e a regulação do mercado de trabalho com apropriação salarial mais próxima dos ganhos de produtividade desempenham um papel de ajuste estrutural do sistema. O bolo tem que ser feito com simultânea distribuição dos recursos. É mais fácil distribuir do que redistribuir.

As chantagens do tipo “se tributar, os ricos vão retirar seu dinheiro do país” são mentiras que não condizem com a realidade. A galinha dos ovos de ouro do rico brasileiro é o Brasil, se sair, não vai conseguir competir com o empresário estrangeiro.

O empresário brasileiro é acostumado com regalias e privilégios de um Estado capturado pela Elite do Atraso, não aguentaria a forte competição lá fora.

IHU On-Line – A pauta da reforma tributária é discutida há anos e atravessa diversos governos. Mas, de fato, o quanto essas propostas discutidas ainda sustentam as lógicas do Estado como promotor de desigualdade?

Rafael da Silva Barbosa – Toda tem5ática estruturante necessita de atualizações. Hoje, contamos com significativos avanços de informações a partir dos microdados técnicos e científicos sobre ganhos e patrimônio em quase todos os países capitalistas. O livro do economista francês Thomas Piketty é uma referência internacional atual. Segundo o autor, o Brasil tem o nível de desigualdade similar ao da Europa do fim do século XIX.

No Brasil, o recente documento organizado pelo professor Eduardo Fagnani – “Tributar os super-ricos para reconstruir o país” – traz uma abordagem inovadora para a discussão. Ele mostra concretamente como a tributação progressiva pode beneficiar os trabalhadores e a classe média e os pequenos e médios empresários. O documento ataca ao mesmo tempo o imaginário distorcido da sociedade sobre a política da progressividade tributária e coloca na mesa uma proposta concreta de execução.

Baixe o documento “Tributar os super-ricos para reconstruir o país”, clicando aqui para o documento síntese, aqui para o documento executivo, aqui para o documento completo.

IHU On-Line – Como conceber uma reforma tributária que de fato diminua as desigualdades e resolva o subdesenvolvimento econômico-social do Brasil?

Rafael da Silva Barbosa – Como citado, documentos como “Tributar os super-ricos para reconstruir o país” são uma ótima saída. São propositivos, palatáveis de leitura e concisos. Tais perspectivas precisam ser incorporadas às agendas de todos os partidos de esquerda e devem ser amplamente divulgadas, pois revelam a verdadeira modernidade da política. O medo do Estado interventor são ideias colocadas no imaginário social que não condizem com a realidade do mundo.

Um exemplo claro é o caso dos pequenos e médios empresários. Em sua grande maioria, pelo simples fato de possuírem uma empresa, se consideram grandes capitalistas, mas sem capital. Incorporam a simbologia sem conteúdo, esquecem que sua rotina é tão estafante como a de qualquer outro trabalhador comum. Compram a agenda dos grandes empresários sem ter qualquer benefício em troca. As palavras do ministro da Economia, em uma das reuniões ministeriais mais baixas da história da República, em 22 de abril de 2020, comprovam a realidade:

“Nós vamos ganhar dinheiro usando recursos públicos pra salvar grandes companhias. Agora, nós vamos perder dinheiro salvando empresas pequenininhas”.

Detalhe, são as micro e pequenas empresas que mais empregam no Brasil. O caminho é mostrar os dados cada vez mais próximos das diversas realidades. Acho que duas categorias precisam ser mais trabalhadas: tanto a classe média quanto o universo dos micro e pequenos empresários são um foco importante de esclarecimento para que a política tributária progressiva avance dentro do Congresso.

IHU On-Line – O rico no Brasil paga menos imposto? Por que e como corrigir essa distorção?

Rafael da Silva Barbosa – Sim. O sistema tributário brasileiro é cada vez mais generoso à medida que a renda e o patrimônio sobem. Segundo a Receita Federal, os estratos mais altos do Imposto de Renda de Pessoa Física pagam alíquotas líquidas em torno apenas de 2%, enquanto estratos médios de 15 a 40 salários mínimos pagam mais de 10%. Quanto mais rico, mais benefícios e privilégios. Não à toa o Brasil é considerado um dos países mais desiguais do mundo.

Isto acontece, precisamente, porque o nosso passado nos condena e ainda não conseguimos corrigi-lo. Os quase quatro séculos de escravidão foram determinantes para que o Brasil seja hoje um dos países mais desiguais do mundo e as mazelas sociais vividas atualmente são resultado direto da nossa história política, econômica e social, marcada pelo longo período de vigência do padrão produtivo primário-exportador realizado por meio do trabalho escravo que limita o processo civilizatório brasileiro. Desse modo, as relações de reprodução social constituídas nos períodos da Colônia, Império e República Velha foram determinantes na formação do país e o metabolismo entre esse padrão produtivo e nossa sociedade criou uma sociabilidade marcada pela naturalização da exclusão das grandes massas que resultou numa sociedade extremamente segregada em termos territoriais e segmentada em termos sociais e econômicos.

O Brasil como país do futuro ficou no meio do caminho. Não fizemos nenhuma das reformas estruturais que todos os países desenvolvidos fizeram, tais como uma:

a) ampla reforma agrária [uma das maiores reformas agrárias do mundo foi nos Estados Unidos, a expansão para o Oeste];

b) reforma educacional ampla de qualidade com salários dignos aos professores [parcialmente restrita apenas ao ensino superior];

c) reforma tributária progressiva;

d) reforma eleitoral com fim da monetização das campanhas e partidos de aluguel [feita parcialmente com fim do financiamento empresarial de campanha];

e) reforma urbana para garantir acesso a transporte e habitação a baixo custo [feita parcialmente com introdução do IPTU progressivo e políticas habitacionais]; e mais grave de todas,

f) a reforma do sistema financeiro e bancário com auditoria da dívida pública e maior controle do mercado bancário para solucionar problemas estruturais, como a redução drástica do criminoso spread praticado pelos bancos privados.

A solução deve vir da repetição do debate racional, com uso cada vez mais amplo e corriqueiro de dados para mostrar os benefícios concretos na vida de todos os brasileiros a partir das reformas. A racionalização do debate tem que ser um mantra para o desenvolvimento nacional. É no campo das ideias que se mudam as atitudes.

IHU On-Line – No mundo, ainda nos primeiros meses da pandemia, um grupo de milionários defendeu maior tributação sobre suas fortunas. Como o senhor interpreta esse movimento? Quais as questões de fundo que estão em jogo?

Rafael da Silva Barbosa – Existe uma frase famosa no mundo acadêmico, do economista Michal Kalecki:

“Os trabalhadores gastam o que ganham; os capitalistas ganham o que gastam”.

No imaginário do milionário de países desenvolvidos é claro o papel que a tributação progressiva desempenha na dinâmica capitalista. É sabido que o Estado é o melhor instrumento social de redistribuição de renda e riqueza com maiores rebotes positivos para o avanço do mercado. Por lá, não há uma falsa oposição entre Estado e mercado, os dois são vistos como parte de um todo.

A redistribuição da renda do topo para a base da pirâmide reativa a economia. Como o Estado é o depositário de todas as grandes demandas, ao receber um fôlego financeiro maior, por meio da tributação dos super-ricos, o Estado pode sanar a demanda reativando a economia. Por exemplo, quando o Brasil universalizou a energia em 2009, esse gasto na verdade virou um grande investimento, pois gerou empregos, renda, consumo, vendas e lucros para as empresas locais e principalmente para os grandes empresários, deixando um legado da obra, a rede elétrica de energia. Que aliás, proporcionou a criação da onda, logo depois, da linha branca de eletrodomésticos.

Em função disso que os milionários (empresários e ofertantes) em países desenvolvidos sugerem a tributação no topo da pirâmide para a base (aos trabalhadores e demandantes), pois sabem da virtuosidade dessa política.

IHU On-Line – Qual o papel da classe média nacional num debate sobre uma reforma tributária que efetivamente diminua as desigualdades? Quais os desafios para se discutir uma “solidariedade tributária”?

Rafael da Silva Barbosa – A classe média é uma formadora de opinião difusa. Sua posição social entre os cargos mais importantes do Estado e mercado, além de grande empregadora de parte importante da massa trabalhadora, afeta as percepções. Seja nos escritórios em repartição pública ou empresas privadas, ou em negócio próprio, seja até mesmo no dia a dia em seu condomínio em contato com porteiros, pessoal da limpeza e outros serviços, sua voz tem um peso que pode influenciar toda a sociedade. Essa categoria social chamada “classe média” tem um peso simbólico que cristaliza posições políticas concretas.

Costumo dizer que a este grupo falta uma matéria para concluir, de fato, sua formação: a matéria da cidadania. Não adianta saber fazer uma derivada ou integral, falar espanhol e inglês, viajar para diversos países, ocupar um alto cargo em sua empresa, e ao mesmo tempo ser um ignorante em relação às questões sociais, pois todo o seu conhecimento pode ser usado contra si mesmo.

O Golpe Parlamentar de 2016 foi isto. Os maiores prejudicados pela inflexão democrática foram os pobres, a grande massa trabalhadora e a classe média. Queriam o dólar barato para viajar para Disney, que à época era R$ 3,50, e hoje pagam R$ 5,30; reclamavam da gasolina a R$ 2,80 e, agora, pagam mais de R$ 4,00, sem mencionar o preço dos alimentos. No governo Lula, o preço do pacote [de 5 kg] de arroz chegou a ser R$ 5,00, e, hoje, o pacote passou dos R$ 40,00. Só quem está ganhando com tudo isso são os super-ricos.

A “solidariedade tributária” virá com a educação social da cidadania. O ensino escolar ajuda nesta questão, mas não é o suficiente. Este tipo de educação deve ser feito nas ruas, puxado pelos movimentos sociais, organizações não governamentais, igrejas de todas as religiões, associações como a Associação Nacional dos Auditores Fiscais - Anfip e tantas outras e, principalmente, pelos partidos políticos. A “solidariedade tributária” deve ser um produto da construção da Consciência de Classe, exercitado cotidianamente com uso intensivo dos dados e análise de impacto para todos os níveis sociais.

IHU On-Line – O atual governo realmente compreendeu a importância de investimento em assistência social com a pandemia? Quais os limites da atual gestão na compreensão sobre o financiamento desses gastos?

Rafael da Silva Barbosa – Não. Ele apenas foi alertado que, sem uma intervenção mínima, o caminho seria a barbárie. No Congresso, ele já sabia que era voto vencido e tentou administrar a derrota ao propor um auxílio emergencial de R$ 200,00, mas quem deu o tom foi a oposição. O governo atual tem um lado muito claro e a divulgação da reunião ministerial de 22 de abril de 2020 é prova disso. O bolsonarismo não é apenas um governo neoliberal, é um governo do subdesenvolvimento nacional em seu limite máximo.

A subserviência aos interesses dos Estados Unidos e o desmonte do Estado, da indústria nacional e os ataques às instituições democráticas são alarmantes.

O limite da gestão é a manutenção no poder. Ao perceber que a transferência de renda, a qual ele nem queria implantar, lhe deu um pequeno fôlego de aprovação no seu governo, não houve qualquer constrangimento para sua manutenção. Óbvio, em patamar menor de R$ 300,00, mas sem qualquer resistência. Inclusive, o seu Jair escanteou o seu posto Ipiranga das decisões na área. Não existe qualquer compreensão ou comprometimento do bolsonarismo com o desenvolvimento nacional do Brasil, é:

“Os Estados Unidos acima de tudo. Família Bolsonaro acima de todos”.

IHU On-Line – Como conceber caminhos para recuperação econômica do Brasil nesse contexto de pandemia?

Rafael da Silva Barbosa – O primeiro passo é indicar saídas concretas, como governadores do Maranhão, Bahia, Espírito Santo e outros têm feito. Além disso, o uso dos instrumentos de Estado em comum acordo com o mercado local para enfrentamento dos impactos da pandemia. Mais do que indicar os erros da condução do bolsonarismo, é fundamental iluminar o caminho com condutores mais preparados. Creio que a população começou a compreender que o falso mito, mais um criado pela direita brasileira, foi um grande desastre que precisa de rápida reparação.

A criação de uma agenda suprapartidária progressista com as reformas estruturais necessárias para o desenvolvimento seria um passo importante. Novamente, o brasileiro precisa ter em mente quais são as verdadeiras raízes do atraso do Brasil. As eleições municipais serão um grande parâmetro para isto; a federalização das eleições municipais com o golpe de 2016, talvez, possa ser usada positivamente para isto nesse momento.

IHU On-Line – Quais as possibilidades de se conceber uma outra matriz econômica no pós-pandemia? E que matriz seria essa?

Rafael da Silva Barbosa – As possibilidades são remotas dentro do bolsonarismo. Todavia, se a esquerda retornar ao poder, uma nova matriz deverá ser impositiva. Não há desenvolvimento possível dentro dessa matriz neoliberal cujo novo regime fiscal congela investimento em Educação e Saúde por 20 anos. Nenhum país desenvolvido congela gasto em Educação ou Saúde. Você mata o desenvolvimento nacional de qualquer nação, tanto a qualificação quanto a saúde do trabalhador se deterioram. É uma política ultrapassada, para dizer o mínimo.

Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada - Ipea mostra que cada R$ 1,00 gasto em Educação e em Saúde produz R$ 1,85 e R$ 1,70 de crescimento no PIB, respectivamente. Ou seja, um retorno de 85% e 70% do capital investido. Enquanto que, no sistema financeiro, cada R$ 1,00 gasto produz R$ 0,70 ou um prejuízo de 30% do gasto.

Uma nova matriz deve eliminar a suposta independência do Banco Central que atualmente é refém dos ganhos especulativos parasitários que não geram emprego, renda e muito menos progresso, dentro de uma revisão total do perfil da dívida pública, hoje, majoritariamente lastreada em títulos pós-fixados. A dívida pública que drena recursos dos contribuintes de forma regressiva para os bilionários do sistema financeiro precisa ser ajustada para o desenvolvimento nacional. Deve ser majoritariamente prefixada como em países desenvolvidos e todos os títulos auditados, pois existem fortes indícios de fraudes que acrescem, em muito, o peso dela no orçamento da União.

O segundo passo é que os instrumentos de política econômica, como câmbio e resultados primários e nominais da máquina pública, tenham como metas não apenas o controle da inflação, mas geração de emprego, progresso tecnológico da indústria nacional e participação do mercado internacional para os produtos brasileiros de alto valor agregado. O Brasil ensaiou, por um curto período de tempo, que era algo maior do que apenas uma fazenda do mundo, exportando produtos de linha branca com baixo teor tecnológico e até aviões com teor avançado de tecnologia. É preciso retomar o Brasil do progresso. 

Por último, a nova matriz deve ter como meta a superação das maiores demandas sociais, assim como no caso do Luz Para Todos, usar a demanda social reprimida de forma estratégica para gerar empregos, renda e fortalecer o mercado interno como alicerce do desenvolvimento nacional. A universalização do saneamento básico poderia reduzir drasticamente doenças e custos hospitalares; a universalização da habitação para acesso de famílias sem renda produziria melhores condições de vida e redução da violência urbana; a diversificação do modal do transporte humano em ferrovias para transporte e novas rotas fluviais aliviaria a poluição e o estresse no trânsito e tempo de viagem; e a reforma educacional de base com introdução do ensino integral e plano de carreira mais elevada para os professores secundaristas elevariam o padrão técnico da população etc.

Tudo isto poderia ser financiado por uma tributação progressiva dos super-ricos, garantindo elevação da qualidade de vida da população brasileira como um todo e maior dinamismo econômico que voltaria em forma de lucro para os mesmos super-ricos, mas num modelo mais desenvolvido.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Segunda-feira, 21 de setembro de 2020 – Internet: clique aqui (acesso em: 21/09/2020).

A comida do brasileiro

 A investida do governo em favor da comida-lixo

 Maíra Mathias e Raquel Torres 

Em conluio com corporações de refrigerantes e ultraprocessados, ministérios agem para reescrever o GUIA ALIMENTAR DO BRASIL, considerado um dos quatro melhores do mundo. Mudança pode ter efeitos dramáticos nas políticas públicas. 


Um golpe no guia alimentar?

Começou a circular ontem, no WhatsApp e em redes sociais, uma nota técnica do Ministério da Agricultura que recomenda a “urgente” revisão do Guia Alimentar para a População Brasileira. Como veremos adiante, há detalhes nessa história que merecem tanta atenção quanto o conteúdo do documento.

Ele é mesmo chocante. Assinado por Eduardo Mello Mazzoleni e Luís Eduardo Pacifici Rangel (que são, respectivamente, coordenador e diretor do Departamento de Análise Econômica e Políticas Públicas da Secretaria de Política Agrícola da pasta), o texto diz por exemplo que o Guia é atualmente “considerado um dos piores” do planeta.

É claro que os autores não apresentam a fonte dessa constatação, porque ela é falsa. O Guia brasileiro recebe, na verdade, inúmeros elogios mundo afora (veja aqui e aqui). Ao comparar guias alimentares de mais de 80 países, um relatório da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura) sugere que eles adotem diretrizes para promover sistemas alimentares saudáveis e ao mesmo tempo sustentáveis, e observa que só quatro – entre eles, o brasileiro – já o fazem. A ênfase em dietas ricas em cereais integrais, legumes, frutas e vegetais também é elogiada pela FAO, e as diretrizes brasileiras se baseiam justo nesses alimentos.

Voltando à nota técnica, sua principal crítica se refere ao uso da classificação NOVA. Já falamos bastante sobre ela, que divide os alimentos segundo seu grau de processamento:

1. alimentos in natura ou minimamente processados (obtidos diretamente de plantas/animais ou que passam por alterações mínimas, como lavagem e empacotamento); 

2. óleos, gorduras, açúcar e sal (que são extraídos de alimentos in natura ou diretamente da natureza e usados para cozinhar);

3. alimentos processados (fabricados basicamente com a adição de sal ou açúcar a um alimento in natura ou minimamente processado); e

4. alimentos ultraprocessados (cuja fabricação envolve diversas etapas e técnicas de processamento e vários ingredientes, muitos deles de uso exclusivamente industrial).

Os elogios ao nosso Guia se devem ao fato de que sua regra de ouro é simples e, ao mesmo tempo, eficaz para garantir uma alimentação balanceada: basta preferir sempre os alimentos da categoria 1Ou seja:

* preferir água, leite e sucos naturais em vez de refrigerantes;

* preferir macarrão “comum” a miojo;

* preferir sobremesas caseiras a guloseimas industrializadas.

Mas, para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), isso é mau [!!!]. Seu documento considera a classificação NOVA “confusa”, “arbitrária” e “incoerente” e ainda afirma que ela “prejudica a implementação de diretrizes para promover a alimentação adequada e saudável para a população brasileira”. É até difícil pinçar os piores momentos do texto. Ele diz, por exemplo, que “uma alimentação que utiliza ‘sempre alimentos in natura ou minimamente processados e preparações culinárias’ é perigosa”…

 Detalhes tão pequenos

 A avaliação dos integrantes do MAPA é idêntica àquela feita, há tempos, pela indústria de alimentos – que, por sua vez, não esconde seu desejo de alterar o Guia. Nem é preciso dizer que, para as empresas, um Guia que desencoraje o consumo de produtos ultraprocessados não é bom negócio. Até porque não se trata apenas de diretrizes para orientação individual, mas também para subsidiar políticas públicas e programas relacionados à alimentação. O repórter Guilherme Zocchio, d’O Joio e o Trigo, escreveu no ano passado sobre como o presidente-executivo da Abio (Associação Brasileira da Indústria de Alimentos), João Dornellas, expressou publicamente a necessidade de as empresas melhorarem sua comunicação com o governo para induzir alterações.

No caso do Ministério da Agricultura, esta comunicação parece ir bem. Houve ao menos uma reunião entre Dornellas e a ministra Tereza Cristina sobre o assunto. Aconteceu no dia 23 de julho, e a pauta foi exatamente a “Revisão do Guia Alimentar da População Brasileira”, segundo consta na agenda da ministra. Adoraríamos conhecer os pormenores dessa conversa. O fato é que, segundo a nota técnica publicada ontem, as análises e recomendações ali presentes se referem a um ofício já encaminhado anteriormente por Tereza Cristina ao ministro da Saúde Eduardo Pazuello sobre o mesmo tema (mas que não conseguimos localizar na lista de ofícios disponibilizada no site do MAPA). Paulo Márcio Mendonça Araújo, chefe de gabinete da ministra, encaminhou a nota técnica ao chefe de gabinete da Saúde dizendo que “O Ministério [MAPA] reforça sua disposição para parceria de nossas equipes (MS e MAPA), com foco na revisão, a fim de oferecer à sociedade informação mais precisa sobre o tema e, desse modo, cumprir integralmente o objetivo dessa iniciativa.”

Mais uma coisinha. Para embasar sua avaliação e sugerir mudanças de peso no Guia, os autores da nota técnica utilizam apenas duas referências bibliográficas. Um dos artigos, que trata das “contribuições” dos nutrientes dos alimentos processados na dieta americana, foi escrito por pesquisadores que já declararam ter recebido verbas de organizações sustentadas financeiramente pela indústria de alimentos – como o IFT, que tem a Coca-Cola entre seus doadores. O segundo artigo está no Brasil Food Trends, uma publicação do Instituto de Tecnologia de Alimentos patrocinada pela indústria, com nomes como Nestlé, Danone e, claro, a Coca-Cola entre os financiadores.

Fonte: Outras Palavras – Outra Saúde – Quinta-feira, 17 de setembro de 2020 – 07h19 – Atualizado em 18/09/2020 às 08h01 – Internet: clique aqui (acesso em: 21/09/2020).

sábado, 19 de setembro de 2020

25º Domingo do Tempo Comum – Ano A – Homilia

 Evangelho: Mateus 20,1-16a 

Para ouvir a narração deste Evangelho, clique sobre a imagem abaixo:


 A Igualdade Acima de Tudo

A interpretação mais correta desta parábola nos explica como é o comportamento de Deus com os humanos. Deus não nos trata segundo os lógicos critérios da produtividade laborativa (que se mede pelas horas trabalhadas), mas por motivos que brotam de um coração bom e generoso. O coração que é tão profundamente bom, que privilegia os últimos, os mais desgraçados da vida, aqueles que a lógica dos humanos jamais privilegia.

Porém, essa parábola nos remete, hoje, a outra leitura, segundo a qual as leis da «economia humana», para que seja verdadeiramente humana, tem que aprender os projetos da «economia divina». A economia não é uma ciência exata. E foi levada a excessos que nunca poderíamos imaginar. A economia, tal como funciona, é a «ciência» (?) que privilegia os privilegiados e afunda mais e mais aqueles que já estão afundados. Disso provém os desequilíbrios crescentes e escandalosos que sabemos, e padecemos ao repartir os lucros e benefícios que produzem a terra e o trabalho humano.

Urge encontrar e pôr-se a praticar outras formas de gerir a economia mundial. E, se é que cremos no Evangelho, temos de acabar com o escândalo de que haja tanta gente piedosa, ou amiga dos piedosos, que não consente que os últimos ganhem o que ganham eles e vivam como vivem eles. Pode haver mais contradição e, até maior vergonha? Também nisso, o Evangelho é norma de sabedoria e critério determinante de humanidade.

É a humanidade que se adverte no tipo de patrão, que encarna o protagonista desta parábola. Trata-se, com efeito, de um patrão que, de manhã até a noite, oferece postos de trabalho. E um patrão, além disso, que na hora de pagar os seus trabalhadores, começa pelos «últimos». É um patrão desconcertante. Porque o que importa não é a produtividade, mas a igualdade de todos!

Esse patrão não tem preferências, nem favoritismos, nem desajustes que geram tensões, ressentimentos e ódios. Os patrões que se ajustam à letra da legislação trabalhista, atuaram «legalmente». Porém, não resolvem o verdadeiro problema do desempenho do trabalho e a produtividade, que brota de trabalhadores que se sentem seguros e animados com o trabalho que fazem.

Traduzido do espanhol por Telmo José Amaral de Figueiredo.

Fonte: CASTILLO, José María. La religión de Jesús: Comentario al evangelio diario – 2020. Bilbao: Desclée De Brouwer, 2019, páginas 338-339.

terça-feira, 15 de setembro de 2020

O dinheiro é a religião

Como o capitalismo se tornou a religião
da modernidade

Martin Vasques da Cunha

O professor americano Eugene McCarraher tenta explicar o processo
de desencantamento do mundo na atualidade
Eugene McCarraher Interview - How Capitalism Became the Religion of  Modernity - YouTube 
O novo deus não é a cloroquina. É nada mais nada menos que Mammon – o demônio viciado em riqueza e posses materiais. Eis a conclusão a que se chega depois de ler o volumoso tomo (mais de 800 páginas), escrito pelo professor americano Eugene McCarraher, intitulado The Enchantments of Mammon: How Capitalism Became the Religion of Modernity [tradução livre: Os encantos de Mammon: como o capitalismo se tornou a religião da modernidade ] (Harvard University Press, R$ 203,66). Resultado de duas décadas de trabalho minucioso de pesquisa, é possivelmente o livro do ano, já que, se não explica como chegamos à crise sanitária da covid-19, sem dúvida mostra como a negação do real diante do flagelo, feita em particular pelos governos de Jair Bolsonaro, no Brasil, e de Donald Trump, nos EUA, tem origem específica naquilo que Max Weber chamava de “desencantamento do mundo”.

Contudo, aqui já começa a ousadia da obra: McCarraher afirma que Weber – e os seus seguidores – erraram desde o início nas suas análises sobre os fundamentos do capitalismo. A partir do antológico verso do poeta Gerald Manley Hopkins – “O mundo está carregado da grandeza de Deus” –, o historiador pretende mostrar que a economia capitalista é “uma forma substituta de transcendência”, uma outra “metamorfose de sacralização” que contamina o nosso imaginário moral – um novo tipo de feitiço o qual, justamente por causa do engano do “desencantamento”, não nos faz perceber dois fatos perturbadores:

1º) O primeiro é que, graças a este mito deletério, não percebemos que os sacramentos do capitalismo são os bens de consumo e suas respectivas tecnologias, junto com as justificativas comerciais promovidas pelo jornalismo corporativo de negócios, as teorias de gestão de empresas e os economistas que brincam de serem intelectuais, além da iconografia criada pela publicidade, cinema e os departamentos de relações públicas.

2º) O outro fato é uma falsa existência inspirada naquilo que foi chamado de “evangelho de Mammon”, cuja força está na atribuição de um poder ontológico ao dinheiro e a quem o conquista, seja lá por qual meio.
TRADUÇÃO DO TÍTULO E SUBTÍTULO DA OBRA:
"O Encanto de Mammon: como o capitalismo tornou-se a
religião da modernidade"
Somente em inglês,
sem previsão de publicação no Brasil

McCarraher não só se contrapõe a Weber, mas, paradoxalmente, o aprofunda em suas descobertas teóricas. Por meio do uso do conceito da “imaginação sacramental”, que vai além das limitações da “imaginação liberal” de Lionel Trilling ou da “imaginação moral” de Russell Kirk, ele reconta a história da modernidade sob uma nova perspectiva. Tudo teria começado com a aliança religiosa do Protestantismo, que, alimentada pelos puritanos dos séculos XVI e XVII, rompe com os moldes tradicionais de transcendência (leia-se: Igreja Católica) e, impedida de realizar um sacramento adequado no modo como atua e observa o mundo, transfere a linguagem metafísica para uma fé no progresso ético e material. Quem conquistar isso torna-se alguém que se “salvou” perante as iniquidades da condição humana. A riqueza passa a ser a parte explícita dessa vitória – e tudo o que a envolva adquire características mágicas que, pouco a pouco, encobre o fato de que o fiel cristão deixa de louvar ao seu deus e não vê outra alternativa senão defender, indiretamente, as seduções de Mammon.

A partir daí, existem três tipos de grupos que se cruzam no decorrer deste drama:

1º) O primeiros são os que se ajoelham à “metafísica do dinheiro” que, conforme o transcorrer do tempo, se apossa das virtudes das comunidades orgânicas, vinculadas por motivos de afeição entre seus pares, e as deforma na mentalidade corporativista que, no fim, culminará nas gigantescas companhias que hoje movimentam o mercado capitalista da globalização (neste círculo, coloque agit-props como Peter Drucker e economistas como Ludwig Von Mises e Friedrich von Hayek) .

2º) Os segundos são os ingênuos que, na crença de serem opositores a esta bíblia da cupidez, são absorvidos por ela, justamente porque a ilusão da riqueza os torna cada vez mais indiferenciados em relação aos seus inimigos, já que ficaram também obcecados por um sacramento que perverte o uso da natureza (aqui temos os exemplos dos comunistas, socialistas e da boemia anarquista).

3º) E os terceiros são os artesãos, indivíduos que tentam prevalecer como podem neste mundo já tomado pelo corporativismo onipresente, e os quais, cada um ao seu modo, formam sem saber uma espécie de “comunidade sagrada” que preservaria o pouco que ainda resta de uma liberdade interior a nos proteger das mandíbulas de Mammon (no livro, seus líderes são James Agee, Scott Fitzgerald, Lewis Mumford, Henry Miller e Thomas Merton).

O que une toda essa galeria de ideias e personagens é a ideologia sorrateira do liberalismo que, conforme a modernidade surge como a única regra a ser obedecida, alimenta a sua própria vitória – e, ironicamente, a sua derrota iminente. Aqui, o estudo de McCarraher converge para a conclusão do admirável livro de Patrick Deneen, Por que o Liberalismo Fracassou? (Editora Âyiné, 258 págs., R$ 41,93), cujo raciocínio é articulado da seguinte forma: “Uma filosofia política que foi lançada para criar maior igualdade, defender uma tapeçaria pluralista de diferentes culturas e crenças, proteger a dignidade humana e, é claro, expandir a liberdade, na prática gera uma desigualdade titânica, reforça a uniformidade e a homogeneidade, incentiva a degradação material e espiritual e fragiliza a liberdade”. Ora, esta é justamente a meta de Mammon, que se vangloria constantemente do fato de que as “ruínas que ele produziu são justamente os sinais de seu êxito”.
Livro fundamental! Esta é a edição brasileira.

Tanto para McCarraher como para Deneen, o que está em risco é o modo prático de como resistiremos a esse feitiço. Será que as comunidades são uma via alternativa efetiva? Ou será que o iliberalismo que surge como resposta ao falhanço da democracia liberal – com as vitórias de Bolsonaro, Trump e Boris Johnson, na Inglaterra – indica uma fadiga popular sobre a concentração de poder que Mammon sutilmente nos impôs na nossa idolatria pelo progresso humano? Neste aspecto, talvez a estratégia para superar esse sufoco esteja na própria incompetência desses “liberais do bolso alheio” (para usar uma expressão de João Cézar de Castro Rocha), que, em vez de criarem políticas públicas para proteger a sociedade no meio de uma pandemia, resolvem endeusar placebos farmacêuticos como a cloroquina, com a ajuda do Estado que tanto idolatram inconscientemente, para salvar um mercado que só se alimenta do colapso inevitável da população.

Afinal de contas, quando “todo o reino dividido contra si mesmo é devastado; e toda a cidade, ou casa, dividida contra si mesma não subsistirá”, o que resta para essa suposta elite é contemplar um altar dos mortos. Ou, como dramatizou o francês Éric Vuillard em seu pequeno romance, A Ordem do Dia, sobre a união previsível entre os sacerdotes de Mammon da elite empresarial alemã e a ralé do partido nazista,

“nunca se cai duas vezes no mesmo abismo. Mas se cai sempre de uma mesma maneira em uma mistura de ridículo e de terror”.

Foi o que assistimos naquela saudação à cloroquina, com o presidente da República rendendo-se às forças do subsolo. E, graças às obras-primas de Eugene McCarraher e Patrick Deneen, talvez tenhamos alguma saída para não nos encantar mais pela luz sem perdão deste astro frio que se tornou o nosso sol.

Fonte: O Estado de S. Paulo – Supl. ALIÁS – Domingo, 13 de setembro de 2020 – Página H11 – Internet: clique aqui (acesso em: 08/09/2020).

sábado, 12 de setembro de 2020

24º Domingo do Tempo Comum – Ano A – Homilia

Evangelho: Mateus 18,21-35

Assista à narração do Evangelho deste
domingo, clicando sobre a imagem abaixo:


José Antonio Pagola
Biblista espanhol

VIVER PERDOANDO

Os discípulos ouviram Jesus dizer coisas incríveis sobre o amor aos inimigos, a oração ao Pai pelos que os perseguem, o perdão a quem lhes prejudica. Seguramente, parece-lhes uma mensagem extraordinária, porém pouco realista e muito problemática.

Pedro aproxima-se, agora, de Jesus com uma colocação mais prática e concreta que lhes permita, ao menos, resolver os problemas que surgem entre eles: dúvidas, invejas, enfrentamentos e conflitos. Como devem atuar naquela família de seguidores que caminham atrás de seus passos? Concretamente: «Quantas vezes devo perdoar ao meu irmão que me ofende?».

Antes que Jesus lhe responda, o impetuoso Pedro adianta-se a fazer-lhe sua própria proposta: «Até sete vezes?». Sua proposta é de uma generosidade muito superior ao clima justiceiro que se respira na sociedade judaica. Vai além daquilo que se pratica entre os rabinos e os grupos essênios, que falam em perdoar, no máximo, quatro vezes.

No entanto, Pedro segue movendo-se no plano da casuística judaica, onde se prescreve o perdão como um arranjo amigável e regulamentado para garantir o funcionamento ordenado da convivência entre aqueles que pertencem ao mesmo grupo.

A resposta de Jesus exige colocar-nos em um outro patamar. No perdão não há limites: «Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete». Não tem sentido fazer contas do perdão. Quem se põe a contar quantas vezes está perdoando o irmão, adentra-se por um caminho absurdo que arruína o espírito que há de reinar entre seus seguidores.

Entre os judeus, era conhecido o «Cântico de Vingança» de Lameque, um legendário herói do deserto, que dizia assim: «Caim será vingado sete vezes, porém Lameque será vingado setenta vezes sete» [Gn 4,24]. Frente a esta cultura da vingança sem limites, Jesus propõe o perdão sem limites entre seus seguidores.

As diferentes posições diante do Concílio Vaticano II [1962-1965] foram provocando, no interior da Igreja, conflitos e enfrentamentos às vezes muito dolorosos. A falta de respeito mútuo, os insultos e as calúnias são frequentes. Sem que ninguém os desautorize, setores que se dizem cristãos se servem da Internet para semear agressividade e ódio, destruindo sem piedade o nome e a trajetória de outros que creem.

Necessitamos, urgentemente, testemunhas de Jesus que anunciem com palavra firme seu Evangelho e que contagiem com coração humilde a paz dele. Cristãos que vivam perdoando e curando esta obstinação doentia que penetrou em sua Igreja.
 Perdoar Setenta Vezes Sete
José María Castillo
Teólogo espanhol

DEUS SERÁ CONOSCO COMO SOMOS PARA OS OUTROS

Jesus disse: «tratai os outros como quereis que eles vos tratem» (Lc 6,31). O critério de Jesus, então, é que cada um seja tratado por Deus do mesmo modo que essa pessoa trata os demais em sua vida cotidiana. Quer dizer, o comportamento de cada um com os outros é a medida do comportamento que Deus tem com cada ser humano.

Portanto, o respeito, a tolerância, a estima a capacidade de perdoar que cada ser humano tem com as pessoas com as quais convive, esse será o respeito, a tolerância, a estima e o perdão que receberá de Deus.

A tolerância e o perdão do «Senhor» ou «Rei» com seu «servo»/«escravo» alcança uma dimensão incrível, segundo a parábola. A dez mil talentos [cerca de 300 toneladas de ouro!] chegava a soma que Roma, com Pompeu, obteve da recém conquistada Judeia por volta do ano 60 a.C. (segundo o historiador Flávio Josefo). Herodes Antipas obteve duzentos talentos da Galileia e Pereia. Arquelau, seiscentos talentos da venda da Idumeia, Judeia e Samaria (segundo o historiador Flávio Josefo).

Assim sendo, a figura que propõe a parábola evoca a ação de Roma e reflete noções proverbiais sobre a riqueza dos reis. Por isso, é assombrosa a generosidade do «senhor/rei».  Como é assombrosa a ruindade e miséria do servo que, por pouco, chega a desejar matar a um desgraçado que lhe devia uma quantia miserável.

Tudo nesta parábola é exagerado, quase incrível. Como exagerada e surpreendente é a ruindade e a miséria de espírito que estamos vendo e vivendo na duríssima situação de crise atual. Jamais se viu tanta cobiça nos ricos e tanta incapacidade para perdoar «o dinheiro que me devem». A cobiça pelo dinheiro é a causa do que estamos sofrendo.

E, enquanto a Igreja não começar a tomar decisões exemplares, que seja capazes de comover o mundo, esta situação não muda. Especialmente nos países do sul da Europa, que são precisamente os países mais católicos. O mais urgente não é que se modifiquem as decisões econômicas, mas que se convertam os corações ambiciosos e a cobiça insaciável dos ricos, daqueles que manejam o poder político, daqueles que controlam o capital financeiro.

A chave não está na «economia», mas na «ética».

Traduzido do espanhol por Telmo José Amaral de Figueiredo.

Fonte: PAGOLA, José Antonio. La Buena Noticia de Jesús. Ciclo A. Boadilla del Monte (Madrid): PPC, 2016, páginas 219-221; CASTILLO, José María. La religión de Jesús. Comentario al evangelio diário – 2020. Bilbao: Desclée De Brouwer, 2019, páginas 330-331.

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Para ler o Deuteronômio

“Abre tua mão para o teu irmão” (Dt 15,11)

Pe. Dr. Telmo José Amaral de Figueiredo
Paróquia São Benedito – Urânia (SP)
Diocese de Jales – SP
Setembro: Mês da Bíblia - Diocese de Palmas - Francisco Beltrão
Todos os anos, o Mês da Bíblia nos oferece para estudo, reflexão e oração um livro ou uma importante passagem bíblica. Neste ano, é o livro do Deuteronômio que nos é ofertado. Vamos saber o que nos espera ao abrirmos esse quinto livro da Bíblia Sagrada.

Comecemos pelo nome do livro, o que significa esse vocábulo “Deuteronômio”? Em língua grega, significa “segunda Lei” (dêuteros nómos). Foi a tradução grega do Antigo Testamento, conhecida como Setenta (Septuaginta), que deu esse nome ao quinto livro da Bíblia, fundamentando-se em Dt 17,18, entendendo a expressão “uma cópia desta lei”, como sendo uma “segunda lei”. Apesar da interpretação ser imprecisa, não deixa de ser uma verdade. Afinal, o Deuteronômio foi visto pelos judeus como a segunda promulgação da Lei de Deus, nas planícies de Moab, enquanto que, a primeira promulgação, havia ocorrido aos pés do monte Sinai, segundo nos relata o livro do Êxodo.

Quando foi redigido esse livro? A resposta a essa questão não é fácil, pois o Deuteronômio (Dt) é o produto de uma redação que durou séculos, isso mesmo! Em seu interior há materiais que são da época pré-estatal de Israel (1200-1000 a.C.); da época monárquica do Reino de Israel Norte (século VIII a.C.); do período do rei Josias, Reino de Judá Sul (620-609 a.C.); do período em que a elite de Judá viveu exilada na Babilônia (587-538 a.C.); e da época após o exílio babilônico (538-400 a.C.). Portanto, é um livro que recolhe diversas circunstâncias da vida do Povo de Deus e as suas respectivas preocupações. Por isso, é importante buscar compreender cada lei presente no Dt em seu contexto.

Quem escreveu esse livro? Levando em consideração o que foi dito no parágrafo anterior, houve várias mãos que colaboraram para a feitura dessa obra. Desde as tradições genuínas das famílias, dos clãs e tribos da época que, ainda, não havia uma monarquia em Israel; passando pela influência de profetas do Reino de Israel Norte, pelos escribas das cortes dos reis Ezequias (716-701 a.C.) e Josias (620-609 a.C.), ambos do Reino de Judá Sul; até os escribas levitas do período exílico e pós-exílico (587-400 a.C.). Em linhas gerais, o Dt é o resultado de um movimento renovador denominado Deuteronomista. Esse movimento atravessou séculos e procura interpretar aquilo que acontece com o povo à luz da vontade de Deus, é o que poderíamos chamar de ler e compreender os “sinais dos tempos”.

Para que o Dt foi escrito? Sendo fruto de um longo processo de redação e tendo sofrido a influência de vários grupos de escritores, não é tão simples determinar um objetivo único para esse livro. No entanto, observando sua forma final, aquela que está em nossas bíblias, podemos afirmar que são dois esses objetivos: o primeiro é fazer com que o povo observe (obedeça) melhor a Lei de Deus, uma lei que promove e preserva a vida, acima de tudo! Para tanto, leia Dt 30,19-20. O segundo objetivo, esse mais ligado às tradições das cortes monárquicas de Israel e Judá, é fazer um apelo para que o povo se converta ao Deus oficial, o Deus único e poderoso, bem como, à sua lei do puro e do impuro e à unidade do povo eleito, Israel. Para nós, hoje, é mais importante, obviamente, o primeiro objetivo.

O que o Dt nos diz de mais importante? Mergulhando nos textos do livro ficamos fascinados com a quantidade de leis, normas, decretos etc. Porém, não se engane! Esse é um livro no qual as leis brotam da vida! As leis comparecem para preservar aspectos fundamentais da vida do povo. É claro que há, também, algumas leis estranhas: leis desumanizadoras (Dt 20,10-14); leis de centralização a serviço do poder e do lucro (Dt 12,2-7) e a lei do Deus violento e castigador (Dt 13,7-12). Nada disso deve nos escandalizar ou assustar, pois é fruto da mentalidade de certas épocas da história do Povo de Deus. O que predomina no livro, e que mais nos interessa, é aquilo que frei Carlos Mesters e Francisco Orofino muito bem definiram como os sete temas ou as sete janelas pelas quais podemos ler o Dt:
a) “O amor de Deus é a chave para interpretar os fatos da história. Foi por amor que Deus tirou o povo do Egito” (Dt 7,7-8);
b) “Sem memória, o povo perde a sua identidade e o rumo da sua missão” (Dt 6,20-21);
c) “Pelo seu jeito de servir, o povo revela o rosto de Deus... Nosso privilégio é poder servir os outros” (Dt 15,11);
d) “Viver em estado permanente de êxodo, ‘saída’” (Dt 24,18);
e) “A vida do povo deve ser um sinal da presença de Deus... Quando todos observam os Mandamentos de Deus, não surge pobre” (Dt 15,4);
f) “O verdadeiro Deus é aquele que libertou o seu povo da escravidão do Egito e lhe garantiu a vida”, isso jamais pode ser esquecido (Dt 5,6-8);
g) há um compromisso mútuo entre Deus e o povo, o livro do Dt é o livro da Aliança, uma aliança feita hoje, sempre atual e renovada (Dt 5,2-3).

Agora, é abrir o livro do Dt e iniciarmos nossa leitura!