O dinheiro é a religião
Como
o capitalismo se tornou a religião
da
modernidade
Martin
Vasques da Cunha
O professor
americano Eugene McCarraher tenta explicar o processo
de desencantamento
do mundo na atualidade

O novo deus não é a cloroquina. É
nada mais nada menos que Mammon – o demônio viciado em riqueza e posses materiais.
Eis a conclusão a que se chega depois de ler o volumoso tomo (mais de 800
páginas), escrito pelo professor americano Eugene McCarraher, intitulado The
Enchantments of Mammon: How Capitalism Became the Religion of Modernity
[tradução livre: Os encantos de Mammon: como o capitalismo se tornou a religião
da modernidade ] (Harvard University Press, R$ 203,66). Resultado de duas
décadas de trabalho minucioso de pesquisa, é possivelmente o livro do ano,
já que, se não explica como chegamos à crise sanitária da covid-19, sem dúvida
mostra como a negação do real diante do flagelo, feita em particular
pelos governos de Jair Bolsonaro, no Brasil, e de Donald Trump, nos EUA, tem
origem específica naquilo que Max Weber chamava
de “desencantamento do mundo”.
Contudo, aqui já começa a ousadia
da obra: McCarraher afirma que Weber – e os seus seguidores – erraram desde o
início nas suas análises sobre os fundamentos do capitalismo. A partir do
antológico verso do poeta Gerald Manley Hopkins –
“O mundo está carregado da grandeza de Deus” –, o historiador pretende mostrar
que a economia capitalista é “uma forma substituta de transcendência”,
uma outra “metamorfose de sacralização” que contamina o nosso imaginário moral
– um novo tipo de feitiço o qual, justamente por causa do engano do
“desencantamento”, não nos faz perceber dois fatos perturbadores:
1º) O primeiro
é que, graças a este mito deletério, não percebemos que os sacramentos do
capitalismo são os bens de consumo e suas respectivas tecnologias, junto
com as justificativas comerciais promovidas pelo jornalismo corporativo de
negócios, as teorias de gestão de empresas e os economistas que brincam de
serem intelectuais, além da iconografia criada pela publicidade, cinema e os
departamentos de relações públicas.
2º) O outro
fato é uma falsa existência inspirada naquilo que foi chamado de “evangelho
de Mammon”, cuja força está na atribuição de um poder ontológico ao
dinheiro e a quem o conquista, seja lá por qual meio.
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TRADUÇÃO DO TÍTULO E SUBTÍTULO DA OBRA: "O Encanto de Mammon: como o capitalismo tornou-se a religião da modernidade" Somente em inglês, sem previsão de publicação no Brasil |
McCarraher não só se contrapõe a
Weber, mas, paradoxalmente, o aprofunda em suas descobertas teóricas. Por meio
do uso do conceito da “imaginação sacramental”, que vai além das
limitações da “imaginação liberal” de Lionel Trilling ou
da “imaginação moral” de Russell Kirk, ele
reconta a história da modernidade sob uma nova perspectiva. Tudo teria
começado com a aliança religiosa do Protestantismo, que, alimentada pelos
puritanos dos séculos XVI e XVII, rompe com os moldes tradicionais de
transcendência (leia-se: Igreja Católica) e, impedida de realizar um sacramento
adequado no modo como atua e observa o mundo, transfere a linguagem
metafísica para uma fé no progresso ético e material. Quem conquistar isso
torna-se alguém que se “salvou” perante as iniquidades da condição humana. A
riqueza passa a ser a parte explícita dessa vitória – e tudo o que a envolva
adquire características mágicas que, pouco a pouco, encobre o fato de que o
fiel cristão deixa de louvar ao seu deus e não vê outra alternativa senão
defender, indiretamente, as seduções de Mammon.
A partir daí, existem três tipos
de grupos que se cruzam no decorrer deste drama:
1º) O
primeiros são os que se ajoelham à “metafísica do dinheiro” que,
conforme o transcorrer do tempo, se apossa das virtudes das comunidades
orgânicas, vinculadas por motivos de afeição entre seus pares, e as deforma na
mentalidade corporativista que, no fim, culminará nas gigantescas companhias
que hoje movimentam o mercado capitalista da globalização (neste círculo,
coloque agit-props como Peter Drucker e
economistas como Ludwig Von Mises e Friedrich von Hayek) .
2º) Os
segundos são os ingênuos que, na crença de serem opositores a esta
bíblia da cupidez, são absorvidos por ela, justamente porque a ilusão da
riqueza os torna cada vez mais indiferenciados em relação aos seus inimigos,
já que ficaram também obcecados por um sacramento que perverte o uso da
natureza (aqui temos os exemplos dos comunistas, socialistas e da boemia
anarquista).
3º) E os
terceiros são os artesãos, indivíduos que tentam prevalecer como
podem neste mundo já tomado pelo corporativismo onipresente, e os quais,
cada um ao seu modo, formam sem saber uma espécie de “comunidade sagrada”
que preservaria o pouco que ainda resta de uma liberdade interior a nos
proteger das mandíbulas de Mammon (no livro, seus líderes são James Agee, Scott Fitzgerald,
Lewis Mumford, Henry
Miller e Thomas Merton).
O que une toda essa galeria de
ideias e personagens é a ideologia sorrateira do liberalismo que,
conforme a modernidade surge como a única regra a ser obedecida, alimenta a sua
própria vitória – e, ironicamente, a sua derrota iminente. Aqui, o estudo de
McCarraher converge para a conclusão do admirável livro de Patrick Deneen, Por que o Liberalismo Fracassou?
(Editora Âyiné, 258 págs., R$ 41,93), cujo raciocínio é articulado da seguinte
forma: “Uma filosofia política que foi lançada para criar maior igualdade,
defender uma tapeçaria pluralista de diferentes culturas e crenças, proteger a
dignidade humana e, é claro, expandir a liberdade, na prática gera uma
desigualdade titânica, reforça a uniformidade e a homogeneidade, incentiva a
degradação material e espiritual e fragiliza a liberdade”. Ora, esta é
justamente a meta de Mammon, que se vangloria constantemente do fato de que as
“ruínas que ele produziu são justamente os sinais de seu êxito”.
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Livro fundamental! Esta é a edição brasileira. |
Tanto para McCarraher
como para Deneen, o que está em risco é o
modo prático de como resistiremos a esse feitiço. Será que as comunidades
são uma via alternativa efetiva? Ou será que o iliberalismo que surge como
resposta ao falhanço da democracia liberal – com as vitórias de Bolsonaro,
Trump e Boris Johnson, na Inglaterra – indica uma fadiga popular sobre a
concentração de poder que Mammon sutilmente nos impôs na nossa idolatria pelo
progresso humano? Neste aspecto, talvez a estratégia para superar esse sufoco
esteja na própria incompetência desses “liberais do bolso alheio” (para
usar uma expressão de João Cézar de Castro Rocha),
que, em vez de criarem políticas públicas para proteger a sociedade no meio de
uma pandemia, resolvem endeusar placebos farmacêuticos como a cloroquina, com a
ajuda do Estado que tanto idolatram inconscientemente, para salvar um mercado
que só se alimenta do colapso inevitável da população.
Afinal de contas, quando “todo o
reino dividido contra si mesmo é devastado; e toda a cidade, ou casa, dividida
contra si mesma não subsistirá”, o que resta para essa suposta elite é
contemplar um altar dos mortos. Ou, como dramatizou o francês Éric Vuillard em seu pequeno romance, A Ordem do
Dia, sobre a união previsível entre os sacerdotes de Mammon da elite
empresarial alemã e a ralé do partido nazista,
“nunca se cai duas vezes no mesmo abismo. Mas se cai sempre de uma
mesma maneira em uma mistura de ridículo e de terror”.
Foi o que assistimos naquela
saudação à cloroquina, com o presidente da República rendendo-se às forças do
subsolo. E, graças às obras-primas de Eugene
McCarraher e Patrick Deneen, talvez
tenhamos alguma saída para não nos encantar mais pela luz sem perdão deste
astro frio que se tornou o nosso sol.
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