«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Isto ninguém comenta!

Mais de 4.000 pessoas com covid-19
morreram à espera por um leito de UTI
em seis Estados brasileiros

Beatriz Jucá

Dados levantados pelo EL PAÍS mostram como a pressão no SUS alijou pacientes no Rio, Minas, Espírito Santo, Rio Grande do Norte,
Bahia e Maranhão durante a crise sanitária
Profissionais de saúde vestindo equipamentos de proteção transportam o corpo de uma pessoa no Rio de Janeiro, em maio.
Profissionais de saúde vestindo equipamentos de proteção transportam
o corpo de uma pessoa no Rio de Janeiro, em maio.

FOTO: RICARDO MORAES / REUTERS

Ao menos 4.132 pessoas morreram antes de conseguir chegar a um leito de terapia intensiva para o tratamento de covid-19 durante a pandemia do novo coronavírus em seis Estados brasileiros: Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Minas Gerais, Espírito Santo, Bahia e Maranhão. O número, levantado pelo EL PAÍS com dados das secretarias estaduais da saúde, tenta dar pistas sobre o tamanho da pressão sofrida pelo SUS desde fevereiro, quando começou a crise sanitária no Brasil.

O jornal procurou as 27 unidades da federação para saber quantas solicitações por uma UTI com perfil de covid-19 foram canceladas por morte do paciente em suas centrais de regulação ― setor que recebe todos os pedidos das unidades de saúde da rede estadual e os distribui conforme vários critérios, incluindo a gravidade do paciente. Essas mais de 4.000 mortes à espera por um leito retratam a situação em menos de um terço do país, já que apenas seis Estados informaram este dado, que pode incluir tanto os casos de desassistência por conta do colapso do sistema de saúde, quanto situações em que pacientes já chegaram tão graves que não houve tempo para colocá-los na terapia intensiva.

Em um país de proporções continentais como o Brasil, a epidemia se desenha em diferentes velocidades ao longo dos últimos seis meses. Os impactos observados até agora são muito distintos entre os Estados, historicamente marcados pela desigualdade que permeia o sistema de saúde. Nos primeiros meses da crise ― especialmente em abril e maio ―, Amazonas, Ceará e Rio de Janeiro protagonizaram histórias duras da pandemia, com hospitais superlotados. Registraram longas filas de espera por um leito de UTI, onde são tratados os pacientes com a manifestação mais grave da covid-19. Em alguns locais, unidades de pronto atendimento chegaram a funcionar praticamente como hospitais, improvisaram leitos de estabilização para pacientes que precisavam ser entubados e instalaram até contêineres frigoríficos para armazenar corpos. Simplesmente não havia leitos de UTI suficientes para atender à demanda, embora gestores locais afirmassem que trabalhavam para expandir o sistema de saúde. Desde então, taxas de ocupação hospitalares têm caído, seja por sinais de arrefecimento de casos graves que demandam internação ou pelas vagas de UTI criadas durante a crise.

No Rio de Janeiro, ao menos 2.340 pacientes infectados pelo novo coronavírus morreram antes de chegar a um leito de terapia intensiva. Segundo dados repassados pelo Governo do Estado, a constatação do óbito foi a principal causa de cancelamento de solicitações feitas à central de regulação estadual. E corresponde quase à metade dos 5.080 cancelamentos feitos nos últimos meses relacionados aos leitos de covid-19. Esses cancelamentos ocorrem por diversos motivos, como alta hospitalar, melhora clínica, falta de condições de transporte, desistência, fora do perfil, dentre outros. Nos últimos meses, as taxas de ocupação de leitos públicos no Rio de Janeiro vêm diminuindo, o que motivou o fechamento de ao menos dois hospitais de campanha, na capital e em São Gonçalo.
Pacientes com Covid-19 no Hospital Sancta Maggiore (SP): apenas 47% da população do estado segue política de isolamento social, e hospitais podem entrar em colapso em dez dias Foto: Edilson Dantas/1-4-2020
Pacientes com Covid-19 no Hospital Sancta Maggiore (SP):
apenas 47% da população do estado segue política de isolamento social,
e hospitais podem entrar em colapso em dez dias (01/04/2020) 

Foto: Edilson Dantas

Amazonas e Ceará, que também enfrentaram problemas de saturação em seus sistemas de saúde, não responderam quantas pessoas foram retiradas da lista por um leito por óbito até o fechamento dessa reportagem.

Na Bahia, o Estado informou que 734 pessoas faleceram antes de serem transferidas para UTIs de covid-19, mais da metade delas (482) somente nos meses de junho e julho. Foi neste período que o Estado viu o coronavírus ganhar velocidade, quando as curvas tanto de casos quanto de óbitos ficaram mais íngremes. Em agosto, a Bahia se tornou o segundo Estado do país com mais infecções, em números absolutos. A Secretaria Estadual afirma que nem todos os pacientes que morreram à espera por uma cama na terapia intensiva de covid-19 tinham o resultado positivo do teste RT-PCR e alega que, por isso, não é possível dizer que todos estivessem de fato infectados. O Ministério da Saúde, porém, já não exige este tipo de exame para determinar o diagnóstico. Com base em exames de imagem e outros testes laboratoriais, a doença pode ser diagnosticada clinicamente por um médico. Porém, esses pacientes mencionados nesta reportagem aguardavam um leito em uma unidade direcionada ao tratamento de infectados com o coronavírus.

No Rio Grande do Norte, 314 pessoas morreram à espera de uma UTI ― cerca de 14% de todas as mortes por coronavírus registradas no Estado. Embora o primeiro óbito tenha sido identificado ainda no final de março, foi a partir de junho que a epidemia ganhou força no Estado potiguar, pressionando o sistema de saúde. A situação chegou a ficar crítica, mas há semanas dá sinais de arrefecimento, com as taxas de ocupação de leitos críticos em queda. Segundo a plataforma Regula RN (que atualiza dados de hospitais a cada cinco minutos), apenas 40% de todos os leitos críticos exclusivos para covid-19 estão ocupados. Também no Nordeste ― uma das regiões brasileiras mais impactadas pela pandemia e com sistemas de saúde mais frágeis ―, o Maranhão conta ao menos 97 pacientes com covid-19 que faleceram antes de conseguir chegar à terapia intensiva.

Nos últimos meses, a trajetória do vírus tem mudado no Brasil. Enquanto Norte e Nordeste dão sinais mais evidentes de estabilidade, o novo coronavírus ganha força em parte do Sudeste e nas regiões Sul e Centro-Oeste, com crescimento no número de casos e óbitos. O Rio Grande do Sul chegou a afirmar que 174 pessoas morreram enquanto aguardavam um leito, mas depois recuou e disse que o número corresponde na verdade a todos os que morreram enquanto aguardavam um leito desde março, seja com perfil covid-19 ou não. Já o Paraná afirma que 643 solicitações por UTIs para tratar pacientes com a covid-19 foram canceladas na sua central de regulação, mas não especifica quais os motivos da retirada desses pacientes da fila de leitos.
Coronavírus: Brasil chega a 121.381 mortes em 3.908.272 casos confirmados |  Relatório diário - TudoCelular.com 
No Sudeste, Minas Gerais informa que 296 pacientes morreram antes de serem transferidos para um leito de UTI. Lá, os óbitos por covid-19 dobraram em um mês. Minas viveu uma guinada de perspectiva sobre a pandemia. Começou a registrar os primeiros casos e óbitos ainda no início da crise, mas até maio as autoridades gabavam-se de ter a “situação sob controle”, quando dados oficiais apontavam apenas 250 mortes. O Estado apresentava baixos índices de testagem e, a partir de maio, quando os testes cresceram, os números da pandemia também começaram a subir. Desde fevereiro, foram criados 1.767 novos leitos de UTI do SUS em Minas. A taxa de ocupação dos leitos de terapia intensiva na última semana de agosto era em torno de 65%, segundo o painel estadual.

Já o Espírito Santo informou o número de pessoas que morreram antes de chegar a um leito de terapia intensiva: 351. A resposta foi dada por meio da Lei de Acesso à Informação a uma solicitação feita por este jornal especificamente sobre os leitos de covid-19 entre os meses de fevereiro e agosto. Depois de publicada esta reportagem, o Governo do Espírito Santo enviou uma nota para o jornal na qual diz que esse número se refere “a óbitos ocasionados por todos os agravos de saúde no período de maio a 18 de agosto deste ano”. Afirmou ainda que “em nenhum momento faltou leito de UTI ou enfermaria para paciente Covid-19 no Estado”. “Manifestamos desculpas pelo envio do dado sem o devido esclarecimento sobre a origem do registro, pois foi extraído de um sistema novo que está sendo utilizado pelo Estado, o que justifica a ausência de dados dos meses de janeiro a abril”, informa a nota do Governo, que não apresentou novos números referentes apenas aos casos de covid-19.

O Estado de São Paulo, porta de entrada para o vírus no Brasil e que concentra desde o início da crise os maiores números absolutos de casos e óbitos por covid-19, também não apresentou seus dados, assim como as demais unidades da federação não mencionadas na reportagem.

Na região Norte, o Acre até respondeu o contato da reportagem, mas não apresentou números. Por e-mail, a Secretaria da Saúde do Estado afirmou apenas que não faz cancelamento de solicitação de leitos. Não respondeu se usa outra nomenclatura para as solicitações não atendidas e nem apresentou dados sobre os pacientes que estavam na lista da central de regulação e saíram por algum motivo.

O acesso a um leito de terapia intensiva não garante a sobrevivência do paciente grave
com covid-19, mas oferece cuidados mais específicos enquanto ainda não há
medicamento ou vacina com eficácia comprovada cientificamente para combater a doença.

Durante a crise, médicos e pacientes relataram um cenário de escassez, com a falta de leitos de UTI e até mesmo rodízio de ventiladores entre pacientes para dar um suporte respiratório aos pacientes infectados pelo coronavírus. Seis meses depois de registrar o primeiro caso de infecção por coronavírus, ainda é difícil se aproximar do tamanho do colapso no sistema de saúde brasileiro, quando nem todos os Estados abrem os dados dos que morreram enquanto esperavam tratamento intensivo.

As taxas de ocupação de leitos de UTI têm caído em uma significativa parte do país, seja por uma possível desaceleração da epidemia ou pela abertura de novas vagas. O Infogripe, um grupo de pesquisa da Fiocruz que acompanha as internações por síndrome gripal no país, alerta que é preciso manter as políticas de prevenção porque mesmo regiões que já enfrentaram uma fase mais dura de contágio podem viver uma segunda onda de internações. O Brasil já soma, desde o começo da pandemia, mais de 115.000 mortes por covid-19.

[Hoje, dia 31 de agosto, já temos 121.381 óbitos e 3.908.272 infecções causadas pelo novo coronavírus desde o início da pandemia].

Fonte: El País – Brasil – Pandemia de Coronavírus – Sábado, 26 de agosto de 2020 – 10h33 (Horário de Brasília – DF) – Atualizado em 31 de agosto de 2020 – Internet: clique aqui (acessado em: 31/08/2020).

Há saída da pobreza

“Os super-ricos devem ser tributados e
os lucros devem ser compartilhados
globalmente”

Óscar Gamboa Zúñiga
El Espectador
22-08-2020

Entrevista especial com Jeffrey Sachs
Economista norte-americano

POBREZA:
esse é o assunto atual e de sempre na humanidade,
com desigualdade não há paz nem democracia
Professor Jeffrey Sachs para Valor Econômico | Columbia Global Centers
JEFFREY SACHS

Jeffrey Sachs é um dos economistas mais conceituados do mundo. Atualmente, é o diretor da Rede de Soluções de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas, bem como uma autoridade global em questões de pobreza.

Talvez não haja um único período na história em que a discussão dessas questões não tenha sido uma prioridade. E, ao mesmo tempo, poucos outros momentos exigiram enfocar esses tópicos com tanta urgência como o do mundo da pandemia que habitamos.

Eis a entrevista.

Mesmo antes da pandemia da Covid-19, o mundo experimentava níveis preocupantes de pobreza. Em quanto é possível aumentar esse indicador agora?

Jeffrey Sachs: A pobreza aumentará em centenas de milhões de pessoas por causa da Covid-19. E não apenas a pobreza, mas também a fome e as doenças não virais. Já existe uma perda massiva de empregos, remessas, falências, cortes no orçamento, dívidas incobráveis e muitas outras consequências da profunda crise. Ao mesmo tempo, a super-riqueza no setor de tecnologia e em alguns outros está crescendo espetacularmente. O Sr. Jeffrey Bezos, proprietário da Amazon, experimentou um aumento na riqueza pessoal, em 2020, de 80 bilhões de dólares.
Publicado no Brasil, em 2005, pela editora
Companhia das Letras (SP)

Passaram-se 15 anos desde a publicação de seu livro “O fim da pobreza” e a meta proposta de eliminar a pobreza extrema até 2025 não parece mais alcançável. O que aconteceu?

Jeffrey Sachs: O livro estava correto. Com a solidariedade global, com os ricos ajudando os pobres, facilmente existem os recursos e tecnologia suficientes para acabar com a pobreza extrema. Não contava com o incrível egoísmo dos Estados Unidos, especialmente sob Trump, mas também em geral. A ajuda dos Estados Unidos para desenvolvimento é de apenas 0,16% do PIB. Isso é um quarto da meta recomendada. Os Estados Unidos, com o que tinham a contribuir, ficaram aquém em cerca de 100 bilhões de dólares por ano. Trump representa a porção branca e supremacista da sociedade americana. Talvez seja 25% dessa população, mas a maioria é do Partido Republicano.

Vimos muitas críticas ao “Millenium Villages Project” (MVP), implementado em 14 aldeias, em 10 países na África Subsaariana. Se pudesse estruturar este projeto novamente, faria algo diferente?

Jeffrey Sachs: O Projeto Millennium Villages foi um grande sucesso. Mostrou como avançar a um custo muito baixo para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio.

Suas propostas foram criticadas porque se baseiam fundamentalmente na ajuda internacional ao desenvolvimento. Seus oponentes dizem que os planos de países em desenvolvimento não devem ser formulados a partir de escrivaninhas em Nova York ou Washington, já que o desenvolvimento é uma questão complexa, sempre local e comunitária, ou seja, cada país deve encontrar seu próprio caminho partindo da idiossincrasia, cultura e valores locais. Como responde a essa crítica?

Jeffrey Sachs: Acredito na solidariedade global. Se os ricos estão nos Estados Unidos, Europa e China, é cruel dizer aos pobres da África, Ásia e América Latina que resolvam seus próprios problemas. Claro, as soluções devem ser adaptadas localmente, mas o financiamento deve ser global. Sim, sou criticado por esse ponto de vista. Mais uma vez, critico meu próprio país por seu notável egoísmo para com o resto do mundo.

Acredita que a pandemia e seu devastador impacto social e econômico podem ser o início de uma nova ordem mundial, uma nova consciência em que a sustentabilidade ambiental e social supera a ganância e a concentração de riqueza?

Jeffrey Sachs: Sim, os super-ricos devem ser tributados e os lucros devem ser compartilhados globalmente, não apenas dentro do país onde os impostos são pagos. Trump é o protetor dos super-ricos. É um demagogo corrupto. O primeiro passo é destituí-lo do cargo nas eleições de novembro.
World Malaria Day - Millennium Villages Project
Ao sul do deserto do Saara, na África, realiza-se o "Projeto Millennium Villages",
parceria entre os governos locais, países ricos e a ONU

Acredita que a quarentena que muitos países passaram contribuiu para a resiliência de muitos ecossistemas?

Jeffrey Sachs: A crise atual não está salvando o meio ambiente. Em muitos países, como Brasil e Estados Unidos, regimes corruptos estão usando a crise para desregulamentar o meio ambiente e até mesmo acelerar a destruição ambiental. Vamos salvá-lo por meio de uma ação coletiva, não como um efeito colateral de uma pandemia horrível.

Acredita que as expectativas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) devem ser ajustadas, em razão da pandemia?

Jeffrey Sachs: As instituições globais devem se ajustar. Precisamos de mais solidariedade internacional, mais alívio da dívida, mais impostos sobre os ricos e o setor corporativo. Devemos também adicionar o ODS 18, Acesso Universal às Tecnologias Digitais, para garantir que todas as famílias e comunidades possam colher os benefícios da Internet e do comércio, saúde, educação eletrônica e outras tecnologias digitais.

Acredita que os ODS relacionados à transformação da sociedade permitem alcançar os outros?

Jeffrey Sachs: Precisamos de seis transformações principais:
* Educação para Todos,
* Saúde para Todos,
* Energia Limpa,
* Uso Sustentável da Terra,
* Cidades Sustentáveis e
* Acesso Digital para Todos.

Na América Latina, 30% dos habitantes vivem em condições de pobreza, ou seja, cerca de 190 milhões de pessoas. Estima-se que a pobreza aumentará de 8 a 10%, como consequência da pandemia. Quais seriam suas principais recomendações?

Jeffrey Sachs: A região está em uma crise massiva. Há uma enorme desigualdade e, portanto, enormes divisões na sociedade de acordo com a classe e a etnia. A qualidade educacional é baixa. A região está atrasada em tecnologia, incluindo tecnologias digitais. Depende muito de combustíveis fósseis. E é muito malgovernada em alguns países, como o Brasil. Tudo isso requer uma ampla revisão em torno dos pilares das seis transformações que acabei de mencionar.

Na Colômbia, os municípios com maioria da população afro concentram os maiores níveis de pobreza e desigualdade. O que recomendaria a esses governos locais?

Jeffrey Sachs: Deveriam desenvolver uma estratégia de subsistência sustentável, baseada em energias renováveis (solar e eólica), educação para todas as crianças, produção de alimentos nutritivos, acesso digital para todos e segurança física para todos. É um mandato de alta dimensão, estou de acordo. Mas não vejo outra maneira.

E ao Governo Nacional?

Jeffrey Sachs: Todo governo deve considerar como prioridade máxima a eliminação da epidemia de Covid-19. Isso significa priorizar as medidas de saúde pública (máscaras, rastreamento de contatos, testes, distanciamento físico, proibição de grandes eventos) até a chegada de uma vacina, em 2021 ou mais tarde. Todo governo deve monitorar e responder às crises humanitárias decorrentes da pandemia, incluindo a pobreza de renda, a fome e os problemas de saúde mental. Os governos devem fazer esforços urgentes para expandir o acesso às tecnologias digitais, incluindo educação e administração eletrônica (como os pagamentos por transferências) e a e-saúde (como telemedicina), como respostas-chave para enfrentar a Covid-19.
CONHEÇA OS 17 OBJETIVOS DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL - Plan International  Brasil
Os "Objetivos de Desenvolvimento Sustentável" é uma iniciativa da Organização das Nações Unidas (ONU)

E os empresários e o setor privado em geral?

Jeffrey Sachs: As empresas devem determinar como sobreviver à pandemia, incluindo:
(1) trabalhar em casa;
(2) locais de trabalho seguros;
(3) novos modelos de negócios mistos que combinem atividades online e no local de trabalho e
(4) cadeias de fornecimentos resistentes.

Como corrigir injustiças contra grupos étnicos?

Jeffrey Sachs: A chave é o acesso universal aos serviços básicos, incluindo saúde, educação, lazer, etc. Isso exige que os governos mobilizem mais receitas e forneçam mais serviços. Esse é o caminho da social-democracia, o modelo econômico mais eficaz do mundo atual.

Atendem a esse propósito as ações afirmativas?

Jeffrey Sachs: O importante é o acesso universal a serviços de qualidade, com atenção especial para eliminar a discriminação e ajudar a superar as sequelas da injustiça. Por exemplo, programas de desenvolvimento da primeira infância, educação de qualidade para todos e apoio familiar para grupos de baixa renda.

Alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) depende em grande medida da implementação. Como coordenar a participação de tantos atores interessados?

Jeffrey Sachs: Os ODS exigem um melhor planejamento que integre, em um prazo de 10 anos, as necessidades de investimento público e privado com métodos de financiamento. Mas não é suficiente expressar apoio aos ODS. Para alcançá-los, é necessário um plano, por meio de um projeto de investimento detalhado, específico e financiado.

O que considera que deveria estar presente em um plano de recuperação econômica da Colômbia para irradiar setores historicamente excluídos?

Jeffrey Sachs: A Colômbia e o resto da América do Sul precisam de um novo modelo econômico baseado na:
* diversificação da economia por meio de melhores tecnologias,
* melhor educação para todos,
* energia renovável,
* uso sustentável da terra e
* um sistema de arrecadação de impostos e renda com os quais o Governo possa apoiar investimentos públicos, incluindo serviços.
Isso exigirá políticas consistentes ao longo de uma geração. Eu sei que não será fácil.

[...]

Traduzido pelo Cepat.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Segunda-feira, 31 de agosto de 2020 – Internet: clique aqui (acesso em: 31/08/2020).

22º Domingo do Tempo Comum – Homilia

Evangelho: Mateus 16,21-27

Assista à narração do Evangelho deste
domingo, clicando sobre a imagem abaixo:


José María Castillo
Teólogo espanhol

JESUS, UM MESSIAS INESPERADO

A partir do momento em que os discípulos, pela boca de Pedro porta-voz deles, afirmam sua fé em Jesus como o Messias (Mc 8,27-30; Mt 16,13-16; Lc 9,18-21), este «começa» a explicar àqueles homens em que consistia seu messianismo e como iria se realizar.

Tal messianismo não seria uma carreira de êxitos, de triunfos, de poder e de fama. Totalmente o contrário. O messianismo que poderia trazer salvação e solução ao mundo, seria (tinha que ser) e se realizaria em uma vida que iria terminar no enfrentamento mortal com os poderes religiosos e políticos, até ver-se marginalizado, excluído e condenado por tais poderes.

Este fato, tal como historicamente aconteceu, pareceu intolerável a Pedro. Por isso, «repreendeu» Jesus. O que foi motivo de um enfrentamento duríssimo. Porque Jesus chegou a qualificar Pedro de «Satanás». Por que esse enfrentamento chegou a tal extremo? Estava em jogo o mais decisivo. Por quê?

O Messias, segundo o Antigo Testamento, era o «ungido». E ungidos eram o «sumo sacerdote» e o «rei». O messianismo estava associado, para qualquer judeu, ao mais digno, ao poder e à grandeza. A ideia de Messias estava, portanto, vinculada ao sobre-humano, ao governo glorioso do rei Davi (Is 9,1-6; 11,1ss; Mq 5,1-5). Talvez, na ideia do Messias estrasse, também, o conceito do «sagrado». Porém, é indubitável que a ideia judaica do messianismo estava vinculada à realeza, com o poder e dignidade que lhe corresponde, na qual encarna o papel e a grandeza da salvação do povo eleito.

Uma vez posto isso, e sendo essa a mentalidade do judaísmo proveniente do Antigo Testamento, compreende-se que Jesus, ao explicar seu messianismo (tal como de fato se consumou), teve de lançar mão de uma fórmula forte e direta: «o Messias tem de ir a Jerusalém e padecer muito lá». O texto utiliza o vocábulo grego «deï», que não tem equivalente semítico e que designa uma necessidade absoluta, inquestionável.


Porém, na história da interpretação bíblica, esta necessidade expôs um problema no qual a teologia ficou presa:
* Jesus «tinha que» padecer e morrer rejeitado pelas autoridades religiosas, porque assim Deus havia decidido?
Ou:
* Porque o próprio Jesus viveu de modo que aquela vida não poderia acabar senão em fracasso, em sofrimento e na morte de um subversivo?
Aqui está o problema capital para entender Jesus, para compreender o que significa o cristianismo, e para viver a fé cristã com coerência e segundo seu razoável significado.

O que isso quer dizer?

A afirmação forte, que faz Jesus, segundo a qual o Messias «tem que padecer muito» (grego: deï pollá pathein), associa o sofrimento e a morte de Cristo com «uma necessidade absoluta». O problema está em que o vocábulo «deï» («é necessário», «tem que») se associa no Novo Testamento com decretos divinos. Isto é que deu pé para se dizer que foi Deus quem decretou o sofrimento e a morte de Jesus.

Porém, se chegamos a esta conclusão, no fundo, o que estamos afirmando é que Deus necessitou de sofrimento e morte, nada menos do que a morte de seu Filho. O que equivale fazer de Deus um monstro de maldade e sadismo. Semelhante afirmação teológica é absolutamente intolerável e inaceitável. Em um Deus assim, não é possível crer.

Para pôr as coisas em seu lugar, é necessário saber:
1) No Novo Testamento se relaciona o vocábulo «deï» com normas de Deus para a ética e a piedade (At 5,29; 1Ts 4,1; Rm 8,26; 1Cor 8,2; 1Tm 3,2.7.15; Lc 13,14.16).
2) Nunca se relaciona com sofrimentos que Deus manda ou com decisões divinas relativas à morte de alguém.
3) E, claro, jamais se vincula a sofrimentos, violência e morte cuja origem esteja nas autoridades religiosas.

Deve-se dizer, portanto, o que dizem os evangelhos quando põem na boca de Jesus os anúncios da paixão: foram os sumos sacerdotes, os doutores da Lei e os senadores aqueles que decidiram torturar, humilhar e assassinar Jesus. Nesse sentido, pode-se afirmar que não foi Deus, mas que foi a Religião (por meio de seus representantes oficiais) que matou Jesus. O projeto de matar Jesus brotou dos observantes religiosos, os fariseus (Mc 3,6). E o consumou o Sinédrio das autoridades religiosas de Jerusalém (Jo 11,47-53).

Porém o que ocorreu, no cristianismo primitivo, é que os evangelhos foram redigidos e se difundiram (em sua redação definitiva) depois do ano 70, datação que está geralmente aceita e comprovada. Contudo, muito antes, entre os anos 41 e 51-52, as primeiras «igrejas», fundadas quase todas pelo apóstolo Paulo, receberam uma mensagem distinta àquela dos evangelhos. Foi a mensagem segundo a qual Cristo morreu crucificado, como «sacrifício» e «expiação» por nossos pecados. O que, a juízo de Paulo, foi um ato de generosidade de Deus. Foi o Pai quem entregou seu Filho para a nossa «justificação» e «redenção» (2Cor 5,21; Rm 3,24-26).

Estas duas interpretações da morte de Jesus, a dos evangelhos e a de Paulo, não se integraram devidamente na teologia cristã. Porém o fato histórico nos diz que Jesus morreu como um fracasso subversivo, por solidariedade para com todos os que sofrem neste mundo. Isto é o capital. E deveria ser o determinante para a Igreja.

Traduzido do espanhol por Telmo José Amaral de Figueiredo.

Fonte: CASTILLO, José María. La religión de Jesús: Comentario al evangelio diário – 2020. Bilbao: Desclée De Brouwer, 2019, páginas 312-314.

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Novidade chegando...

Francisco prepara uma encíclica sobre a “Fraternidade” e o mundo pós-pandemia, talvez para o dia de São Francisco,
4 de outubro

Hernán Reyes Alcaide
Religión Digital
28-08-2020

Papa deseja que o mundo não menospreze as lições
que a calamidade da pandemia do novo coronavírus
trouxe para toda a humanidade
GALERIA: Papa Francisco concede a Benção Urbi et Orbi | PortalR3 |
PAPA FRANCISCO
Diante do crucifixo considerado milagroso pelos fiéis durante a peste que afetou Roma,
o qual se encontra na igreja de São Marcelo na Via del Corso (Roma)
Basílica de São Pedro (Vaticano), 27 de março de 2020

O Papa Francisco publicará, entre final de setembro e início de outubro, um novo documento que se soma como “central” para a segunda parte de seu pontificado. Tratará de um escrito para o mundo pós-pandemia do coronavírus, com um eixo central na “Fraternidade Humana”, aprofundando as linhas que já esboçou no documento assinado em Abu Dhabi, em fevereiro de 2019, e que o ratificará como um líder centrado no diálogo inter-religioso e na busca da paz entre e desde as religiões.

Em breve o Papa publicará uma encíclica sobre o tema da fraternidade humana”, revelou esta semana o sempre bem informado bispo de Rieti (Itália), Domenico Pompili.

Segundo o que foi informado ao Religión Digital, a sala de imprensa da Santa Sé prepara a apresentação do documento para final de setembro, no que será a próxima conferência de imprensa. Outras vozes sugerem que a data de publicação pudesse ser em 04 de outubro, dia de São Francisco de Assis.

Sobre o conteúdo, o texto aprofundará as linhas que Francisco já estabeleceu no Documento sobre a Fraternidade Humana para a Paz Mundial e a Convivência, assinado em 4 de fevereiro de 2019, em Abu Dhabi, com o grande imã de Al-Azhar.

“Curando o mundo” nas audiências gerais de agosto

Ademais, incorporam-se, desenvolvidas, as linhas para o mundo “pós-pandemia” que o Papa traçou nas missas matutinas na Casa Santa Marta durante a primeira parte do confinamento e depois desde o retorno das audiências gerais, em agosto, com o título “Curando o mundo”.

De fato, dias antes da publicação da nova encíclica, em 15 de setembro, o Papa participará, com vídeo-mensagem, na Assembleia Geral das Nações Unidas, também centrando as linhas e reflexões para o mundo pós-pandemia.

Traduzido do espanhol por Wagner Fernandes de Azevedo.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Sexta-feira, 28 de agosto de 2020 – Internet: clique aqui (acesso em: 28/08/2020).

terça-feira, 25 de agosto de 2020

Sobre o padre Robson e outros...

É de outra Igreja que precisamos

Pe. Manuel Joaquim Rodrigues dos Santos
Presbítero da Arquidiocese de Londrina – PR
Pároco na Paróquia São João Batista (Florestópolis, PR)

É disso que a Igreja precisa?
Padres tipo super-heróis da fé?
Santuários que se tornam super paróquias?
Abusando de devocionismos e sacramentários no pior sentido?
De mudança, padre Manuel quer atuar pela valorização da vida
Pe. Manuel Joaquim Rodrigues dos Santos

O caso envolvendo irregularidades com o padre Robson do Santuário do Pai Eterno em Goiânia, nos leva a necessárias e sérias reflexões.  Há anos atrás eu escrevi um artigo mordaz, discorrendo sobre o que chamava genericamente de “padres cantores”. Outros preferem o termo influencer [inglês: influenciadores], mas dá no mesmo.

Nos anos noventa, uma estratégia clara da Igreja Católica, foi o enfrentamento das Igrejas pentecostais visando concretamente a evasão dos católicos com esse destino. Foi o momento da explosão das mídias católicas – Canção Nova, Século XXI, Rede Vida etc. Todas obedecendo à mesma linha influente da RCC, em tese, a que melhor proporcionaria uma comunicação perfeita a esse objetivo primeiro.

Numa linguagem do chamado catolicismo explícito, ou comunicação explicitamente religiosa, esses Meios entravam na casa dos brasileiros, cumprindo um papel, que segundo se dizia, não era mais atingido pelas paróquias e antigas estruturas. Com isso, os lares católicos brasileiros passaram a ter um canal “católico” em suas casas:
* dando catequese,
* ditando a moral,
* formando opinião e em alguns casos,
* em rota de colisão com a Igreja ou com vários párocos.

Mas o pior! Geralmente esses programas criaram locais específicos de grandes peregrinações, que se transformaram numa espécie de super paróquia. Católicos geralmente quase nada envolvidos em atividades eclesiais e descompromissados com a Comunidade de origem, faziam peregrinações sistemáticas e mobilizavam outros, até esses points da fé!
Santuário Divino Pai Eterno
Santuário do Divino Pai Eterno - Trindade - Goiás

Por sua vez, padres midiáticos cada vez mais aperfeiçoados no metier [francês: atividade, trabalho], recorrendo a modelos nada convencionais (cowboy – country, show man etc.), abusando de batinas e clergyman, iam se impondo no imaginário popular como super-heróis do catolicismo moderno a atual. Paradoxalmente, mal sabiam os idosos e espectadores, que de moderno e atual essa gente não tem quase nada.

O conteúdo desses shows da fé, abusando de devocionismos e sacramentários (no pior sentido do termo), arrasavam com a caminhada histórica da Igreja brasileira e resgatavam modos populares, em nada condizentes com uma boa e necessária evangelização.

Que a devoção seja positiva e uma boa plataforma para voos mais altos em termos de compromisso com o Reino de Deus, é pacífico e defendido em inúmeros documentos do Magistério. Porém, o devocionismo provocado e alimentado por esses Meios de Comunicação Católicos empoderando padres recém ordenados, não é adequado ao objetivo que a Igreja Católica tem se proposto em seus Planos de Evangelização dos últimos anos.

Concomitantemente, este modelo envolve altos recursos financeiros. Uma família católica média pode receber em sua casa de dois a três boletos mensais, com solicitação de ajuda. Como aparentemente o objetivo é sacro, a generosidade do povo nunca falha. Além do dízimo, se é que em muitos casos não é substituído!

São milhões. Bilhões, na verdade. Construção de Santuários faraônicos, redes de Tvs, Rádios etc. etc. Dinheiro exige administração e transparência. Um caso de escândalo envolvendo essas doações derrubam imediatamente todo o plano.
Padre Celebridade' é suspeito de roubar R$ 60 milhões doados por ...
Padre Robson durante celebração eucarística no Santuário do Divino Pai Eterno
Trindade - Goiás

O caso do padre Robson está sob investigação. Mas ao que parece, houve alto desvio para bens particulares. Em Goiânia um caso destes, já não é inédito!

(Para inteirar-se dos detalhes deste caso envolvendo o
padre Robson de Oliveira Pereira, basta clicar aqui)

Será o começo do fim de um modelo que até hoje não podemos avaliar em termos de vantagens para a evangelização? Sabemos que a tipicidade destes evangelizadores da Mídia, associados a Santuários, é tipicamente do continente americano. A peregrinação enquanto tal é inerente ao ser humano. Ele caminha como o grande paradigma da sua própria existência. Caminha por caminhar. É caminhando que se faz o caminho.

Na Idade Média se caminhava também por penitência. No entanto, os Santuários de hoje envolvem mais do que isso. Para pior.  São “centros de bênçãos” e locais de gastança de dinheiro. São erigidos a santos, anjos e arcanjos. Desenvolveu-se uma teologia medíocre e barata desses personagens do mundo da fé.

Alguns são apenas programas de turismo religioso barato. Afinal, os pobres também têm o direito de ir em algum lugar, já que não o podem fazer a Roma ou Jerusalém! Isso é descer vários degraus no que a Igreja pós conciliar e o mundo atual preconizam e precisam. Multidões em algum lugar, escutando sermões, teológica e eclesialmente suspeitos, é tudo de que nós não precisamos no momento.

Eu estava na maternidade onde nasceu a Rede Vida. Em Brasília, com os cardeais da época, discutindo a possibilidade de a CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil] assumir para si “uma Tv Católica”. Pela história, sabemos da recusa dos bispos a esta possibilidade. Mas Monteiro [João Monteiro de Barros Filho, originário de Barretos, SP] a ofereceu. Posto isso, ela se transformou numa “TV Católica” sem a CNBB! Creio que foi uma atitude sensata dos bispos e cardeais. Ter uma televisão porta voz da Igreja fica muito caro e é perigoso. Outros países já discutiram esta opção e não a endossaram.

Está passando da hora de nos alinharmos com as ideias refrigeradas de Francisco ensopadas no [Concílio] Vaticano II e nas Conferências Latino Americanas.

Não vejo sinceramente nenhuma contribuição deste “modelo de evangelização”
usando padres-show e santuários, para uma Igreja que precisa
se reinventar nos tempos de mudança de época em que nos encontramos.

Muita tinta ainda correrá sobre este “fenômeno” dos anos 90 que chega até aos dias de hoje.

A crise que enfrentamos hoje e que provoca na Igreja um ressurgimento da dimensão profética e de proximidade total com os sofredores, empobrecidos, descartados, discriminados e ateus, não encontra no padre Robson e tantos outros similares nenhuma empatia. Água e azeite não se misturam.

Fonte: Blog do Jota Parente – Segunda-feira, 24 de agosto de 2020 – Internet: clique aqui (acesso em: 25/08/2020).

Entendendo o Brasil

Um povo acostumado a ir ao matadouro

Eliane Brum*

No país em que a maioria da população é reduzida à sobrevivência,
quem são os burros e os mal-informados?
Grupo faz homenagem, em 7 de agosto, aos 100.000 mortos pelo coronavírus.
Grupo faz homenagem, em 7 de agosto, aos 100.000 mortos pelo coronavírus.
AMANDA PEROBELLI / REUTERS

O Brasil superou as 100.000 mortes por covid-19 e, na velocidade atual em torno de 1.000 mortos por dia, poderá chegar aos 200.000 ainda em outubro. E então a Folha de S.Paulo estampa na manchete de 15 de agosto a conclusão da pesquisa do Datafolha: “para 47% dos brasileiros, Bolsonaro não tem culpa pelas 100 mil mortes por covid-19”. Nenhuma culpa. O Brasil tem 21 novos casos/dia por 100.000 habitantes, quando a média global é 3. Mesmo vilões como os Estados Unidos de Donald Trump têm 17 novos casos/dia por 100.000 e a Índia de Narendra Modi, 5. Mesmo com as evidências de negligência intencional e deliberada na relação com a pandemia, que já motivou três petições de crimes contra a humanidade no Tribunal Penal Internacional, a mesma pesquisa já tinha mostrado que Bolsonaro alcançou sua melhor aprovação desde o início do mandato: 37% de ótimo ou bom. A melhora é puxada especialmente pelos mais pobres e pelo Nordeste do Brasil, região onde ele teve menos votos em 2018. A rejeição caiu enquanto o número de mortos explodiu.

Por que quase metade dos brasileiros se comportaria como “gado humano”, como tem sido chamada, e aceitaria Bolsonaro conduzi-la alegremente para o matadouro?

A conclusão mais fácil, amplamente difundida nas redes sociais, é a de que as pessoas são burras. E também mal-informadas. O auxílio emergencial de 600 reais por mês para os mais pobres devido à pandemia teria feito com que Bolsonaro fosse visto momentaneamente como o capitão dos pobres. A desinformação seria por conta de que o Governo federal foi obrigado pelo Congresso a pagar 600 reais. Bolsonaro não queria passar dos 200. O campo da esquerda, que quase dois anos depois da eleição ainda não foi capaz de fazer oposição efetiva a Bolsonaro, apavora-se porque o Governo emite sinais de que o Bolsa Família do lulismo pode virar o Renda Brasil do bolsonarismo. E, se isso acontecer, Bolsonaro tem mais chances de se reeleger em 2022.
O sertão brasileiro em 20 fotos incríveis | Chicken or Pasta? 
O que é ser burro e o que é ser inteligente, porém, não é uma definição fácil, muito menos simples. Grande parte da população brasileira vive apenas o dia de hoje. Para a maioria, o mês seguinte já é longe demais. A ideia de futuro é considerada um privilégio dos mais ricos, e este é um dado muito importante, porque emancipação política só é possível com pessoas que têm acesso à ideia de futuro. Quando o futuro se torna um privilégio dos mais ricos, e não um direito assegurado a todos, a maioria é condenada ao presente. E o presente é movido por comer ou não comer, ter um lugar para dormir ou ser despejado, manter-se respirando.

A realidade é que os 600 reais do auxílio emergencial garantiram uma renda inédita a pelo menos 65 milhões de brasileiros e suas famílias. E, quando o benefício acabar, o que pode acontecer em seguida, voltarão a ter que se virar com muito menos, num país com um número ainda maior de desempregados e com a recessão se ampliando. Segundo artigo de Mauro Paulino e Alessandro Janoni, diretor-geral e diretor de Pesquisas do Datafolha, “dos cinco pontos de crescimento da taxa de avaliação positiva [de Bolsonaro], pelo menos três vêm dos trabalhadores informais ou desempregados que têm renda familiar de até três salários mínimos, grupo alvo do auxílio emergencial pago pelo governo”.

Vale a pena ressaltar que o que se chama de classe média no Brasil, assim como aqueles que se entendem como classe média, nada têm de média. Em São Paulo, por exemplo, segundo a calculadora preparada pelo Nexo, se você ganha 12.000 reais por mês já faz parte do seletíssimo clube do 1% mais rico do Brasil. A tabela tem suas limitações, mas cada um pode calcular sua renda em comparação com o restante da população e ter uma ideia muito aproximada da situação.

O Brasil tem a segunda pior concentração de renda do mundo,
conforme o Relatório de Desenvolvimento da ONU:
o 1% mais rico concentra 28,3% da renda total do país.
Brasil tem segunda maior concentração de renda do mundo, diz ONU 
Só perde por muito pouco para o Catar, onde a concentração de renda chega a 29%. Este é o tamanho do abismo da desigualdade brasileira. Vale a pena lembrar ainda que os bilionários não são 1%, como se costuma dizer no senso comum — e sim 0,00003% da população global. Mais especificamente 2.153 pessoas como eu e você, que concentram 60% mais riqueza material que quase 7,8 bilhões de pessoas da mesma espécie.

O mundo tem uma pessoa bilionária para cada 3,7 milhões de outras. No Brasil, segundo o último ranking da Forbes, há 45 pessoas bilionárias. Quarenta e cinco. Enquanto isso, a metade mais pobre da população brasileira, cerca de 104 milhões de pessoas, vivia em 2018 com 413 reais de renda mensal.

Não há futuro para a maioria com essa desigualdade monstruosa.
Só um presente vergonhosamente precário.

E o presente vergonhosamente precário é, neste momento, ainda absurdamente precário, mas menos precário com o auxílio emergencial de 600 reais — composto por recursos públicos, mas interpretado como uma benemerência de Bolsonaro.
Brasil tem 2ª maior concentração de renda do mundo, diz ONU
Favelas imensas ao lado de condomínios de luxo

A redução da miséria e da pobreza, conquistada nos anos dos Governos do PT (e, antes dele, em níveis consideravelmente menores, nos governos do PSDB de Fernando Henrique Cardoso), foi imensamente importante, mas suficiente apenas para reduzir a fome e garantir melhorias pontuais, como acesso a bens básicos como geladeira e fogão. Isso, é necessário assinalar, não é pouca coisa. A questão, que já era apontada na primeira década deste século, é que jamais foi suficiente para criar cidadãos, no sentido daquilo que é definido como sujeitos de direitos. Para criar cidadãos é necessário reduzir a desigualdade, o que nunca foi feito de forma significativa no Brasil.

Para diminuir a desigualdade é preciso fazer mudanças estruturais capazes de reduzir os privilégios da minoria mais rica e taxar pesadamente as grandes fortunas.
Só assim se garante uma redistribuição mais igualitária da riqueza existente.

O Governo mais próximo de um ideário social de esquerda no Brasil, o de Lula, era um governo de conciliação. Lula e principalmente Dilma Rousseff sacrificaram a Amazônia e o Cerrado, assim como bandeiras históricas como a da reforma agrária, para garantir a massiva exportação de matérias-primas durante um momento de crescimento da economia global, especialmente da China. Era a fórmula — limitada, como se viu — para os pobres ficarem menos pobres e, ao mesmo tempo, os ricos mais ricos.
Brasil vai responder na OEA por violações de direitos humanos em ...
CONSTRUÇÃO DA HIDRELÉTRICA DE BELO MONTE:
na bacia do Rio Xingu, próximo ao município de Altamira, no norte do estado Pará.
Projeto e início da construção durante o governo de Lula.
Um atentado contra a natureza, a Amazônia, aos povos indígenas e à inteligência!

Há muitas definições de cidadania. Eu gosto daquela que define o cidadão como aquele que pode ter a certeza do básico — alimentação, transporte, saúde e educação — e então pode ser capaz de imaginar e criar futuros onde quer viver porque o seu tempo não é devorado pela estrita manutenção do corpo, mas para desenvolver seu potencial para a ampliação do bem comum. Se o mundo é hoje extremamente desigual, o Brasil, com seu tamanho continental e 210 milhões de habitantes, é o exemplo mais eloquente da violência representada pelo sequestro do futuro da maioria da população, reduzida ao esgotamento cotidiano dos corpos para manter-se respirando.

Diante das condições de vida absolutamente precárias da maioria dos brasileiros e do súbito aumento da renda com o auxílio emergencial, o surpreendente não é que a aprovação de Bolsonaro suba durante a pandemia. O surpreendente é que isso seja uma surpresa. Se a reação previsível e lógica dos mais pobres é uma surpresa para parte da população, especialmente no campo da esquerda, quem então são os burros e os mal-informados sobre o que se passa no país?

O boicote intencional de Bolsonaro ao enfrentamento da covid-19 pode ser comprovado por atos documentados no Diário Oficial da União, além de uma comunicação feita deliberadamente para desinformar a população. As pesquisas também provam que são os mais pobres, e a maioria dos mais pobres no Brasil é negra, que morrem mais de covid-19. No Campo Limpo, um dos bairros com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) mais baixos de São Paulo, a letalidade da covid-19 por 100.000 habitantes é altíssima — 52%. Já nos bairros mais ricos, com IDH mais alto, como Pinheiros, a taxa é de 5%. Na maior cidade do Brasil, há 10 vezes mais letalidade por covid-19 nos bairros mais pobres quando comparados aos mais ricos.

Como então é possível que a melhoria nos índices de aprovação do antipresidente seja justamente puxada pelos mais pobres? A resposta também pode ser buscada na precarização da vida. O que chamamos de povo brasileiro é composto, em sua maioria, por pessoas que só vivem porque teimam. A história do Brasil é uma trajetória de espoliação de matérias-primas extraídas da natureza e, no caso da maioria da população, de corpos escravizados e depois brutalmente explorados.

O que se transmite de pai e mãe para filhos e filhas é que 
a sobrevivência não é garantida, ela é arrancada. 
A morte é normalizada.

A história das famílias mais pobres é uma história em que os filhos mortos são contados junto com os vivos. As mulheres sabem que parte da sua prole pode morrer pelas condições precárias da vida, pela falta de acesso à saúde, à água, a saneamento básico e também a alimentos. Também sabem que morrer por violência é uma probabilidade, especialmente se seu filho for negro, seja pelas balas da polícia, da milícia ou por assalto. Há periferias do Brasil em que você pode bater aleatoriamente em uma fileira de portas e todos terão uma morte ou mais para contar, por violência e/ou por falta de condições de saúde.
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Crianças recolhem cartuchos de fuzil disparados em favela:
acostuma-se com a morte, desde cedo!

A tragédia crônica do Brasil é ter um povo para quem a morte por doenças evitáveis e por violência é normalizada porque foram colocados na condição de matáveis e de morríveis desde a formação do país. Não é um povo, é uma massa de desesperados extremamente criativos que vem resistindo há séculos contra todas as formas de extermínio.

O que quero explicitar é que os brasileiros mais pobres vivem sujeitados a aceitar a perda dos que amam. Esta é uma das faces mais horrendas da desigualdade, mas o horror desta face nunca a impediu de ser aceita como normal, em especial pelos mais ricos, inclusive os que se consideram classe média.

Neste sentido, a covid-19 é mais uma forma de morte.
Se as outras mortes não são evitadas,
por que esperar que um governante evitasse esta?

Para suportar o horror de estar na condição dos que podem morrer por aquilo que não mata os brancos e os mais ricos — ou pelo menos que mata muito menos os brancos e os mais ricos —, uma parcela significativa dos brasileiros atribui seu destino à vontade divina. Pelo menos, neste caso, podem rezar, pagar o dízimo para o pastor, tentar reverter o destino ou, pelo menos, encontrar um sentido para suas tantas perdas numa vontade superior. Numa realidade que parece imutável, o que não se pode entender, como a vontade de um deus, pode ser mais suportável do que a explicação de que a sua vida pouco importa para quem tem seu destino terreno nas mãos.

Assim, a covid-19, tanto quanto as outras doenças, também é considerada culpa de ninguém. Nem mesmo de Bolsonaro, apesar dos seus vômitos públicos de irresponsabilidade. O “E daí?” de Bolsonaro é apenas um degrau a mais, por ter sido dito em voz alta, para o grande “e daí?” histórico, permanente e persistente vivido pelos mais pobres ao longo de gerações e de Governos. Para alguns fiéis de determinadas igrejas neopentecostais, pragas do gênero já estão inclusive previstas na Bíblia. As doenças são em geral uma alegoria com muita ressonância numa população cada vez mais evangélica. A pergunta do Datafolha pode nem fazer muito sentido para uma parcela da população: como assim um presidente vai ter culpa por uma doença? Doença acontece, é fatalidade, quando não enviada por Deus para castigar a imoralidade reinante.
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A dor constante e a falta de futuro conduzem a crer no destino divino

Isso é ignorância? Pode ser. Mas é principalmente sobrevivência, inclusive psicológica. Se você aceitou que a perda e a morte fazem parte do seu lugar no mundo, como fizeram parte antes do destino de seus pais e avós, o que importa é garantir a comida, o gás, o puxadinho para quem sobrar. Garantir os 600 reais. E quando os 600 reais acabarem? O amanhã é longe. Não há futuro para quem foi reduzido ao hoje. Se a maior parte da população está na condição de matável e de morrível — e isso nunca mudou, nem nos melhores anos do governo Lula —, qual é a surpresa no fato de que os 100.000 mortos não impactem negativamente na aprovação de Bolsonaro e que os 600 reais impactem positivamente? De novo, quem são os burros e os mal-informados?

Neste momento, há um debate sobre as variáveis. Bolsonaro cada vez mais se descola da agenda neoliberal de Paulo Guedes, com a qual de fato nunca se importou, era apenas seu passaporte para ter o apoio dos representantes do que chamam de “mercado” na eleição. Rifou meses antes Sergio Moro e a classe média que ele representava, isso quando o próprio Moro já tinha rifado antes sua reputação e levado para o esgoto um pedaço da Operação Lava Jato. A Bolsonaro interessa o poder e a proteção da sua família. E se o poder é o único princípio, nenhum problema em se unir ao Centrão no momento em que se vê acuado pela aproximação cada vez maior das investigações envolvendo Fabrício Queiroz, as rachadinhas no gabinete do filho zeroum e o envolvimento com as milícias do Rio. Há chances consideráveis de que em algum momento próximo Bolsonaro possa mesmo rifar Guedes e se tornar o novo pai dos pobres, fazendo a migração do auxílio emergencial para o Renda Brasil, mirando seus dedos de arminha na reeleição de 2022.

E a oposição? Bem, é preciso entender que quem fez a oposição mais efetiva à extrema direita de Bolsonaro foi a direita. O presidente do Câmara, Rodrigo Maia (DEM), assim como governadores até ontem aliados, como João Doria (PSDB), em São Paulo, e Wilson Witzel (PSC), no Rio de Janeiro. Hoje, com Bolsonaro fazendo os giros necessários para agradar a uma parcela dessa direita, Rodrigo Maia está confortavelmente sentado sobre a pilha de quase 60 pedidos de impeachment e chegou a dizer em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, que não vê Bolsonaro praticando crime nenhum que justifique a abertura de processo de impedimento no Congresso.

No Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, o ministro mais ligado à política partidária de direita e de centro-direita, passou meses batendo duramente no governo. Recentemente, alertou os generais de Bolsonaro sobre o risco de serem atingidos por denúncias de genocídio relacionadas à atuação deliberadamente catastrófica do Governo na covid-19. Dias atrás, porém, assinou uma decisão liminar considerando que Fabrício Queiroz, ex-PM e assessor do senador Flávio Bolsonaro, e sua mulher, Márcia Aguiar, têm o direito de cumprir prisão em casa em vez de na cadeia. Decisão bastante incomum dada a trajetória do casal, ele escondido por meses e ela foragida. Por coincidência — ou não —, a decisão vem num momento em que as investigações por corrupção e envolvimento com milícias chegam mais perto de Bolsonaro, mas ele faz acenos a partidos como o MDB de Michel Temer, seu mais recente conselheiro, que chegou a ser enviado em missão oficial ao Líbano pelo novo amigo.

E a esquerda partidária? Esta não conseguiu fazer oposição efetiva até hoje. Enquanto parte da direita dá sinais de estar se acertando com a extrema direita bolsonarista, o PT não consegue se acertar com a esquerda nem para disputar a Prefeitura de São Paulo nas próximas eleições municipais. Com a ameaça de o Renda Brasil substituir o Bolsa Família na memória da população, os petistas se moveram para estimular a memória do povo. A realidade mostra, porém, que memória curta é questão de sobrevivência para grande parte da população. Num país em que uma renda de 600 reais por mês é a maior alcançada por dezenas de milhões de pessoas numa vida inteira, o que se pode esperar? Vivem como se não houvesse amanhã porque há mesmo grandes chances de não haver.

Se a direita se acertar com a extrema direita, ainda que momentaneamente, o Brasil vai viver uma situação inédita:
* no pior Governo da história da República,
* com quatro petições por crimes contra a humanidade perpetrados por Bolsonaro no TPI e
* mais de 110.000 mortos de covid-19 não haverá nenhuma oposição partidária.
Sim, porque a esquerda está ocupada brigando entre si e fazendo oposição a si mesma.
Impulsionado por auxílio emergencial, Bolsonaro quer conquistar o ...
JAIR BOLSONARO:
passou de crítico ao Bolsa Família a criador da Renda Brasil - populismo que garante vitória

Quando uma parte significativa da população aprova Bolsonaro e diz que ele não tem culpa nenhuma pela covid-19, essa parcela está fazendo a única política que conhece. Graças a essa adesão, Bolsonaro vislumbrou um caminho para ser reeleito e, pela primeira vez, cogita garantir sua popularidade distribuindo renda para os mais pobres. Justo ele, que foi o único presidente da redemocratização que não citou a redução da pobreza num discurso de posse, está revendo sua posição. Quem conseguiu esse feito? Não foi a oposição nem foi a esquerda. De novo e pela última vez: quem são os burros e os mal-informados?

É claro que se trata de Bolsonaro. Se ele vislumbrar outro caminho para garantir a reeleição, salvar sua família — e a si mesmo — das investigações ou para consumar o golpe de forma mais clássica, o Renda Brasil pode desaparecer do horizonte das possibilidades em um segundo. Da mesma forma, se ele mudar de conveniência, os novos amigos podem virar inimigos de novo em menos de 24 horas. No momento, porém, sem combinar entre si, mas combinados pela experiência dos séculos, os que só têm o dia de hoje para viver elogiam o coronel da ocasião, neste caso um capitão reformado que gosta de armas e de bombas, e o absolvem de todos os pecados. Esse cenário de adesão também pode mudar da noite para o dia, caso não exista algum tipo de continuidade do auxílio emergencial.

O mais surpreendente na pesquisa do Datafolha é justamente o outro lado: que, neste Brasil precarizado e povoado por desesperados,

52% da população ache que Bolsonaro tem alguma culpa pelos 100.000 mortos
 — a maioria — ou toda a culpa — uma minoria.

Sinal de que as forças emergentes dos Brasis que seguem avançando pelas fissuras e pelas bordas têm se movido — e muito — por um país em que futuro não seja coisa de rico. Sinal também de que há muitos entre os mais pobres que, contra todas as estatísticas, se recusam a seguir reduzidos à exaustão dos corpos e vêm lutando ferozmente pelo exercício da solidariedade, pela responsabilidade coletiva e pelo direito ao futuro. E esta é uma notícia incrível, que aponta para a resistência.

Ainda um acréscimo: para quem chama os bolsonaristas e também os brasileiros pobres, que neste momento aprovam Bolsonaro, de “gado humano”, um aviso. A boiada, quando é brutalmente empurrada para o matadouro, sofre horrores, esperneia, os olhos parecem saltar das órbitas, se mija de pavor. Tenta desesperadamente escapar.

* Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de diversos livros.

Fonte: El País Brasil – Opinião – Quarta-feira, 19 de agosto de 2020 – Publicado às 15h26 (Horário de Brasília – DF) – Internet: clique aqui (acesso em: 24/08/2020).