Sobre a carta dos bispos
Profetismo
incompreendido
Pe. Telmo
José Amaral de Figueiredo*
Biblista e Teólogo
Diocese de Jales – SP
Enquanto alguns,
no Brasil, criticam e menosprezam a manifestação de 152 bispos
brasileiros, na Itália, quem sabe das coisas
elogia e sente,
até mesmo, uma sadia inveja
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DOM PEDRO CASALDÁLIGA Falecido no último sábado, dia 08 de agosto de 2020, em Batatais (SP) - Exemplo maior de bispo-profeta |
Duas frases me inspiram no início desta publicação, vejamos:
«As duas cegueiras caminham juntas:
aqueles que não veem o que acontece, pensam que veem o que não
acontece.»
(Tertuliano: 150-220 – teólogo
da Igreja Latina – Padre da Igreja)
«Se queres ser cego, sê-lo-ás.»
(José Saramago: 1922-2010 –
poeta, escritor, crítico literário –
Prêmio Nobel de Literatura de 1998)
No Brasil, hoje, o que mais vemos são pessoas cegas ou que
preferem ser cegas!
A realidade está aí, diante de todos!
Porém, por pura ideologia, para não dar o braço a torcer,
para não admitir suas más escolhas, para não se humilhar, para esconder seu
ressentimento contra tudo e contra todos... Preferem seguir negando os fatos,
negando a realidade, negando a verdade!
Por isso mesmo, tem toda a razão um ilustre professor de
Filosofia da prestigiosa Universidade Gregoriana de Roma, Rocco D’Ambrosio, presbítero da diocese italiana
de Bari, quando escreve sobre a “Carta ao Povo de Deus”, que veio a público no
último dia 26 de julho:
«152 bispos brasileiros
escreveram uma carta profunda e densa a seus fiéis: uma leitura da situação
sanitária, social, política e institucional de seu país, com grande parresia
(franqueza) e amor. Lê-la é um conforto para o coração e a mente.
Não pude deixar de
pensar no silêncio ensurdecedor dos bispos italianos (com pouquíssimas
exceções) sobre a situação de nosso país e nossas comunidades, neste período
como em outros dramáticos. Torna-se cada vez mais insuportável ouvir
intervenções de pastores que dizem respeito apenas a direitos (missas a serem
celebradas), algumas questões éticas e não outras (os nunca abandonados “princípios
não negociáveis”), privilégios econômicos e assim por diante.
A carta brasileira
respira um ar completamente diferente: amor pelos pobres, os companheiros de
viagem na Igreja e no mundo, meio ambiente, compromisso com a justiça e a paz.
É o ar que reina nas
intervenções do Papa Francisco, que não são “dele”, mas do Evangelho! Mas aqui
na Itália a noite parece muito longa... Deus nos ajude!»
(Fonte: Facebook
– clique aqui).
Diante dessa carta, ouvimos de várias pessoas, inclusive que se
dizem católicas, as mais impensáveis acusações aos bispos que a firmaram,
um verdadeiro linchamento público pelas redes sociais! Eis algumas frases que
encontramos:
* os bispos destilaram ódio contra o presidente da república;
* eles são todos uns comunistas;
* eles são petistas enrustidos;
* eles vão contra a maioria da população brasileira que apoia
o presidente;
* na época em que o PT governava, eles não foram tão críticos
contra quem presidia o país;
* bispo é para cuidar de sua diocese, ficar na igreja, cuidar
só das coisas de Deus;
* é uma “velharada” que não sabe de nada;
* eles estão fazendo política ao invés de cuidar da religião;
* esses bispos não me representam etc., etc., etc.
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ARISTÓTELES |
Penso que as coisas estejam muito, mas muito fora de lugar
nesse tipo de debate e acusações! Não poderia deixar de recordar, aqui, uma
famosa frase do grande filósofo grego Aristóteles (384–322 a.C.):
«O ignorante afirma, o sábio duvida, o sensato reflete.»
Falta aos que criticam a manifestação dos bispos o verdadeiro
sentido do que compete a um bispo da Igreja Católica Apostólica Romana fazer.
E, antes que eu me esqueça, a carta deles nada tem de partidária,
ideológica, ódio, e não foi de crítica destrutiva! Basta ler o comentário,
acima, daquele professor italiano.
Aliás, basta ler essa carta sem as lentes do ódio, do
ressentimento, da ideologia, do fanatismo para se dar conta que ela propõe um
«amplo diálogo nacional» em função do bem comum.
Para
ler a «Carta ao Povo de Deus», assinada por
152
bispos da Igreja Católica, clique aqui
A fim de sabermos o que compete a um bispo católico, nada
melhor do que irmos à fonte das mais importantes, ou seja, ao Concílio
Ecumênico Vaticano II (1962-1965). Primeiramente, todo bispo deve ter uma
“solicitude pastoral” (cf. Lumen Gentium, 23) pela Igreja Universal,
isto é, o bispo não é alguém que se preocupa, apenas e tão somente, com a
porção da Igreja que lhe é confiada ao pastoreio, mas com todo o conjunto do
Povo de Deus. O Concílio é ainda mais claro ao dizer que: «Todos os bispos
devem promover e defender a unidade da fé e da disciplina comum a toda a Igreja
e ensinar aos fiéis o amor do corpo místico de Cristo, especialmente dos
membros mais pobres, dos doentes e dos que sofrem perseguição por causa da
justiça (cf. Mt 5,10). Devem apoiar todas as iniciativas da Igreja,
especialmente no que se refere ao aumento da fé, para que a luz da verdade
plena brilhe para todos os homens» (Idem).
Portanto, os bispos devem ser pessoas interessadas em tudo
aquilo que se passa na Igreja e no mundo. Ao propor a doutrina cristã à
sociedade, o Concílio Vaticano II pede que os bispos «demonstrem a solicitude
maternal da Igreja para com todos os seres humanos, fiéis ou não, cuidando
especialmente dos pobres e dos mais fracos, a quem o Senhor os enviou para
evangelizar» (Christus Dominus, 13). Fica claro, aqui, que a atenção dos
bispos de nossa Igreja deve ser preferencialmente voltada aos mais pobres,
fracos e necessitados. Ora, aquilo que a Carta ao Povo de Deus subscrita
por 152 bispos brasileiros faz é, justamente, ter esse olhar paterno e
misericordioso para com aqueles que mais sofrem com a atual situação de nosso
país.
Algo que precisa ficar claro, entre os membros de nossa
Igreja, é o fato de que não há separação, não há divisão entre a missão da
Igreja e a atuação concreta neste mundo! O Concílio Vaticano II deixa claro
que:
«As alegrias e as esperanças, as tristezas e as
angústias dos homens e mulheres de hoje, sobretudo, dos pobres e de todos
aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as
angústias dos discípulos de Cristo. Não há realidade alguma verdadeiramente
humana que não encontre eco no seu coração»
(Gaudium et Spes, 1).
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CONCÍLIO VATICANO II Uma das sessões plenárias - interior da Basílica de São Pedro (Vaticano) |
Portanto, é uma traição à missão da Igreja, desinteressar-se
pelas tragédias humanas! O ser humano é uma unidade, «corpo e alma, coração e
consciência, espírito e vontade» (Ibid., 3). Tudo aquilo que diz
respeito ao ser humano e à sua dignidade, diz respeito também à Igreja, pois
diz respeito a Deus. Apesar de sua finalidade «salutar e escatológica», que se
realiza plenamente na vida futura, o Concílio reconhece que a Igreja «está
presente aqui na terra, é feita de mulheres e homens que são membros da
sociedade terrena, chamados desde agora a formar, na história, a família dos
filhos de Deus, que deve ir aumentando até a vinda do Senhor» (Ibid.,
40). Cabe destacar, aqui, a expressão «na história», isto quer dizer que a
tarefa da Igreja não é, puramente, «espiritual», como querem alguns! A sua
missão se dá na história, no aqui e agora em que vivemos. As coisas de Deus não
se separam das coisas humanas, pois tudo é de Deus, no sentido de que ele é o
Criador e Senhor de tudo! O Concílio reconhece isso ao afirmar que os fiéis
devem lembrar-se que «em todas as circunstâncias temporais precisam se deixar
inspirar pela consciência cristã, pois nada foge ao domínio de Deus» (Lumen
Gentium, 36 – destaque nosso).
Deixando, por um pouco, o Concílio, tomemos um dos mais
importantes documentos dos bispos latino-americanos e caribenhos: as conclusões
da Conferência Episcopal de Medellín (1968), na Colômbia. Nesse
encontro, aberto pelo Papa Paulo VI, em 26 de agosto de 1968, os bispos
reconhecem que, como «Pastores da Igreja, cabe educar as consciências,
inspirar, estimular e ajudar a orientar todas as iniciativas que contribuem
para a formação do homem. Cabe-nos também denunciar todos aqueles que ao irem
contra a justiça, destroem a paz» (2,20). Portanto, não é estranho à missão dos
bispos, a denúncia daquilo e daqueles que não contribuem para o
respeito à dignidade humana, à promoção da justiça e da paz.
Na Conferência Episcopal de Aparecida (2007), ficou
claro para os bispos participantes, dentre os quais se encontrava Dom Jorge
Mario Bergoglio, o atual Papa Francisco, que: «A pastoral da Igreja não pode
prescindir do contexto histórico onde vivem seus membros. Sua vida acontece em
contextos socioculturais bem concretos» (367). Portanto, não existe uma
pastoral, uma atuação da Igreja que aconteça fora da história, fora do contexto
social, econômico, político, cultural e moral em que vivemos! Repito, não há
como «dedicar-se às coisas de Deus» como se ele atuasse fora a história! Aliás,
a Primeira Epístola de João (4,20) deixa isso bem evidente: «Se alguém disser:
“Amo a Deus”, mas odeia o seu irmão, é mentiroso; pois quem não ama o seu
irmão, a quem vê, não poderá amar a Deus, a quem não vê». Portanto, Deus se
encontra nas pessoas, nos mais pequenos, nos mais fracos, nos mais pobres e não
em um alto e longínquo céu! Se alguém, ainda, tem alguma dúvida a esse
respeito, basta conferir os critérios que são levados em conta para a salvação
ou não de cada ser humano, em Mateus 25,31-46. Nesse texto do Evangelho não se
faz presente nenhum critério religioso, mas, apenas, humano e social!
Afinal, o que importa a Cristo é a humanização do ser humano!
Quanto mais humanos formos, mais cristãos seremos!
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Santuário Nacional de Aparecida - SP Local da "V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e Caribenho" (maio de 2007) |
Se as críticas que os 152 bispos fizeram escandalizaram
algumas mentes sensíveis ou mais fanáticas, o que essas pessoas diriam se
ouvissem a seguinte denúncia:
«Ouvi esta palavra, vacas de Basã, que estais
no monte de Samaria: que oprimis o pobre, maltratais o indigente, que dizeis a
vossos senhores: “Trazei para que bebamos”. Jurou o Senhor Deus por sua
santidade, sim: eis que virão dias sobre vós em que vos levantarão com ganchos
e as que de vós restarem, com arpões» (Amós 4,1-2).
As tais «vacas de Basã», das quais nos fala o profeta Amós
(que atuou no 8º século a.C.), eram as damas da alta classe de Samaria, região
central da Palestina, que levavam uma vida bem provida e luxuosa, como o gado
nos morros do Basã.
Mas, tem mais, vejamos:
«Ai dos que tramam a iniquidade e dos planejam
o mal em seus leitos!
Na luz da manhã o fazem, pois há poder em suas
mãos.
Se cobiçam campos, os roubam; se casas, as
tomam.
Defraudam o proprietário e suas casas, o homem
e sua herança.
Por isso, assim diz o Senhor: Eis que tramo
contra este clã o mal.
Dele não podereis desviar vossos pescoços nem
caminhareis erguidos,
pois este tempo é mau» (Miqueias 2,1-3).
O profeta Miqueias (que atuou cerca de 740-700 a.C.)
denuncia, também, os maus governantes de sua época, além daqueles que têm poder
econômico, como no texto anterior:
«Eu disse: “Ouvi, chefes de Jacó e governantes
da casa de Israel:
Não cabe a vós conhecer o direito?
Vós que odiais o bem e amais o mal, que roubais
a pele deles e a carne de seus ossos”.
Eles comem a carne de meu povo, a pele deles,
arrancam, seus ossos, eles rompem;
e os talham como carne na panela, como carne no
meio do caldeirão.
Então clamarão ao Senhor e ele não lhes
responderá.
Esconderá deles sua face, naquele tempo,
porque, em suas obras, fizeram o mal»
(Mq 3,1-4).
Acham, ainda, pouco?! Então, mais um exemplo, desta vez do
profeta Isaías, que atuou nos reinos do norte, conhecido como Israel, e
do sul, conhecido como Judá, entre os anos 740 a 700 a.C.:
«Ai dos que inventam leis injustas, dos
escribas que referendam a injustiça
para oprimirem os pobres no julgamento.
Eles violentam a causa dos humildes do meu
povo,
fazendo das viúvas suas presas e roubando dos
órfãos.
Que fareis no dia do ajuste de contas, da
calamidade que vem de longe?
A quem ireis procurar como refúgio, e onde
guardareis vossa riqueza?
Pois tereis de vos curvar como os cativos, e
haveis de cair entre os mortos. Com tudo isso, porém, a sua ira não se acalmou,
e a sua mão continua erguida» (Is 10,1-4).
Poderíamos seguir citando dezenas de outras passagens
bíblicas; nos firmemos nessas, apenas, como exemplo. É importante, entretanto,
frisar que Jesus de Nazaré, em sua atuação e pregação foi reconhecido,
acima de tudo, como um PROFETA (cf. Mt 13,52.57; 14,5; 16,14; 21,11.46; Mc
6,4.15; Lc 4,24; 7,16; 9,8.19; 13,33; 24,19; Jo 4,19.44; 6,14;
7,40; 9,17; At 3,22.23; 7,37). E
a missão profética consiste, basicamente, em anunciar e denunciar
aquilo que é a Vontade de Deus ou aquilo que a contraria: idolatrias,
injustiças, exploração do pobre e do mais fraco, leis injustas, violências,
culto exterior sem o envolvimento do coração humano, perversões,
desonestidades, adultérios etc.
Portanto, a atitude dos 152 bispos brasileiros está,
totalmente, de acordo com a vocação e a missão que lhes confiou a Igreja e
Jesus Cristo, como sucessores legítimos dos Apóstolos.
Interessante observar, que o Concílio Vaticano II já nos
advertia sobre o perigo de uma visão distorcida da política dividir a
sociedade, dividir as pessoas, provocar divisão na Igreja! Sim, isso há 55 anos
atrás!
«Ao se reunirem na Igreja, “os fiéis não se
diferenciam das outras pessoas nem pelo governo a que estão sujeitos, nem pela
língua, nem pelas instituições políticas”. Vivem por isso para Deus e para
Cristo, segundo as maneiras de ser e os costumes honestos de seu próprio povo.
Como bons cidadãos, cultivam o amor da pátria, verdadeiro e eficaz, mas evitam
absolutamente o nacionalismo exacerbado e o desprezo de outras raças,
empenhados que estão na promoção do amor universal para com todos os seres
humanos» (Ad Gentes, 15).
Assim sendo, nós, católicos e cristãos, não podemos nos
dividir, rachar nossa própria Igreja, desrespeitar nossos pastores, os bispos,
devido às diversas posturas ideológicas e políticas incongruentes com o
Evangelho! Pois, nossa meta é a construção do Reino de Deus, desde agora, até a
eternidade!
Finalizo, trazendo presente um belo texto de nosso Concílio
Vaticano II, mais oportuno que nunca, em vista do atual momento que vivemos.
Prestemos atenção ao que nos disse os bispos do mundo inteiro, reunidos em sua
mais importante assembleia:
«O respeito e o amor são devidos mesmo àqueles
que pensam e agem de maneira diversa da nossa na sociedade, na política e na
religião. Quanto melhor compreendemos, humana e caridosamente, seu modo de
pensar, mais fácil se torna o diálogo com eles.
Amor e bondade não podem nos tornar
indiferentes à verdade e ao bem.
Pelo contrário, o amor leva os discípulos de
Cristo a anunciarem a verdade salvadora a todos os seres humanos. Mas é preciso
sempre distinguir entre o erro e a pessoa que erra, cuja dignidade deve ser
sempre respeitada, mesmo quando adere a ideias religiosas falsas ou pouco
exatas» (Gaudium et Spes, 28).
Que todos saibamos divergir, mas sem nos ofender;
discordar, mas sem nos machucar;
termos nossas simpatias políticas, mas sem fanatismo;
nos informarmos, mas sempre com senso
crítico.
Pois a verdade, jamais, está de um só lado!
Absoluto, neste mundo, somente Deus é!
Absolutizar o que é relativo, é idolatria!
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* Bacharel em Teologia
pela Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção (São Paulo –
SP), Filosofia (Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto – SP),
Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma
com cursos realizados na École Biblique et Archéologique Française de Jérusalem
– Israel), Doutor em Literatura Hebraica pela FFLCH-USP (São Paulo –
SP). Ex-presidente da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB), membro
da Society of Biblical Literature (SBL) e da Associazione ex-alunni/e del
Pontificio Istituto Biblico.
Fonte: Instituto Humanitas Unisinos - Notícias - Terça-feira, 11 de agosto de 2020 - Internet: clique aqui (acesso em 11/08/2020).
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