Vida que segue???
Crônica
das 100 mil mortes anunciadas
pela
Covid-19
Antonio Prata
Escritor e Roteirista
E seguimos
contando os corpos
que não podemos
velar
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Uma das covas da quadra 14 do cemitério São Luiz, em São Paulo, capital, onde foram enterradas a maioria das vítimas da Covid-19 |
Cem mil mortos: ontem, hoje ou amanhã. Cem mil mortos e
seguimos contando os corpos que não podemos velar. Mais de mil por dia.
Dez vezes cem, da manhã à noite. Cem vezes mil, de março a agosto.
Era óbvio, mas segue sendo surpreendente
que um
presidente eleito hasteando a bandeira da morte
nos entregue,
vejam só, a morte.
Prometeu 30 mil cadáveres para resolver o Brasil, nos
entregou três vezes isso em meses: e seguimos contando os corpos:
* Cem mil de Covid,
* outras dezenas de milhares de bala,
* de acidente de carro,
* de burrice,
* de séculos de descalabros culminando nos desvarios de um ser
humano decrépito apavorado com a sombra da própria masculinidade. Um eunuco
existencial arrotando priapismo [= exagero do apetite ou da excitação sexual].
O erro da ditadura foi ter torturado e não matado, ele disse. Agora nos tortura e nos mata
diuturnamente. Contra o delírio de um complô mundial de foice e martelo,
oferece a foice, somente, ceifando. Nossa bandeira jamais será vermelha.
Claro que não. Será preta. Já é preta. Não como Preta Gil ou “Preta, Pretinha”
ou “um negro norte-americano forte”. Preta como a noite, a floresta
carbonizada por Ricardo Salles, os dedos dos pés dos mortos por asfixia na
“gripezinha”.
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James Alan, encarregado de quadra no Cemitério da Vila Formosa, em São Paulo, capital Foto: Werther Santana / Estadão |
Atrás de mim, na televisão, Caetano Veloso canta cercado
pelos filhos. “Tigresa”, “Um Índio”, “Pulsar”, “Odara”. Tudo é “divino,
maravilhoso”, mas me soa a um réquiem para um país defunto, de
projetos defuntos, de esperanças defuntas, com uma autoimagem defunta.
Parece o “Canto do povo de um lugar” há muito extinto. “O sonho acabou, quem
não dormiu em sleeping-bag nem sequer sonhou”. “A tristeza é senhora”.
Que país é esse em que vivemos no dia 9 de agosto de 2020? Que gente é essa que se cala diante
da morte do João Gilberto, manifesta pesar por MC Reaça e desdém pelo
falecimento desnecessário e criminoso de 100 mil?
“Careta, quem é você?/ Que não sentiu
o suingue de Henry Salvador/ Que não seguiu o Olodum balançando o Pelô/ E que
não riu a risada de Andy Warhol/ Que não, que não”.
Que não, que não, que não, que não. Imbecis. Assassinos.
Burros. “Coragem é poder dizer sim”.
Assisto à live do Caetano como se fosse o “Sermão da
Montanha”. Aguardo um norte. Uma revelação. Mas quando ele canta as
incompetências da América católica (ou neopentecostal), onde “cada paisano e
cada capataz”, que “com sua burrice fará jorrar sangue demais” e “sempre
precisará de ridículos tiranos”, dói. E quando canta as maravilhas do que já
aspiramos a ser, do que já pudemos e poderíamos ser — “os hermetismos pascoais,
os tons, os mil tons, seus sons e seus dons geniais” — dói ainda mais.
Hermeto tocando chaleira. Garrincha driblando os Joões. Os
jardins do Burle Marx. A utopia da miscigenação. Nelson Rodrigues. Pixinguinha.
Drummond. Grupo Corpo. Machado de Assis. Luiz Gonzaga. Floresta. Água. Sol.
Mar. Peixe. Fruta. A Semana de 22. A Tropicália. Tom e Vinícius. Elis. O recuo
da bateria na Marquês de Sapucaí. Tudo isso parece ter sido eclipsado por um
vespertino policialesco do SBT. Chacrinha perdeu pro Sílvio Santos. Pegou fogo
no museu.
Cem mil mortos: ontem, hoje ou amanhã. Cem mil mortos e
seguimos contando os corpos que não podemos velar. Mais de mil por dia. Dez
vezes cem, da manhã à noite. Cem vezes mil, de março a agosto. Caetano canta
“Vejo uma trilha clara pro meu Brasil, apesar da dor”. Espero que esteja
certo. Que possamos sonhar novamente com “Alto astral, altas transas, lindas
canções/ Afoxés, astronaves, aves, cordões/ Avançando através dos grossos
portões”.
Um minuto de silêncio aos que se foram.
Amor e coragem aos que ficam.
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