«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

quarta-feira, 20 de setembro de 2017

O brasileiro está mudando de caráter

Entrevista com Luis Fernando Verissimo

Flavio Ilha
ExtraClasse
15-09-2017

Imaginar um cara como o Bolsonaro com os índices de intenção de votos
que ele tem é realmente preocupante
LUIS FERNANDO VERISSIMO

O cidadão Luis Fernando Verissimo, 81 anos, nascido em Porto Alegre no dia 26 de setembro de 1936, está oficialmente livre desde 1º de setembro de 2017. Demitido da RBS depois de 40 anos de contribuição quase diária, o escritor, cronista, músico, desenhista e pensador tem agora um imenso desafio pela frente: manter atualizado o recente contrato de comodato que firmou com a Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).

O acervo de textos, rascunhos, traduções, cartuns e outras criações está sendo transferido para a biblioteca do novíssimo campus de Porto Alegre [da Unisinos]. Tarefa difícil, já que o acervo é composto por 382 livros, entre títulos do autor, antologias e edições estrangeiras, mais de mil títulos de periódicos, além de troféus, quadros, esculturas e outros objetos recebidos pelo escritor como forma de homenagem. Difícil porque Verissimo ainda está em pleno exercício produtivo. E também porque não pretende morrer tão cedo.

“Eu acho que o acervo devia ser apenas de obra acabada, o que evidentemente não é o caso. Então, digamos que seja um meio acervo de um autor meio vivo”, brinca Verissimo com sua ironia contumaz. Formalizado na última quarta-feira, 13 de setembro, o acervo irá ocupar a partir de agora, segundo Verissimo, “um cantinho” da biblioteca da Unisinos e estará disponível para consulta por estudantes, pesquisadores e público em geral.

Com recorrentes problemas de saúde desde meados de 2013, que lhe renderam algumas semanas em UTIs e muitas horas em salas de cirurgia, o escritor continua sagaz e extremamente crítico, especialmente com os rumos do Brasil.

Elegante e discreto, diz que sua demissão da RBS – depois de uma ruidosa homenagem pelos seus 80 anos, comemorados em 2016 – foi uma decisão administrativa. Mas sabe que, na prática, foi o último laço profissional que o ligava ao Rio Grande do Sul – descoberto pela L&PM, há anos ele publica seus livros pelo selo Cia. das Letras [São Paulo]. “Hoje, a única relação do pai com o Rio Grande do Sul é apenas morar em Porto Alegre”, lamenta a filha Fernanda, que junto com a esposa Lucia ajuda a cuidar do acervo do cronista.

A demissão da empresa que ajudou a revela-lo nacionalmente e se tornar um best-seller acabou determinando a interrupção de projetos que tomavam tempo demais do escritor, como as tiras semanais da Família Brasil e os textos semi-ficcionais publicados aos domingos no jornal O Estado de São Paulo. “Eu realmente estava trabalhando com coisa demais, então foi só para trabalhar menos. Como fui demitido da Zero Hora, não tinha mais sentido manter só para um jornal”, diz nesta entrevista para o ExtraClasse, realizada na sexta-feira, 15, no escritório intocado que foi do pai, o romancista Erico Verissimo.

Na conversa, Verissimo relatou um pouco sua relação com a escrita, as preocupações com a onda reacionária que toma conta do país e o arrependimento de não ter seguido a carreira de músico – o escritor é um saxofonista amador desde os 16 anos. “Eu lamento não ter me aprofundado na música porque hoje eu preferiria ser músico do que qualquer outra coisa”, confessou. Divertido, paciente, com sua conhecida parcimônia com a palavra falada, Verissimo chegou inclusive a revelar qual livro seu poderia ser queimado em praça pública pelo MBL – quando esse momento chegar.

Eis a entrevista.

Por que essa ideia de ceder seu acervo a uma instituição universitária?

Luis Fernando Verissimo: A ideia do acervo é justamente essa: pesquisadores, estudantes e qualquer pessoa se informar sobre o autor, fazer pesquisa, essas coisas. Está ali para quem quiser ver. Então, o acervo vai ser um cantinho ali da biblioteca da Unisinos (no campus de Porto Alegre). Ficou simpático. Por enquanto reunimos material físico, mas é uma discussão que temos de ter. De vários anos para cá os textos são digitais, não há mais originais impressos. E muito material está só no formato digital, nunca foi para uma publicação física.

Começa em 1969?

L. F. Verissimo: Sim, com as primeiras publicações na Zero Hora. Algumas coisas de publicidade, também, muitos anúncios publicados, com autoria. Roteiros da TV Pirata, da Comédia da Vida Privada. E vai para lá também um exemplar de cada primeira edição, as traduções em russo, inglês, francês, italiano, coreano, sérvio. Tem troféus, presentes.

Os horóscopos não?

L. F. Verissimo: Não, acho que não (risos). Tem muita ilustração, também. Campanhas da Ipiranga, da época da (agência) MPM. Coisas que a Lúcia guardou ao longo do tempo. Tem muito rascunho, muitos papéis avulsos. Frases. Muitos desenhos, geralmente de figuras humanas. Mas nada feito para usar em textos, é só passatempo mesmo. Enquanto se está pensando sobre que escrever, vou desenhando. Nesse caso, apelo muito para o jogo da paciência também. Mas isso não está indo para o acervo (risos). A tesoura da Lúcia é incrível.

Era hora de fazer isso?

L. F. Verissimo: Sim, estava na hora. Todo esse material estava guardado aqui em casa, numa catalogação caseira, doméstica. A ideia da Unisinos, desde o início, há cerca de dois anos, era que o acervo ficasse em Porto Alegre. Viesse junto com a abertura do novo campus, o que acabou ocorrendo. A ideia é de o acervo ser usado por diferentes áreas, o que me agrada.

Qual é a sensação de virar um acervo?


L. F. Verissimo: Eu acho que o acervo devia ser a obra acabada, o que evidentemente não é o caso (risos). A minha biblioteca pessoal naturalmente não vai para lá, o que é um elemento importante de pesquisa, saber quem me influenciou, o que eu li. Então, digamos que seja um meio acervo de um autor meio vivo (risos). Mas não vou reclamar, não.

Teus livros têm anotações? Ou páginas dobradas nos cantinhos.

L. F. Verissimo: Anotações não. Mas páginas dobradas nos cantinhos têm bastante. Só que às vezes, como não tem anotação, esqueço por que marquei aquela página. (risos).

 Como lidar com um volume tão extraordinário de informação, necessário ao teu ofício?

L. F. Verissimo: O grande problema é que esse ofício, de escrever sobre o que está acontecendo de fato, não me permite mais ler livros, literatura de ficção. Faz anos, nem sei quantos, que não leio um livro de ficção inteiro. Apenas trechos esparsos. O prazer de ler, que me levou a esse caminho, ficou de lado. Leio muita revista, muito ensaio, jornais estrangeiros.

Isso te incomoda?

L. F. Verissimo: Sim, porque perdi o prazer da leitura descompromissada. Estou perdendo muita literatura boa, de novos autores. Conheço muito pouco do que se produz atualmente. E lamento muito não ter esse tempo para autores novos.

Tu achas que a tua primeira crônica (publicada em abril de 1969) já era uma credencial do que serias dali para a frente? As tuas características principais já estão ali.

L. F. Verissimo: Eu acho que sim. Eu comecei muito tarde, então já tinha lido muito durante toda a juventude. Nunca tinha escrito nada mas, como tinha lido bastante, sabia como se fazia. Quando comecei eu já sabia, estava formado.

 Nunca ensaiaste nada? Nunca escreveste para ti mesmo?

L. F. Verissimo: Não, nunca. Nunca me vi como escritor, nem como jornalista. Tinha apenas algumas traduções, publicadas na (revista) Mistério Magazine. Nem lembro os autores, mas basicamente americanos e ingleses, de suspense, terror. Mas o fato de sempre ter sido um leitor voraz, quando comecei já conhecia os truques todos.

E os cartuns?

L. F. Verissimo: Sempre gostei muito de quadrinhos, então comecei a variar entre texto e cartum. Especialmente nas colunas de segunda-feira, em que eu fazia a crônica do futebol do domingo em desenho. Bonequinhos dialogando sobre os jogos do domingo.

Quem te influenciou nessa área?

L. F. Verissimo: Principalmente Saul Steinberg (1914-1999). Meu desenho era muito rudimentar, não tinha acabamento. Fazia com canetinha mesmo, em qualquer papel. Cheguei a fazer um curso de desenho com o Glênio Bianchetti (1928-2014), desenho, pintura, trabalhávamos com modelo vivo, essas coisas. Por um ano mais ou menos. Mas não passou disso. Nunca fiz uma tela.

E o fim da Família Brasil?

L. F. Verissimo: Pois é. Eu realmente estava trabalhando com coisa demais, então foi só para trabalhar menos. Como fui demitido da Zero Hora, não tinha mais sentido manter só para um jornal (O Estado de São Paulo).

Como foi esse episódio?

L. F. Verissimo: Foi um processo normal. Apenas deixei de ter vínculo com a empresa, agora eles compram meu material da Agência Globo. Foi uma decisão administrativa, estão fazendo muito isso com os velhos, que têm salários mais altos. Mas não ficou nenhum trauma, não.

Tem algum livro novo sendo organizado?

L. F. Verissimo: A Cia. das Letras está organizando um volume de crônicas que estão sendo selecionadas pela (roteirista e escritora) Adriana Falcão, que deverá sair até o final do ano. Basicamente com as crônicas mais ficcionais, publicadas aos domingos no Estadão. As crônicas sobre política atualmente perdem a atualidade com muita rapidez.

Como estás acompanhando a conjuntura política?

L. F. Verissimo: A novidade é essa nova direita, que sempre existiu, mas está mais evidente agora. É uma onda de reacionarismo que me preocupa muito. Imaginar um cara como o [Jair] Bolsonaro com os índices de intenção de votos que ele tem é realmente preocupante.

Já foste alvo de alguma agressão ou ameaça?

L. F. Verissimo: Recebo muita carta desaforada, dizem para eu viver em Cuba, me chamam de comunista, uma vez até me mandaram viver na Coreia do Norte! Seria uma experiência muito boa. Quer dizer, boa não sei, mas pelo menos diferente (risos). Eu não dou bola, é claro.

Alguma ameaça?

L. F. Verissimo: Só na candidatura do Collor (em 1989). Me mandaram uma carta ameaçando meus filhos, que sabiam da rotina deles, iam atacar e tal. Mas não fizeram nada. O tom de agressividade subiu nos últimos meses, é verdade, mas não chega ao extremo da ameaça violenta.

Qual livro teu colocaria à disposição dessa nova direita para que seja queimado em praça pública, quando chegar o momento?

L. F. Verissimo: (risos) Tem um livro meu com crônicas bem políticas, A Versão dos Afogados (L&PM, 1994), que imagino que eles gostariam de queimar. Está meio desatualizado, mas acho que isso não fará muita diferença (risos).

E a tua relação com a ficção?

L. F. Verissimo: A quase totalidade de meus romances foi feita por encomenda, só Os Espiões (2009) que partiu de uma ideia própria, achei que era hora e fiz. Ficou direitinho. Mas meu preferido é Borges e os Orangotangos Eternos (Cia. das Letras, 2000), que é um pouco melhor do que os outros. Não tenho, de verdade, grandes pretensões literárias.

Por escrever entretenimento?

L. F. Verissimo: É, acho que sim. No Brasil é uma literatura considerada não muito respeitável, por isso os autores relutam em se dedicar a ela. Como não busco respeito… (risos). Mas é um gênero que precisa existir, até para a sobrevivência do mercado editorial.

Como esperas contribuir para que novos leitores entendam esse período da história brasileira?

L. F. Verissimo: Meu trabalho é testemunho desse tempo, isso pode ser lido em todos os cronistas. Quem quer saber como era o Brasil nos anos de 1960 vai ler Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Antônio Maria. Se eu puder fazer isso também, estará bom.

Que tipo de testemunho acha que deste?

L. F. Verissimo: Nós falamos há pouco sobre essa nova onda reacionária, coisas que hoje são preocupantes que há algum tempo, pouco tempo, não eram. Apesar desse conflito social no Brasil ser permanente. O que mudaria no meu jeito de ver a realidade seria um crescimento nesse jeito de ação reacionária evidente e preocupante.

Na tua opinião, não para por aí?

L. F. Verissimo: Acho que não para. Principalmente por essa desmoralização crescente do Congresso e da política em geral, isso motiva as pessoas que imaginem a solução num governo de força. Não sei se é inevitável, mas é uma ameaça real. Um perigo. Quando se poderia esperar tanta nostalgia da ditadura, mesmo sabendo de tudo que aconteceu? Isso é surpreendente. Comecei em plena ditadura, no governo do general Médici, então a gente já sabia dos limites. Sabia quem citar e quem não citar. A censura era implícita, havia autocensura, e eu tentava escrever nas entrelinhas mas às vezes nem eu entendia o que queria dizer. (risos)

Temes a volta da censura?

L. F. Verissimo: Acho que isso é possível, sim. Eu me preocupo com isso. Há uma ameaça e uma tendência possível de ser notada aí.

E o que achas do Movimento Brasil Livre (MBL)?

L. F. Verissimo: Começa com a ironia do próprio nome: Brasil Livre. Livre de quê? É só uma das manifestações do que pode nos esperar no futuro. Esse tipo de pressão, esse tipo de censura, tem até características paramilitares, o que preocupa até a imprensa internacional.

O brasileiro deixou de ser aquele homem cordial do Sergio Buarque de Holanda?

L. F. Verissimo: Quando a gente fala no perigo desse crescimento da direita está se referindo a isso, que não sei aonde vai nos levar. Certamente está havendo uma mudança no caráter do brasileiro, na personalidade comum do brasileiro. Estamos nos transformando, para continuar na comparação que você fez, no brasileiro selvagem. Acho que estamos ficando mais intolerantes.

Por quê?

L. F. Verissimo: Em parte em razão desse desencanto com a política, culminando no desencanto com o PT. Foi uma promessa que apareceu, mas que, no entanto, degringolou. Não sei se é para a gente perder a esperança no PT ou ainda não, se esse partido pode nos dar algum tipo de esperança, mas o fato é que houve um acúmulo de desencanto que culminou no que estamos vivendo.

Tu és um desencantado com o PT?

L. F. Verissimo: Um pouco, sim. Nunca fui um ativista, um militante, mas tinha simpatias que nunca escondi. Mas nunca fui personalista com o Lula, por exemplo, embora reconheça que é uma figura admirável.

Como te defines politicamente?

L. F. Verissimo: Eu me defino como um humanista. Meu pai se definia como um socialista democrático, o que me parece adequado para mim também: contra qualquer tipo de totalitarismo, inclusive de esquerda.

Quando começaste, em 1969, imaginavas ter a carreira que teve no jornalismo e na literatura?

L. F. Verissimo: De forma nenhuma, foi tudo acontecendo, sem planejamento. Como minha escrita: quando começo a pensar em um assunto, muitas vezes descubro o que penso sobre ele ao longo da escrita.

É muito difícil?

L. F. Verissimo: Varia muito. Mais difícil é começar. Estabelecer um tom. Uma amarrada final também é difícil. Mas às vezes vem com facilidade, não tem muita regra.

Usas muito o senhor Google?

L. F. Verissimo: Uso bastante. Eu sempre parto do princípio de que ele sabe o que está dizendo, então eu confio nele. Temos uma relação saudável. (risos)

Tens metodologia?

L. F. Verissimo: Escrevo sempre para ser publicado, nunca para deleite próprio. Só com esse foco. Nunca fiz isso, de escrever para mim. A diferença é que eu escrevia muito mais no passado, tinha mais volume. Não sei se fiquei mais conciso ou mais preguiçoso, mas meu texto diminuiu bastante. (risos)

Então, não há prazer em escrever?

L. F. Verissimo: Concordo com o que diz o Zuenir Ventura, que não gosta de escrever, gosta de ter escrito. O ato em si não é muito prazeroso, não. Às vezes, não se tem a mínima ideia do que escrever, mas é necessário, é um modo de vida. Nesse sentido, não é uma coisa que dê muito prazer. Mas ler o que escrevi e gostar do que escrevi compensa, mostra que valeu a pena.

E a música?

L. F. Verissimo: Quando aprendi a tocar saxofone, com 16 anos, minha ideia era brincar com o instrumento. Nunca pensei em me profissionalizar, apesar de ter aprendido a tocar com partitura e tudo mais. Com o tempo esqueci, embora tenha eventualmente tocado em conjuntos profissionais. Eu até lamento não ter me aprofundado na música porque hoje eu preferiria ser músico do que qualquer outra coisa.

É mesmo? Por quê?

L. F. Verissimo: É. Um pouco pela minha admiração pelo jazz, por tudo que o jazz proporciona, a improvisação, a criação instantânea. Me parece bem mais completo que a criação literária. Mas em algum momento da vida perdi a oportunidade de me aprofundar, de dominar o instrumento. O que me deu mais prazer nesse tempo todo foi, com certeza, a música.

Na tua opinião, para onde vai a literatura com essa tendência de textos cada vez menores?

L. F. Verissimo: Para falar a verdade, não tenho a menor ideia! (risos)

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Sábado, 16 de setembro de 2017 – Internet: clique aqui.

terça-feira, 12 de setembro de 2017

Por que somos pobres ? ? ?

Afinal, por que é que o Brasil nunca deixa
de ser pobre?

Felippe Hermes

Porque o único caminho para enriquecer é diluir a concentração
de poder político-econômico. E o que fazemos é justamente o contrário 
Sem esgoto e sem água tratada, boa parte da população brasileira vive sem as mínimas condições de saúde

Mais de 40 milhões de brasileiros moram em residências sem acesso a água potável, mesmo estando no país com as maiores reservas de água doce do mundo. Em um terço dos 1.444 municípios do semi árido nordestino, mais de 10% das crianças sofre de desnutrição – no país que mais produz proteína animal no planeta.

Mergulhando um pouco mais na história brasileira, não é difícil perceber que riquezas naturais e qualidade de vida para a população não são necessariamente coisas que andam lado a lado. Nosso imenso potencial tem feito justamente o contrário, nos ajudando a empacar em uma nada agradável 80ª posição mundial quando o assunto é a riqueza produzida por cada cidadão. Não faz sentido. Lendo a próxima página, no entanto, você vai entender os porquês.

Primeiro, vamos rebobinar a fita da história até o século 17. Na época, o Brasil e as colônias britânicas que viriam a formar os Estados Unidos já representavam polos antagônicos na economia mundial, mas na posição inversa da de hoje. 
No Brasil-Colônia e Império, o país vivia do plantio e colheita de um só produto,
primeiro a cana, depois o café

Por aqui, produzíamos a maior riqueza conhecida na época, a cana de açúcar, que foi capaz de tornar Recife uma das cidades mais ricas do mundo. Nas colônias da América do Norte não havia um clima propício para a cana. A solução, então, foi improvisar. Primeiro, elas se tornaram um grande fornecedor de alimentos e animais de tração para as ilhas caribenhas que disputavam a produção de cana com o Brasil – já que nessas ilhas todo o território se destinava à produção de açúcar.

Aí que as coisas começaram a se desenhar. Enquanto nós e os caribenhos caíamos de cabeça na monocultura de cana, a América do Norte usava o ouro que recebia das Antilhas para criar variedade na agricultura, na pecuária, na pesca. Tudo num círculo virtuoso capaz não só de distribuir melhor a riqueza, como de criar mais riqueza. Da necessidade cada vez maior de barcos de pesca, por exemplo, surgiu uma indústria naval que logo passaria a vender embarcações para as potências europeias.

No Brasil, acontecia justamente o contrário. A cana enriquecia meia dúzia de senhores de engenho, e essa renda permanecia concentrada. Em vez de regar outros setores da economia, acabava reinvestida em mais monocultura. E seguimos assim até o século 20. Agora, o café era a nova cana. Fora isso, pouco havia mudado.

A concentração de renda na economia fomentou a concentração de poder na política. Nisso, a república brasileira consolidou-se como uma sociedade extrativista, na qual esse pequeno grupo se alimentava do poder político para manter inabalado seu poder econômico, dificultando qualquer forma de inovação ou de empreendedorismo.

Lá fora, por outro lado, a diversificação dos negócios diluiu tanto o poder econômico como o político, e a inovação ganhou um papel relevante. “Inovação”, aliás, já virou uma palavra vazia, de tão mal usada. Então vamos aqui para um exemplo clássico. No Brasil, construímos nossas ferrovias com o intuito de escoar o café. Nos Estados Unidos, a malha ferroviária desenvolveu-se num primeiro momento para transportar a produção de alimentos. Num segundo, para escoar petróleo, popularizado por John D. Rockfeller na segunda metade do século 19 (ainda como fonte de energia para lâmpadas de querosene, não para carros). E aí veio uma inovação de fato: tendo de pagar cada vez mais aos donos das ferrovias, John D. Rockfeller decidiu construir oleodutos. Aos donos das ferrovias, coube buscar novos clientes. E aí aconteceu uma inovação ainda mais importante.

As ferrovias acabaram fomentando o comércio à distância, que também estava nascendo no final do século 19. Resultado: cem anos atrás, um americano típico já conseguia mobiliar a casa toda comprando produtos por catálogos, mesmo que morasse em uma cidade afastada. Numa cajadada só, isso bombou a demanda e a oferta de todo tipo de produto. Ou seja: ao mesmo tempo em que atiçava o comércio, isso diluía ainda mais o poder econômico – e, com ele, o poder político.

Como virar o jogo?

Para que a sua economia cresça você precisa unir:
* trabalho (população),
* capital (máquinas, terras, equipamentos) e
* tecnologia (educação).
A concentração de poder econômico e político joga contra os dois últimos fatores. É que ela gera aquilo que o pessoal da economia chama de “instituições extrativistas”. Estamos falando em leis escritas por quem se beneficia dessas mesmas leis, em governos que, via impostos, fazem com que os pobres banquem privilégios dos ricos, em uma educação que só atende um pequeno grupo de privilegiados.

Tais instituições aniquilam a educação e dão um tiro de carabina no empreendedorismo. Ou seja: o capital continua fixo nas mãos da meia dúzia de sempre, além de perdermos a capacidade de produzir tecnologia.

Na prática, isso explica por que um americano médio produz quatro vezes mais riqueza que um brasileiro, ou por que alcançaremos apenas em 2026 a mesma produtividade que cada cidadão americano tinha no início da década de 1960.

Pudera. Em termos proporcionais ao PIB, investimos três vezes menos em educação básica do que a média dos países ricos, ao mesmo tempo em que gastamos mais do que a média em ensino superior. Na prática, seis em cada dez alunos que entrem hoje na Universidade de São Paulo (USP) estão entre os 20% mais ricos da população.

Ainda que de maneira invisível, fomentamos a manutenção da desigualdade e o extrativismo de renda de formas que vão bem além do furto que você sofre todos os dias ao pagar impostos para financiar Joesley Batista e cia.
Colheita de soja - continuamos a ser exportadores de produtos agrícolas e de baixo custo

Vendedores de matéria-prima

Tudo isso ajuda a explicar por que os grandes produtos de exportação do Brasil sejam:
* soja,
* minério de ferro,
* petróleo cru,
* carne,
* café e
* açúcar,
enquanto os dos Estados Unidos são:
* aviões,
* medicamentos,
* circuitos integrados.
Ainda que não nos consideremos mais um país agrário, mantemos instituições idênticas às dos nossos tempos de colônia, moldadas para perpetuar problemas.

Enquanto a nossa EDUCAÇÃO for uma piada;
nossos IMPOSTOS, uma forma de transferir renda dos pobres para os ricos,
e boa parte dos NOSSOS POLÍTICOS, meros capachos de grandes empresas, não vai ter outro jeito: seguiremos na mesma,
como um país desigual que vive para exportar matéria-prima.

Vai um caldo de cana?

Fonte: Super Interessante – Essencial – Edição 378 – Agosto de 2017 – Págs. 12-13 – Internet: clique aqui. 

sábado, 9 de setembro de 2017

23º Domingo do Tempo Comum – Ano A – Homilia

Evangelho: Mateus 18,15-20

Naquele tempo, Jesus disse a seus discípulos:
15 «Se o teu irmão pecar contra ti, vai corrigi-lo, mas em particular, a sós contigo! Se ele te ouvir, tu ganhaste o teu irmão.
16 Se ele não te ouvir, toma contigo mais uma ou duas pessoas, para que toda a questão seja decidida sob a palavra de duas ou três testemunhas.
17 Se ele não vos der ouvido, dize-o à Igreja. Se nem mesmo à Igreja ele ouvir, seja tratado como se fosse um pagão ou um pecador público.
18 Em verdade vos digo, tudo o que ligardes na terra será ligado no céu, e tudo o que desligardes na terra será desligado no céu.
19 De novo, eu vos digo: se dois de vós estiverem de acordo na terra sobre qualquer coisa que quiserem pedir, isto vos será concedido por meu Pai que está nos céus.
20 Pois onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome eu estou ali, no meio deles.»

JOSÉ ANTONIO PAGOLA & JOSÉ MARÍA CASTILLO

SOZINHO, ENTRE OS DOIS

São muitos os fatores que constantemente deterioram nossas relações pessoais dentro da família, entre vizinhos e companheiros de trabalho ou na convivência diária.

A comunicação fica facilmente bloqueada, sobretudo quando constatamos que o outro atuou de maneira injusta ou desleal. Sentimo-nos como que justificados para excluí-lo de nossa aceitação amistosa e fechar-nos em um juízo destruidor.

Posto que o outro atuou mal, não consideramos necessário analisar nossa postura. Parece-nos «normal» retirar nossa amizade e bloquear nosso olhar e nosso coração.

Assim, sem nos darmos conta, nossas relações se empobrecem, afogadas pela decepção, pelas acusações inflexíveis e tantas condenações.

Não é este o caminho correto para crescer. Jesus nos anima a adotar uma postura positiva, orientada para salvar a relação com o irmão, sem buscar seu desprestígio ou sua condenação, mas unicamente o BEM. Surpreendentemente, Jesus indica que é o «ofendido» aquele que deve tomar a iniciativa para facilitar a reconciliação.

Essa postura positiva exige um coração simples e grande, pois se trata de aproximar-nos daquele que agiu mal, sem julgamentos humilhantes nem condenações definitivas, mas movidos pelo desejo interior de paz e de reconciliação sincera.

De pouco serve condenar a partir de uma atitude de superioridade moral ou a partir de uns princípios rígidos e inflexíveis, se falta esta atitude interior de acolhida amistosa.

É necessário escutar o outro sem pressa, dar-lhe possibilidade de «explicar-se», deixar que nos comunique sua maneira de viver e sentir tudo aquilo, sem que se veja humilhado ou rejeitado.

Não basta dizer: «Sim, já lhe conheço», «Para que vamos conversar se tudo continuará igual?», «Como se não soubesse que tipo de pessoa é», «Decepcionou-me para sempre», «Nada mais será como antes».

Todos cometemos falhas e equívocos. Todos temos momentos maus e necessitamos poder começar de novo, contar com uma nova oportunidade. Deve-se seguir crendo no amigo, na esposa, no companheiro ainda que devamos ser críticos para ajudar-lhe a sair de seu erro.

Quantos matrimônios e quantas relações de amizade teriam seguido crescendo se tivesse existido este diálogo clarificador e construtivo «a sós, entre os dois», como diz o Evangelho.
[...]

Lendo os evangelhos de Mateus e Lucas (cap. 3), vê-se que a preocupação central de João Batista era o tema do pecado e a conversão dos pecadores. Porém, lendo os capítulos seguintes dos evangelhos, vê-se logo que as preocupações de Jesus iam por outro caminho.

Jesus se fez amigos de pecadores, publicanos, pessoas impuras, a ninguém lhe pediu contas por seus pecados. E, se é certo que perseguiram e mataram Jesus, não foi pelos pecados cometidos contra Deus, mas porque se colocou da parte dos que sofrem, ainda que fossem pessoas de má vida e pouco exemplares.

Este evangelho de hoje nos dá a chave: o pecado não é nem uma «culpa», nem uma «mancha», nem uma «ofensa» a Deus. O pecado é o mal que nós fazemos uns aos outros. Por isso, o perdão do pecado se obtém mediante a mútua reconciliação dos que se ofenderam. Se não há perdão mútuo, não há perdão de Deus. [...]

O centro de nossa vida cristã e cidadã está na bondade que chega ao ponto de deixar-se matar para aliviar a dor do mundo [como fez Jesus].

Traduzido do espanhol por Telmo José Amaral de Figueiredo.

Fontes: Sopelako San Pedro Apostol Parrokia – Sopelana – Bizkaia (Espanha) – J. A. Pagola – Ciclo A – Internet: clique aqui; e CASTILLO, José María. La religión de Jesús: comentario al Evangelio diario – Ciclo A (2013-2014). Bilbao: Desclée De Brouwer, 2013, páginas 567-568.

Ladrão tem perdão?

Dom Odilo Pedro Scherer
Cardeal-arcebispo de São Paulo (SP)

Sempre é tempo de arrependimento e não é preciso esperar o fim da vida
D. ODILO PEDRO SCHERER

As denúncias de pequenos furtos e roubos de grandes fortunas são de todos os dias. E não é de hoje: a história dos povos registra a ladroagem em todas as épocas, da antiguidade à pós-modernidade. A diferença é que a roubalheira vai ficando mais sofisticada e vai do esconder tesouros em caixas de papelão e malas de viagem a estourar caixas-fortes com dinamites e aplicar golpes pela internet. Há roubo de todo jeito e daria para organizar uma enciclopédia da ladroagem!

Se é verdade que amigos do alheio sempre existiram, isso não torna lícito e aprovado o roubo, que sempre foi e continua a ser considerado um ato desonesto e injusto, além de marcar de maneira negativa a pessoa que o pratica. É feio e vergonhoso ser ladrão e ser chamado de ladrão não é considerado um elogio para ninguém... Talvez, na sociedade dos ladrões, furtos e roubos possam ter algum reconhecimento, mas essa seria uma sociedade inominável e sem reconhecimento meritório.

Por que não abolir de uma vez a lei que proíbe roubar, considerando que essa prática se tornou tão comum e difundida? Que aconteceria se o furto e o roubo deixassem de ser crimes? Tenho a certeza de que uma “sociedade de ladrões” inventaria bem depressa seus códigos éticos e morais para disciplinar tudo... E seriam, com grande probabilidade, bastante rígidos! É estranho: por qual motivo os códigos morais não funcionam bem numa sociedade que pretende estribar-se sobre os valores da justiça, do respeito, da honestidade e da dignidade?

Talvez haja algum problema no compartilhamento da convicção de que roubar não é direito. Falta dizer e ensinar novamente, com todas as letras e em todos os momentos, que não é permitido roubar, que isso é desonesto, injusto e feio, coisa de mau caráter? Antes de chamar a polícia para prender o ladrão, seria preciso que a sociedade se pusesse de acordo para dizer que o roubo é um crime e que o crime não compensa, nem para o ladrão grande nem para o pequeno.

Diante da roubalheira deslavada, a tendência é o fechamento: muros altos, cercas eletrificadas, câmeras de vigilância sofisticadas. Seriam a solução suficiente para prevenir roubos e assaltos, planejados com inteligência criminosa? Basta fazer denúncias, mandar a polícia atrás e torcer para que o ladrão não consiga escapar e fique um bom tempo na cadeia? O que será capaz de dissuadir do caminho da desonestidade?

O ladrão entende que, cálculos feitos, vale a pena arriscar e roubar. Na sua lógica, o crime compensa e, infelizmente, a prática mostra que isso pode ser verdadeiro. Então, seria preciso abalar essa sua certeza, e os motivos para ser honesto devem ser mais fortes que a tentação de roubar. Esses motivos só podem ser passados pela educação para os valores construtivos no convívio social e pela dissuasão, em vista das consequências indesejáveis do crime.

Que motivações fortes seriam capazes de dissuadir alguém de cometer desonestidades? Nos Evangelhos há algumas cenas nas quais Jesus trata pessoalmente com ladrões. Escolhi três casos típicos, com desenvolvimentos e ensinamentos bem diversos.

Zaqueu era funcionário público e recolhia impostos para os romanos, que estavam dominando a Palestina daqueles tempos. Zaqueu era odiado pelos seus compatriotas e nem podia frequentar a sinagoga, sendo considerado um pecador público. Um belo dia, Jesus passou pela sua cidade e o encontrou pela rua. O próprio Jesus chamou Zaqueu e disse que ia hospedar-se em sua casa. Zaqueu sentiu-se valorizado, alegrou-se e recebeu Jesus com festa. O fato foi motivo de escândalo para muitos, que não podiam entender como o Mestre havia escolhido entrar na casa de um pecador, sentando-se à mesa em companhia de pecadores! Mas o corrupto Zaqueu foi logo fazendo sua autodelação:Darei a metade dos meus bens aos pobres e, se prejudiquei alguém, vou devolver quatro vezes mais” (cf. Lucas 19,8). Sua vida mudou porque alguém tocou na sua consciência. Nem precisou de processos demorados em várias instâncias, cheios de jogos de cena. Zaqueu parou de roubar e reparou a justiça lesada. Bom exemplo a ser seguido!

Outro ladrão viveu pertinho de Jesus. Judas havia sido escolhido para ser um dos apóstolos. Era muito avarento, fingido e sem-vergonha. Judas é o ladrão da consciência calejada, que não se dá conta de sua mesquinhez. Ladrão perigoso, inserido no sistema e na máquina pública, com cara de benfeitor populista, que não perde a chance de passar a mão no patrimônio público. Judas cuidava do caixa-comum do grupo de Jesus com os apóstolos e roubava o que se depunha na bolsa (cf. João, 12,4-8). Sua ganância não encontrou mais limites e ele acabou negociando com os inimigos de Jesus a traição do Mestre, na calada da noite, por umas tantas moedas de prata (cf. Mateus, 26,14-16). O infeliz, quando se viu desprezado pelos comparsas e abandonado à solidão da própria consciência, entrou em desespero e se enforcou. Péssimo exemplo, a não ser imitado por ninguém, nem pela sua vida nem pelo seu fim deplorável!

O terceiro ladrão pode representar uma esperança para os viciados e incorrigíveis amigos do alheio. É conhecido como “o bom ladrão”, não por sua esperteza na roubalheira, mas porque teve uma ideia sensata no extremo da vida. Condenado à morte por suas ações, ele reconheceu que suas façanhas de nada lhe valeram, arrependeu-se e pediu misericórdia a Deus. Jesus viu que sua confissão era sincera e lhe prometeu o paraíso naquela mesma hora (cf. Lucas 23,39-43). Sempre é tempo de arrependimento e não é preciso esperar até o fim da vida. Quanto mais cedo, melhor. Deus pode conceder a vida também ao ladrão arrependido. Sinceramente arrependido e bem confessado! A penitência fica por conta do Estado...

Fonte: O Estado de S. Paulo – Espaço aberto – Sábado, 9 de setembro de 2017 – Pág. A2 – Internet: clique aqui.

Como lidar com a secura emocional?

Morto por dentro

Anselm Grün
Teólogo, Psicólogo e Escritor alemão
Monge Beneditino – Abadia de Münsterschwarzach

Há pessoas que secaram internamente. Elas não conseguem sentir mais nada. São incapazes de se entusiasmar por alguma coisa. Todos os sentimentos estão ressequidos. Tais pessoas percebemos como mortas internamente. Sem emoções, o ser humano parece morto. Sentimentos conferem vigor o homem. Eles permitem que a vida lhe pareça plena de sentido. Através das emoções, ele percebe a si mesmo. Mas se as emoções secam e murcham, o homem não se sente vivo. Ele se atrofia internamente.

Em aconselhamento espiritual, sempre vejo pessoas que sofrem por sua secura emocional. Elas adorariam sentir. Mas não sentem nada. Não conseguem se alegrar por coisa alguma. Mesmo o luto não é capaz de tocá-las realmente. Às vezes essa insensibilidade emocional é sinal de depressão. Na depressão, a vida afetiva se paralisa. Mas também há secura emocional fora da depressão. Trata-se simplesmente de se estar desconectado das emoções. Os sentimentos são como uma fonte que emana vivacidade. Porém, para algumas pessoas, essa fonte está seca.

Pessoas que sofrem de secura emocional seguem simplesmente levando a vida. Suas vidas não têm altos e baixos, tudo é igual. A vida segue por uma via árida. Também a paisagem é seca. Ali não há nenhum verde pelo qual se alegrar. Tais pessoas invejam as que conseguem se entusiasmar e se alegrar.

No que tange ao outro, são insensíveis. Quando instadas sobre o que sentiram ao se encontrarem com essa ou aquela pessoa, respondem: Nada. São incapazes de sentir como o outro está realmente. Elas apenas ouvem as palavras, mas sequer notam os sentimentos do outro. Isso geralmente leva a conversas que magoam. Elas não querem ferir, mas, do momento que se esquivam, subestimam os sentimentos alheios e a eles reagem laconicamente, por certo que o outro fica ofendido. Ele não sente que é levado a sério com seus sentimentos, simplesmente passaram por cima deles.

Alguns sofrem de secura emocional e se sentem inferiores às outras pessoas. Em contrapartida, outros não querem aceitar sua secura emocional e preferem ferir seus semelhantes. Eles acusam as pessoas de agirem por sentimentalismo barato ou por excitação emocional; chamam o outro de sentimentaloide ou falam depreciativamente sobre tipos emotivos com os quais não se pode conversar razoavelmente. Mas, com isso, elas apenas se desviam da miséria particular em que se encontram devido à sua insensibilidade e secura emocional.

Durante discussões, pessoas insensíveis sequer percebem as emoções que movem os outros. À medida que argumentam unicamente com imparcialidade, suscitam raiva e incompreensão no outro. Junto a tais pessoas, os outros não encontram ouvidos para seus sentimentos, anseios e desejos. Para o mundo exterior, na maioria das vezes, essas pessoas secas e insensíveis aparentam ser fortes. Elas não dão valor às suas emoções.

Porém, na realidade, elas, de fato, assemelham-se a androides sem alma. Ninguém procura sua companhia. E, assim, elas caem em isolamento. De vez em quando, as pessoas insensíveis sentem sua solidão. Então, eu procuro chamar-lhes a atenção para esse sentir; elas devem investigar em si mesmas esse sentimento de solidão. Desse modo, elas então ao menos vivenciam um sentimento. Ou eu deixo que percebam dentro de seu corpo: Como parece a secura emocional? Ela também é um sentimento; também posso reconhecer e sentir a insensibilidade.

Quando alguém sofre por causa de sua secura emocional, ele sente alguma coisa. Eu procuro, então, aproximá-lo desse sentimento. Em seguida, ele reconhece que não existe ninguém que não tenha sentimentos; eles talvez estejam apenas embotados, sem viço, mas, ainda assim, capazes de serem encontrados por debaixo da superfície árida.

É necessário atenção e cautela para se descobrir os sentimentos velados sob a pétrea camada de sentimentos reprimidos. Os sentimentos querem ser desvelados. Eu procuro sentir-me em meu íntimo, ao mesmo tempo que abro passagem nessa camada dura, a fim de atravessá-la, para, enfim, tocar os sentimentos que jazem sob ela. Desse modo, eles podem aflorar vagarosamente. E, em meio a um campo seco, começarão então a desabrochar vigorosamente os primeiros botões dos sentimentos e, novamente, eles me restituirão a vida.

Fonte: GRÜN, Anselm. Pequena Escola das Emoções: como os sentimentos nos orientam e o que anima nossa vida. Tradução de Bianca Wandt. Petrópolis (RJ): Editora Vozes, 2016, páginas 190-193.