«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

sábado, 31 de janeiro de 2015

4º Domingo do Tempo Comum – Ano B – Homilia

Evangelho: Marcos 1,21-28

21 Estando com seus discípulos em Cafarnaum, Jesus, num dia de sábado, entrou na sinagoga e começou a ensinar.
22 Todos ficavam admirados com o seu ensinamento, pois ensinava como quem tem autoridade, não como os mestres da Lei.
23 Estava então na sinagoga um homem possuído por um espírito mau. Ele gritou:
24 “Que queres de nós, Jesus Nazareno? Vieste para nos destruir? Eu sei quem tu és: tu és o Santo de Deus”.
25 Jesus o intimou: “Cala-te e sai dele!”.
26 Então o espírito mau sacudiu o homem com violência, deu um grande grito e saiu.
27 E todos ficaram muito espantados e perguntavam uns aos outros: “O que é isto? Um ensinamento novo dado com autoridade: Ele manda até nos espíritos maus, e eles obedecem!”.
28 E a fama de Jesus logo se espalhou por toda a parte, em toda a região da Galileia.

JOSÉ ANTONIO PAGOLA
UM ENSINAMENTO NOVO

O episódio é surpreendente e avassalador. Tudo ocorre na “sinagoga”, o lugar onde se ensina oficialmente a Lei, tal como é interpretada pelos mestres autorizados. Sucede no “sábado”, dia em que os judeus observantes se reúnem para escutar o comentário de seus dirigentes. É nesse contexto em que Jesus começa, pela primeira vez, a “ensinar”.

Não se fala sobre o conteúdo de suas palavras. Não é isso que interessa aqui, mas o impacto que produz sua intervenção. Jesus provoca assombro e admiração. As pessoas percebem nele algo especial que não encontram em seus mestres religiosos: Jesus “não ensina como os escribas, mas com autoridade”.

Os doutores ensinam em nome da instituição. Restringem-se às tradições. Citam várias vezes mestres ilustres do passado. Sua autoridade provém de sua função de interpretar oficialmente a Lei. A autoridade de Jesus é diferente. Não vem da instituição. Não se baseia na tradição. Tem outra fonte. Ele está repleto do Espírito vivificador de Deus.

Poderão comprová-lo em seguida. De forma inesperada, um possuído interrompe, aos gritos, seu ensinamento. Ele não o pode suportar. Está aterrorizado: “Vieste para nos destruir?”. Aquele homem se sentia bem ao escutar o ensinamento dos escribas. Por que ele se sente, agora, ameaçado?

Jesus não vem destruir ninguém. Sua “autoridade” está, justamente, em dar vida às pessoas. Seu ensinamento humaniza e liberta de escravidões. Suas palavras convidam a confiar em Deus. Sua mensagem é a melhor notícia que pode escutar aquele homem atormentado interiormente. Quando Jesus o cura, as pessoas exclamam: Um ensinamento novo dado com autoridade.

As pesquisas de opinião indicam que a palavra da Igreja está perdendo autoridade e credibilidade. Não basta falar de maneira autoritária para anunciar a Boa Notícia de Deus. Não é suficiente transmitir, corretamente, a tradição para abrir os corações à alegria da fé. O que precisamos, urgentemente, é um “ensinamento novo”.

Não somos “escribas”, mas discípulos de Jesus. Devemos comunicar a sua mensagem, não nossas tradições. Temos de ensinar curando a vida, não doutrinando as mentes. Devemos anunciar seu Espírito, não nossas teologias.
APRENDER A ENSINAR

O modo de ensinar de Jesus provocou nas pessoas a impressão de que estavam diante de algo desconhecido e admirável. Indica-o a fonte cristã mais antiga e os pesquisadores pensam que foi assim realmente. Jesus não ensinava como os “doutores” da Lei. Fazia-o com “autoridade”: sua palavra libertava as pessoas de “espíritos malignos”.

Não se deve confundir “autoridade” com “poder”. O evangelista Marcos é muito preciso em sua linguagem. A palavra de Jesus não provém do poder. Jesus não procura impor sua própria vontade sobre os demais. Não ensina a fim de controlar o comportamento das pessoas. Não utiliza de coação nem ameaças.

Sua palavra não é como aquela dos doutores da religião judaica. Não está revestida de poder institucional. Sua “autoridade” nasce da força do Espírito. Provém do amor às pessoas. Busca aliviar o sofrimento, curar feridas, promover uma vida mais saudável. Jesus não gera submissão, infantilismo ou passividade. Liberta dos medos, infunde confiança em Deus, anima as pessoas a buscar um mundo novo.

A ninguém passa despercebido que estamos vivendo uma grave crise de autoridade. A confiança na palavra institucional está abaixo do mínimo. Dentro da Igreja se fala de uma forte “desvalorização do Magistério”. As homilias aborrecem. As palavras estão desgastadas.

Não é este o momento de voltar a Jesus e aprender a ensinar como ele fazia? A palavra da Igreja tem de nascer do amor real às pessoas. Deve ser dita depois de uma atenta escuta do sofrimento que há no mundo, não antes. Deve ser próxima, acolhedora, capaz de acompanhar a vida sofredora do ser humano.

Necessitamos de uma palavra mais livre da sedução do poder e mais cheia da força do Espírito. Um ensinamento nascido do respeito e da estima positiva das pessoas, que produz esperança e cure feridas.

Seria grave que, dentro da Igreja, se escutasse uma “doutrina de doutores” e não a palavra curadora de Jesus que tanto as pessoas necessitam, hoje, para viver.

Traduzido do espanhol por Telmo José Amaral de Figueiredo.

Fonte: MUSICALITURGICA.COM – Homilías de José A. Pagola – Quarta-feira, 28 de janeiro de 2015 – 11h34 – Internet: clique aqui.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Ensaio sobre a cegueira hídrica

Entrevista com Marússia Whately*
Pelo Coletivo Conta d’Água**
Inês Castilho

Como a negação eleitoreira da crise colocou São Paulo à beira de um racionamento selvagem ou do retrocesso bizarro aos caminhões-pipas
Marússia Whately - ambientalista
A falta d’água afeta a dignidade humana, tem implicações de saúde pública, desespera, paralisa a atividade econômica. Pois prepare-se: 2015 começou sob a sombra da crise hídrica. O cenário que se está montando é gravíssimo.

Já quase terminado janeiro, contata-se que choveu muito menos do que era esperado:

·        No Sistema Cantareira, choveu 35% da média histórica.
·        No Sistema Alto Tietê, meros 26% da média histórica.
·        E o quadro não encontra alívio nos demais mananciais, também deficitários.

A própria Sabesp admite que o que existe de água em todos os sistemas, considerando o padrão de consumo atual, vai dar pra 50 dias, ou seja, março. E daí? Aí, acabou. Não é que vai faltar um pouco de água. É que não tem água; não tem para onde correr.

Para entender melhor as dimensões humanas, sociais, econômicas e ambientais dessa crise, o projeto Conta D’Água procurou uma das maiores especialistas do tema, a ambientalista Marussia Whately, dirigente do projeto Água São Paulo, do Instituto Socioambiental (ISA), e uma das principais protagonistas da Aliança pela Água, uma iniciativa reunindo 30 ONGs, visando propor soluções e cobrar providências do poder público.

A crise na vida real

MARUSSIA WHATELY: Tornou-se séria a perspectiva de o Sistema Alto Tietê, que abastece a zona leste de São Paulo, entrar em colapso. Isso quer dizer que quatro milhões de pessoas deixarão de ter água pra beber. Hoje, o nível do reservatório está em 10,4%, o que é extremamente crítico porque se trata de um reservatório com apenas metade da capacidade do sistema Cantareira. E está baixando.

Como você vai fazer pra manejar essa região? Onde as pessoas vão pegar água? Uma das possibilidades é levar água potável com caminhões-pipa provenientes de Ubatuba, São José. Quantos litros serão necessários para abastecer a zona leste todos os dias? Qual a qualidade da água que chegará aos consumidores?

Nessa região, você tem reservatórios de distribuição, as caixas d’água da Sabesp, como a que existe na avenida Consolação, ou no Paraíso. Esses reservatórios, logicamente, estarão vazios. Mas eles têm de ser o lugar para onde os caminhões-pipas serão levados.

Não se pode deixar caminhão-pipa no mercado. A partir de agora, será preciso que se mapeiem todos os poços que estão autorizados a captar água mineral. Num Plano de Contingência, todos esses 50 mil poços têm de ter sua outorga suspensa e a exploração será de uso exclusivo do Estado.

Agora, a Sabesp vai fazer isso? Não. Esta é uma responsabilidade do governo do Estado, com as prefeituras. É uma agenda que temos que trabalhar para que se torne realidade.
Sistema Cantareira já está quase esgotando o volume morto
Vamos um pouco mais em frente com esse cenário.

Os caminhões-pipas foram captar a água. E como essa frota chegará à zona leste? Será necessário organizar uma grande operação de logística durante as madrugadas, com menos trânsito, para transportar toda essa água. Porque serão centenas de caminhões-pipas.

Os caminhões encherão o reservatório e amanhã, das 10h às 12h, a população de Ferraz de Vasconcelos, com seu comprovante de residência em mãos, vai poder retirar uma quantidade de água por pessoa. Das 12h a tal hora, vai ser a população da zona leste…

Isso é um Plano de Contingência numa situação de estresse grave. Água pra escovar os dentes, tomar banho e cozinhar. Para outros fins — como dar descarga, lavar roupa, limpar a casa —, a saída será a água da chuva. Para isso, postos de saúde, escolas, creches, unidades de serviço público, precisarão se equipar com caixas para captar água da chuva, com filtro, tudo direitinho.

É preciso que a cidade se prepare. É preciso que o poder público se organize. A possibilidade de implantação de um racionamento de cinco dias sem água [por semana] é bem concreta. Mas uma coisa é viver cinco dias sem água em uma situação organizada. Outra coisa, bem diferente, é ter o racionamento em uma área como a zona leste da Capital, com uma rede toda remendada, com áreas inteiras de ocupação irregular. O resultado torna-se muito mais imprevisível.

Para dar um exemplo. Ontem, a partir das 16h30, não tinha mais água da rua em minha casa. Mas se trata de uma casa com apenas dois moradores. Manejando o consumo, conseguimos ficar até cinco dias sem água da rua. Vamos ter restrição? Claro, mas dá para garantir as necessidades básicas. Essa situação é totalmente diferente da que é vivida em uma comunidade com poucas caixas d’água, com casas habitadas por um número muito maior de moradores.

Mas fica pior quando se considera que essas pessoas funcionam em horários difíceis – gente chegando muito tarde em casa, por causa do transporte deficiente (quando a água já foi fechada), e que sai muito cedo de casa, também por causa do transporte deficiente (e a água ainda não voltou).

Uma creche que não abre porque não tem água gera um efeito cascata. Se as crianças não podem ir para a creche, a mãe tem de faltar no emprego. Tomemos o caso de uma diarista. Quantos dias ela poderá faltar no emprego? Será que ela vai poder levar os filhos ao emprego? E isso impacta a vida da patroa dela também. Assim, começa um efeito de instabilidade grande na sociedade. Esse é um dos efeitos que ainda não estão devidamente dimensionados. Os governantes estão desatentos a essa questão.

E há a situação crítica das populações mais sensíveis, que precisam ser levadas em consideração. Sabe-se que a população da terceira idade, mais de 60 anos, e as crianças até 7 anos têm uma vulnerabilidade maior à desidratação. E há ainda os acamados, com deficiência de mobilidade e idosos, aos quais é preciso garantir o suprimento básico de água no próprio domicílio. Em suma, há uma série de desdobramentos éticos envolvida na gestão da crise.

Já se esperam protestos. Em Itu, vizinho de São Paulo, até donas de casa colocaram fogo nas ruas. Aqui em São Paulo, vai haver um escalonamento de manifestações e de violência porque a água mexe com a questão da dignidade. Quantos dias nós aguentamos sem poder dar descarga?

É preciso instalar um Comitê de Crise. Temos de falar e explicar que se trata de uma crise sem precedentes. O mais natural seria o governador do Estado de São Paulo [Geraldo Alckmin] puxar isso, mas se ele não puxar, a sociedade civil tem de fazê-lo.

O Comitê é fundamental no sentido de começar a desenhar as linhas de ação de um Plano de Contingência. A população precisará de referências públicas em relação à água. Também é importante o acesso à informação.
Vários bairros da capital já não têm água todos os dias!
Nós lançaremos em fevereiro um copilado de propostas de especialistas para a gestão dessa crise. Um dos itens importantes, por exemplo, é a questão da qualidade da água oferecida pelos caminhões-pipa. Teria de haver em cada subprefeitura uma lista de caminhões-pipas autorizados a operar. E informações claras do tipo: “Aqui, na área desta Subprefeitura, faltará água nos próximos cinco dias; água potável poderá ser encontrada nesses endereços, de tal hora a tal hora”. Isso tem que ser feito e não é responsabilidade da Sabesp.

Em última instância, quem vai ter de decretar os estados de emergência são as prefeituras, mas elas estão receosas de assumir o protagonismo da crise. Pela lei de saneamento, as prefeituras são os titulares do saneamento. Teoricamente, seriam as prefeituras que deveriam mandar nessa confusão. O contrato de prestação de serviços da Sabesp é assinado com a prefeitura, que delega a regulação para a Arsesp, Agência Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo.

Eu acredito que tem um canal, que vai ser começado pelo município de São Paulo, que está revendo o contrato com a Sabesp, e está percebendo que os moradores do município vão ficar sem água, enquanto a empresa recebe uma grana incrível em cima e não reinveste.

Um acionista da Sabesp que eu acho que está sendo pouco questionado é o próprio governo do Estado, que detém 51% da empresa. Quando são pagos os dividendos, 51% voltam para o governo do Estado, e não necessariamente o governo tem reinvestido na Sabesp. (Grande parte do investimento em infraestrutura que a Sabesp fez nos últimos anos foi com financiamento da Caixa, financiamento do Banco Mundial, várias fontes).

Plano de Contingência

MARUSSIA WHATELY: O Plano de Contingência é a principal reivindicação da Aliança pela Água. Em final de outubro do ano passado, fizemos um processo rápido de escuta de mais ou menos 280 especialistas de diferentes áreas. E o Plano de Contingência apareceu como uma das principais reivindicações desses especialistas.

Naquela ocasião, a ideia predominante era que se adotasse um Plano de Contingência que permitisse que chegássemos a abril deste ano com um nível de reservação de água nas represas, que desse para aguentar o período da estiagem. Infelizmente, esse plano não foi elaborado e muito menos realizado.

O que aconteceu na prática foi uma negação da crise hídrica por parte do governo do Estado até dezembro de 2014 —uma negação que vai levar para outras instâncias de responsabilização.

O governador terminou o ano dizendo que não teríamos racionamento e que não haveria falta d’água. E começou 2015 dizendo que existe o racionamento e que pode ser que falte água.
 
No vídeo abaixo, o governador Geraldo Alkmin,
durante um debate político realizado pela Rede Globo/SP
nega que estivesse faltando água em São Paulo ou
que, um dia, fosse faltar!
(30/setembro/2014)
 

Se fosse um novo governador, a gente até poderia aceitar, mas se trata do mesmo cara. Então tem uma questão aí: a forma como a crise foi conduzida nos fez perder muito tempo em termos de ações para chegar a um nível seguro em abril.

Realmente, existe um componente de clima na crise que não dá para negar. Já está confirmado que 2014 foi o ano mais quente da história. O que já seria um quadro de extrema gravidade, entretanto, tem sido agravado porque desde 2011 a Sabesp está superexplorando as represas. Ou seja, tirando delas mais água do que entra.

O governo do Estado deveria ter assumido a liderança em relação à crise da água em São Paulo. No caso do sistema Cantareira, essa liderança deveria ser dividida com o governo federal, por intermédio da Agência Nacional de Águas e do Ministério do Meio Ambiente, a quem compete organizar a Política Nacional de Recursos Hídricos. O problema é que muitos dos nossos instrumentos de gestão vêm sendo desmantelados em escala federal, estadual e municipal.

“O Ministério do Meio Ambiente está omisso em relação aos recursos hídricos. A Agência Nacional de Águas transformou-se num mero órgão que faz a outorga, já que ficou enfraquecido nesse processo de construção de Belo Monte.” A síntese é a seguinte: “Já basta a licença ambiental, não me venham inventar mais uma licença de recursos hídricos, pra empacar a hidrelétrica”.

É preciso recuperar as represas. O Sistema Cantareira está com o nível em torno dos 5%. Não dá mais! Não vai encher. Vai ter que ter racionamento.

A perspectiva com a qual a Aliança da Água trabalha é a de união entre diferentes setores (especialistas na pauta do meio ambiente e sociedade) para a elaboração de um Plano de Contingência mais sólido. Ficar refém, à espera de um plano elaborado pela Sabesp, além de não ser propositivo também não é eficaz. É fundamental que os movimentos sociais e as universidades debatam esse tema com profundidade e urgência.

Quem é o responsável?

MARUSSIA WHATELY: O padrão de chuvas, repito, foi aquém da média histórica, mas houve o acúmulo de infelicidades. Uma que é certamente muito grave foi a ausência de visão estratégica mínima do responsável, que é o governo estadual paulista. Ele deveria ter liderado a gestão da água, mas perdeu um ano negando a existência da crise, afirmando para a população que não faltaria água, criando uma medida que foi o bônus, apresentado como uma alternativa ao racionamento. Só que o bônus é muito questionável porque descapitaliza a empresa. Diminui a capacidade de investimento da Sabesp. Do ponto de vista econômico, no momento de escassez de um produto, você baixar o preço dele, é um contrassenso.

Durante os nove meses de campanha, não se conseguiu mudar o padrão de consumo. Metade dos consumidores aderiu e reduziu 20% o gasto de água. Um em cada quatro reduziu, mas não atingiu a meta. E um em quatro aumentou o consumo. A verdade é que junto com o bônus teria de ter a sobretaxa para o excesso de consumo e uma série de ações. O bônus foi apenas uma ação paliativa, tentando substituir uma ação mais radical que seria o racionamento. Ao mesmo tempo, de um ponto de vista mais técnico e operacional, só isso não gerou a redução do consumo de água que seria necessário.

Desde o início do ano passado, falava-se em reduzir pela metade a retirada de água do sistema Cantareira. Ou seja, sair de 31 metros cúbicos por segundo para 16. Mas isso só está sendo atingido agora. Eles foram baixando de 31 para 27, para 24…

No total do abastecimento de água de São Paulo, conseguiu-se reduzir o consumo de 69 metros cúbicos por segundo para 55. Ou seja, todas as medidas adotadas – bônus, redução da pressão, ampliação de captação, melhoria no índice de vazamentos lograram uma economia de 20%. É pouco em termos de redução da retirada de água dos mananciais. Precisaria ser no mínimo 50%.

Em janeiro de 2014 houve um primeiro Plano de Contingência, que previa um plano de racionamento no sistema Cantareira. Esse primeiro plano simplesmente sumiu. Ele não está mais disponível. A proposta era que o Cantareira, que em janeiro de 2014 estava com 24% de reservação, sem contar o volume morto, já começasse a fazer um racionamento brando. Veja que esses 24% de reservação (sem contar o volume morto) equivaliam a 46% da capacidade total do sistema – e mesmo assim, já soou o alarme e se propôs o racionamento.

Hoje, o Cantareira está com um nível de reservação em 5,6%, já considerando o uso do segundo volume morto. Corremos o risco de ter de decretar agora um racionamento de cinco dias sem água.
Quem deve ser o responsável pela gestão da crise?

MARUSSIA WHATELY: A questão das responsabilidades é essencial para estabelecer um Plano de Contingência. Qual é a grade de responsabilidades e atribuições? Quem tem de fazer o quê?

A Sabesp é uma companhia prestadora de serviço. E, como prestadora de serviço tem de ter constância, indicador, desempenho, eficiência, meta… A Sabesp não é a gestora da política. Não é ela quem deve decidir onde é melhor investir, quem vai ficar sem água. Quem tem que decidir isso é a Arsesp [Agência Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo], a agência reguladora. A gente tem feito cobranças equivocadas em cima da Sabesp, quando a cobrança tem de ser em cima da regulação.

É muito fácil colocar a Sabesp na linha de tiro. E ninguém fala nada sobre as responsabilidades da Secretaria de Recursos Hídricos, da Arsesp, da Secretaria de Meio Ambiente, que dá licenças, como a de uso do volume morto. Alguém viu o licenciamento ambiental desse uso extremo do Cantareira? Quais foram as condicionantes, os compromissos de mitigação? Foi uma licença emergencial?

Não é só que a água não está mais atingindo suas margens normais. É que, por centenas de quilômetros, o solo ficará ressecado, com impactos substanciais sobre todo o meio ambiente em torno.

Construir soluções para a crise vai depender de um Plano de Contingência que não é um plano da Sabesp, é um plano do governo federal, estadual, prefeituras e com a sociedade. Vai ter que entrar defesa civil, vigilância sanitária, secretaria de segurança…

Como resolver a crise

MARUSSIA WHATELY: O governo do Estado apostou alto que ia chover. E, na outra mão, ele veio com um conjunto de obras que conseguirão criar — daqui a cinco anos — mais 20 mil litros. A gente não precisa de mais 20 mil litros. A gente precisa consumir melhor a água que tem.

Daqui a cinco anos, eu terei feito a transposição de águas do rio Paraíba do Sul para cá, o Paraíba do Sul, aliás, que agora está com apenas 5% de água. Então, veja, eu faço uma megaobra para trazer água e, de repente, pode não haver água pra ser trazida para cá.

E se, em vez disso, houvesse a recuperação da represa Billings, que está aqui ao lado? Nela, cabe a mesma quantidade de água do que a Cantareira é capaz de produzir. Ela não produz a mesma quantidade, mas ela pode guardar. Ou seja, eu posso trazer de outros lugares a água para a Billings em quantidades menores; posso interligar algumas represas do Alto Tietê; ou mesmo pensar em pequenos reservatórios no topo da serra do Mar, que seria uma água de altíssima qualidade, e trazer para a Billings…

São várias ideias que nem chegaram a serem discutidas, a respeito de uma represa que está aqui, mais perto do que as alternativas de abastecimento colocadas na mesa. A Billings, como se sabe, é o destino do esgoto que a Sabesp não consegue tratar, que é jogado no Tamanduateí, no Anhangabaú, no Pinheiros, no Tietê, em todos os rios que a gente colocou avenidas em cima.

Depois, tem a drenagem urbana que é esquizofrênica porque uma parte quem cuida é o Estado, outra são as prefeituras. Só aí haveria uma capacidade de geração de água de chuva que seria mais ou menos o equivalente à vazão do rio São Lourenço, 4 metros cúbicos por segundo. O novo sistema São Lourenço, que deve ficar pronto em 2017, custará R$ 2 bi só em obras, terá custo operacional de mais R$ 6 bi em cima. Trata-se de uma megaobra para trazer água lá de longe do rio Ribeira, sem pagar devidamente os encargos ambientais que serão gerados naquela região, sem que aquilo gere prosperidade naquela região.

Os ensinamentos da crise

MARUSSIA WHATELY: Com a água acontece uma coisa curiosa: como cai do céu, é difícil acreditar que vá faltar. Acaba a água da torneira, mas está tudo alagado lá fora. Isso, imagino, gera uma confusão pra muita gente… Mas ao mesmo tempo gera um aumento de consciência. Essa água que está alagando as ruas, será que ela não poderia ser usada?

Essa água é própria para o consumo?, alguém poderia perguntar. Há controvérsias. Há pessoas filtrando e fazendo testes, dizendo que é melhor do que a água da Sabesp. Cada vez mais, eu acredito que, quanto mais a gente tornar as pessoas autônomas em relação a garantir o seu básico, mais a gente estará caminhando para um mundo sustentável. Ensinar a garantir o mínimo da sua água, o mínimo da sua comida, pode ser um caminho.

A gente está tendo falta de água, apagão de energia, enchentes. Todos esses problemas estão ligados à gestão da água. Todo esse processo é muito didático e deve induzir mudanças de atitude. Como continuar aceitando como normal descarregar a privada com água potável? O baixo nível dos reservatórios está mostrando o baixo nível das nossas políticas em relação a isso. Se não for didático, então a única saída é o êxodo.

* Marussia Whately é formada em Arquitetura e Urbanismo com especialização em gestão de recursos hídricos , sustentabilidade e meio ambiente urbano. Atua há mais de 15 anos na área de coordenação de projetos, produção de conteúdos e campanhas socioambientais. Trabalhou no Instituto Socioambiental, onde foi coordenadora do programa Mananciais de São Paulo e Campanha De Olho nos Mananciais. Foi uma das responsáveis pela coordenação da equipe de produção de conteúdo da Campanha Presidencial Marina Silva/Guilherme Leal. Foi coordenadora executiva do Instituto Democracia e Sustentabilidade e da liderou a Campanha Floresta Faz a Diferença. Atualmente é colaboradora do IMAZON para apoiar o Programa Municípios Verdes do Governo do Pará.

** Participaram membros das Redações do Barão de Itararé, Brasil de Fato, Fórum, Mídia Ninja, Outras Palavras, Ponte e SpressoSP.

Fonte: Outras Palavras – 27/01/2015 – Internet: clique aqui.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

PAPA ADVERTE SOBRE UMA SOCIEDADE SEM PAIS

Rocio Lancho García
Papa Francisco discursa na Sala Paulo VI - Vaticano
Audiência da Quarta-feira
Como acontece toda semana, fiéis e peregrinos vindos a Roma de todas as partes do mundo receberam com entusiasmo o papa Francisco para a audiência geral das quartas-feiras. Hoje, na Sala Paulo VI, um grupo de artistas do Circo Medrano apresentou um espetáculo no final da audiência, que divertiu o papa e todos os participantes.

Francisco deu continuidade às catequeses sobre a família e, desta vez, falou sobre a figura do pai. No resumo final, ele disse:

«Queridos irmãos e irmãs! Em nossa reflexão sobre a família, hoje nos concentramos na palavra pai. Pai é uma palavra universal, conhecida por todos, que indica uma relação fundamental cuja realidade é tão antiga quanto a história do homem. É a palavra com que Jesus nos ensinou a chamar a Deus, dando-lhe um novo e profundo sentido e revelando-nos, assim, o mistério da intimidade de Deus Pai, Filho e Espírito Santo, que é o centro da nossa fé cristã.

Em nossos dias, chegou-se a falar de uma sociedade sem pais. A ausência desta figura foi interpretada como uma “libertação”, especialmente quando o pai é percebido como a autoridade cruel que limita a liberdade dos filhos, ou quando os filhos se sentem desatendidos por pais focados unicamente em seus problemas, em seu trabalho ou na própria realização pessoal, ou caracterizados pela notável ausência do lar. Tudo isto cria uma situação de orfandade nas crianças e nos jovens de hoje, que vivem desorientados sem o bom exemplo e a orientação prudente de um pai. Deste modo, todas as comunidades cristãs e a comunidade civil devem ficar atentas à ausência da figura paterna, pois ela deixa lacunas e feridas na educação dos jovens. Sem guias nos quais confiar, os jovens podem se encher de ídolos que acabam lhes roubando o coração, os sonhos, as autênticas riquezas; roubando a sua esperança.»

O papa saudou em seguida os peregrinos latino-americanos e recordou que Jesus prometeu que não nos deixaria órfãos. “Vivamos com a esperança firme nele, sabendo que o amor pode vencer o ódio e que é possível um futuro de fraternidade e de paz para todos. Que Deus os abençoe. Muito obrigado”.

Após as saudações em diversas línguas, o pontífice dedicou um pensamento especial aos jovens, aos enfermos e aos recém-casados, lembrando a todos que hoje celebramos a memória de Santo Tomás de Aquino, doutor da Igreja. Por isso, ele desejou aos jovens que a sua dedicação ao estudo favoreça neles o compromisso da inteligência e da vontade a serviço do Evangelho. Aos enfermos, desejou que a fé os ajude a se voltar ao Senhor também nas provações. E aos esposos recém-casados, que a mansidão de Jesus lhes indique o estilo das relações entre os cônjuges dentro da família.

Íntegra da catequese do Papa sobre a figura paterna:

Queridos irmãos e irmãs, bom dia!

Retomamos o caminho das catequeses sobre família. Hoje nos deixamos guiar pela palavra “pai”. Uma palavra mais que qualquer outra querida a nós cristãos, porque é o nome com o qual Jesus nos ensinou a chamar Deus: pai. Hoje o sentido deste nome recebeu uma nova profundidade justamente a partir do modo em que Jesus o usava para se dirigir a Deus e manifestar a sua especial relação com Ele. O mistério abençoado da intimidade de Deus, Pai, Filho e Espírito, revelado por Jesus, é o coração da nossa fé cristã.

“Pai” é uma palavra conhecida por todos, uma palavra universal. Essa indica uma relação fundamental cuja realidade é tão antiga quanto a história do homem. Hoje, todavia, chegou-se a afirmar que a nossa seria uma “sociedade sem pais”. Em outros termos, em particular na cultura ocidental, a figura do pai seria simbolicamente ausente, dissipada, removida. Em um primeiro momento, a coisa foi percebida como uma libertação: libertação do pai-patrão, do pai como representante da lei que se impõe de fora, do pai como censor da felicidade dos filhos e obstáculo da emancipação e da autonomia dos jovens. Às vezes, em algumas casas, reinava no passado o autoritarismo, em certos casos até mesmo a opressão: pais que tratavam os filhos como servos, não respeitando as exigências pessoais do crescimento deles; pais que não os ajudavam a empreender o seu caminho com liberdade – mas não é fácil educar um filho em liberdade – ; pais que não os ajudavam a assumir as próprias responsabilidades para construir o seu futuro e o da sociedade.

Isto, certamente, é uma atitude não boa; porém, como acontece muitas vezes, se passa de um extremo a outro. O problema dos nossos dias não parece mais ser tanto a presença invasiva dos pais quanto a sua ausência, a sua falta de ação. Os pais estão, por vezes, tão concentrados em si mesmos e no próprio trabalho e às vezes nas próprias realizações individuais a ponto de esquecer a família. E deixam sozinhos os pequenos e os jovens. Já como bispo de Buenos Aires percebi o sentido de orfandade que vivem os jovens; muitas vezes eu perguntava aos pais se brincavam com os seus filhos, se tinham a coragem e o amor de perder tempo com os filhos. E a resposta era ruim, na maioria dos casos: “Mas, não posso, porque tenho tanto trabalho…” E o pai era ausente daquele filho que crescia, não brincava com ele, não, não perdia tempo com ele.

Ora, neste caminho comum de reflexão sobre família, gostaria de dizer a todas as comunidades cristãs que devemos ser mais atentos: a ausência da figura paterna na vida dos pequenos e dos jovens produz lacunas e feridas que podem ser também muito graves. E, de fato, os desvios de crianças e de adolescentes podem, em boa parte, ser atribuídos a esta falta, à carência de exemplos e de guias autoritárias em suas vidas de cada dia, à carência de proximidade, à carência de amor por parte dos pais. O sentido de orfandade que tantos jovens vivem é mais profundo que aquilo que pensamos.

São órfãos na família, porque os pais muitas vezes são ausentes, mesmo fisicamente, da casa, mas sobretudo porque, quando estão ali, não se comportam como pais, não dialogam com os seus filhos, não cumprem o seu papel educativo, não dão aos filhos, com o seu exemplo acompanhado de palavras, aqueles princípios, aqueles valores, aquelas regras de vida de que precisam como precisam do pão. A qualidade educativa da presença paterna é tanto mais necessária quanto mais o pai é obrigado pelo trabalho a estar distante de casa. Às vezes parece que os pais não sabem bem qual posto ocupar na família e como educar os filhos. E, então, na dúvida, se abstém, se retiram e negligenciam suas responsabilidades, talvez refugiando-se em uma improvável relação “em pé de igualdade” com os filhos. É verdade que você deve ser “companheiro” do teu filho, mas sem esquecer que você é o pai! Se você se comporta somente como um companheiro em pé de igualdade com o filho, isto não fará bem ao menino.

E vemos este problema também na comunidade civil. A comunidade civil, com as suas instituições, tem uma certa responsabilidade – podemos dizer paterna – com os jovens, uma responsabilidade que às vezes negligencia ou exerce mal. Também essa muitas vezes os deixa órfãos e não propõe a eles uma verdade de perspectiva. Os jovens permanecem, assim, órfãos de caminho seguros a percorrer, órfãos de mestres em quem confiar, órfãos de ideais que aquecem o coração, órfãos de valores e de esperanças que os apoiam cotidianamente. São preenchidos, talvez, por ídolos, mas se rouba o coração deles; são impelidos a sonhar com diversão e prazer, mas não se dá a eles o trabalho; são iludidos com o deus dinheiro, e se nega a eles as verdadeiras riquezas.

E então fará bem a todos, aos pais e aos filhos, escutar novamente a promessa que Jesus fez aos seus discípulos: “Não vos deixarei órfãos” (Jo 14, 18). É Ele, de fato, o Caminho a percorrer, o Mestre a escutar, a Esperança de que o mundo pode mudar, que o amor vence o ódio, que pode haver um futuro de fraternidade e de paz para todos. Alguém de vocês poderá me dizer: “Mas, padre, hoje o senhor foi muito negativo. Falou somente da ausência dos pais, o que acontece quando os pais não são próximos aos filhos…” É verdade, quis destacar isso, porque na quarta-feira que vem prosseguirei esta catequese colocando o foco na beleza da paternidade. Por isso escolhi começar pelo escuro para chegar à luz. Que o Senhor nos ajude a entender bem estas coisas. Obrigado.

Tradução: Canção Nova.

Fonte: ZENIT.ORG – Cidade do Vaticano/Roma, 28 de janeiro de 2015 – Internet: clique aqui e aqui.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

As paróquias sejam ilhas de misericórdia no mar da indiferença, pede Francisco

Iacopo Scaramuzzi
Vatican Insider
27-01-2015
Apresentação da Mensagem Anual da Quaresma de Papa Francisco (da esquerda para a direita, temos):
Mons. Segundo Tejado Muñoz - subsecretário do Pontifício Conselho Cor Unum;
Mons. Gianpietro Dal Toso - Secretário do Pontifício Conselho Cor Unum
Padre Federico Lombardi - diretor da Sala de Imprensa da Santa Sé e
Michel Roy - secretário-geral da Cáritas Internacional.
 
“Como desejo que os lugares onde a Igreja se manifesta, particularmente as nossas paróquias e as nossas comunidades, se tornem ilhas de misericórdia no meio do mar da indiferença!” Foi o que indicou o Papa Francisco na mensagem anual da Quaresma (que este ano vai de 22 de fevereiro a 5 de abril, dia da Páscoa). O texto concentra-se na ideia, importante para o Papa, da superação da “globalização da indiferença”.

Deus “não é indiferente a nós”, explicou Jorge Bergoglio na mensagem assinada em 04 de outubro, festa de São Francisco de Assis, e que foi apresentada nesta terça-feira no Vaticano. “Interessa-Se por cada um de nós; o seu amor impede-O de ficar indiferente perante aquilo que acontece conosco. Coisa diversa se passa conosco! Quando estamos bem e comodamente instalados, esquecemo-nos certamente dos outros (isto, Deus Pai nunca faz!), não nos interessam os seus problemas, nem as tribulações e injustiças que sofrem; e, assim, o nosso coração cai na indiferença”. O mundo “tende a fechar-se em si mesmo e a fechar a referida porta pela qual Deus entra no mundo e o mundo n’Ele. Sendo assim, a mão, que é a Igreja – explicou o Papa –, não deve jamais surpreender-se, se se vir rejeitada, esmagada e ferida”. A indiferença é uma “tentação real inclusive para nós cristãos”, e, como consequência, temos necessidade de ouvir “cada Quaresma o grito dos profetas que levantam sua voz e nos despertam”.

O Pontífice argentino destacou que “o Povo de Deus” necessita renovar-se “para não ser indiferente e para não se fechar em si mesmo”, motivo pelo qual propôs três passos que devem ser meditados “para esta renovação”.

[1º] Em primeiro lugar, a partir da Carta de São Paulo aos Coríntios (“Se um membro sofre, com ele sofrem todos os membros” – 1Cor 12,26), o Papa Francisco indicou que “só se pode testemunhar algo que antes experimentamos”, razão pela qual a Quaresma “é um tempo propício para nos deixarmos servir por Cristo e, deste modo, tornarmo-nos como Ele. Verifica-se isto quando ouvimos a Palavra de Deus e recebemos os sacramentos, especialmente a Eucaristia. Nesta, tornamo-nos naquilo que recebemos: o corpo de Cristo. Neste corpo, não encontra lugar a tal indiferença que, com tanta frequência, parece apoderar-se dos nossos corações; porque, quem é de Cristo, pertence a um único corpo e, n’Ele, um não olha o outro com indiferença”.

[2º] Em segundo lugar, explicou Francisco, a partir da pergunta do Gênesis “Onde está o teu irmão?” [Gn 4,9], “tudo o que se disse a propósito da Igreja universal é necessário agora traduzi-lo na vida das paróquias e comunidades. Nestas realidades eclesiais, consegue-se, porventura, experimentar que fazemos parte de um único corpo? Um corpo que, simultaneamente, recebe e partilha aquilo que Deus nos quer dar? Um corpo que conhece e cuida dos seus membros mais frágeis, pobres e pequeninos? Ou refugiamo-nos num amor universal pronto a comprometer-se lá longe no mundo, mas que esquece o Lázaro sentado à sua porta fechada?” Por isso, a esperança de que “cada comunidade cristã” possa “cruzar o umbral que a põe em relação com a sociedade que a cerca, com os pobres e os incrédulos”, já que “a Igreja é, por sua natureza, missionária, não fechada em si mesma, mas enviada a todos os homens”. “Amados irmãos e irmãs – escreveu o Papa Francisco –, como desejo que os lugares onde a Igreja se manifesta, particularmente as nossas paróquias e as nossas comunidades, se tornem ilhas de misericórdia no meio do mar da indiferença!”

[3º] Para concluir, retomando o versículo da Carta de Tiago que este ano inspira o título da mensagem papal (“Fortalecei os vossos corações” – Tg 5,8), o Papa insiste em que “também como indivíduos temos a tentação da indiferença. Estamos saturados de notícias e imagens impressionantes que nos relatam o sofrimento humano, sentindo ao mesmo tempo toda a nossa incapacidade de intervir. O que fazer para não nos deixarmos absorver por esta espiral de terror e impotência?” A resposta do Pontífice é, em primeiro lugar, rezar (“A iniciativa 24 horas para o Senhor, que espero se celebre em toda a Igreja – mesmo a nível diocesano – nos dias 13 e 14 de março, pretende dar expressão a esta necessidade da oração”), e depois vem a caridade (“A Quaresma é um tempo propício para mostrar este interesse pelo outro, através de um sinal – mesmo pequeno, mas concreto – da nossa participação na humanidade”), para concluir com a conversão, “porque a necessidade do irmão recorda-me a fragilidade da minha vida, a minha dependência de Deus e dos irmãos” e permite encontrar “um coração forte e misericordioso, vigilante e generoso, que não se deixa fechar em si mesmo nem cai na vertigem da globalização da indiferença”.

Participaram da apresentação da mensagem do Papa na Sala de Imprensa vaticana, mons. Giampietro Dal Toso, secretário do Pontifício Conselho Cor Unum, mons. Segundo Tejado Muñoz, subsecretário do mesmo dicastério, e Michel Roy, secretário-geral da Cáritas Internacional. Mons. Dal Toso, em particular, indicou três âmbitos da intervenção caritativa: a reconstrução do Haiti após o terremoto (para o que a Igreja católica já contribuiu com cerca de 21,5 milhões de dólares), o Oriente Médio, particularmente a Síria e o Iraque, e as Filipinas, para onde acaba de viajar o Papa Francisco.

Ao responder aos jornalistas sobre a fusão do Pontifício Conselho Cor Unum com outros dicastérios vaticanos, no contexto da reforma do Papa Francisco, Dal Toso afirmou que “a caridade abre muitas portas, e é cartão de apresentação para a Igreja; isso será seguramente levado em consideração na revisão das estruturas da cúria, e posso imaginar que a eventual reestruturação dê um impulso maior ao grande mundo da caridade e da presença da Igreja no mundo para a promoção da humanidade”.
 
Para ter acesso à íntegra dessa mensagem do papa, clique aqui.

Traduzido do italiano por André Langer. Para ter acesso ao artigo na versão original italiana, clique aqui.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Quarta-feira, 28 de janeiro de 2015 – Internet: clique aqui.

DOIS MITOS SOBRE A ECONOMIA BRASILEIRA

Ao contrário do que se tem dito:
a pobreza aumentou

Editorial
Repetida à exaustão durante a campanha para a reeleição da presidente Dilma Rousseff, a propalada redução da pobreza nos governos do PT [Partido dos Trabalhadores], especialmente nos últimos quatro anos, teve papel central na conquista de votos que asseguraram a vitória da candidata petista por estreita margem. Se os dados mais recentes sobre a pobreza no Brasil fossem conhecidos durante a campanha eleitoral, porém, talvez a candidata da situação não tivesse conquistado todos os votos que obteve - e o resultado da eleição poderia ter sido diferente.

O que se constata agora - e já se podia perceber por dados compilados por instituições oficiais antes das eleições, mas espertamente retidos pelo governo, que só autorizou sua publicação depois de conhecido o resultado das urnas - é que, no governo Dilma, o processo de redução da pobreza começou a dar sinais claros de esgotamento. Na parte mais baixa da escala econômico-social, o quadro está piorando, como mostrou o Panorama Social da América Latina 2014* que a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) divulgou há dias. Segundo o estudo, a pobreza extrema voltou a crescer no Brasil.

Em trabalho divulgado no fim de 2014, no qual procurou demonstrar a continuidade da melhora da renda dos mais pobres, o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) alegou que, "entre 2001 e 2013, a extrema pobreza teria caído mais da metade, saindo de 8,1% para 3,1% da população".

Por se basear em metodologia diferente, o estudo da Cepal chega a resultados maiores. Independentemente dos números, o que importa é avaliar sua tendência. O que se constata é que, ainda que fosse bem melhor do que a situação aferida em 2001, em 2013 o quadro social brasileiro foi pior do que o de 2012. Os brasileiros que vivem em extrema pobreza passaram de 5,4% para 5,9% da população total. Isso quer dizer que as condições de vida pioraram para cerca de 1 milhão de brasileiros. Foi o que mostrou também um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), segundo o qual, após uma década de queda da miséria, o número de brasileiros em condições de extrema pobreza aumentou entre 2012 e 2013.

Os petistas repetem que, combinados, o crescimento econômico e as políticas de renda - como o Bolsa Família - incorporaram ao mercado milhões de brasileiros. Apesar do exagerado tom eleitoral, tais declarações tinham alguma sustentação nos dados sociais.

Os quatro anos do primeiro mandato de Dilma Rousseff, porém, produziram resultados que desmentem aquelas afirmações demagógicas. O crescimento [da economia] foi medíocre - e particularmente ruim nos dois últimos anos do período, justamente aqueles em que, como se começa a constatar, os indicadores sociais passaram a piorar.

Ainda que do ponto de vista numérico nem tudo é piora - a economia ainda consegue criar postos de trabalho, a pobreza no conceito mais amplo continua a diminuir proporcionalmente à população -, é inegável que, do ponto de vista qualitativo, a situação se deteriora. A redução da pobreza se alcança graças, principalmente, a políticas que se assemelham a ações de caridade, não a iniciativas públicas que efetivamente incorporem a população carente à economia, proporcionando-lhe oportunidades de obter renda regular graças a seu trabalho. Os empregos que ainda se criam são em setores que exigem pouca qualificação e, consequentemente, pagam salários mais baixos.

"A recuperação da crise financeira internacional não parece ter sido aproveitada suficientemente para o fortalecimento de políticas de proteção social que diminuam a vulnerabilidade frente aos ciclos econômicos", observaram os autores do relatório da Cepal. A observação se aplica a toda a região, mas tem particular significado para o Brasil. O indispensável ajuste econômico, sobretudo das finanças do governo federal, exigirá políticas públicas austeras. Combinadas com a provável contenção do ritmo da economia, essas políticas podem ter efeito sobre um mercado de trabalho já fragilizado, com impacto sobre os indicadores sociais.

* Para ter acesso a este relatório, seja em espanhol como em inglês, clique aqui (os links para baixar, gratuitamente, esse documento encontram-se à direita da página).

Fonte: O Estado de S. Paulo – Notas e Informações – Quarta-feira, 28 de janeiro de 2015 – Pg. A3 – Internet: clique aqui.

Juro alto não derruba inflação em 2015

Paulo Rabello de Castro*
Paulo Rabello de Castro - economista
O governo Dilma Rousseff do segundo mandato perdeu a atitude crítica que tinha diante dos efeitos deletérios do juro alto na economia brasileira. Dilma parece resignada com o fato de que o Banco Central (BC) vai continuar se reunindo no Comitê de Política Monetária para subir a taxa de juros até que a curva inflacionária dê sinais efetivos de reversão.

A antiga disposição da presidente de debater as sequelas deixadas por quase duas décadas de uma política de juros sem paralelo - afinal, o Brasil é o maior campeão mundial de juros altos de todos os tempos! - esvaneceu-se ante o ditame do mercado, que aqui associa diretamente o movimento altista da Selic, comandada pelo BC, a uma suposta recuperação do controle da inflação. Nada mais longe da verdade.

O ano de 2015 mostrará que, além de extremamente custosa para o equilíbrio orçamentário, a recorrente elevação do juro básico só consegue alcançar, na economia brasileira, um coeficiente muito pobre de resposta como instrumento de combate à inflação. Em outras palavras, combater inflação como fazemos no Brasil custa caríssimo para o bolso do contribuinte e obtém resultados pífios no cotejo com os sacrifícios impostos ao setor produtivo nacional.

O ano de 2015 mostrará, mais uma vez, as consequências de uma política econômica deletéria e desastrosa na qual, desgraçadamente, governos sucessivos têm insistido: esperar que apenas o juro alto dê conta de trazer a inflação oficial para o centro da meta projetada de 4,5% ao ano. O BC, ao elevar ainda mais o juro real, já o mais alto do planeta, em completo desalinho com as taxas médias reais próximas ou abaixo de zero praticadas lá fora, cria sequelas terríveis que, na prática, anulam o esforço inicial de contenção de demanda previsto pelos economistas oficiais. Não é por outro motivo que aqui se costuma calcular o chamado "juro neutro" - aquele que, em tese, equilibraria a demanda geral da economia com a oferta efetiva de bens e serviços - num nível real de 4% a 5%. São cálculos etéreos, sem nenhum fundamento científico, mas que dão uma ideia, isso sim, do grau de loucura a que chegaram os profissionais da economia no Brasil, insensíveis às graves consequências de aplicarem nas condições locais o remédio que aprendem nos livros escritos para descrever processos inflacionários distintos em economias consideradas "normais".

A economia brasileira não é "normal". Aqui mantemos um elevado grau de atrelamento automático anual de preços, salários e contratos à inflação passada, que nem de longe se enxerga no dia a dia de outros países avançados ou emergentes. A indexação à inflação é uma praga violenta que o Brasil nunca extirpou por completo. Convivemos com reajustes anuais considerados "pétreos", dos quais ninguém abre mão. Só isso já é suficiente para impor uma rigidez tremenda aos preços na economia, sobretudo se o próprio governo é o primeiro a praticar tais reajustes automáticos, inclusive sobre impostos (embora, ladinamente, deixando de ajustar a tabela de Imposto de Renda). Portanto, esperar que juros altos derrubem uma inflação rígida é esperar que fogo brando consiga amolecer uma barra de aço.

Não obstante a indexação resistente, o pior inimigo da política do juro alto no Brasil é ela mesma. Em que sentido? Os juros altos têm sócios relevantes em terras de Cabral:

·        Rentistas preferem juro alto.
·        Bancos engordam lucros com juro alto.
·        Carteiras de aplicação financeira obtêm ganhos quando os juros sobem, por terem papéis (as LFTs) atrelados ao seu rendimento diário, uma excrescência da dívida pública megainflacionária que sobrevive até os dias de hoje.

Fazem bem os rentistas e bancos em buscar o maior juro e o melhor spread**. Errado é o governo, que, anos a fio, se conforma em aceitar juros de mau pagador. Distintamente de países de vida financeira normal, aqui a elevação de juros é comemorada por relevantes segmentos da economia, atrelados a vantagens na rolagem da enorme dívida do governo, que consome a bagatela de R$ 260 bilhões ao ano em custo de financiamento. Até o governo, pasmem, "lucra" com os encargos que faz o contribuinte pagar, pois cobra Imposto de Renda aos rentistas!

Vivemos um festival de distorções na política financeira tupiniquim que liquida as chances de um movimento altista de juros vir a atuar de modo eficaz como freio efetivo à demanda agregada. De fato, os rentistas, que comandam expressiva fatia da renda nacional, gastarão mais, nunca menos. Assim como gastarão mais todos os imensos segmentos de pessoas que recebem cheques do governo - são 60 milhões (!) de contracheques emitidos pelo governo federal por mês -, que não ficarão mais curtos só porque o juro subiu, afetando a economia produtiva privada. Esta, sim - a indústria, o comércio, o agronegócio -, pagará caro pela alta dos juros, refletida no seu custo de empréstimos. A oferta geral, isto é, a produção da economia, será freada. Muito mais do que a demanda, pois parte relevante desta, como sabemos, é insensível ao recado dos juros em alta.

Por fim, a elevação da Selic, ao agigantar os encargos financeiros mais pesados do mundo (o Brasil também é campeão mundial em encargos do governo, com seus 5,3% do PIB ao ano em custos de juros), torna quase impossível a tarefa de produzir o "superávit fiscal primário" que, justamente, é formado para cobrir tais encargos. Quem arcará com essa conta dantesca? O pagador de impostos, claro, ou seja, você, cuja disponibilidade para produzir ou gastar será reduzida pelos impostos extras criados para cobrir o buraco dos juros públicos de um governo perdulário. Óbvio que a política econômica assim desenhada não tem a mínima chance de funcionar bem, tanto menos de trazer a curva inflacionária para um patamar decente, a um custo social e tributário razoável.

* Paulo Rabello de Castro é coordenador do “Movimento Brasil Eficiente”, lançou recentemente o livro O Mito do Governo Grátis (Edições de Janeiro, 2014).

** Spread bancário é a diferença entre o que os bancos pagam na captação de recursos e o que eles cobram ao conceder um empréstimo para uma pessoa física ou jurídica. No valor do spread bancário estão embutidos também impostos como o IOF [Imposto sobre Operações Financeiras]. Nesse contexto, o termo inglês "spread" significa "margem". [...] Para os bancos, quanto maior o spread, maior é o lucro nas suas operações. O spread bancário brasileiro é um dos mais altos do mundo, o que gera muitas críticas, uma vez que é um dinheiro que poderia estar fazendo girar a economia e não ser totalmente utilizado pelos bancos (Fonte: clique aqui).

Fonte: O Estado de S. Paulo – Espaço aberto – Terça-feira, 27 de janeiro de 2015 – Pg. A2 – Internet: clique aqui.