«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Como passar para 2021?

 Para fazer essa limonada

 Vera Iaconelli

Doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP), diretora do «Instituto Gerar», autora de «O Mal-estar na Maternidade» e «Criar Filhos no Século XXI» 

Como encarar a virada de um ano que parece nem ter começado

SHOW PIROTÉCNICO DA VIRADA - Santos (SP) - anos atrás

O bicho humano, desde que adquiriu a capacidade de refletir, está condenado a administrar o tempo. A forma como lidamos com o antes, o durante e o depois é arte que levamos a vida tentando aprender. 

O sujeito preso no passado terá a melancolia como companheira, acreditando que antes tudo era melhor, incapaz de viver o momento presente ou de projetar algo de bom no futuro. 

Já o fissurado no agora não aproveitará o legado da experiência e será sempre pego de surpresa pelo que vem.Quem, por outro lado, opta por viver no futuro, tentando prevê-lo, torna-se um poço de ansiedade. 

É fácil observar como as crianças são mais propensas a estar no presente, jovens mal conseguem esperar o amanhã e velhos buscam sentidos e respostas em suas memórias. 

Nossa cultura não é boa conselheira na administração do tempo: amaldiçoamos a passagem dos anos, buscamos um platô de felicidade no futuro que nunca chega e somos quase incapazes de estar no presente — quem medita que o diga. 

O Ano-Novo é a comemoração coletiva mais emblemática da nossa relação com o tempo. Ele nos convida a fazer uma retrospectiva, a projetar metas, enquanto nos impele a curtir a festa ao máximo, pois o prazer — sempre episódico — só se dá no aqui e agora. Espécie de ritual no qual os tempos do homem dialogam, essa data costuma ser mais palatável do que o Natal. 

Na passagem de 2019 para 2020, tive um dos meus fins de ano mais memoráveis. Em outro país, na companhia desejada, brindei a virada do ano dentro de um táxi, enquanto tentávamos chegar ao destino combinado. Momento epifânico, fruto da graça diante do imprevisto e da aposta renovada em enfrentar os desafios de 2020. 

Estávamos antes das 200 mil mortes por Covid-19. Não tínhamos como adivinhar a pandemia, nem sua calamitosa administração.

Passados dez meses, traumatizados e exaustos, prevemos a continuidade da experiência de isolamento e a posição de lanterninhas mundiais na administração da vacina.

Mas é aqui que o imponderável pode nos ajudar. Por mais que desconfiemos do que nos espera, de fato nada sabemos. Não saber o que acontecerá abre espaço para o risco de termos surpresas positivas. Como os memoráveis encontros que este ano nos obrigou a promover, criando laços inéditos.

Se não sabemos o que virá, devemos refletir sobre o que aconteceu neste fatídico ano.

Aqui o acerto de contas tem vários níveis. Em termos coletivos fracassamos, lutando mais entre nós do que contra a ameaça comum. 

Aqueles que tiveram um ano particularmente bom, contrariando as expectativas, nem por isso se sentiram leves cientes do horror a sua volta.

Quem não sofre vivendo em um país desgovernado só pode estar levando alguma vantagem com o sofrimento alheio.

Mais do que nunca, devemos lembrar do esforço hercúleo dos que se posicionaram contra o negacionismo, a violência e a injustiça ao mesmo tempo em que cuidavam de suas vidas e da vida dos seus. Não todos, mas aqueles que merecem passar essa noite em nossos pensamentos foram corajosos, magnânimos e incansáveis. 

O que nos espera em 2021 é uma mistura do que estamos passando, com o imponderável que está por vir e a nossa decisão particular de lidar com tudo isso.

No ano em que todo dia foi “dia da marmota”, datas que servem para refletirmos sobre o que fazemos com o nosso tempo são absolutamente necessárias. A aposta em 2021 é o posicionamento político mais promissor do momento. 

Fonte: Folha de S. Paulo – Saúde / Colunas e Blogs – Terça-feira, 29 de dezembro de 2020 – Pág. B5 – Internet: clique aqui (acesso em: 30/12/2020).

Quem ama não mata

 Que horror!

 Eliane Cantanhêde

Jornalista 

As vidas das mulheres importam e isso é cultura, é educação, depende do Estado e de cada um de nós

O momento da prisão do engenheiro Paulo José Arronenzi, que matou sua ex-esposa, a juíza Viviane Vieira do Amaral Arronenzi

O Brasil está doente, não apenas por causa da pandemia, da economia, do desemprego, da corrupção e do desgoverno, mas porque a desigualdade social é a oitava do mundo, o trânsito é assassino e o feminicídio, endêmico, está em toda a parte, em todas as classes sociais. Um horror, uma vergonha, uma sensação de impotência num País tão especial, tão lindo, com uma natureza tão privilegiada. 

Fiquemos no feminicídio, depois de dois fatos chacoalharem o Judiciário na reta final de um ano tão dramático no mundo inteiro: o assassinato no Rio de uma juíza, Viviane Vieira do Amaral Arronenzi, 45 anos, e as declarações insanas de um juiz (e um juiz de Vara de Família!), Rodrigo Azevedo Costa, reveladas pelo programa Papo de Mãe, das jornalistas Mariana Kotscho e Roberta Manreza. 

Na véspera do Natal, data da esperança e da generosidade, o engenheiro Paulo José Arronenzi assassinou a juíza Viviane a facadas, na frente das três filhas de ambos, uma de 9 anos e as gêmeas de 7. Viviane tentava reagir à insanidade com racionalidade, tinha dispensado a escolta e estava levando as crianças para passar o Natal com o pai, que nem sequer se deu ao trabalho de fugir. Ficou ali, olhando a mulher morrer, até a polícia chegar. 

É chocante, desesperador, e gerou reações do presidente do Supremo e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Luiz Fux, do também ministro do STF Gilmar Mendes, da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e da Defensoria Pública. Mas está dentro da "normalidade".

Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 88% dos feminicídios são cometidos por atuais ou ex-companheiros e 43% deles – pasmem! – na frente dos filhos.

É, evidentemente, uma patologia. Comprova o quanto os doentes se recusam a se assumir doentes, as famílias não reconhecem o tamanho do problema, as vítimas viram reféns do pavor e da pena. Mas, muito mais do que um problema individual e familiar, trata-se de uma patologia social, em que pesam uma cultura machista e dominadora, uma educação nas escolas e nos lares que gera e reforça a sensação de posse, de proprietário e propriedade. 

O resultado, macabramente caricato, é um juiz de Vara de Família capaz de bater no peito e gritar ao mundo – ou às mulheres? – que "ninguém apanha de graça", "não está nem aí para a Lei Maria da Penha" e se orgulha de ter tirado a guarda dos filhos de mães agredidas para dar aos pais agressores. Equivale a dizer: a mulher maltratada, abusada e ameaçada pede socorro ao Estado e é maltratada, abusada e ameaçada pelo agente do Estado. Estarrecedor. 

A mídia está repleta de casos de mulheres espancadas e mortas, de diferentes idades e classes sociais, em todos os Estados. Na capa do Correio Braziliense de 22 de dezembro, as fotos de três moças do DF: Luciene, morta a socos no meio da rua, Maria e Cleide, vítimas de tiros. Todas três eram mães. E se tivessem recorrido ao juiz Azevedo Costa? Ou a alguém do mesmo feitio? Morreriam do mesmo jeito, mas ainda mais humilhadas e sem os filhos. 

Os dois novos fatos, o assassinato de uma juíza e a exposição de um juiz injusto, jogam o foco no Judiciário, mas produzem mais discursos do que mudanças. Até porque, como adverte a juíza e escritora Andréa Pachá...

... não adianta endurecer ainda mais as leis, é preciso intervir em comportamentos sociais que geram e, de certa forma, estimulam a violência contra as mulheres.

Ela ensina: os criminosos não vão parar de matar a companheira por temer dois, cinco ou dez anos a mais na prisão, eles só vão parar quando a sociedade mudar, quando homens, mulheres, inclusive juízes e policiais, mudarem. Isso é cultura, é educação, depende do Estado, dos líderes, dos pais, de cada um de nós. As vidas das mulheres importam. 

Fonte: O Estado de S. Paulo – Política / Colunista – Domingo, 27 de dezembro de 2020 – Pág. A5 – Internet: clique aqui (acesso em: 30/12/2020).

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Caindo na real...

 “Ser vacinado não nos isenta de andar de máscara pelos próximos dois anos”

 Aline Mazzo

Jornalista 

Entrevista especial com Margareth Dalcomo

Graduada pela Escola de Medicina da Santa Casa de Misericórdia de Vitória (1978) e doutora pela Unifesp (1999), pesquisou a tuberculose e criou o ambulatório do Centro de Referência Professor Hélio Fraga, da Fiocruz, o qual dirigiu de 2009 a 2012. É membro do Comitê Assessor em Tuberculose do Ministério da Saúde e de comissões da Boston Medical School, da Organização Mundial da Saúde e do Banco Mundial. Na pandemia de Covid-19, assessorou o Ministério da Saúde na gestão Luiz Henrique Mandetta. 

Para a pneumologista e pesquisadora da Fiocruz, país perdeu o “timing” na organização da vacinação contra a Covid-19

MARGARETH DALCOLMO

Uma das profissionais de saúde mais atuantes durante a pandemia, Margareth Dalcolmo, pneumologista e pesquisadora da Fiocruz, é categórica ao afirmar que o país está atrasado na organização da vacinação, o que vai estender o prazo para imunização da população brasileira. 

Em entrevista à Folha, ela critica o obscurantismo do discurso oficial a respeito da gravidade da pandemia, destaca o trabalho dos pesquisadores e diz que é obrigação de toda a comunidade acadêmica vir a público para esclarecer as dúvidas da população, inclusive em relação às vacinas. 

A pesquisadora ainda alerta que os cuidados como uso de máscara de proteção, distanciamento social e evitar locais fechados deverão permanecer pelos próximos dois anos, mesmo após a chegada da vacina. “São medidas civilizatórias.” 

Eis a entrevista. 

Muitos pesquisadores afirmam que o Brasil está atrasado no plano de vacinação. Qual impacto que a demora nessa organização da imunização terá sobre o controle da pandemia?

Margareth Dalcolmo: Nós temos um atraso no “timing” das providências. Há oito meses, assim que a epidemia eclodiu, as vacinas começaram a ser produzidas. Isso é uma coisa inédita. Nunca se produziu tanto em tão pouco tempo. Foram usadas plataformas de vacinas completamente novas.

O Brasil fez uma coisa muito boa, que foi investir em um processo de transferência de tecnologia e de nacionalização da vacina junto à AstraZeneca através da Fiocruz, que é, sem dúvida, louvável.

Por outro lado, deixamos de prestar atenção nas outras vacinas que estavam em produção no mundo. E, hoje, há vacinas que já estão sendo aprovadas e nós não temos cronograma nem acordos de cooperação para sua compra.

Então, hoje, quando nós vemos o nosso ministro adiantar que vai ter uma compra de 70 milhões de doses junto à Pfizer, é estranho. Porque, até onde sabemos, o que temos assegurado são 8,5 milhões de doses.

Por outro lado, há a vacina da Sinovac, junto ao Instituto Butantan. As vacinas não podem ser para um estado só. Elas têm de ser incorporadas ao PNI [Programa Nacional de Imunização].

INSTITUTO BUTANTAN - São Paulo: produção da Coronavac

Estamos vivendo um momento de grande paradoxo. Se por um lado o Brasil tem grande tradição, reconhecida internacionalmente, de saber vacinar, pois o PNI é muito estruturado e organizado, por outro temos a preocupação com a logística e a aquisição de insumos. Haverá várias vacinas, e a logística é diferente para cada uma delas.

Já a questão dos insumos é preocupante. Não porque não consigamos comprar 300 mil seringas e agulhas — se a produção brasileira não der conta, há condições de adquirir no mercado externo, mas o mundo inteiro está atrás da mesma coisa, o que deve aumentar os custos. Isso poderia ter sido tratado antes.

E há uma desigualdade evidente em relação às vacinas. O Canadá, por exemplo, já está com cinco doses de vacina para cada habitante, por exemplo. Eles vão doar as doses excedentes para o consórcio Covax Facility, que deve destiná-las aos países mais pobres — o que, certamente, não é o caso do Brasil. 

A sra. previu o janeiro mais triste da história. O que ainda é possível fazer para evitar um desastre?

Dalcolmo: Estamos num momento epidemiológico muito grave, esse recrudescimento que houve do mês de outubro para cá vai resultar realmente em uma segunda onda no Brasil. Vamos ter um fim e um começo de ano muito tristes no país, com uma segunda onda estabelecida.

A doença se rejuvenesceu. Temos visto muito mais jovens ficarem doentes. Os jovens se acham invulneráveis, se aglomeram, estão trazendo a doença para dentro de casa. Entendo que esteja todo mundo muito cansado. Mas é uma epidemia longa, grave, desigual, que desnudou a desigualdade social obscena do Brasil.

Bares lotados na região do Leblon, no Rio de Janeiro: descuido e irresponsabilidade!

Quando você vê a fila de pessoas esperando um leito para serem operadas, escândalos havidos em hospitais de campanha, corrupção em compras emergenciais, a gente se constrange muito.

E temo que se não resolvermos essa questão de insumos de uma maneira harmônica, mesmo sendo de responsabilidade dos municípios, isso vai dar margem a outro tipo de irregularidade, para não dar outro nome.

Se somarmos o que tem previsto de compra de insumo federal, estadual e municipal, ultrapassa os 300 milhões ao que o ministro está se referindo. Para quê? Nós somos 200 milhões de habitantes. Não vamos conseguir vacinar todo mundo. Não há vacina para todo mundo.

Aliás, não haverá vacina para todo mundo em todo lugar do mundo, porque se nós somarmos tudo o que vai ser produzido, vamos ter aproximadamente 2,7 bilhões de doses em 2021. Nós somos quase 8 bilhões de habitantes no planeta. A disputa por doses também é muito desigual. Sabemos que os países ricos vêm na frente e compram. 

Se o país tivesse se antecipado nesses processos, seria possível ampliar a quantidade de vacinados em 2021?

Dalcolmo: Acho que sim, pelo menos em questão de prazos. O que está previsto no cronograma do Ministério da Saúde é um período contínuo de 16 meses. Isso é muito tempo, porque precisaríamos ter uma taxa de população vacinada no ano de 2021 perto de 60%, para alcançarmos a célebre imunidade de rebanho, de que todo mundo fala, mas que é um termo que só se aplica à vacinação.

Se nós tivéssemos nos adiantado na aquisição de doses e insumos, e tivéssemos investido pesadamente na logística da vacinação, poderíamos alcançar isso. Entendo que o Brasil é complexo, mas temos tradição e expertise em vacinação. O Brasil sabe vacinar. 

Pesquisa Datafolha de dezembro mostra que 22% dos brasileiros não pretendem se vacinar contra a Covid-19, e esse índice chega a 50% se a vacina for chinesa. A que a sra. atribui esse descrédito da vacina?

Dalcolmo: A duas coisas. Primeiro, a um discurso muito equivocado por parte de algumas autoridades. Um discurso que é um desserviço ao Brasil e à opinião pública, que desacredita as vacinas.

Segundo, à ignorância. Ignorância no sentido de não saber. E é aí que entra o nosso papel de médicos, cientistas e pesquisadores de alertar e informar a população.

As pessoas têm de entender que tudo vem da China. Não é que a vacina da Coronavac é chinesa. A vacina da AstraZeneca (Oxford), cuja fábrica foi visitada recentemente pela Anvisa, fica na China.

O insumo farmacêutico ativo, chamado de IFA, que nós vamos receber agora para produzir a vacina, vem da China.

A China é o maior produtor do mundo de matéria-prima da indústria farmacêutica e da indústria de biotecnologia. Por isso é uma questão de alertar a população.

Vejo pessoas que ingenuamente dizem que só querem tomar a vacina inglesa. A vacina inglesa também vem da China.

Esse preconceito não é arraigado. É um preconceito ingênuo alimentado por um discurso oficial obscurantista. 

Doses da vacina Coronavac chegando no aeroporto de Guarulhos, SP

Quanto influencia a população o presidente Jair Bolsonaro declarar que não tomará a vacina?

Dalcolmo: É um discurso equivocado e obscurantista que só vai ser quebrado na medida que nós, de maneira consistente e transparente, dissermos a verdade às pessoas.

Participei de uma live na última semana com uma enquete sobre quem tomaria a vacina. No início da live, só 40% diziam sim. Após as explicações, viramos esse placar subir para quase 90%. Isso só com esclarecimentos. 

Entre os que desejam se vacinar, a expectativa é a de que a vida volte ao que era antes após receber as doses. Mas a sra. já afirmou que teremos que manter alguns cuidados. Quais e por quê?

Dalcolmo: Vamos ter de manter os cuidados por muito tempo. Esse vírus não vai desaparecer da nossa vida nunca mais. Nada foi tão pandêmico quanto ele.

No Brasil, não há um município que não tenha caso registrado. O vírus vai ficar endêmico. Portanto, o fato de ser vacinado não nos isenta de andar de máscara pelos próximos dois anos, por exemplo. De termos cuidado com ambientes fechados, de solicitarmos testes negativos para embarcar em voos internacionais.

Quando alguém ingenuamente diz que não vai se vacinar, também não vai viajar. Nem vai matricular criança na escola. São medidas que não são, ao meu juízo, coercitivas. Eu vejo essas medidas como civilizatórias. Pelos próximos dois anos, os cuidados precisarão ser mantidos. 

O Brasil é um dos países que acumulam mais mortes por 100 mil habitantes, embora essa conta seja liderada por países europeus. Por que fomos especialmente atingidos?

Dalcolmo: Nossa situação epidemiológica não é semelhante à dos países europeus, mas sim dos Estados Unidos, onde morreram de maneira desigual as pessoas. Sabemos que a letalidade está relacionada a determinados fatores de risco. Morreram mais pessoas idosas, obesas. Mas a letalidade foi muito alta porque a epidemia pegou o Brasil desprevenido.

A nossa maior arma, a mais potente de todas, que é o SUS, mesmo tendo entrado tão combalido nessa briga foi quem realmente resolveu.

Também erramos muito no distanciamento social. A falta de harmonia entre o discurso da comunidade científica e o discurso oficial foi enorme. Um dizendo para usar máscara e fazer distanciamento social e o outro dizendo que era uma gripe. Isso tudo prejudicou muito e contribuiu para o aumento da mortalidade.

A letalidade, que é a morte por casos confirmados, foi alta porque continuamos a pagar o preço de testarmos muito pouco. O Brasil errou nisso desde o início. Nós testamos pouquíssimo, o que é um absurdo. A condução, de modo geral, deixou muito a desejar. 

A ignorância faz a festa do coronavírus em nosso país: o preço é a morte!

As vacinas aprovadas, ou que estão em vias de aprovação, são capazes de combater a variante do novo coronavírus identificada no Reino Unido?

Dalcolmo: Essas mutações que foram detectadas no Reino Unido estão entre muitas outras que já houve no Sars-CoV-2. Já há mais de 700 mutações verificadas, nenhuma delas modificou a taxa de patogenicidade, ou seja, a capacidade de causar doenças mais graves pela Covid-19.

Essas variantes detectadas no Reino Unido, na verdade são três, todas elas já haviam sido detectadas antes, mas é a primeira vez que elas são detectadas conjuntamente no genoma.

Isso não causou aumento de casos graves, mas um aumento da transmissão.

Essa transmissão, na verdade, é muito mais atribuível às aberturas do que à própria cepa mutada. E a mesma coisa pode acontecer no Brasil.

De novo, chamo a atenção para que as medidas de contenção e de cuidado nesse fim de ano se imponham.

Mas essa mutação não implica nenhuma modificação quanto à eficácia das vacinas, uma vez que as mutações observadas não têm a ver com a patogenicidade do Sars-CoV-2. 

Fonte: Folha de S. Paulo – Entrevista da 2ª – Segunda-feira, 28 de dezembro de 2020 – Pág. A10 – Internet: clique aqui (acesso em: 29/12/2020).

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Ouçamos o Papa

 Em seu discurso à Cúria Romana, por ocasião do Natal, Papa Francisco cita dom Hélder Câmara

 Redação 

Morto em 1999, arcebispo de Olinda e Recife foi acusado de comunista e perseguido pelos militares durante a ditadura

PAPA FRANCISCO discursa durante a Audiência da Quarta-Feira, no Vaticano, dia 23 de dezembro de 2020 - Foto: Vatican Media

No encontro anual em que concedeu a bênção de Natal para a cúpula da Igreja, no Vaticano, o Papa Francisco recorreu às palavras de dom Hélder Pessoa Câmara para pedir «uma colaboração generosa e apaixonada no anúncio da Boa Nova sobretudo aos pobres». 

Em uma de suas frases famosas, dom Hélder disse:

«Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo; quando pergunto por que eles são pobres, chamam-me de comunista».

«Me vem à mente o que dizia aquele santo bispo brasileiro», falou Francisco na segunda-feira (21 de dezembro), antes de citar o trecho do religioso cearense, morto em 1999, e cujo nome está em processo de canonização desde fevereiro de 2015. 

Tornado arcebispo de Olinda e Recife em 1964, dom Hélder era fortemente envolvido com causas sociais e foi um contraponto à ditadura militar. 

Incentivou e fortaleceu as Comunidades Eclesiais de Base [CEB’s] e foi alçado ao posto de resistência ao regime. Passou a ser visto como líder na defesa dos direitos humanos. Foi acusado de comunista, chamado de «arcebispo vermelho» e perseguido pelos militares, sobretudo depois do Ato Institucional nº 5, que inaugurou o período de maior repressão da ditadura militar. 

Décimo primeiro filho de um jornalista e de uma professora primária, dom Hélder foi ordenado padre aos 22 anos e ainda jovem se envolveu com causas sociais. Coordenou os círculos operários cristãos e liderou a Juventude Operária Católica. Fundou, em 1933, a Sindicalização Operária Feminina, que lutava por direitos de empregadas domésticas e lavadeiras. 

Durante a Segunda Guerra Mundial, fundou a Comissão Católica Nacional de Imigração e trabalhou para acolher refugiados que chegavam ao país. 

Tornou-se bispo aos 43 anos, em 1952. No mesmo ano, conseguiu a aprovação do Vaticano para criar a Conferência Nacional do Bispos do Brasil, a CNBB. 

DOM HÉLDER PESSOA CÂMARA (1909-1999)

A partir de então passou a se dedicar a causas como a Cruzada São Sebastião, que resultou em conjuntos habitacionais para moradores de favelas, e o Banco da Providência, para atender aos sem renda. 

Foi um dos proponentes do Pacto das Catacumbas, em que 42 religiosos [bispos, agentes de pastoral e teólogos] se comprometeram a assumir atitudes com o objetivo de reduzir a pobreza global. O documento é considerado o embrião da Teologia da Libertação, corrente cristã que determina assumir «a opção preferencial pelos pobres». 

Na mensagem de Natal de 2020, o Papa Francisco disse ainda que a «pandemia é uma ocasião propícia para uma breve reflexão sobre o significado da crise em si mesma». 

«A crise é um fenômeno que afeta a tudo e a todos. Presente por todo lado em cada período da história, envolve as ideologias, a política, a economia, a técnica, a ecologia, a religião. Trata-se de uma etapa obrigatória da história pessoal e social.» 

Segundo ele, pode ser também um momento de transformação. «A crise é aquele crivo que limpa o grão de trigo depois da ceifa», disse Francisco. 

Vale a pena ler e refletir sobre o «Discurso do Papa Francisco à Cúria Romana para as Felicitações de Natal», para isso, favor clicar aqui 

Fonte: Folha de S. Paulo – Mundo – Sexta-feira, 25 de dezembro de 2020 – Pág. A8 – Internet: clique aqui (acesso em: 28/12/2020).

Muito interessante...

 “Céu” e “Inferno” são conceitos relativamente recentes para religiões

 Reinaldo José Lopes* 

Livro mostra como ideias greco-romanas e judaicas se fundiram para gerar conceitos sobre a vida após a morte

BART D. EHRMAN

A maioria dos personagens da Bíblia, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, nunca achou que iria para o Céu quando morresse – e muitos deles nem acreditavam na ideia de vida após a morte. 

A afirmação pode soar esquisitíssima para cristãos e judeus de hoje, mas ajuda a mostrar como as crenças sobre o Além das religiões do Ocidente são resultado de uma evolução lenta e complicada, que transcende os próprios textos bíblicos. 

Esse trajeto teológico tortuoso está contado em “Heaven and Hell: A History of the Afterlife” (“Céu e Inferno: Uma História da Vida Após a Morte”), mais recente livro do historiador americano Bart Denton Ehrman.

O pesquisador da Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill é autor de uma série de best-sellers sobre a figura histórica de Jesus e as origens do cristianismo, mas desta vez precisou analisar também aspectos mais amplos da cultura da Antiguidade, dos babilônios aos filósofos gregos e romanos. 

Levar em conta tal leque de influências é indispensável porque, paradoxalmente, as crenças de muitos católicos e protestantes sobre o tema talvez se inspirem mais em certos pensadores pagãos do que nos livros que vão do Gênesis ao Apocalipse. 

Quando o assunto são as recompensas ou punições que os ocidentais esperam receber na hora da morte, as ideias do ateniense Platão e do romano Virgílio são tão importantes quanto as do profeta Daniel e do apóstolo Paulo, explica Ehrman. 

A questão é que, nas antigas culturas do Mediterrâneo que inspiraram as narrativas do Antigo Testamento ou Bíblia hebraica, a ideia de que a alma de cada pessoa seria julgada por seus atos e receberia diferentes destinos conforme o bem ou o mal que praticou em vida era relativamente rara. 

Em vez de rezar para ir para o Céu, a maioria das pessoas cultuava Deus ou os deuses na esperança de ter uma vida feliz aqui mesmo na Terra. Quando a morte vinha, acreditava-se que praticamente todos os defuntos, sem distinção, passariam o resto da eternidade num Reino dos Mortos crepuscular, tedioso e imutável, onde não haveria nem recompensa nem punição. 

É mais ou menos o que vemos na ideia grega do Hades. Era preciso ser um inimigo declarado e ferrenho dos deuses, ou então um queridinho das divindades, para sofrer tormentos ou gozar de delícias de maneira individual. 

É possível que o lugar designado como Sheol pelos antigos israelitas fosse similar ao Hades.

Numa passagem famosa do Antigo Testamento, uma bruxa consegue invocar o espírito do profeta Samuel, que ela vê subindo do chão e chama de “elohim”, ou “ser divino” em hebraico. A cena é parecida com outra protagonizada pelo herói grego Odisseu (ou Ulisses) no poema “Odisseia”, de Homero. 

No entanto, também é possível interpretar as referências ao Sheol simplesmente como sinônimo de túmulo ou sepultura, diz Ehrman. Nesse caso, os antigos israelitas não apenas não veriam diferença entre os destinos dos bons e dos maus após a morte como também acreditariam que, uma vez que o sopro de Deus deixa o corpo humano, nada mais resta. 

Por volta de 400 a.C., do lado europeu do Mediterrâneo, o filósofo Platão, em seus diálogos sobre a natureza da realidade, passou a especular que a alma humana era imortal e que todos recebem recompensas ou punições de acordo com seus atos após deixarem este mundo. 

Esse é o mote de textos platônicos como o chamado Mito de Er, conclusão da obra “República”, na qual o pensador ateniense também defende a existência da reencarnação. 

Alguns séculos mais tarde, quando o antigo território israelita passa a ser dominado por impérios de cultura grega, as ideias tipicamente helênicas sobre o pós-vida passam a circular entre os judeus. Mas os autores dos livros bíblicos tardios adotam uma perspectiva peculiar sobre o tema. 

Em vez de falar da imortalidade da alma, escritores como o responsável pelo Livro de Daniel imaginam um julgamento de cada ser humano no fim dos tempos. Nessa ocasião, ocorreria a ressurreição de todas as pessoas, as quais seriam recompensadas ou punidas por Deus de acordo com seus atos.

Essa crença parece ter surgido no momento em que alguns judeus estavam sendo perseguidos por governantes pagãos e forçados a abdicar de sua fé e práticas tradicionais.

Se as pessoas vistas como fiéis a Deus estavam sofrendo e não parecia haver esperança para que a justiça prevalecesse nesta vida, esses antigos pensadores judaicos agora propunham que esse estado de coisas seria corrigido com o Juízo Final. 

Tudo indica que a visão exposta no Livro de Daniel era basicamente a abraçada por Jesus de Nazaré em suas pregações por volta do ano 30 d.C. Cristo, argumenta Ehrman, era um profeta apocalíptico: previa para breve o fim do domínio do mal no mundo, o início do reino de Deus e a ressurreição dos mortos. 

Depois de sua morte, ao menos alguns de seus seguidores passaram a crer que ele tinha ressuscitado e mantiveram essa fé num Juízo Final iminente, como mostram as cartas escritas pelo apóstolo Paulo (mais antigos textos cristãos que chegaram até nós). 

A questão é que as décadas foram passando, sem que o esperado Apocalipse viesse. 

Por conta disso, embora a crença na ressurreição dos mortos nunca fosse abandonada, começou a se popularizar a ideia de que haveria também uma recompensa ou punição “temporária”, antes do fim dos tempos. 

Por volta do ano 150 d.C., por exemplo, surge um dos primeiros textos a detalhar como seriam as penas do Inferno, o chamado Apocalipse de Pedro (segundo a narrativa, os blasfemadores passariam a eternidade pendurados pela língua). 

O último passo desse processo, já no meio da Idade Média, foi a definição da doutrina do Purgatório, um reino espiritual onde as almas que escaparam do Inferno, mas que ainda não estão prontas para atingir o Céu, passariam por longas temporadas de purificação, que poderiam ser aceleradas pelas orações dos vivos. 

Disputas acerca dessa doutrina acabariam, aliás, tendo repercussões sociais das mais sérias no século 16, desencadeando a Reforma Protestante e a divisão da Europa cristã. Como acontece ainda hoje, teologia e política com frequência andavam juntas. 

A evolução das crenças sobre o Além na Antiguidade

750 a. C. "ILÍADA" E "ODISSEIA", POEMAS GREGOS DE HOMERO: Quase todos os mortos levam uma existência tediosa e imutável, sem recompensas ou castigos, no Hades. Um punhado de inimigos dos deuses é punido pela eternidade, enquanto raros heróis são levados pelos deuses para os belos Campos Elíseos (uma espécie de subdivisão aprazível do Hades).

700 a.C. - 600 a. C. ANTIGO TESTAMENTO OU BÍBLIA HEBRAICA: alguns textos dão a entender que, uma vez que a morte acontece, o "sopro divino" deixa o corpo humano e ele se torna pó. Outros falam do Sheol, que poderia ser sinônimo do túmulo ou um mundo imutável dos mortos, sem recompensa ou punição, como o Hades grego.

350 a.C. PLATÃO: filósofo grego defende a imortalidade da alma e propõe que a morte envolveria um período de purificação e autoconhecimento, depois do qual as almas reencarnam.

165 a.C. LIVRO DE DANIEL: texto bíblico escrito tardiamente é o primeiro da tradição judaica a falar da ressurreição dos mortos, da punição para os maus e da recompensa para os bons.

50 d.C. CARTAS DO APÓSTOLO PAULO: pregador cristão fala da ressurreição dos mortos no Juízo Final (que, para ele, aconteceria em breve) e diz que o corpo dos ressuscitados será muito diferente do corpo físico que temos hoje.

150 d.C. APOCALIPSE DE PEDRO: texto apócrifo atribuído ao apóstolo é um dos primeiros a relatar em detalhes as punições dos pecadores no Inferno e as recompensas dos bons no Céu, ditando boa parte desse imaginário nos séculos cristãos seguintes.

L I V R O :

Título: Heaven and Hell: A History of the Afterlife (trad. Livre: Céu e Inferno: uma história da vida após a morte)

Autor: Bart Denton Ehrman

Editora: Simon & Schuster

Preço: R$ 152,36 (impresso, capa dura) & R$ 78,20 (e-book)

Páginas: 346. 

Observação: não foi publicado, ainda, no Brasil, apenas em italiano, até o momento.

* Reinaldo José Lopes possui graduação em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade de São Paulo (2001), mestrado em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (2006) e doutorado na mesma instituição (2012). Seu trabalho acadêmico concentra-se na análise da obra de ficção de J.R.R. Tolkien sob o prisma da teoria da tradução. Venceu em 2017 o Prêmio José Reis, o mais importante do país na área de divulgação científica. Foi editor de Ciência e Saúde do jornal Folha de S. Paulo e hoje é repórter, colunista e blogueiro do jornal. É autor de nove livros de divulgação científica, entre eles os best-sellers: 1499: O Brasil antes de Cabral (Harper Collins, 2017) e Darwin sem frescura: como a ciência evolutiva ajuda a explicar algumas polêmicas da atualidade (Harper Collins, 2019). 

Fonte: Folha de S. Paulo – Ciência – Quinta-feira, 24 de dezembro de 2020 – Pág. A19 – Internet: clique aqui (acesso em: 28/12/2020).

sábado, 26 de dezembro de 2020

Sagrada Família de Jesus, Maria e José – Ano B – HOMILIA

 Evangelho: Lucas 2,22-40 

Para ouvir a narração deste Evangelho, clique sobre a imagem abaixo:


 José María Castillo

Teólogo espanhol

 Uma família muito diferente 

A liturgia da Igreja dedica o domingo seguinte ao dia de Natal, para propor aos cristãos a recordação da família de Jesus como o modelo cabal, e o melhor exemplo do que deve ser e como deve ser uma família perfeita. O que tem a sua lógica. Porque, se estamos recordando a Virgem Maria, São José e o Menino Jesus, que família mais exemplar podemos propor aos cristãos e, em geral, a qualquer sociedade onde a instituição familiar esteja vigente? O que – se todo este assunto é pensado a partir das convicções de um crente – resulta bastante razoável. 

 No entanto, tudo isso traz consigo também um problema.

O problema consiste em que esta «idealização» da «Sagrada Família» é isso: uma representação ideal.

Porém, esse ideal corresponde à realidade ou, melhor, corresponde ao que as pessoas de mentalidade mais conservadora quiseram que fosse o real? 

Nos evangelhos da infância, já se relatam coisas que, se aconteceram tal como relatadas, foram fatos que transtornaram a convivência, se é que era uma família de seres humanos. Maria ficou grávida sem que seu esposo, José, o soubesse. Este homem esteve a ponto de abandonar sua mulher. Quando o menino nasceu, imediatamente, viram-se ameaçados até o ponto de terem de sair correndo como fugitivos para um país distante, no qual ficaram não se sabe quanto tempo. 

Ademais, a fuga para o Egito costumava-se fazer, na Antiguidade, de modo que aquilo era o que se chamava [em grego] de anachóresis, que era a fuga para o deserto daqueles que eram perseguidos pelas autoridades. Eram autênticos «fugitivos». E, quando já viviam em Nazaré, aconteceram coisas que não se compreendem facilmente, por exemplo, o menino ficar em Jerusalém sem dizer nada a seus pais, algo que estes não compreenderam. 

E o mais grave que aconteceu nessa família ficou patente e notório quando Jesus deixou sua casa e sua família. E se pôs a dizer e fazer coisas, que as autoridades religiosas viram que eram um perigo e um assunto grave. Por isso, seus parentes diziam que Jesus estava louco (Mc 3,21) e não creram nele (Jo 7,5), de forma que até o desprezaram quando ele voltou ao seu povo, em Nazaré (Mc 6,1-6) e até os compatriotas quiseram matá-lo (Lc 4,22-30). 

A família é a instituição fundamental para que nós, seres humanos, quando vimos a este mundo, nos integremos na sociedade e sejamos bons cidadãos.

A família deve satisfazer a necessidade de carinho e de educação nos valores fundamentais, sobretudo, os «Direitos Humanos».

Porém, não nos esqueçamos que a família é, em suas origens, uma «instituição econômica», que garante e sobre ela se legaliza o direito de propriedade. Daí, o perigo de que o interesse econômico se sobreponha aos demais interesses e valores. 

Há de se cuidar dos valores da família. Porém esses valores se asseguram quando se cuida com esmero do carinho, do respeito, do bom trato, da bondade. Tendo em conta que estes valores não se asseguram quando a família se «politiza» até ser origem de conflitos e divisões.

José Antonio Pagola

Biblista espanhol 

Jesus: sinal de contradição 

Simeão é um personagem cativante. Nós o imaginamos quase sempre como um sacerdote idoso do Templo, mas nada disso é contado no texto. Simeão é um bom homem da cidade que guarda no coração a esperança de um dia ver «o conforto» de que tanto precisam. «Movido pelo Espírito de Deus», ele subiu ao Templo no momento em que Maria, José e seu menino Jesus estavam entrando. 

O encontro é comovente. Simeão reconhece na criança, que aquele pobre casal de judeus devotos traz consigo, o Salvador que ele tem esperado por tantos anos. O homem está feliz. Num gesto ousado e maternal, «toma o filho nos braços» com muito amor e carinho. Bendiz a Deus e abençoa os pais. Sem dúvida, o evangelista o apresenta como modelo. É assim que devemos receber o Salvador. 

Mas de repente ele se vira para Maria e seu rosto muda. Suas palavras não pressagiam nada reconfortante: «Uma espada transpassará sua alma». Esta criança em seus braços será um «sinal de contradição»: fonte de conflitos e confrontos. Jesus fará com que «alguns caiam e outros se levantem». Alguns o acolherão e a sua vida adquirirá uma nova dignidade: a sua existência será repleta de luz e esperança. Outros o rejeitarão e sua vida será desperdiçada. A rejeição de Jesus será sua ruína. 

Ao tomar uma posição perante Jesus, «a atitude de muitos corações se tornará clara». Ele revelará o que existe dentro das pessoas. O acolhimento desta criança exige uma mudança profunda.

Jesus não vem para trazer tranquilidade, mas para gerar um doloroso e conflituoso processo de conversão radical.

É sempre assim. Também hoje. Uma Igreja que leva a sério a sua conversão a Jesus Cristo nunca será um lugar de tranquilidade, mas de conflito. Um relacionamento mais vital com Jesus não é possível sem dar passos em direção a níveis mais elevados de verdade. E isso é sempre doloroso para todos. 

Quanto mais nos aproximamos de Jesus, melhor veremos nossas inconsistências e desvios; o que é verdadeiro ou falso em nosso cristianismo; o que é pecado em nossos corações e nossas estruturas, em nossas vidas e nossas teologias. 

Traduzido do espanhol por Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo. 

Fontes: CASTILLO, José María. La religión de Jesús: Comentario al evangelio diario – 2020. Bilbao: Desclée De Brouwer, 2019, páginas 455-456; Iglesia de Sopelana – José Antonio Pagola Homilias – Internet: clique aqui (acesso em: 26/12/2020).

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Vamos falar de... Deus

 O que significa Deus em nosso contexto

 Brendan MacCarthaigh

Irmão religioso irlandês da Congregação dos Irmãos Cristãos, psicólogo, educador, escritor e conferencista muito renomado na Índia, onde trabalha há mais de 50 anos 

Existe uma entidade não-dimensional de amor, e ela dá significado a todos nós – não pela obediência, mas pela pura irresistibilidade

 

Como a espécie da raça humana teve um longo caminho para seguir para se tornar orgulhosa do que se diz ser, homo sapiens, até homo sapiens technologicens. 

Quando em nossa idade adulta nós nos deparamos com “sobre o que é isso tudo?”, nós nos encontramos sem respostas. Todas as outras espécies parecem claras a respeito disso, mas nós não. 

Filósofos vem e vão, suas teorias duram um tempo, e então alguém encontra um “mas”. Teólogos mais ainda. Mesmo os evangelistas. Vejam nós. Religiões estão rindo hostilmente uma das outras, política idem, e nosso comportamento insistentemente justificado é mortalmente infantil. 

Isso parece, para mim, que a raiz de toda a nossa miséria é nosso Deus. 

A covid-19 está nos ajudando a identificá-la mais de perto. 

Você não precisa ser um historiador para reconhecer que nós criamos Deus. Houve tribos com chefes, houve monarquias com reis, eles vieram de alguma forma para se verem com Direitos Divinos e até mesmo poderes, que se traduziam em autoridade sobre a vida e a morte de todos os corpos e almas em seu território. 

Modelando-se em monarcas e monarquias, os líderes religiosos deram a si mesmos infalibilidade e autoridade para decidir o que você poderia ou não ler, fazer, e mesmo após a morte – sob ameaça de punição horrível: uma noção que ainda é amplamente aceita. 

Nós inventamos e tomamos decisões sobre conceitos como eternidade, infinito, onisciência, onipotência, infalibilidade e assim por diante, e ainda os promovemos. 

Além disso, insistimos que nós, quem quer que sejamos, estamos definitivamente certos sobre o significado do cosmos e de tudo o que nele há, e deduzimos – ilustrando nossa compreensão miserável até mesmo de legalidades elementares – que se eu estiver certo e você difere de mim, você está errado. Além do mais, por estar errado, você é culpado e deve ser alienado e/ou punido. 

Você pode possivelmente resgatar sua liberdade de viver entregando sua liberdade à Nossa maneira de responder “Sobre o que é isso tudo”, caso contrário, você está condenado de maneiras tanto corporais quanto políticas, religiosas, sociais, relacionais e assim por diante. 

Mas nem tudo está perdido: você ainda pode retornar ao redil executando certos ritos e rituais e, portanto, está livre para fazer o mesmo novamente. E de novo. 

A experiência humana convenceu o mundo inteiro da preeminência do amor 

BRENDAN MACCARTHAIGH - autor deste artigo
Enquanto tivermos um Deus, não vejo como podemos escapar dessa situação horrível. Nada do que escrevi acima o surpreende. 

Cada um de vocês vai insistir que não é assim em sua interpretação particular de seu Deus particular, mas com um pouco de reflexão, você se verá obrigado a ceder. Se você optou pelo ateísmo – simplesmente não existe Deus – sua posição é totalmente consistente e inteligente. 

Mas te deixa desconfortável: essa coisa da morte se intrometer, insiste em uma resposta melhor do que depois dela não deve haver nada. 

Como me parece, e eu disse algo útil (espero) sobre isso na reflexão anterior, o cerne de toda a vida humana é a tensão entre o medo e o amor. 

A combinação de causas químicas e outras que levaram ao surgimento da pessoa humana contém em si essas duas forças, o medo e o amor. Se você insiste em usar o conceito de criação – eu seguro meu pé nisso – então o Big Bang foi criado. 

Eu admito, não sei o que exatamente ele significa, mas acho que se espalha em dimensões muito além de nossa experiência cósmica de agora. 

Mas deixe-me seguir minha interpretação: a experiência humana convenceu o mundo inteiro da preeminência do amor sobre todos os fenômenos humanos em termos de realização. 

Esqueça sua incompreensibilidade essencial: nós o experimentamos de inúmeras maneiras e continuamos fazendo isso. Outra maneira de fazer essa afirmação é, envolve dimensões que não podemos especificar. 

E isso me levou a afirmar que todo o amor que o cosmos experimenta, em cada ser natural, é ele mesmo o repositório de tudo que cada um aspira como realização de sua vida. Demos a ele o nome de AMOR.

Nós o diminuímos usando o nome de Deus, mas isso é realmente o que Deus significa em nosso contexto: amor. 

Certamente não sou o primeiro a tocar nessa base, e você mesmo poderia citar muitas escrituras para reforçá-la. 

Mas eu penso que quando nós diminuímos essa referência do AMOR a Deus, nós então capturamos o monstro encolhido nessas páginas. Isso não é qualquer pessoa, muito menos a trindade ou um infinito disso, ou daquilo. 

Existe uma entidade não-dimensional de amor, e ela dá significado a todos nós – não por obediência, mas por pura irresistibilidade. Onde essa não é a nossa percepção, fomos enganados. 

E isso é o que nós fazemos para nosso mundo, nós precisamos nos livrar do Deus como atualmente o promovemos, e trazer de volta a completude do amor. Ou então o medo vencerá. Deus abençoe. 

Traduzido do inglês por Wagner Fernandes de Azevedo. Publicado pelo «La Croix International», no dia 18 de dezembro de 2020. 

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Quarta-feira, 23 de dezembro de 2020 – Internet: clique aqui (acesso em: 23/12/2020).