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“O mundo está sem uma bússola moral”
Paulo Beraldo
Entrevista
especial com Amin Maalouf
Escritor e jornalista libanês, membro da Academia Francesa desde 2011, foi chefe de redação e editorialista da revista semanal “Jeune Afrique”; antes, fez reportagens em 60 países
Em
entrevista ao “Estadão”, escritor fala sobre ausência de lideranças no cenário
internacional
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AMIN MAALOUF Foto: Eloy Alonso /Reuters |
Esta semana, Maalouf fez uma palestra no Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri). Depois, concedeu entrevista ao Estadão, na qual abordou a disputa entre China e Estados Unidos, a ausência de liderança internacional, o futuro do populismo e até o lugar do Brasil no mundo.
Para onde o mundo caminha no cenário atual?
Amin Maalouf: Meu sentimento é de que existem dois riscos principais: a incapacidade de lidar com várias crises, em todos os níveis, e o fato de estarmos caminhando em direção a uma nova guerra fria. Se olharmos para a pandemia, não há resposta mundial. Se pegarmos as preocupações ambientais e todos os fenômenos ligados ao meio ambiente, não há uma mobilização global para enfrentá-las. Enquanto isso, caminhamos para uma nova corrida armamentista, agora entre EUA e China. No momento, vivemos sob a neblina da pandemia. Não temos uma bússola moral. Mas este momento em que o mundo parou é o correto para fazer uma reflexão sobre para onde estamos indo e como corrigir o rumo.
Como o sr. descreveria essa nova guerra fria?
Amin Maalouf: Temos um poder que ainda é o principal, os EUA, militarmente, economicamente e também tecnologicamente. A China vem atrás, mas muito rápido e com muitas cartas na mesa. Claro que também tem fraquezas, mas há realmente um risco de colisão e conflitos em todas as formas: comerciais, tecnológicas, políticas. Provavelmente, haverá uma corrida armamentista, já existe uma disputa para conquistar aliados. Está claro que existe alguma aliança entre China e Rússia, e uma coalizão de países que temem a expansão chinesa, como Japão, Austrália e Índia. Há muitos países e movimentos interessados em ter uma relação forte com a China. E é preciso lembrar que o mundo hoje não é governado por uma ordem global. Tudo hoje é mais fluido e ambíguo. A China não carrega uma ideologia, como a União Soviética tinha, mas há claramente um modelo de sociedade e de escolhas políticas. O que é novo é a posição econômica da China, sem as fraquezas soviéticas, que pode ter um papel que a URSS não conseguiu ter.
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Donald Trump (presidente americano) e Xi Jinping (presidente chinês) durante encontro bilateral, na cúpula do G-20, em Osaka, Japão Foto: Kevin Lamarque/Reuters |
Voltando à ideia da bússola moral. Por que
ela acabou?
Amin Maalouf: Um dos elementos é a ausência de liderança. Não acho que os EUA ofereceram um exemplo de liderança moral nos últimos anos. Ainda há o elemento da democracia, mas a credibilidade não está lá. E a Europa não está tendo esse papel. Ela não teve capacidade e poder para exercer esse papel. Então, ninguém o exerce. É muito difícil enxergar onde estão os valores. De certo modo, é uma lei da selva. Olhe o que ocorreu no Cáucaso, entre Armênia e Azerbaijão, uma guerra sem intervenção de nenhuma autoridade internacional. Há ausência de uma autoridade que evite guerras e resolva problemas.
Quando Hungria e Polônia desafiam a
democracia podemos dizer que a União Europeia está em crise?
Amin Maalouf: A construção do bloco atravessa um momento difícil. O que aconteceu com o Brexit é um alarme real que pode ocorrer em outros países. Ela deveria ter sido construída sobre uma base mais sólida, quase como uma federação, que elegesse o seu presidente por voto popular, que tivesse um chefe do Executivo. Ela precisa da capacidade real de ter um papel e tomar decisões. Mas, infelizmente, é impossível.
Qual o papel da ONU [Organização das Nações
Unidas]?
Amin Maalouf: No mundo ideal, a ONU deveria ter um papel mais importante, o que não é o caso hoje. Muitos fatores contribuem para seu enfraquecimento. Mas acredito que a ONU seja a única autoridade possível. Uma ONU revigorada, com mais poderes, capaz de intervir de maneira eficiente para resolver problemas. Mas isso depende dos principais poderes. É preciso reformar a ONU, torná-la menos burocrática, revisar seus métodos de tomada de decisão. Ela ainda é um organismo muito interessante.
Como o sr. avalia o aumento da radicalização
islâmica?
Amin Maalouf: É muito preocupante. Esse fenômeno está mudando a atmosfera política e intelectual de muitos países na Europa. Países que já tiveram atitudes tolerantes, como Holanda, Dinamarca, Suécia, agora têm certa impaciência com o que está acontecendo. São problemas que estão ficando maiores e ninguém parece ter a solução. A radicalização, por si só, é mais fraca do que já foi há 10 anos, mas há uma violência residual muito difícil de parar. Um jovem influenciado por propaganda, pega uma faca, sai à rua e mata alguém. É difícil evitar isso, mesmo com a melhor polícia e a melhor inteligência.
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Último livro de Amin Maalouf publicado no Brasil pela Editora Vestígio (Belo Horizonte, São Paulo), no mês de agosto de 2020 |
O sr. diz que a derrota de Trump não foi uma
derrota do populismo. Pode explicar melhor?
Amin Maalouf: Fiquei satisfeito de ver que muitos americanos decidiram mudar de governo, pois estava desconfortável com Trump, principalmente por sua personalidade. Mas é preciso olhar a realidade com objetividade: o apoio a Trump foi muito importante. Ele perdeu depois da pandemia e da crise econômica que destruiu tudo o que ele conquistou. Não fossem esses dois fatores, ele provavelmente teria vencido. Então, apresentar o que aconteceu como uma histórica derrota do populismo não parece verdadeiro. Foi um revés para um presidente cujo estilo não agrada a todos, que enfrentou uma situação única. O que ocorreu nos Estados Unidos não será determinante para o desaparecimento do populismo.
O sr. diz que vivemos em uma “floresta
Amazônica de informação”. Como sobreviver nessa selva?
Amin Maalouf: É difícil distinguir o que é verdadeiro do que não é. Hoje, todo mundo pode se expressar e alcançar milhões. O único controle possível é pela educação, para permitir a uma pessoa olhar para uma informação e ter a capacidade de julgar se aquilo é sério ou não. É uma luta que temos de engajar as próximas gerações, pois não será decidida por governos e nem de uma vez por todas.
Qual a posição do Brasil no mundo hoje?
Amin Maalouf: O Brasil tem uma posição interessante e um futuro brilhante. Ele está longe dos conflitos, não é afetado pelas disputas do mundo árabe. É um dos países emergentes que não é puxado por conflitos entre potências e é capaz de manter boas relações com ocidentais e países da Ásia. O Brasil pode evitar pagar o preço de conflitos e tem dimensões que lhe permitem isso, assim como reconstruir sua economia e avançar. Poucos países no mundo têm as vantagens geopolíticas do Brasil.
Fonte: O Estado de S. Paulo – Internacional/Entrevista – Domingo, 6 de dezembro de 2020 – Pág. A14 – Internet: clique aqui (acesso em: 09/12/2020).
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