«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

domingo, 31 de julho de 2022

Quem dá as cartas?

 Por trás do antiambientalismo da ultradireita global

 Luis Nassif

Jornalista 

LUIS NASSIF

Entre seus principais financiadores, estão barões do petróleo como os irmãos Koch e mineradoras transnacionais. O objetivo: espalhar fake news, desmontar regulações civilizatórias e expandir negócios. No centro, a cobiça pela Amazônia

A ultradireita foi fundamentalmente estimulada por grupos que ambicionavam desmontar regulações civilizatórias que impediam sua expansão. Um dos grupos mais influentes foi o da mineração, conforme o artigo “Xadrez da Amazonia e a soberania nacional” [clique aqui], de 27 de agosto de 2019. 

Peça 1 – a Amazônia e o conceito de soberania nacional

Leia, primeiro, o artigo de William Nozaki sobre o papel estratégico da Amazônia na indústria petrolífera mundial (clique aqui). Nele se verá que a indústria do petróleo identificou boa potencialidade na exploração do petróleo na região. 

Depois, o artigo do Shephen Walt, professor de relações internacionais da Universidade de Harvard, para o Foreign Policy. 

Conclui ele:

Eis o que acho que sei, no entanto: num mundo de estados soberanos, cada um fará o que deve para proteger seus interesses. Se as ações de alguns estados estão pondo em perigo o futuro de todo o resto, a possibilidade de confrontos sérios e possivelmente de sérios conflitos vai aumentar. Isso não torna o uso da força inevitável, mas esforços mais sustentados, enérgicos e imaginativos serão necessários para evitá-lo.

Não se trata propriamente de um risco imediato. Mas mostra as modificações que estão ocorrendo na jurisprudência internacional sobre o conceito de soberania nacional. 

Esses conceitos já haviam sido modificados pelas leis anticorrupção adotadas no âmbito da OCDE e do Congresso americano, especialmente a questão da jurisdição, pelos quais cada país seria responsável pela apuração dos crimes cometidos em seu território. Antes dele, apenas os crimes contra a humanidade ficavam sujeitos a tribunais internacionais. 

Agora, começam a entrar os crimes ambientais. E há tempos, sendo considerada pulmão do mundo, há uma atenção especial ao que ocorre com a Amazônia. 

Há meses pipocaram alertas sobre os riscos que o país corria caso perdesse o selo verde, de boas práticas ambientais (clique aqui). 

Em um primeiro momento, a questão da sustentabilidade influencia o comércio e os investimentos internacionais. Em um segundo momento, poderá dar margem a interferências mais agudas. 

Não por outro motivo, naquele período de 2019, militares ligados ao governo começaram a divulgar estudos preparados pelos setores de inteligência das Forças Armadas, sobre a estrutura de missões americanas no entorno da Amazônia. 

Os radares dos militares identificaram cumulus nimbus no horizonte. Porque não se parou Bolsonaro. 

AMAZÔNIA LEGAL - Esta é a área que compreende vários estados do Centro-Oeste e Norte do Brasil: muito cobiçada pelos norte-americanos ligados a Bolsonaro!

Peça 2 – a lógica anti-ambiental de Bolsonaro

No “Xadrez de Moro, Dallagnol e Bolsonaro, e a busca do inimigo externo” [clique aqui], tentei explicar a lógica de Bolsonaro com a Amazônia: a intenção objetiva de atrapalhar o tratado Mercosul-União Europeia para atender aos interesses específicos de Donald Trump. 

Ao definir privilégios comerciais para a União Europeia, o Tratado poderia prejudicar um futuro acordo de livre comércio com os Estados Unidos. 

Como o tratado impunha restrições ambientais ao Brasil, o caminho encontrado por Bolsonaro consistiu em um conjunto de declarações antiambientais, culminando com o dia do incêndio na Amazônia. As últimas informações reforçam essa hipótese, com um agravante: a Amazônia está no preço da eleição. 

A eleição de Bolsonaro foi lastreada em grupos conservadores americanos ligados a Donald Trump, tanto no apoio direto, como dos movimentos que surgiram no bojo das redes sociais, como o Movimento Brasil Livre e o Endireita Brasil. 

O MBL é bancado pela organização Students For Liberty, com lideranças treinadas pelo projeto Atlas Network, ambos financiados por grandes empresários da indústria de petróleo, como os irmãos Charles e David Koch, proprietários de refinarias, oleodutos. Um minucioso levantamento foi feito por Euclides Mance, em um PDF “O Golpe, Brics, dólar e petróleo” [clique aqui]. 

IRMÃOS KOCH - lutando com todas as suas armas e riqueza contra políticas de substituição de petróleo por outras fontes de energia

Os Koch foram os principais financiadores dos movimentos conservadores norte-americanos, criando um tal Partido Libertariano.

Desde os anos 80, a plataforma do partido era a seguinte:

* Revogação das leis federais de financiamento de campanhas políticas;

* Privatização dos Correios;

* Contra qualquer forma de tributação de pessoas e empresas;

* A favor de revogação de todas as leis de proteção ao trabalho, como a do salário mínimo;

* O fim das escolas púbicas, porque “conduzem à doutrinação das crianças e interferem na escolha dos indivíduos”;

* A privatização das ferrovias e das estradas públicas;

* Fim de todos os subsídios, inclusive aqueles voltados para as crianças.

* Finalmente, defendem o fim da Agência de Proteção Ambiental. 

Em 2011, o grupo já controlava 425 movimentos de estudantes em todo mundo.

Essas ONGs libertárias se juntaram em torno da Atlas Network, uma organização de preparação de jovens lideranças atuando em mais de 90 países.

Em 2012, a Atlas Network organizou e financiou em Petrópolis um encontro que deu origem ao Estudantes Pela Liberdade no Brasil. 

O site da Atlas apontava o MBL (Movimento Brasil Livre) como parceiro no Brasil, adiantando que muitos membros do MBL passaram pelo principal programa de treinamento da Atlas Network, o Atlas Leadership Academy [clique aqui], “e agora estão aplicando o que aprenderam no terreno em que vivem e trabalham”. Em 8 de setembro de 2015, o site da Atlas indicava o MBL como parceiro da entidade no Brasil [clique aqui]. 

Um dos pontos de convergências dessas ONGs conservadoras é a negação da teoria do aquecimento climático. Grupos como os Koch, os Mercer, o Catho Institute, a Heritage Foundation e a Federalist Society financiavam estudos visando rebater a teoria do aquecimento. 

Esse movimento recuou no governo Obama, mas voltou forte com Trump [clique aqui]. Quatro dias depois de assumir a presidência, Trump assinou decretos autorizando os oleodutos Keystone XL e Dakota Access Pipeline, que sofriam fortes críticas dos preservacionistas. 

Em junho, Trump anunciou planos para retirar os Estados Unidos do acordo climático de Paris [clique aqui], o que de fato aconteceu. Em outubro, propôs a revogação do Plano de Energia Limpa [clique aqui], a única política importante do governo federal para reduzir as emissões de gases do efeito estufa. 

KIM KATAGUIRI um estudante promovido e financiado por dinheiro norte-americano, dos irmãos Koch, foi um dos líderes a favor do golpe contra Dilma Rousseff

Como observou uma reportagem do Huffington Post,

“Os movimentos marcam o primeiro passo sério do novo presidente para reverter os ganhos ambientais de seu antecessor em favor de sustentar uma indústria de petróleo e gás perseguida pelos baixos preços, a concorrência da energia renovável e as regulamentações que visam reduzir as emissões de carbono. Os republicanos, que forçaram Obama a dar luz verde a ambos os oleodutos, saudaram as ordens como uma vitória”.

Kim Kataguiri, do MBL, foi indicado por Rodrigo Maia, presidente da Câmara, como relator da Lei Geral de Licenciamento Ambiental (PL 3.729/2004). Foi acusado por ONGs ambientais de ter apresentado um substitutivo de última hora que desmontava o sistema de licenciamentos no país [clique aqui]. 

“A nova versão traz graves retrocessos, como a exclusão de impactos ‘indiretamente’ causados por obras, dispensadas de licenciamento para atividades de ‘melhoria’ e ‘modernização’ de infraestrutura de transportes e a eliminação da avaliação de impactos sobre milhares de áreas protegidas”, escreveu a ONG SOS Mata Atlântica. 

Peça 3 – o lobby do Partido Republicano

O The Intercept publicou reportagem mostrando a montagem de lobbies [clique aqui], ligados ao Partido Republicano, visando cooptar empresas americanas para projetos na Amazônia, combinados com o governo Bolsonaro. 

“Documentos revelam que esses interesses estão sendo incentivados nos Estados Unidos por lobistas republicanos favoráveis ao governo Trump, que iniciaram conversas com o governo brasileiro para promover o investimento empresarial na Amazônia”.

Porta-vozes do governo Bolsonaro anunciaram a criação de um grupo de trabalho com os Estados Unidos, visando desenvolver uma política ambiental conjunta. 

Os militares ligados a Bolsonaro não tem a percepção do que seja, de fato, a SOBERANIA NACIONAL, pois estão entregando o Brasil às grandes corporações internacionais!

Peça 4 – os riscos à soberania nacional

Trump passa, os avanços ambientais permanecem. Entrando nesse jogo com a parte mais barra pesada do empresariado norte-americano, há o risco concreto dessa armação se esboroar nas próximas eleições. 

Ocorrendo isso, o país ficará com a broxa na mão. Na época, foi anunciado que o governo sueco está analisando os investimentos de seus fundos de pensão no Brasil, em função do fator Amazônia. A parte mais saudável das corporações internacionais já se pauta pelos temas ambientais. 

Tardiamente, os militares de Bolsonaro tentam recriar o conceito de defesa nacional em torno da bandeira Amazônia. Foram incapazes de:

* prevenir a venda da Embraer,

* o desmonte da Petrobras,

* as próximas jogadas com Eletrobras, todas empresas centrais dentro do conceito de soberania nacional. 

Provavelmente só entenderão o risco de uma Amazônia devastada quando a conta bater novamente na porta, e os Bolsonaro não passarem de um pesadelo distante.

Trata-se de um poder que não assimilou conceitos básicos de soberania e interesse nacional.

Fonte: Outras Mídias – GGN – Quarta-feira, 27 de julho de 2022 – Publicado às 15h36m (Horário de Brasília – DF) – Internet: clique aqui (Acesso em: 31/07/2022).

O atraso diante de nós!

 A outra face externa do agronegócio

 Raimundo Pires Silva

Engenheiro Agrônomo, doutor em Desenvolvimento Territorial e Ambiental, membro da Cátedra Celso Furtado/FESPSP, diretor da Associação da Reforma Agrária e ativista das questões agrarias, ambientais e de soberania alimentar 

RAIMUNDO PIRES SILVA

Do ponto de vista distributivo, o agronegócio gera poucos empregos, o boom externo das commodities agrícolas não levou o país a percorrer as veredas do desenvolvimento inclusivo

Diante de distintas crises financeiras, como a de 1999 ou de 2009, o agronegócio foi escalado para gerar saldo no comércio exterior para suprir a solvência do Balanço de Pagamentos (registro de todas as transações econômicas que o país realiza com a economia mundo), tendo em vista um comércio externo propício para um conjunto pequeno de commodities agrícolas: soja, milho, carnes (bovina, suína e de aves), açúcar-álcool, celulose e café. Os produtos citados passaram, a partir de 2000, a ter uma presença significativa entre os vinte primeiros produtos na pauta exportadora do país. 

E agora diante da crise atual? Tudo permanece como antes. O quantum exportado pelo setor continuou em franca expansão, sendo beneficiado pelas cotações dos preços em alta no mercado externo e, mais recentemente, pelo conflito Rússia-Ucrânia acarretando desiquilíbrios na circulação de alimentos no mundo, aumentando os preços da oferta, bem como internamente pelos movimentos de apreciação do dólar frente ao real. No acumulado, entre janeiro a junho de 2022, o agronegócio brasileiro exportou US$ 40,3 bilhões, 25% do volume total exportado de US$ 164,1 bilhões. 

O agronegócio, com apoio do governo e da mídia, difunde uma noção de gerador de divisas no mercado internacional.

Na perspectiva comercial é evidente que o agronegócio tem desempenhado um papel importante como fonte de recursos para os sucessivos superávits da Balança Comercial. Essa possibilidade de solvência resultou, nos últimos 20 anos, da combinação do crescimento significativo e praticamente contínuo do volume de produtos exportados, com expressiva demanda de soja e carnes pelo mercado asiático, destacando o consumo chinês. Neste contexto, há que se ressaltar que essa entrada excessiva de recursos financeiros externos ocorreu em uma economia acometida pela doença holandesa, que significa crescente exportação de recursos naturais e declínio do setor manufatureiro. 

Principais commodities agrícolas produzidas e exportadas pelo Brasil. Dados de 2017 a 2019. Porém, o agronegócio é superconcentrado em mãos de poucas empresas

Sob o ponto de vista dos interesses nacionais, a exportação de produtos básicos, como grãos de ração (soja e milho) e de manufaturas intensivas em bens naturais (carnes, celulose e açúcar) elevou o processo de acumulação vigente: das vantagens comparativas naturais, da renda da terra e dos recursos naturais e da superexploração do trabalho – expressões do processo de extração do excedente rural, tendo por fator causal a concentração dos recursos fundiários e a renda. 

Ademais, com a desindustrialização e a dependência de tecnologia estrangeira, se intensificou a deterioração dos termos de troca e do subdesenvolvimento da economia agrária nacional.

Do ponto de vista distributivo, o agronegócio gera poucos empregos, o boom externo das commodities agrícolas não levou o país percorrer as veredas do desenvolvimento inclusivo, houve queda da população ocupada: de 2012 a 2021 cerca de 1,14 milhões de pessoas perderam seus postos de trabalho, de acordo com o Cepea[1]. 

A mecanização predomina no agronegócio. Se, de um lado, melhora a produtividade, do outro, dispensa a mão de obra humana, cada vez menos necessária!

Segundo Delgado[2], há um movimento de centralização do capital nos mercados agrícolas e agroindustriais, que pressupõe a concentração a partir da órbita financeira. Ao mesmo tempo em que sua estratégia privada persegue a liquidez como condição de plena mobilidade setorial e internacional. A industrialização e a urbanização intensivas e a diversificação do comércio exterior não são mais os eixos de demanda efetiva puxando o crescimento da produção agropecuária. De maneira oposta há dois outros processos qualitativamente invertidos:

a) a desindustrialização da economia e, principalmente, de suas exportações e

b) a especialização primário-exportadora do comércio externo em meia dúzia de commodities. 

Um número restrito de empresas globais controla os principais produtos agrícolas, com uma infraestrutura financeira e especulativa própria.

De dimensão transnacional, essas empresas têm a capacidade de manipular a produção, a distribuição e os preços das cadeias dos insumos e das commodities de maneira organizada no mundo. 

Além disso, essas transnacionais intervêm nas flutuações financeiras das mercadorias a jusante e a montante do agronegócio aqui no país e ao redor do mundo, inclusive provocando essas flutuações. Anteriormente os derivativos agrícolas eram utilizados como instrumento de hedge, contrapondo volatilidades dos preços. Hoje, as commodities se tornaram uma classe de ativo financeiro. Segundo Belluzzo, os derivativos ganharam vida própria e se transmutaram em formas financeiras que abrem espaço para manobras especulativas de enorme potencial desestabilizador das atividades que impactam a geração de riqueza, renda e emprego para a nação. 

A variação dos preços dos alimentos está, praticamente, dissociada tanto de sua produção, quanto de sua oferta.

Por que isso está acontecendo? Porque quem investe nos mercados financeiros de commodities – como: bancos, fundos de pensão, plutocratas ou simplesmente pessoas estão comercializando ações –, pode apostar nos preços futuros de determinadas produtos agrícolas, paradoxalmente, com efeitos reais em seu preço mundial. 

Esses oligopólios exercem controle hegemônico na volatilidade dos preços agrícolas subordinando a soberania alimentar do país, como o caso de redução da produção e do movimento altista dos preços de itens básicos da dieta do povo – como o caso do arroz, do óleo de soja, por exemplo. As commodities não estão sendo reguladas nem por regras nacionais e nem por mecanismos de mercado, há um vazio regulatório[3]. 

De mais a mais, os processos de remessa de capital (lucros, dividendos e juros) para o exterior por parte de empresas filiais instaladas no país, de certa forma, vão corroendo parte das divisas geradas pelas exportações de commodities agrícolas, como mostra a tabela abaixo. 

Tabela1: Renda Primária, 2010 a 2021

Fonte: Banco Central

Percebe-se na tabela acima que o total de remessa de lucros, dividendos e amortizações representam, em média, cerca de 50% da conta de Rendas[4] do Balanço de Pagamentos, nos anos de 2010 a 2021. E desse total remetido, o peso da remessa de capital do agronegócio foi de 23% em média, no período. Pode-se, ainda, observar que ao longo dessa década o total da remessa [dos demais setores] cresceu somente de 6%, enquanto, a do setor agrícola foi de 337%, identificando uma dependência estrutural das exportações sob hegemonia dos grandes grupos transnacionais de comercialização de commodities. 

O comportamento deficitário da conta renda primária vem colaborando para levar a conta de transações correntes do balanço de pagamentos apresentar sucessivos déficits ao longo desses últimos 12 anos[5], os quais foram financiados com entradas de capitais. Isto, de certa forma, consumiu a solvência comercial das transações externas subvertendo a tática de liquidez com as exportações de commodities. 

O País está perdendo oportunidades 

O país se defronta com relativa abundância de recursos oriundos do mercado externo, porém, desperdiça essa oportunidade, não a transforma numa alavanca da economia nacional, ou seja, não utiliza as vantagens comparativas da produção e exportação de commodities agrícolas para promover, apoiar ou facilitar a emergência de setores  inovadores e domínios tecnológicos a montante e a jusante do setor, com um legado social e ambiental, de geração emprego e renda concomitante com a conservação dos recursos naturais no território nacional. 

Os donos do poder mantêm um processo primário-exportador ancorado na concentração da estrutura fundiária, no abuso da natureza e do trabalho humano, com crescente internacionalização dos domínios da terra.

O Estado encontra-se apropriado por uma elite predatória, cujas decisões vislumbram o lucro e desconsideram o direito constitucional de acesso à terra, à alimentação e à conservação do patrimônio ambiental da nação. 

O sofisma da solvência comercial para suprir debilidades externas do país conjuga um discurso deliberadamente enganoso e um raciocínio pérfido – parece verdade, mas não é. 

N O T A S : 

[1] Mercado de Trabalho do Agronegócio Brasileiro. Relatório referente ao 4º trimestre de 2021. Piracicaba: Cepea, 2022.

[2] Questão agrária e capital financeiro na agricultura brasileira. Caderno Prudentino de Geografia – CPG, nº 42. Presidente Prudente: Associação dos Geógrafos Brasileiros/Presidente Prudente, 2020.

[3] A Era do Capital Improdutivo.  São Paulo: Outras Palavras & Autonomia Literária, 2017.

[4] Registra entradas e saídas da remuneração do capital e trabalho, nas formas de:  lucros, juros e salários.

[5] Por exemplo, segundo Banco Central do Brasil (2022), no ano de 2021 o déficit em transações correntes somou US$ 28,1 bilhões, e essa insuficiência de saldo deveu ao aumento do desprovimento de US$12,2 no balanço da conta renda primária. 

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil – Análise / Brasil – Sexta-feira, 29 de julho de 2022 – Internet: clique aqui (Acesso em: 31/07/2022).

Quem diria?!

 Os grandes capitalistas em campanha eleitoral

 Armando Boito Jr.

Professor titular de Ciência Política na Unicamp. Autor, entre outros livros, de Estado, política e classes sociais (Unesp) 

ARMANDO BOITO JR.

Por que esses agentes econômicos e inclusive poderosas associações empresariais estão se afastando do Governo Bolsonaro?

Ao longo deste mês de julho, pelo menos um grande empresário publicou artigo na imprensa declarando que votará, pela primeira vez, em Lula e votará apesar de ser contrário às políticas propostas no programa de governo do PT; a Federação dos Bancos (Febraban) assinou manifesto em defesa da democracia e do sistema eleitoral brasileiro, sem afirmar nada de substantivo sobre concordância ou discordância com a política econômica; a Fiesp publicou documento no qual, além de defender a democracia e as eleições, faz ressalvas críticas à política econômica em curso e deixa entrever estar nostálgica do neodesenvolvimentismo dos governos do PT; a Confederação Nacional da Indústria preferiu, imobilizada pelo seu próprio gigantismo, ficar em cima do muro, favorecendo a candidatura Bolsonaro. 

Um dos editores do portal Brasil247, Leonardo Attuch, lembrou que esse deslocamento político de parte dos grandes capitalistas pode ter impacto favorável à candidatura Lula no eleitorado de classe média – aliás, na última pesquisa DataFolha, Lula diminuiu em alguns pontos a vantagem que Bolsonaro detém entre os eleitores cuja renda familiar está entre cinco e dez salários mínimos. 

Como explicar essa movimentação? Para fornecer alguns elementos de resposta a essa pergunta temos de considerar, pelo menos, quatro incógnitas:

(a) as relações da classe capitalista com o neofascismo bolsonarista,[1]

(b) as relações distintas que as diferentes frações da burguesia entretêm com o Governo Bolsonaro,

(c) a situação política do movimento popular e

(d) a orientação e iniciativas mais recentes da campanha eleitoral de Lula e do PT.

Os observadores e comentaristas têm destacado o primeiro e o último termo, ignorado o segundo e descurado a importância do terceiro. 

Neste texto vou analisar apenas esse movimento dos grandes capitalistas. Não entrarei nas considerações sobre a tática que o movimento democrático e popular deveria adotar.

Sede a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), na Avenida Paulista, São Paulo: a entidade patronal está dando uma volta de 180 graus em sua posição política!
Conflitos da burguesia com o fascismo bolsonarista

Existem conflitos entre a burguesia e o governo neofascista de Jair Bolsonaro. O movimento social bolsonarista, como os movimentos fascistas clássicos, não é um movimento burguês. Ele esteve e está assentado socialmente:

* na alta classe média,

* na pequena burguesia e

* em amplos setores dos fazendeiros.

É certo que os fazendeiros pertencem à classe dominante, mas não constituem a fração da classe capitalista que detém a hegemonia no bloco no poder, isto é, a fração da classe capitalista cujos interesses específicos de fração são priorizados pelas políticas econômica, social e externa do Governo Bolsonaro. 

Esse prioriza os interesses do grande capital financeiro internacional e da fração da burguesia brasileira associada a esse capital. Prioriza, isto é, não deixa de contemplar os interesses de outras frações burguesas – as alterações na legislação trabalhista e a reforma neoliberal da previdência são suficientes para mostrá-lo – mas dá prioridade ao capital estrangeiro e seus associados internos. Logo, há uma defasagem, propícia a gerar conflitos, entre, de um lado, a classe que ocupa o poder de Estado e a fração burguesa hegemônica e, de outro, a base social fiel ao bolsonarismo. 

Exemplos:

(a) a ginástica política grotesca de Bolsonaro para, atendendo acima de tudo os interesses dos acionistas estrangeiros e nacionais da Petrobrás, não perder o apoio militante que usufrui entre os caminhoneiros autônomos;

(b) o silêncio e quase omissão de Bolsonaro diante da reforma previdenciária que punia também parte da classe média e cuja implementação Bolsonaro, muito espertamente, deixou nas mãos do ex-presidente da Câmara dos Deputados, o neoliberal Rodrigo Maia do Democratas;

(c) a insatisfação de parte da burguesia com o objetivo bolsonarista de implantação de uma ditadura num momento que essa própria burguesia não vê nenhuma ameaça da parte do movimento popular.

No processo eleitoral de 2018, a grande burguesia decidiu, majoritariamente, cooptar o movimento bolsonarista, dada a inviabilidade eleitoral dos candidatos dos tradicionais partidos burgueses, mas essa foi uma operação política que envolvia riscos – o movimento fascista serve à burguesia, mas não é um mero instrumento passivo que a burguesia poderia manipular ao seu bel prazer. 

Os manifestos e textos de grandes empresários e associações empresariais que se pronunciam apenas em defesa da democracia e das eleições podem estar motivados, exclusivamente, por esse conflito com o fascismo bolsonarista.

Avenida Faria Lima, em São Paulo (SP), sede dos grandes bancos e financeiras de investimento do Brasil: instituições mais favoráveis ao governo Bolsonaro
Conflitos da grande burguesia interna com a política econômica

Uma parte do empresariado, contudo, está insatisfeita com a própria política econômica do governo Bolsonaro. Como afirmei, esse governo representa o capital financeiro internacional e a fração da burguesia brasileira a ele associada e, nessa medida, relega a um plano secundário ou contraria determinados interesses de outra fração da burguesia brasileira que é a grande burguesia interna.[2] Essa última havia obtido a hegemonia política durante os governos do PT, mas foi deslocada desse posto pelo golpe do impeachment em 2016. Michel Temer e Jair Bolsonaro retomaram a política econômica neoliberal da década de 1990, numa versão mais radical e direcionada, agora, principalmente contra o que ainda existe no Brasil de Estado de bem-estar, diferentemente dos Governos FHC cujo neoliberalismo se dirigia, principalmente, contra o Estado desenvolvimentista. 

A grande burguesia interna ganhou com grande parte da política social do Governo Bolsonaro, mas perdeu com a política econômica. Dependendo dos fatos da conjuntura, o coração dessa fração burguesa pode pender para um lado ou para outro desses polos de atração e de rejeição. A campanha eleitoral de Lula da Silva, seu amplo favoritismo nas pesquisas de intenção de voto e sua proposta de alianças cada vez mais amplas, flexíveis e conciliadoras ativam na grande burguesia interna a ambição para recuperar a hegemonia política que perdeu em 2016. 

Exemplos notórios de como esse conflito de frações está levando alguns segmentos burgueses a se afastarem de Bolsonaro ocorrem com o posicionamento dos grandes bancos comerciais nacionais, da indústria da construção naval e da própria Fiesp. Essa última associação está efetuando uma guinada de 180 graus. Depois de ser presidida por um agitador bolsonarista, a Fiesp se reposiciona e apresenta em documento público ressalvas críticas à política econômica do Governo Bolsonaro. 

A presença dos grandes bancos nacionais nessa lista de exemplos pode causar estranheza. Afinal, se o Governo Bolsonaro é neoliberal como é que o capital financeiro poderia estar contra ele? O que muitos que utilizam o conceito de capital financeiro não percebem é que esse capital está atravessado pela divisão burguesia interna e burguesia associada. Os bancos de investimento cujo negócio é captar recursos no exterior, designados na linguagem jornalística pela metonímia “Faria Lima”, estão com Bolsonaro, mas os grandes bancos comerciais nacionais, que também estiveram com ele, agora estão se afastando. 

Jair Bolsonaro e Paulo Guedes ameaçam a posição dominante desses bancos no mercado brasileiro. Guedes discursou mais de uma vez, inclusive em Davos, contra a “escravização da economia brasileira por meia dúzia de bancos”, pressionou pela redução do spread bancário e Bolsonaro transferiu a um burocrata do Banco Central a competência, que pertencia à Presidência da República, de autorizar o ingresso de bancos estrangeiros no mercado nacional. É uma reedição da política de FHC e Pedro Malan contra a qual, aliás, a Febraban se posicionou na década de 1990. A construção naval também segue o mesmo movimento. 

Está a reivindicar a política neodesenvolvimentista, que lhe garantia reserva de mercado no fornecimento de sondas e navios para a Petrobrás e financiamento subsidiado e abundante do BNDES, para sair da crise na qual se encontram os estaleiros nacionais. A política de Temer e de Bolsonaro enxugou o orçamento do BNDES, acabou com a subsidiada taxa de juro de longo prazo (TJLP) e suprimiu a política de conteúdo local – falaram em flexibilização, mas o que fizeram foi supressão. 

Resumo da ópera: a grande burguesia interna, diferentemente da grande burguesia associada, pode ter, portanto, duas razões para se afastar do governo Bolsonaro – o neofascismo e a política econômica neoliberal radicalizada. Como afirma o documento da Fiesp, faltam obras de infraestrutura, crédito barato, investimento em ciência e tecnologia etc. Já a grande burguesia associada deve, no geral, permanecer com o governo, embora alguns de seus segmentos possam, devido ao neofascismo, dele também se afastarem. O Estado e o governo exercem papel ativo na organização da hegemonia no bloco no poder. Decorre daí que a fração hegemônica da burguesia pode apresentar conflitos com o governo que procura organizar a sua própria hegemonia, embora esses conflitos sejam de modalidade, intensidade e frequência distintas daquelas que separam o governo das frações burguesas subordinadas. 

A esse respeito, cabe lembrar os recentes movimentos do governo de Joe Biden em relação ao governo Bolsonaro. Do mesmo modo que o governo Jimmy Carter, com a sua política de direitos humanos, minou a ditadura militar brasileira, que, no entanto, representava uma aliança hegemônica das multinacionais com a burguesia interna, assim também o governo Biden, envolvido em um conflito mais complexo e mais importante com a China e a Rússia, tem tomado iniciativas que o afastam do governo Bolsonaro e de sua posição golpista. Parte da burguesia associada pode ser neutralizada devido à posição estadunidense. 

O movimento popular no Brasil está sem alternativas concretas e viáveis para o atual momento, afinal, para ele não servem nem o neoliberalismo bolsonarista, nem o neodesenvolvimentismo do capital brasileiro, mas é isso que "temos" por hora!

O movimento popular a campanha eleitoral de Lula

Dois elementos de fundo que ajudam explicar esse deslocamento político de grandes empresários, e eu os tomei em consideração ao longo deste texto, são:

* a situação defensiva do movimento popular e

* a amplitude cada vez maior das alianças que estão sendo estabelecidas pela campanha eleitoral de Lula. 

Explico. Penso que a burguesia como classe tem preferência pelo regime político democrático-burguês. Ela recorre à ditadura apenas em momentos de crise. A democracia permite à burguesia uma participação ampla e institucionalizada no processo decisório do Estado, coisa que não acontece nos regimes de ditadura burguesa, e é por isso que...

... a burguesia só abre mão dessa democracia quando avalia que existe uma ameaça real do movimento popular à sua dominação de classe.

Ora, de um lado, o movimento popular brasileiro está na defensiva, segmentado em movimentos reivindicativos e desprovido de um projeto político viável e alternativo tanto ao NEOLIBERALISMO, quanto ao NEODESENVOLVIMENTISMO; e, de outro, a campanha eleitoral de Lula promete apenas retomar o programa dos seus dois primeiros governos – sem considerar com o devido cuidado as dificuldades e os obstáculos que irá agora enfrentar e que não enfrentou no período 2003-2010. Nessa situação, teoricamente, a burguesia pode abrir mão do governo neofascista, o que não significa que vá fazê-lo necessariamente porque, além da determinação de classe, conta também, como temos tentado mostrar, a determinação de fração. 

As tendências dominantes devem ser as seguintes:

a) a grande burguesia associada manter-se majoritariamente fiel ao governo, enquanto a

b) grande burguesia interna, tendo sido contemplada após 2016 com uma nova rodada de reformas neoliberais contrárias aos interesses dos trabalhadores, afasta-se do governo e retoma a luta pela sua hegemonia no interior do bloco no poder. A fuga de grandes empresários deve continuar.[3]

N O T A S : 

[1] Eu justifico a caracterização do Governo Bolsonaro e do movimento bolsonarista como neofascistas em dois ou três artigos que publiquei ano passado e retrasado. Ver, por exemplo, “O caminho brasileiro para o neofascismo”. Cadernos do CRH, volume 34, 2021. Acessível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/crh/article/view/35578; “Por que caracterizar o bolsonarismo como neofascismo”.  Crítica Marxista, n. 50, 2020. Acessível em: https://www.ifch.unicamp.br/criticamarxista/arquivos_biblioteca/dossie2020_05_26_14_12_19.pdf 

[2] Eu analisei em detalhes os conflitos entre frações burguesas e as alterações de hegemonia no bloco no poder na história política recente do Brasil em dois livros. Ver Armando Boito Jr. Reforma e crise política no Brasil: os conflitos de classe nos governos do PT. São Paulo e Campinas: Editora Unesp e Unicamp. 2018; Armando Boito jr. Dilma, Temer e Bolsonaro: crise, rupturas e tendências na política brasileira. Goiânia: Editor Phillos, 2021. Disponível nos sites Academia.edu e ResarchGate. 

[3] Este texto foi motivado pela entrevista que Eleonora e Rodolfo Lucena do site Tutaméia realizaram comigo em 28 de julho passado, quando abordamos as recentes movimentações políticas dos grandes capitalistas no processo eleitoral. 

Fonte: a terra é redonda eppur si muove – Sábado, 30 de julho de 2022 – Internet: clique aqui (Acesso em: 31/07/2022).

sexta-feira, 29 de julho de 2022

18º Domingo do Tempo Comum – Ano C – Homilia

 Evangelho: Lucas 12,13-21 

Alberto Maggi *

Frade da Ordem dos Servos de Maria (Servitas) e renomado biblista italiano 

O valor da vida de uma pessoa não depende do que ela tem, mas do que ela dá

 

Com a sagacidade, humor, ironia e sarcasmo que lhe são típicos, o evangelista Lucas aborda um tema tão antigo quanto o mundo: a herança. Não há nada como a herança para dividir as pessoas. Vamos ouvir o capítulo 12 do versículo 13 ao 21. 

Lucas 12,13:** «Alguém do meio da multidão disse a Jesus: “Mestre, dize ao meu irmão que reparta a herança comigo.”»

Jesus está falando de confiança no Pai e é interrompido por alguém que, em vez disso, confia no dinheiro. Essa pessoa se dirige a ele em um tom imperativo: “dize ao meu irmão que reparta a herança comigo”. Como dissemos, é uma questão tão antiga quanto o mundo: a herança. A herança é sempre causa de divisões e desavenças, porque sempre haverá alguém que esperava mais, que exigia mais, que queria mais. E isso causará inimizade e muitas vezes desacordos que duram para sempre.

Para Jesus, toda herança é fruto da avareza, do egoísmo, da ganância, atitudes que fecham o ser humano, irremediavelmente, aos outros e a Deus.

Portanto, toda herança é fruto do egoísmo, pois se as pessoas fossem generosas não teriam acumulado o suficiente para poder deixar em herança. Toda herança contém um fator tóxico que envenena a vida de quem a recebe. Assim, acreditamos estar fazendo o bem deixando a herança e, em vez disso, entregamos um fruto envenenado que mais cedo ou mais tarde dará seus frutos desastrosos. 

Lucas 12,14: «Ele respondeu: “Homem, quem me constituiu juiz ou árbitro entre vos?”»

E Jesus recusa. Quando Jesus usa a expressão “homem”, ele está sempre em uma postura negativa. Na frase “quem me constituiu juiz ou árbitro/mediador”, esta última palavra é, literalmente, “divisor”, porque pediu ao irmão para dividir com ele a herança. 

Lucas 12,15: «E disse-lhes: “Atenção! Guardai-vos de todo tipo de ganância, pois a vida de alguém não consiste na abundância de suas posses”.»

E aqui está a severa advertência de Jesus que deve ser levada em consideração. A ganância é o desejo de possuir. São Paulo, na carta aos Colossenses no capítulo 3, versículo 5, irá afirmar que a ganância é idolatria. Você pode ser a pessoa mais religiosa, mais piedosa, mais devotada do mundo, mas se você acumula dinheiro, se você deseja possuir, se você é visceral e profundamente egoísta, você é um idólatra, você não tem nada a ver com o Pai, porque o Pai é amor que ele compartilha generosamente.

O valor da vida de uma pessoa não depende do que ela tem, mas do que ela dá.

O ensinamento de Jesus nos Evangelhos é que se possui apenas o que se é capaz de dar; o que é guardado para si não é possuído, mas nos possui. 

Lucas 12,16-17: «E contou-lhes uma parábola: “A terra de um homem rico deu uma grande colheita, e ele ponderava consigo mesmo: ‘Que vou fazer? Não tenho onde guardar minha colheita’.»

E, agora, eis uma parábola ferina que Jesus conta. Ela nos conta sobre uma pessoa rica que, além disso, tem uma colheita abundante. “Ele raciocinava/ponderava consigo mesmo”, diz-nos o evangelista. Mas, cuidado, é ironia porque depois Jesus vai chamá-lo de tolo! O rico, os ricos estão em estado terminal de egoísmo para o qual não há esperança de salvação, porque deveriam ser generosos, mas eles, justamente por serem ricos, não o são.

Os ricos não pensam nem um pouco em dar, em compartilhar.

Ele já é rico e tem esse campo que lhe traz uma colheita abundante; não é que ele pensa: “a quem posso dar, com quem posso compartilhar?” O rico pensa apenas em si mesmo. Para os ricos tudo é para eles! 

Lucas 12,18-19: «Então resolveu: ‘Já sei o que fazer! Vou derrubar meus celeiros e construir maiores; neles vou guardar todo o meu trigo, junto com os meus bens. Então direi a mim mesmo: Minh’alma, tens uma boa reserva para muitos anos. Descansa, come, bebe, diverte-te!’»

Vemos, na atitude e palavras do rico, somente, avareza, ganância. E novamente este tema dos bens retorna. Pensa apenas e somente em si mesmo. Não há o menor sinal de solidariedade, de partilha, já é rico, tem frutos abundantes: “Vamos, o quanto custa dar aos outros?!” Não, o rico, como eu disse, está em estado terminal de egoísmo para o qual não há esperança! 

Lucas 12,20: «Deus, porém, lhe disse: ‘Insensato! Ainda nesta noite vão tomar a tua vida. E o que acumulaste, para quem será?»

E aqui está a sentença de Deus. Lembremos que, no tempo de Jesus, o rico se considerava uma pessoa abençoada por Deus, enquanto o pobre era uma pessoa punida por ele. A tradução diz “tolo”, porque na boca de Jesus não parece conveniente usar certas expressões um tanto fortes, mas qual de nós diria “tolo” para um assim? Aqui, o termo usado pelo evangelista é “deficiente, idiota, estúpido”, dito, inclusive, com vigor!

Eis que primeiro Jesus havia dito que o rico raciocinava consigo e, em vez disso, não ponderava consigo.

O rico não é apenas um doente terminal de egoísmo para quem não há esperança, mas também é um estúpido, ele acumulou tantíssimo e não pode nem aproveitar para si mesmo.

Vai morrer e tudo o que acumulou para quem será? 

Lucas 12,21: «Assim acontece a quem ajunta tesouros para si mesmo, mas não se torna rico diante de Deus”.»

Como alguém se torna rico diante de Deus? Dando aos outros. Jesus, nos Atos dos Apóstolos [20,35], sempre escritos por Lucas, afirma que há mais alegria em dar do que em receber, ...

... o segredo da felicidade não consiste no que você recebe, no que você tem, no que você acumula, mas no que você dá e compartilha generosamente com os necessitados.

* Traduzido e editado do italiano por Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo.

** Todos os textos bíblicos citados foram extraídos de: BÍBLIA SAGRADA. Tradução oficial da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). 5. ed. Brasília (DF): Edições CNBB, 2021. 

Reflexão Pessoal

Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo 

“Os ricos farão de tudo pelos pobres, menos descer de suas costas.” (Liev/Leon Tolstói: 1828-1910 – um dos maiores escritores de todos os tempos)

Se alguém ainda duvidava da impossível conciliação entre as palavras e a prática de Jesus com os valores e princípios da sociedade na qual vivemos, este Evangelho acaba com todas a dúvidas e ilusões! Para a sociedade capitalista, na qual vivemos e pela qual somos educados, os principais valores e ideais a perseguir são:

a) a riqueza,

b) a competição,

c) o sucesso pessoal,

d) a fama,

e) o poder,

f) a capacidade de influenciar e manipular pessoas,

g) a eterna juventude e bem-estar. 

Porém, para Jesus, tudo isso não passa de tolice, estupidez, loucura, irracionalidade! Porque, por mais dinheiro que alguém possa ter, ele não tem o controle total de sua vida. Ele não pode evitar a sua caducidade e o seu próprio fim. E por essa riqueza e poder tão incertos, muitas pessoas estão dispostas a destruir a vida de milhões de criaturas e do próprio planeta, enquanto permanecem não apenas calmas, mas também orgulhosas de si mesmos. Isso é irracionalidade total. Quem acabará aproveitando de todo o seu trabalho, de todos os seus esforços, de tudo aquilo que acumularam serão pessoas que, em muitos casos, nem saberão valorizar e preservar o que receberam de graça! 

E pensar que, na atualidade, temos uma das maiores concentrações de riquezas de toda a história humana! Sim, os ricos estão se tornando cada vez mais ricos, enquanto os pobres se tornam cada vez mais pobres! Com isso, temos como consequência:

a) o aumento da insegurança,

b) a redução da qualidade de vida,

c) o aumento do consumo de drogas e álcool,

d) a depredação do planeta do qual dependemos,

e) a infelicidade e falta de sentido na vida para bilhões de seres humanos desta Terra! 

Porém, há uma tolice maior nessa atitude de viver para acumular bens e riquezas: o essencial da vida, o segredo de ser feliz não se encontra nisto! Encontra-se:

* no dar,

* no compartilhar bens e dons que se possui,

* no repartir aquilo que se tem,

* no ser solidário,

* no ser fraterno e misericordioso! 

Por fim, é bom levarmos em conta uma séria e realista constatação que faz um teólogo espanhol muito atento:

«E nunca devemos esquecer que todos nós somos gananciosos. Ninguém escapa da ganância. Porque brota do “desejo”. E o desejo é o mecanismo inato que sempre nos acompanha, que nos mobiliza, claro, para as coisas boas, para que sejamos criativos e eficientes. Mas também a apropriar-nos do que é dos outros, induzindo-nos a “roubar” (sic) “com sã consciência” ou, pelo menos, com argumentos que tentam justificar as mais sujas malandragens que, por vezes, fazemos como a coisa mais natural do mundo. E, infelizmente, tudo isso está na ordem do dia hoje!»

(José María Castillo)

 Oração após a meditação do Santo Evangelho 

«Os homens, sejam eles ricos ou pobres, são apenas um vapor enganoso. Colocando todos eles na balança, veremos que eles não são nada. Não confiem na violência, nem depositem vãs esperanças na rapina; se acumularem riquezas, não lhes deem o seu coração. Deus falou uma vez, e eu ouvi duas coisas: Teu, meu Deus, é o poder; Tua, Senhor, é a misericórdia; tu dás a cada um o que suas obras merecem.»

(Salmo 62[61],9-13 – Reina Valera Contemporánea)

Fonte: Centro Studi Biblici “G. Vannucci”– Videomelie e trascrizioni – XVIII Domenica del Tempo Ordinario – Anno C – 04 agosto 2019 – Internet: clique aqui (Acesso em: 27/07/2022).