«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

2º Domingo da Quaresma – Ano B – Homilia

 Evangelho: Marcos 9,2-10 

Frei Alberto Maggi

Padre e biblista italiano dos Servos de Maria (Servitas) 

A morte não nos destrói

O evangelista Marcos, nas tentações de Jesus no deserto, não pretendeu apresentar um período da vida do Senhor, mas mostrar que toda a existência de Jesus foi no deserto, tentado por satanás. E no decorrer do evangelho, o evangelista mostrou quem é esse satanás. Quando Jesus anuncia pela primeira vez aos seus discípulos que não vai a Jerusalém para conquistar o poder, mas para ser morto pelo poder, surge uma reação violenta e temerária, aquela de um dos discípulos, Simão, a quem Jesus deu um apelido negativo, que indica a sua teimosia, Pedro, duro como pedra, agarra-o e Jesus dirige-se a este discípulo com palavras terríveis chamando-o de “satanás” (cf. Mc 8,33). Ele não o afasta, mas diz: “Volte e fique atrás de mim, Satanás”. Assim é Simão, apelidado de Pedro pela sua teimosia, a teimosia que depois levará à traição de Jesus. É ele que Jesus e o evangelista identificam como o satanás tentador. 

Marcos 9,2a: «Naquele tempo, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, e os levou sozinhos a um lugar à parte...»

Mas não é à toa que se chama Pedro, por isso ainda continua a tentar Jesus e, logo após este embate entre Jesus e os seus discípulos, que não aceitam o fato de o Messias poder morrer, Jesus mostra-lhes qual é a condição do ser humano que passa pela morte. É a passagem de hoje, conhecida como episódio da transfiguração, capítulo 9 do Evangelho de Marcos. Que começa com uma indicação muito importante: “O sexto dia ou seis dias depois”. O sexto dia recorda o dia da criação do ser humano; aqui, então, o evangelista apresenta-nos o ser humano criado segundo Deus:

o ser humano que não sucumbe à morte, mas com a morte inicia uma nova existência luminosa.

Seis dias depois Jesus levou consigo” e levou consigo os três discípulos mais difíceis, aos quais deu um apelido negativo que indica o seu carácter: Simão, que se chama Pedro, o teimoso, e depois Tiago e João, a quem chamou em aramaico “boanerges” que é “os filhos do trovão”, pela sua violência, pela sua ambição, aqueles que então correrão o risco de arruinar, de dividir o grupo. 

Marcos 9,2b-3: «... sobre uma alta montanha. E transfigurou-se diante deles. Suas roupas ficaram brilhantes e tão brancas como nenhuma lavadeira sobre a terra poderia alvejar.»

Sobre uma alta montanha” que indica a condição divinae foi transfigurado diante deles”. Jesus mostra qual é a condição do ser humano que passa pela morte.

A morte não só não destrói o indivíduo, mas liberta todas as suas energias e fortalece-o.

Por isso o evangelista usa uma expressão que pode parecer banal, diz: “Suas roupas ficaram brilhantes e tão brancas como nenhuma lavadeira sobre a terra poderia alvejar”; significa que não é com o esforço humano que esta condição é alcançada, mas através da energia divina que é comunicada ao ser humano. 

Marcos 9,4: «Apareceram-lhe Elias e Moisés, e estavam conversando com Jesus.»

Neste momento, Elias apareceu-lhes com Moisés. O que chamamos de Antigo Testamento, no mundo judaico, foi dividido entre a LEI, a qual foi transmitida através de Moisés, e os PROFETAS. O maior dos profetas era aquele que fez cumprir a lei com violência, o profeta Elias. Observe-se que eles não conversam com os discípulos, eles conversam com Jesus. Elias e Moisés não têm mais nada a dizer aos discípulos de Jesus, a menos que sua mensagem seja filtrada através dos ensinamentos e obras de Jesus. 

Marcos 9,5-6: «Então Pedro tomou a palavra e disse a Jesus: “Mestre, é bom ficarmos aqui. Vamos fazer três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias”. Pedro não sabia o que dizer, pois estavam todos com muito medo.»

E, aqui, novamente Simão continua sua ação como um satanás tentador. O evangelista escreve: “Tomando a palavra” e usa apenas o apelido negativo, “Pedro”, que indica o teimoso, “disse a Jesus” e o chama exatamente como Judas o chamará, “Rabbi” (mestre), uma expressão de respeito com a qual as pessoas costumavam dirigir-se aos escribas, aqueles que ensinavam a lei. “É bom a gente estar aqui”, em seguida vem a tentação:vamos fazer três tendas”. Por que três tendas? Houve e ainda há uma celebração no mundo judaico entre setembro e outubro com a qual é lembrada a grande libertação da escravidão egípcia. Para comemorar e celebrar este aniversário, as pessoas vivem em cabanas durante uma semana e a tradição diz que o novo libertador de Israel chegará na memória do antigo libertador, portanto o novo messias se manifestará na memória de Moisés.

Eis, então, a tentação de Pedro: ele quer que Jesus se manifeste assim, como? E eis o que Pedro diz: “Vamos fazer três tendas, uma para você, uma para Moisés e uma para Elias”. Quando há três personagens, onde está o mais importante? No centro. No centro para Pedro ainda não está Jesus, no centro está Moisés. É como se Pedro dissesse: “Aqui está o messias que eu quero, aquele que vive de acordo com a lei de Moisés e a aplica de acordo com o espírito violento do profeta Elias”. É a tentação de ser um messias de poder. Mas, escreve o evangelista, que ele não sabia o que estava dizendo. 

Marcos 9,7: «Então desceu uma nuvem e os encobriu com sua sombra. E da nuvem saiu uma voz: “Este é o meu Filho amado. Escutai o que ele diz!”»

E aqui está a intervenção de Deus através da nuvem, imagem divina, e a sua voz diz: “Este é meu filho, o amado”, o amado significa o herdeiro, “nele está tudo de mim”. E, então, uma ordem imperativa “Escutai-o”. Eles não precisam mais ouvir Moisés ou Elias; e seus ensinamentos devem ser filtrados e interpretados de acordo com os ensinamentos e obras de Jesus. Por isso, o convite no imperativo: “Escutai-o”. 

Marcos 9,8-10: «E, de repente, olhando em volta, não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus com eles. Ao descerem da montanha, Jesus ordenou que não contassem a ninguém o que tinham visto, até que o Filho do Homem tivesse ressuscitado dos mortos. Eles observaram esta ordem, mas comentavam entre si o que queria dizer “ressuscitar dos mortos”.»

E, de repente, olhando em volta, não viram mais ninguém.” Ainda procuram Moisés e Elias porque é a tradição que lhes dá segurança, e só encontram Jesus e se sentem perdidos. Então Jesus ordena-lhes que não falem do que viram porque experimentaram qual é a condição do homem que passa pela morte, mas ainda não sabem o que será esta morte, a infame da cruz

* Traduzido e editado do italiano por Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo.

** Os textos bíblicos citados foram extraídos do: Sagrada Congregação para o Culto Divino. Trad. CNBB. Palavra do Senhor I: lecionário dominical A-B-C. São Paulo: Paulus, 1994. 

Reflexão Pessoal

Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo 

«Se o grão de trigo que cai na terra não morre, fica só; mas, se morre, produz muito fruto.»

(João 12,24)

A cena da transfiguração sobre o monte ocorre, logo após, a cena da profissão de fé de Pedro e o primeiro anúncio da paixão, morte e ressurreição de Jesus (cf. Mc 8,27-33). Portanto, ela vem completar a manifestação do mistério de Cristo, o qual é constituído pela cruz e a glória da ressurreição. Para o evangelista Marcos, não há ressurreição, não há glória sem a cruz! Nos tempos de hoje, isso é fundamental! Afinal, ressurge uma tendência de se focar, apenas, no Cristo glorioso, vencedor, rei, majestoso, esquecendo-se do Cristo na cruz! Muitos cristãos atuais não querem “beber do cálice” que Jesus bebeu (cf. Mt 20,22-23; Jo 18,11). 

A ordem divina, nesta cena, para “escutar” seu Filho amado (cf. Mc 9,7b) não é casual nem um mero detalhe! De fato, o que há de mais importante para nós, cristãos, é escutar o Cristo. Isso se dá, especialmente, na leitura, meditação e oração de sua palavra, presente nos Evangelhos. O Pai se reconhece totalmente em seu Filho, Jesus! Ele é o seu herdeiro. O modo de ser de Jesus é o mesmo de seu Pai. Assim sendo, escutar Jesus é viver segundo o que o Pai deseja. 

Uma Igreja que não escuta o seu mestre, não pode ser fiel e confiável! A incompreensão que se observa nos discípulos, naquela época (cf. Mc 8,33; 9,10.32), pode ser encontrada em nós, hoje. Custamos a crer e extrair as consequências do fato de seguirmos um mestre, e crermos em um messias, um salvador, que foi esmagado e morto em uma cruz! 

Mediante Jesus, Deus nos mostra que a sua salvação chega até nós, pela doação/morte de seu próprio Filho! Aquilo que Deus não permitiu que Abraão fizesse, ou seja, sacrificar o seu próprio filho (cf. Gn 22,1-19), ele o faz agora! Com isso, Deus demonstra que o seu amor é infinito, é ilógico, é algo que escapa à nossa compreensão! 

Oração após a meditação do Santo Evangelho 

«Senhor meu Deus, escuta a minha prece, e que a tua misericórdia atenda ao meu desejo, porque não é só por mim que ele arde, mas quer ser útil também ao meu amor pelos irmãos. Tu vês o meu coração e sabes que é assim. Deixa que eu te ofereça em sacrifício o serviço do meu pensamento e da minha palavra, e concede-me aquilo que desejo oferecer-te. Sou pobre e desvalido, tu és rico para todos os que te invocam.» Amém.

(Fonte: Confissões 11,2 – Santo Agostinho)

Fonte: Centro Studi Biblici “G. Vannucci” – Videomelie e trascrizioni – 2ª Domenica di Quaresima – Anno B – 28 febbraio 2021 – Internet: clique aqui (Acesso em: 21/02/2023).

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

Padres da ultradireita se envolvem na política

 Religião e Golpismo no Brasil: o rosto católico da necrorreligião 

Jorge Alexandre Alves

Sociólogo, professor do IFRJ e integra o Movimento Nacional Fé e Política 

 Uma articulação perversa entre religião, capital financeiro e militarismo

Nestes dias, o país foi sacudido por uma sequência de ações da Polícia Federal. Algo sem precedentes na história republicana. A operação Tempus Veritatis [= Tempo da Verdade] prendeu assessores diretos do ex-presidente da República e recolheu passaportes de importantes figuras das Forças Armadas. Generais tiveram celulares apreendidos. 

O ineditismo dos fatos revela que os militares jamais estiveram, de fato, subordinados ao poder civil na história do Brasil. Quando muito, houve uma coexistência pacífica, embora tensa, muito longe da normalidade que se imagina existir nas sociedades democráticas. Diferente de nossos vizinhos argentinos, nunca punimos cúpulas militares envolvidas em conspirações contra o Estado de Direito

As investigações que levaram à operação da PF desnudaram nomes das mais diversas origens, que estiveram diretamente envolvidos na trama golpista. Se tivessem sido bem sucedidos, muito provavelmente o país teria entrado em uma espiral de autoritarismo cujos efeitos seriam terríveis, sobretudo para o nosso povo mais sofrido das favelas e periferias Brasil afora. 

A tentativa de instaurar um regime de exceção por parte da extrema-direita é efeito da articulação perversa entre religião, capital financeiro e militarismo. Vem sendo feita com sucesso desde o tempo em que o capitão golpista era um obscuro deputado federal, então conhecido apenas por suas bravatas. 

Aqui se destaca uma figura cuja presença em artimanhas políticas que atacam a democracia causaria estranheza aos desavisados. Trata-se de um padre ligado à Diocese de Osasco, José Eduardo de Oliveira e Silva, cuja vetusta aparência de professor doutor em teologia moral esconde sua atuação nas sombras contra as causas populares e a democracia.

Padre José Eduardo, da Diocese de Osasco (SP), em culto religioso fazendo uso do símbolo nacional, a bandeira brasileira, fé e religião se misturam!

Este clérigo sempre procurou demonstrar proximidade com o poder religioso e com autoridades eclesiásticas. Há cinco anos, falou na Suprema Corte como representante da CNBB, juntamente com o então bispo de Rio Grande e atual secretário-geral da conferência dos bispos. Se pronunciaram acerca da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, que tratava da descriminalização do aborto no Supremo Tribunal Federal. 

A conexão entre este padre e o referido bispo, apresentada naquela oportunidade foi apenas eventual ou revela maior comunhão de posicionamentos, seja no campo teológico, moral, social e político? Se a resposta for positiva, a Igreja tem um sério problema. Ora, o episcopado brasileiro alçou à condição de voz do catolicismo brasileiro uma autoridade eclesiástica que, no mínimo, tem alguma proximidade com sacerdotes dados a flertes com o autoritarismo

O círculo de amizades deste padre de Osasco é revelador das conexões íntimas entre segmentos do ultraconservadorismo católico com a extrema-direita. O site The Intercept revelou, em uma reportagem investigativa do ano de 2021 [cf.: aqui], a atuação deste mesmo padre de Osasco, associado a um espanhol e a um casal de ultracatólicos ligados a grupos antiaborto, chamados pró-vida

Ignacio Arsuaga, espanhol, criador da "Hazte Oir" ("Se Faça Ouvir", em espanhol), posteriormente, transformada na "CitizenGo" (algo como "Vamos, Cidadão", em inglês). Ele veio ao Brasil assessorar os grupos católicos ultraconservadores e de direita

O estrangeiro aliou-se a esse clérigo há mais de dez anos para disseminar técnicas de comunicação digital, arrecadação de recursos e arregimentação de pessoas com a finalidade de constituir grupos articulados em uma lista de pautas conservadoras. Estes deveriam ser preparados para produzir a guerra cultural hoje em curso, que gira em torno da:

* chamada agenda moral dos costumes,

* da luta contra um suposto comunismo no Brasil e

* dos ataques a tudo que possa remeter à Teologia da Libertação. 

O casal pró-vida é muito próximo de uma poderosa organização católica internacional, originária também na Espanha, cujas origens se confundem com a ascensão do fascismo espanhol ao poder, após a guerra civil de 1936. Um dos cônjuges se notabilizou como influenciador nas redes digitais e esteve presente na estrutura do ministério comandado pela atual senadora Damares Alves, no governo anterior. 

Portanto, este sacerdote foi o precursor das estratégias adotadas pela extrema-direita no Brasil muito antes de Jair Bolsonaro ser ungido como o messias político destes setores. Logo, o religioso em questão foi pioneiro no treinamento de pessoas e grupos de radicais católicos no que se refere às técnicas de guerrilha digital, a produzir na internet ataques a adversários, táticas de intimidação física baseadas na provocação e na disseminação de conteúdos mentirosos (fakes news) nas redes sociais. 

São as mesmas artimanhas usadas para difamar o trabalho profético do Padre Júlio Lancelotti com a população de rua em São Paulo. Não é à toa. Padre Júlio sintetiza em sua pessoa e na sua atuação tudo aquilo que o fundamentalismo católico e a extrema-direita mais detesta. 

Ora, foi bebendo dessa fonte que a equipe de comunicação do capitão ex-presidente desenvolveu as estratégias bem sucedidas que transformaram um inexpressivo deputado do baixo clero do Congresso Nacional em campeão de votos em 2018. Dessa forma, passa pelo padre de Osasco a expertise que depois foi tenazmente aplicada pelo famoso “Gabinete do Ódio, que quase reelegeu seu messias político. 

ALLAN DOS SANTOS - jornalista ligado a grupos católicos de ultradireita e ao bolsonarismo

Foram graças às técnicas ensinadas no Brasil por este clérigo que figuras como Allan dos Santos, hoje foragido da justiça e radicado Estados Unidos, pôde se tornar um dos maiores influenciadores digitais da extrema-direita. Não é à toa que ele esbraveja raivosamente nas redes sociais contra a operação da Polícia Federal

Os cursos de formação dados pelo sacerdote e seus aliados tiveram influência importante no surgimento ou reinvenção de centros e institutos católicos de matriz conservadora. Tais agremiações levam nomes de santos fundadores de várias ordens e congregações católicas. 

Sendo juridicamente associações civis de direito privado, não estariam sob a jurisdição direta das autoridades eclesiásticas. O que é muito conveniente para segmentos católicos e certa parcela do episcopado brasileiro que, veladamente, se opõem ao magistério do Papa Francisco. 

Essas organizações acabam por fazer o serviço sujo que os antagonistas do pontífice não podem fazer publicamente. Com volumosos recursos financeiros à disposição, investem pesado em “videocasts”, cursos de formação on line e documentários, produzindo material em alta resolução de vídeo, angariando milhares de seguidores, de forma particular no YouTube. 

Entretanto, tais associações nada tem a ver com mensagem nem com o carisma dos santos, tratando-se de uma tentativa de usurpação de seus nomes e legados. Este uso ocorre à revelia das próprias congregações religiosas. 

Isso posto, é necessário fazer uma observação importante. Para além do senso comum, parcelas significativas da sociedade parecem imputar ao segmento neopentecostal do campo cristão evangélico a responsabilidade sobre a força política que a direita mais radical adquiriu no Brasil. 

Essa percepção grosseira, que associa diretamente o neopentecostalismo e ignora outros segmentos do fundamentalismo cristão, como os ultracatólicos, é míope. Segmentos importantes da esquerda e dos movimentos sociais reproduzem essa narrativa equivocada. 

É preciso reconhecer que o pentecostalismo, seja ele católico ou evangélico, não tenha produzido grupos que abraçaram o extremismo no campo da fé. Muito menos ignorar que sua cosmovisão por vezes se aproxime do fundamentalismo religioso, inclusive traindo suas propostas religiosas originais. Contundo, generalizações e simplismos embotam nossa capacidade de leitura dos fatos. 

Aqui vale ressaltar o primoroso trabalho desenvolvido por Magali do Nascimento Cunha no campo da comunicação. Seu trabalho revela o papel de setores do protestantismo histórico na construção de um projeto conservador, cujo objetivo seria fazer do Brasil uma nação cristã evangélica. 

MAGALI DO NASCIMENTO CUNHA - pesquisa o envolvimento dos evangélicos e neopentecostais com a política e as mídias sociais no Brasil, dentre seus livros, destacamos: MyNews Explica - Evangélicos na Política Brasileira (Actual - 2022); Do púlpito às mídias sociais: evangélicos na política e ativismo digital (Appris - 2019); A Explosão Gospel: um Olhar das Ciências Humanas Sobre o Cenário Evangélico no Brasil (Mauad X - 2009)

Esses segmentos operam no campo das ideias e trazendo recursos financeiros ao país. Possuem uma rede de universidades e de escolas básicas, atuam no poder judiciário e articulam a injeção de recursos financeiros oriundos sobretudo de grupos evangélicos norte-americanos. 

São mais discretos publicamente do que seus pares de matriz pentecostal, mas são muito influentes. O último ministro da educação do governo passado foi vice-reitor de importante universidade privada mantida por uma denominação histórica do protestantismo, além de ser pastor desta mesma confissão. Mais, conseguiram emplacar a indicação de um ministro terrivelmente evangélico ao STF

Em artigo escrito em 2019 [cf.: aqui], afirmei que um dos pilares de sustentação da necropolítica perpetrada pela extrema-direita no Brasil era sustentada por uma necrorreligião. Muitos entendem essa necrorreligião enquanto um fenômeno exclusivamente evangélico. Trata-se de um grave erro de análise. 

A operação Tempus Veritatis, ao revelar a participação do padre de Osasco no núcleo central dos articuladores de um golpe de Estado no Brasil, demonstra que a sustentação política do ex-presidente por grupos religiosos não é uma exclusividade dos neopentecostais. É preciso olhar com mais atenção para a face católica da necrorreligião que opera no país

O fundamentalismo católico pode não ser tão barulhento quanto a atuação dos chamados “coronéis da fé” que lideram várias denominações neopentecostais. Mas a presença deste sacerdote no comando das maquinações golpistas revela o protagonismo dos ultracatólicos na extrema-direita brasileira

Infelizmente, esse extremismo católico se esgueira sorrateiramente pelo catolicismo em escala nacional. Seja pela liturgia, pelo clericalismo e pela narrativa política e pela sua produção digital, sua mensagem ecoa de alguma forma no cotidiano católico. Muitas vezes acirrando antagonismos e alimentando a polarização nas comunidades, reproduzindo o que se passa no país hoje. 

Mas o clérigo paulista não atua sozinho. Um colega seu, do Centro-Oeste, também tem atuação destacada no extremismo católico. É presença constante como pregador de retiros para seminaristas em várias dioceses brasileiras. 

No passado, foi mentor daquele foragido blogueiro ultracatólico, quando este era seminarista em uma das maiores arquidioceses do país. Mais recentemente, este sacerdote se envolveu em uma polêmica ao criticar a edição da Bíblia Sagrada voltada para grupos populares, cuja publicação pertence a uma das mais renomadas e ilibadas editoras católicas em língua portuguesa. 

É lamentável ver que segmentos católicos estão tão envolvidos e são tão influentes em tramas arquitetadas com a intenção de instaurar o arbítrio e perpetuar a necropolítica no Brasil. Hoje, tais sacerdotes – que infelizmente não são os únicos – constituem a face visível do extremismo cristão. São alguns dos rostos católicos da necrorreligião no Brasil. 

Fonte: Movimento Nacional Fé e Política – Artigos – 10 de fevereiro de 2024 – Internet: clique aqui (acesso em: 19/02/2024).

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

1º Domingo da Quaresma – Ano B – Homilia

 Evangelho: Marcos 1,12-15 

Frei Alberto Maggi

Padre e biblista italiano dos Servos de Maria (Servitas) 

Aprendendo a viver em tempos de provação

Para o primeiro domingo da Quaresma a liturgia apresenta-nos a passagem das tentações de Jesus no deserto no evangelho de Marcos e, nestas tentações de Marcos, Jesus não reza nem jejua. Por quê? O evangelista não pretende apresentar um episódio da vida de Jesus, mas toda a existência dele. Sabemos que o número quarenta, na Bíblia, tem valor figurativo, não tem valor matemático ou aritmético, mas representa uma geração. Portanto, o evangelista, nestes poucos versículos, mostra-nos o que foi toda a existência de Jesus. Desse modo, não se trata de um episódio do qual Jesus saiu vitorioso, mas de toda a vida dele. 

Marcos 1,12: «Naquele tempo, o Espírito levou Jesus para o deserto.»

O evangelista escreve, no versículo 12 do capítulo 1: “E imediatamente o Espírito”, aquele espírito que Jesus recebeu no momento do batismo e, agora, como resposta ao amor de Deus, que Jesus recebeu, temos o amor para com os homens, um amor que os liberta. “Imediatamente o Espírito o impeliu”, é muito forte o verbo usado pelo evangelista, “ele o afugentou”, para indicar a urgência desta atividade, “para o deserto”. Este deserto recorda o deserto do Êxodo, o caminho de libertação que Jesus veio, agora, empreender para libertar o seu povo. 

Marcos 1,13a: «E ele ficou no deserto durante quarenta dias, e aí foi tentado por Satanás.»

E ele ficou no deserto durante quarenta dias”, como foi dito antes, não indica um episódio da vida de Jesus, mas toda a existência dele, “e aí foi tentado por Satanás”. O verbo “tentar” neste evangelho é paradoxalmente atribuído àqueles que, na cultura da época, se consideravam mais próximos do Senhor, ou seja, os fariseus. São eles os tentadores de Jesus porque são como Satanás, o diabo que divide; eles separam os homens de Deus, o homem da mulher e os homens uns dos outros. Ele é tentado por Satanás e Jesus dirigirá o epíteto “satanás” a um de seus discípulos, Pedro, que não aceita a orientação de Jesus para ir e comunicar a vida, ele quer um messias de poder e não entende que Jesus, em vez disso, será derrotado pelo poder (cf. Mc 8,31-33). 

Marcos 1,13b: «Vivia entre os animais selvagens, e os anjos o serviam.»

E depois, escreve o evangelista, que “ele estava com os animais selvagens”. No livro de Daniel, os animais selvagens indicam impérios, o poder, o que pode causar a morte (cf. Dn 7,1-27; 8,19-25). Então Jesus corria o risco de perder a vida durante toda a sua existência na terra e “os anjos o serviam”. Os anjos aparecem pela primeira vez em atitude de serviço. Esses anjos, que mais tarde veremos, são retratados por mulheres no evangelho de Marcos. Serão as mulheres, que o seguiram desde a Galileia, o modelo de serviço: a primeira será a sogra de Pedro que servirá Jesus, a última vez que o anjo aparecerá, atribuído às pessoas, serão às mulheres da crucificação. Enquanto os discípulos, ao longo do evangelho, discutem entre si para saber quem é o mais importante, quem está acima dos demais, são as mulheres que compreenderam que a comunhão com Deus acontece através do serviço realizado gratuitamente por amor! E lembremos que as mulheres eram consideradas os seres mais distantes de Deus! No décimo capítulo, versículo 45, será Jesus, durante uma discussão com seus discípulos, quem dirá que não veio para ser servido, mas para servir. O serviço realizado gratuitamente com amor e generosidade é a única garantia de comunhão com Deus. 

Marcos 1,14-15: «Depois que João Batista foi preso, Jesus foi para a Galileia, pregando o Evangelho de Deus e dizendo: “O tempo já se completou e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho!”»

E, então, o evangelista imediatamente depois afirma que “Depois que João foi preso”. Aqui estão os animais selvagens: tanto João como Jesus anunciam um convite à mudança, mas quem está no poder não tem intenção de mudar e quer perseguir todos aqueles que o proclamam. 

* Traduzido e editado do italiano por Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo.

** Os textos bíblicos citados foram extraídos do: Sagrada Congregação para o Culto Divino. Trad. CNBB. Palavra do Senhor I: lecionário dominical A-B-C. São Paulo: Paulus, 1994.


Reflexão Pessoal

Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo 

«A tentação mais perigosa: não se parecer com nada.»

(Albert Camus: 1913-1960 – escritor, jornalista, dramaturgo, romancista e filósofo argelino.)

O Filho de Deus, segundo o evangelista Marcos, não teve uma vida fácil e confortável neste mundo! O fato dele se entregar, completamente, ao anúncio e implantação do Reino de Deus nesta terra, trouxe-lhe como consequência uma vivência repleta de conflitos e tensões, como nos relata o próprio evangelho.

Aliás, é muito oportuno e necessário recordar que cumprir com o mandamento de Jesus ― “Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e sua justiça” (Mt 6,33a) ― anunciar Deus sem falsificá-lo, trabalhar por um mundo mais humano e justo é sempre muito arriscado!

Por isso, existem as tentações! Tentações são a proposta oposta ao Reino de Deus. Somos tentados porque temos, diante de nós, sempre dois caminhos: a verdade ou a mentira, a luz ou as trevas, a fidelidade a Deus ou a cumplicidade com a injustiça, o amor ao próximo ou o egoísmo puro, partilha de bens e de dons ou a concentração de tudo em mãos de poucos etc.

Portanto, as tentações, as provações da vida buscam nos afastar de Deus e de seu Reino. Por isso, todos necessitamos ser “impelidos” ao deserto! O deserto, naquele tempo de Jesus, era o lugar da ruptura com o sistema de vida e de sociedade em que se vivia. Não por acaso, ao deserto iam os deslocados, devedores que não tiveram sua situação econômica resolvida perante a Fazenda Pública, insatisfeitos com a ordem social vigente e assim por diante. Portanto, no deserto se encontravam os que se colocavam à margem daquela sociedade (“outsiders”, em inglês). Jesus se identifica com eles!

Neste Tempo de Quaresma que se inicia, somos convidados a avaliar, em profundidade, até que ponto se encontra a nossa adesão e comprometimento com o Reino de Deus. Afinal, é disso que se trata a pregação de Jesus: “O tempo já se completou e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho!” (Mc 1,15).

A grande contribuição do Reino de Deus para o mundo, é que nele todos os marginalizados, os sem importância, os esquecidos e abandonados pela sociedade humana encontram seu lugar e acolhida! Jesus contribuiu, sobremaneira, para que o mundo pudesse enxergar a importância dos pobres, dos últimos, dos que sofrem, dos que não contam! Pois, vós sois todos irmãos e irmãs” (cf. Mt 23,8). 

Oração após a meditação do Santo Evangelho 

«Deus Todo-Poderoso, Pai do Cristo, teu Filho Unigênito, dá-nos um corpo imaculado, um coração puro, uma mente vigilante, um conhecimento sem erro, a presença do Espírito, para que nasça e cresça em nós a verdade, Jesus Cristo nosso Senhor. Senhor, que tudo governas, Pai de Jesus Cristo, príncipe eterno e libertador de escravos, faz com que mais nada de velho exista mais naqueles que foram transformados e se voltaram para ti na verdade. Tu que deles desejas uma alma pura e os chamaste para um segundo nascimento em seu grande amor, imprime neles a imagem viva de teu único Filho. Fortalece sua fé para que nada possa separá-los de ti, e estejamos sempre unidos ao teu Verbo, a ti glória e poder e ao Espírito Santo agora e para sempre, pelos séculos dos séculos.» Amém.

(Fonte: Tradição Apostólica de Hipólito de Roma)

Fonte: Centro Studi Biblici “G. Vannucci” – Videomelie e trascrizioni – 1ª Domenica di Quaresima – Anno B – 21 febbraio 2021 – Internet: clique  aqui (Acesso em: 14/02/2023).

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

6º Domingo do Tempo Comum – Ano B – Homilia

 Evangelho: Marcos 1,40-45 

Frei Alberto Maggi

Padre e biblista italiano dos Servos de Maria (Servitas) 

Deus não discrimina ninguém

O evangelista escreveu que Jesus ensina em toda a Galileia e aqui estão os ecos de seu ensinamento, a resposta à Boa Nova. E quem são? Eles são os marginalizados pela religião. São aqueles que a religião catalogou como impuros e para eles não há esperança. O único que pode salvá-los seria Deus, mas como são impuros, não podem voltar-se para Deus; portanto, eles vivem em uma situação desesperadora. 

Marcos 1,40: «Naquele tempo, um leproso chegou perto de Jesus, e de joelhos pediu: “Se queres tens o poder de curar-me”.»

Um leproso chegou perto de Jesus”, isso é uma surpresa. O leproso não é considerado apenas um doente, mas um pecador punido por Deus (cf. Ex 4,6; Nm 12,10; 2Rs 5,27). A lepra era uma praga terrível para a qual não havia salvação. Ao longo da Bíblia, lemos que apenas dois leprosos foram curados. Eles devem ficar afastados, fora das cidades, não devem aproximar-se nem ser abordados e, caso avistem alguém, devem gritar: “Impuro! Impuro!” (Lv 13,45 > Lv 13). Pois bem, este leproso que ouviu o ensinamento de Jesus, entende que pode haver esperança para ele também e transgride a lei, aproximando-se de Jesus. Mas não conhece a reação de Jesus, por isso se ajoelha e não tem certeza, por isso, ele pergunta: “Se você quiser”. E, estranhamente, ele não pede para ser curado da lepra, ele pede para ser purificado. Esta expressão aparecerá três vezes para indicar que é isso que o evangelista tem no coração; isto é, este é um homem que perdeu tudo para a lepra, perdeu a família, o emprego, a dignidade, os amigos, mas também perdeu Deus, por isso pede a Jesus que restabeleça este contato com Deus, para o purificar. 

Marcos 1,41: «Jesus, cheio de compaixão, estendeu a mão, tocou nele, e disse: “Eu quero: fica curado!”»

Pois bem, Jesus deveria ficar horrorizado diante deste ser impuro e pecador, que continua transgredindo a lei e se volta para ele; deveria afastá-lo. Em vez disso, o evangelista escreve que “Jesus teve compaixão dele”, termo que indica a restauração da vida a quem não a tem. E o evangelista cria suspense, porque diz “Jesus estendeu a mão”. Esta é uma expressão técnica que Marcos retira do livro do Êxodo para indicar a ação de Moisés quando estende a mão contra seus inimigos (cf. Ex 3,20; 4,4; 14,21; 17,11.12). Então nos perguntamos: mas o que Jesus fará? Ele o punirá por infringir a lei? “O tocou”, não era necessário tocá-lo, “e disse-lhe: eu quero” e, fazendo uso do imperativo, ordena: “Sê purificado, eu quero”. A vontade de Deus, porque Jesus é Deus, é a eliminação de toda a marginalização realizada em seu nome, anulando definitivamente a categoria do puro e do impuro. 

Marcos 1,42: «No mesmo instante a lepra desapareceu e ele ficou curado.»

E aqui está a surpresa “e imediatamente a lepra desapareceu”, literalmente, “afastou-se dele”, “e ele foi purificado”. Que méritos esse leproso tinha para ser purificado? Nenhum! Em vez disso, ele continuou a infringir a lei. Então Jesus ensina que não é verdade, como ensina a religião, que você deve se purificar para se aproximar de Deus. Mas você deve aproximar-se dele, acolher o Senhor e é ele quem lhe purifica. Então essa é a grande notícia de Jesus. 

Marcos 1,43-44: «Então Jesus o mandou logo embora, falando com firmeza: “Não contes nada disso a ninguém! Vai, mostra-te ao sacerdote e oferece, pela tua purificação, o que Moisés ordenou, como prova para eles!”»

Contudo, estranhamente, Jesus, agora, o adverte, literalmente “repreendendo-o”. É estranho: se ele tivesse que repreendê-lo, deveria ter feito isso antes, quando ele se aproximou, por que ele está repreendendo-o agora? E o evangelista diz: “Ele o mandou logo embora”, mas de onde Jesus o afugentou e por que ele o repreende? Qual é a ação de Jesus? Repreende-o por acreditar em um Deus que o excluiu do seu amor. E de onde o afasta? Ele o afasta de uma instituição religiosa que, em vez da vontade de Deus, ensina os pensamentos dos homens que estão longe de Deus. Então, depois de libertá-lo, ele o ajuda a se libertar de si mesmo e diz: “Agora vá, vá até os sacerdotes, mostra-te a eles e oferece para a tua purificação o que Moisés prescreveu”, diz “Moisés”, não Deus! Prossegue Jesus: “como testemunho” e não é “a favor deles”, mas “contra eles”. Aqui, o evangelista cita o livro do Deuteronômio (31,26), onde o próprio Moisés diz: “Tomai este livro da Lei e colocai-o junto da arca da aliança do Senhor, vosso Deus. Ali ficará como testemunho contra ti”.

Contra o que é esse testemunho? A prova é que Deus age exatamente ao contrário do que os sacerdotes ensinam e exigem, que não é verdade que haja necessidade de trazer ofertas para agradar a Deus, para ser purificado, mas é Deus quem continuamente se oferece para purificar as pessoas

Marcos 1,45: «Ele foi e começou a contar e a divulgar muito o fato. Por isso Jesus não podia mais entrar publicamente numa cidade: ficava fora, em lugares desertos. E de toda parte vinham procurá-lo.»

No entanto, o leproso curado não faz o que Jesus lhe havia ordenado, ou seja, apresentar-se aos sacerdotes. Ele se distancia de uma instituição religiosa que o havia marginalizado e “passou a pregar” exatamente como Jesus e a “divulgar o fato”, literalmente não o episódio: o termo é “a palavra”, ou seja, a mensagem que está presente neste acontecimento. E qual é essa mensagem? Que Deus não discrimina as pessoas, que para ele não existem pessoas puras ou impuras, que não é verdade que é preciso purificar-se para acolher o Senhor, mas é acolher o Senhor que purifica; que a aceitação de Deus não é consequência da pureza do homem, mas é o que a precede.

Este leproso, uma vez purificado, começa a pregar, mas a consequência é que Jesus não podia entrar publicamente numa cidade, mas permanecia fora. Por quê? Porque Jesus, por amor, por ter tocado nesse leproso, ele agora se torna ritualmente impuro. Para purificar o homem leproso, o homem impuro, Jesus tornou-se impuro aos olhos da religião. Mas agora está feito! E as pessoas acorrem a Jesus, compreenderam que, em Jesus, há uma nova imagem de Deus

* Traduzido e editado do italiano por Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo.

** Os textos bíblicos citados foram extraídos do: Sagrada Congregação para o Culto Divino. Trad. CNBB. Palavra do Senhor I: lecionário dominical A-B-C. São Paulo: Paulus, 1994. 

Reflexão Pessoal

Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo 

«O que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesmo.»

(Clarice Lispector: 1920-1977 – escritora e jornalista brasileira nascida na Ucrânia)

Uma ideia infantil de Deus, ainda, domina a mente de muitas pessoas nos tempos atuais! Deus é visto de dois modos muito extremos e equivocados, vejamos:

a) ou ele é o todo-poderoso que tudo vê, tudo observa, tudo sabe, tudo retém em sua infinita memória a ponto de poder castigar-nos, nesta vida, pelos nossos erros e julgar-nos, após nossa morte, pelos mínimos deslizes e pecados que tenhamos cometido.

b) Ou é um Deus que pode, se orarmos com muito fervor, sanar todos os nossos males e dificuldades: arrumar emprego, ajudar a ser bem sucedido em um exame ou seleção, curar doenças, proteger-nos de perigos, encaminhar-nos para um bom matrimônio e assim segue.

Na primeira maneira de se conceber Deus, o erro maior é a falta de misericórdia! Uma das características essenciais de Deus, segundo os evangelhos, é a misericórdia, a compaixão e o perdão divinos. O Deus que Jesus veio nos dar a conhecer pelos seus gestos, atitudes e palavras, é um Deus que não é rancoroso, que não se vinga, que não castiga, mas quer salvar e promover a felicidade de todos os seus filhos, sem distinção!

Na segunda maneira de vislumbrar Deus, o maior equívoco é a falta de liberdade e autonomia do ser humano criado por ele. Afinal, um Deus que possa, a todo e qualquer momento, interferir na vida de seus filhos e filhas não deixa espaço para os seres humanos serem eles mesmos e determinarem a sua própria vida. E, caso Deus tivesse a capacidade e vontade de intervir, a todo momento, a favor dos homens, por que, simplesmente, ele não nos criou livres de problemas e dificuldade?

Jesus, no Evangelho de hoje, deixa claro que Deus não marginaliza, não despreza ou trata mal as pessoas, que a religião que existia em seu nome, rejeitava e considerava impuras! Nós, seres humanos, temos a mania de classificar as pessoas, julgá-las, separá-las, tratá-las de modo diferenciado, mas esse não é o proceder de Deus! Parece que algumas sérias advertências que Jesus nos fez entraram por um ouvido e saíram pelo outro, tais como:

* “Não julgueis, e não sereis julgados, pois com o julgamento com que julgardes, sereis julgados, e com a medida com que medirdes, se medirá para vós” (Mt 7,1-2 // Mc 4,24-25; Lc 6,37-38).

* “[...] não condeneis, e não sereis condenados; perdoai, e sereis perdoados” (Lc 6,37b).

* “Com efeito, se perdoardes as faltas uns aos outros, também vos perdoará o vosso Pai que está nos céus. Se vós, porém, não perdoardes aos outros, vosso Pai também não perdoará as vossas faltas” (Mt 6,14-15 > Mc 11,25-26; Lc 6,37).

É evidente que, em seu íntimo, Jesus sentia um grande respeito e tinha uma amizade comovente para com os rejeitados pela sociedade e religião de seu tempo. Assim como ele reintegrava os marginalizados ao convívio social, do mesmo modo, a Igreja, nos dias de hoje, deve seguir inventando soluções contra todo e qualquer tipo de marginalização. Afinal, o que nós somos uns dos outros senão irmãos e irmãs?

O simples fato de haver marginalizados na sociedade indica que vivemos em um mundo imperfeito, um mundo onde o Reino de Deus ainda não chegou plenamente! 

«Sempre que discriminamos, devido a nossa suposta superioridade moral, a diferentes grupos humanos (vagabundos, prostitutas, toxicodependentes, psicóticos, imigrantes, homossexuais...) e os excluímos da convivência, negando-lhes o nosso acolhimento, estamos nos distanciando seriamente de Jesus» (José Antonio Pagola).

 Oração após a meditação do Santo Evangelho 

«Concede-me Senhor o dom do amor. / O dom de amar todo o mundo, / de amar tudo em toda a terra / e, sobretudo, os homens, nossos irmãos, / que são, por vezes, tão infelizes. / De amar também as pessoas felizes, / que tantas vezes são pobres fantoches. / Dá-nos, Senhor, a força de amar sobretudo os que não nos amam, / antes de tudo os que não amam ninguém, / para os quais, quando a Hora soar, / tudo acaba para sempre. / Que a nossa vida seja o reflexo do Teu amor! / Amar o próximo que está no cabo do mundo; / amar o estrangeiro que está ao nosso lado; / consolar, perdoar, abençoar, estender os braços. / Amar aqueles que se esgotam em correrias inúteis em redor de si mesmos: / fazer brotar uma fonte no deserto do coração; / libertar os solitários, / erguer os prostrados, / abrir com um sorriso os corações fechados. / Amar, amar... / Então uma grande primavera transformará a terra / e tudo em nós reflorirá.»

(Fonte: Raoul Follereau. “O Dom de Amar”)

Fonte: Centro Studi Biblici “G. Vannucci” – Videomelie e trascrizioni – 6ª Domenica del Tempo Ordinario – Anno B – 14 febbraio 2021 – Internet: clique aqui (Acesso em: 06/02/2023).

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

5º Domingo do Tempo Comum – Ano B – Homilia

 Evangelho: Marcos 1,29-39 

Frei Alberto Maggi

Padre e biblista italiano dos Servos de Maria (Servitas) 

Para Jesus, o bem do ser humano está acima dos preceitos, tradições e costumes

Em Cafarnaum, na sinagoga, Jesus ensina pela primeira vez e o povo entende que a vontade de Deus não se expressa através da doutrina imposta pelos seus escribas, o magistério oficial da época, mas na ação libertadora de Jesus. É o que se comprova pelo evangelho de hoje, o primeiro capítulo de Marcos do versículo 29 ao 39. Assim que saíram da sinagoga foram para a casa de Simão e André junto com os outros dois discípulos, os primeiros chamados por Jesus, na companhia de Tiago e João. E a sogra de Simone estava de cama com febre. 

Marcos 1,29-30: «Naquele tempo, Jesus saiu da sinagoga e foi, com Tiago e João, para a casa de Simão e André. A sogra de Simão estava de cama, com febre, e eles logo contaram a Jesus.»

Naquela cultura, a mulher é considerada o ser humano mais afastado de Deus e, em qualquer caso, ela é irrelevante, a mulher não conta para nada na família. No entanto, nessa cena do Evangelho, imediatamente falam com Jesus sobre ela. Eles compreenderam algo novo no ensinamento de Jesus, onde o bem do ser humano é colocado em primeiro lugar, antes mesmo da observância da lei divina. Por que isso? Porque este dia é sábado; no sábado, são proibidas 1.521 ações e entre elas também está a visita e o atendimento aos enfermos. Pois bem, os discípulos compreenderam que o bem do ser humano é o valor mais importante e por isso falam dela.

Jesus poderia ter dito: “Vamos esperar, vamos aguardar que o sábado passe”. Não, o bem do ser humano é mais importante que a observância da lei divina. Lembremo-nos de que o mandamento de descansar no sábado não era um mandamento entre outros, mas era o mandamento mais importante de todos porque se acreditava que o próprio Deus o guardava. A observância deste único mandamento equivalia à observância de toda a lei, a transgressão deste único mandamento equivalia à transgressão de toda a lei e por isso estava prevista a pena de morte. 

Marcos 1,31: «E ele se aproximou, segurou sua mão e ajudou-a a levantar-se. Então, a febre desapareceu; e ela começou a servi-los.»

Mas no grupo de Jesus eles entenderam que há uma nova atmosfera. Então Jesus se aproxima, “ajudou-a a levantar-se” e é surpreendente o que Jesus faz:segurou sua mão”. Por quê? Não havia necessidade, mas porque é proibido. Todas as vezes em que Jesus se encontrava em conflito entre a lei, a tradição e o bem do ser humano, ele sempre escolhia o bem do ser humano. E, aqui, o sensacional é que Jesus, tocando a mão de uma mulher impura, não recebe a impureza da mulher, mas transmite a sua força, a sua energia. De fato, “a febre a deixou e ela os servia”. Para o verbo servir, o evangelista usa o termo “diaconeo”, que também conhecemos na língua portuguesa, diácono, que é aquele que serve gratuitamente por amor. Este termo é importante porque apareceu no evangelho depois das tentações, quando os anjos, ou seja, os seres mais próximos de Deus, serviam a Jesus. Pois bem, a mulher que estava com Jesus, que era considerada o ser mais distante de Deus, o mais inútil, o mais insignificante, uma vez que acolhe a mensagem de Jesus e a comunidade cristã torna-se o ser mais próximo de Deus

Marcos 1,32: «À tarde, depois do pôr do sol, levaram a Jesus todos os doentes e os possuídos pelo demônio.»

Mas do lado de fora da casa de Simão e André, se passa o que o evangelista nos diz neste versículo 32. Por que eles esperaram? Porque eles guardaram a lei, o descanso sabático. Enquanto em casa, a necessidade, o bem da pessoa era mais importante que a observância do sábado, na cidade, o sábado era mais importante que o bem do povo. A observância da lei retardou o encontro com a vida que Jesus podia comunicar

Marcos 1,33-39: «A cidade inteira se reuniu em frente da casa. Jesus curou muitas pessoas de diversas doenças e expulsou muitos demônios. E não deixava que os demônios falassem, pois sabiam quem ele era. De madrugada, quando ainda estava escuro, Jesus se levantou e foi rezar num lugar deserto. Simão e seus companheiros foram à procura de Jesus. Quando o encontraram, disseram: “Todos estão te procurando”. Jesus respondeu: “Vamos a outros lugares, às aldeias da redondeza! Devo pregar também ali, pois foi para isso que eu vim”. E andava por toda a Galileia, pregando em suas sinagogas e expulsando os demônios.»

A cidade inteira está reunida em frente à porta, Jesus cura as pessoas e a passagem do evangelho termina de forma surpreendente no final; o evangelista escreve que Jesus percorreu toda a Galileia “pregando nas sinagogas e expulsando os demônios”. O evangelista denuncia que nas sinagogas, isto é, nos locais de culto, nos locais de ensino religioso, são onde os demônios se escondem. São as pessoas submetidas a um ensinamento que diz vir de Deus quando, na verdade, não vem de Deus. Jesus denunciará esses escribas que ensinam doutrinas de homens. E as pessoas estão submetidas a esse ordenamento e é justamente na sinagoga. Desse modo, as sinagogas serão os lugares mais hostis e refratários a Jesus, onde Jesus tentará libertar as pessoas com o seu ensinamento. 

* Traduzido e editado do italiano por Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo.

** Os textos bíblicos citados foram extraídos do: Sagrada Congregação para o Culto Divino. Trad. CNBB. Palavra do Senhor I: lecionário dominical A-B-C. São Paulo: Paulus, 1994. 

Reflexão Pessoal

Pe. Telmo José Amaral de Figueiredo 

«Quem é da luz não mostra sua religião, e sim o seu amor.»

(Papa Francisco: nascimento em 1936 – 266º Bispo de Roma)

Se no domingo passado, Jesus tem de dominar e expulsar um “espírito impuro” no interior de uma sinagoga, hoje, o Evangelho, prosseguindo o relato daquele mesmo dia, em Cafarnaum, mostra Jesus se dirigindo a uma casa, aquela de Simão Pedro e André. Na casa o ambiente é outro, respira-se a vida concreta, cotidiana do povo, a qual é marcada por vários tipos de sofrimento. No caso, é a sogra de Pedro que encontra-se febril e necessitada de atendimento. Jesus quebra, pela segunda vez em um só dia, a lei do absoluto repouso sabático! Na sinagoga, Jesus libertou um homem da possessão de ideias absurdas e errôneas acerca de Deus e de seu Messias. Na casa de Simão Pedro e André, Jesus liberta uma mulher de uma enfermidade que lhe impedia de conviver plenamente com a sua família. 

Os gestos e as atitudes de Jesus (cf. Mc 1,31) para com a sogra de Pedro são uma lição de “pedagogia da cura” por parte de nosso grande Mestre, confiramos:

1º) “aproximou-se”: Jesus não tem receio de aproximar-se das pessoas sofredoras, olhar bem dentro de seus olhos e compartilhar de sua dor. Nisso, Jesus revela a sua plena humanidade, a qual não deixa lugar para a desumanidade, para a insensibilidade tão comum em muitas pessoas.

2º) “segurou sua mão”: desafia os preceitos religiosos e sociais de pureza! Jesus quer que a pessoa sofredora sinta a sua força, a sua presença viva e comprometida.

3º) “ajudou-a a levantar-se”: ao colocá-la de pé, Jesus lhe restitui a sua dignidade. Como frisou frei Maggi no comentário acima: o que mais Jesus deseja é o bem da humanidade, é a felicidade das pessoas!

E a sogra de Pedro aprendeu rapidamente a lição de Jesus: “ela começou a servi-los”. Nem bem a febre lhe tinha deixado, essa mulher já se põe ao serviço, pois isso é viver o cristianismo: servir e não ser servido! Ser cristão é viver acolhendo e cuidando uns dos outros, especialmente, dos mais fracos e necessitados. 

Agora, de onde Jesus retirava tanta força, tanta energia, tanta disposição para servir aos enfermos, aos possessos, aos pobres e abatidos? O Evangelho deste domingo nos revela o seu segredo: “De madrugada, quando ainda estava escuro, Jesus se levantou e foi rezar num lugar deserto” (Mc 1,35). É preciso ficar bem claro que Jesus não era um tipo de assistente social, um curandeiro, um médico ou qualquer coisa nesse sentido! A chave da profunda sensibilidade humana de Jesus estava em sua espiritualidade. Ou seja, na profunda e frequente relação que ele tinha com a fonte de toda a humanidade: Deus, seu Pai! Sem o espírito de seu Pai, Jesus não teria sido o que foi e realizado o que fez! 

Oração após a meditação do Santo Evangelho 

«Senhor, desejo louvar-te, bendizer-te e agradecer-te de todo o coração por esta tua Palavra, hoje escrita para mim, pronunciada pelo Teu Amor por mim, porque Tu me amas verdadeiramente. Obrigado, porque Tu vieste, Tu desceste, Tu entraste em minha casa e te juntaste a mim ali mesmo onde eu estava doente, onde eu estava queimando com uma febre inimiga; Tu chegaste onde eu estava longe e sozinho. E Tu me pegaste. Tu agarraste minha mão e me fizeste levantar, devolvendo-me a vida plena e verdadeira, aquela que vem de Ti, aquela que é vivida ao teu lado. É por isso que estou feliz agora, meu Senhor. Obrigado porque superaste as minhas trevas, venceste a noite com a tua oração poderosa, solitária e amorosa; Tu fizeste brilhar a tua luz em mim, nos meus olhos e agora eu também vejo de novo, estou iluminado por dentro. [...] Amém.»

(Fonte: CUCCA, Maria Anastasia, O.Carm. Orazione finale. In: CILIA, Anthony, O.Carm. [a cura di]. Lectio divina sui vangeli festivi per l’anno liturgico B. Leumann [TO]: Elledici, 2009, p. 358)

Fonte: Centro Studi Biblici “G. Vannucci” – Videomelie e trascrizioni – 5ª Domenica del Tempo Ordinario – Anno B – 7 gennaio 2021 – Internet: clique aqui (Acesso em: 02/02/2023).