«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Viagem de Papa Francisco: um balanço

As mensagens papais escanteadas pelo caso do bispo Juan Barros

Andrea Tornielli
Vatican Insider
25-01-2018

A história do bispo de Osorno, acusado de ter acobertado os abusos de
seu mentor padre Karadima, acabou monopolizando a atenção, ofuscando
as palavras do Pontífice sobre a Amazônia, sobre a corrupção e sobre
a conversão necessária para a Igreja
PAPA FRANCISCO cumprimenta indígena em Puerto Maldonado, na Amazônia peruana
(Foto: Alessandra Tarantino/AP Photo)

A admissão de ter errado ao responder à pergunta de uma repórter de rádio sobre o caso Barros, primeiro mea culpa explícito e público de um papa que reconhece um erro próprio (e não o cometido pelos antecessores em um passado distante), compreensivelmente chamou a atenção da mídia no fim da viagem de Francisco ao Chile e ao Peru. Acabando por desviar a atenção, porém, das mensagens que o papa quis levar aos dois países visitados em uma turnê de 30 mil quilômetros com 10 voos em sete dias.

A entrevista no avião, na volta de Lima, foi dedicada principalmente aos casos de abusos contra menores no Chile e no Peru. Bergoglio, embora admitindo que se expressou mal ao pedir “provas” às vítimas de abuso, reiterou sua convicção: contra o bispo de Osorno, Juan Barros Madrid, um dos filhos espirituais, além de secretário particular do abusador em série e padre Fernando Karadima, não há “evidências” que permitam condená-lo. Mostrando, portanto, que não considera convincente o testemunho daqueles que afirmam que o futuro bispo Barros teria estado a par dos abusos de Karadima e os teria encoberto. É mais do que provável que o caso não vai terminar aqui.

Observou-se quanto cuidado e quanto trabalho pessoal o papa colocou ao preparar os discursos e as homilias da viagem ao Chile e ao Peru. Mas o que também se verificou, por causa da concentração midiática sobre o bispo Barros, foi o precipitado arquivamento de algumas mensagens centrais da viagem de Francisco. Uma viagem eminentemente missionária.

Sobre a corrupção

As palavras do papa sobre a corrupção, “forma, muitas vezes sutil, de degradação ambiental que contamina progressivamente todo o tecido vital”, definida como um “vírus social, um fenômeno que infecta tudo, sendo os pobres e a Mãe Terra os mais prejudicados”, pronunciadas no Peru e dramaticamente atuais para a realidade sociopolítica daquele país, diziam respeito, mais em geral, a toda a América do Sul, e não só.

Sobre a Amazônia

Entre as mensagens rapidamente arquivadas também estão as palavras sobre a Amazônia, tesouro a ser preservado não de acordo com a ideologia ambientalista, segundo a qual o ser humano é o câncer do planeta, mas a partir dos povos autóctones que vivem lá e que têm o direito de ser respeitados e considerados como um recurso insubstituível.

Aqueles povos amazônicos que nunca estiveram “tão ameaçados quanto hoje” pelos grandes interesses econômicos daqueles que querem cortar árvores, perfurar em busca de petróleo, abrir novas rodovias de cimento no coração das florestas: e, justamente no fim da visita do pontífice, o Peru confirmou o traçado da rodovia de duas pistas, de 227 quilômetros de extensão, que cortará o pulmão verde do mundo, unindo Puerto Esperanza, no nordeste do país, e Iñapari, na fronteira com o Estado do Acre, no Brasil, atravessando cinco parques nacionais.
A linha pontilhada em vermelho é o traçado proposto para uma rodovia de duas pistas
que cortará 5 parques nacionais no Peru, ligando Puerto Esperança, no nordeste do país até Iñapari,
na fronteira com o Brasil

Sobre a conversão da hierarquia católica

E como não lembrar, por fim, o discurso ao clero e aos religiosos chilenos – um dos textos mais belos do pontificado – no qual Francisco, ao falar aos consagrados, ofereceu intuições úteis para todo cristão: “Nós não estamos aqui porque somos melhores do que outros. Não somos super-heróis que, das alturas, descem para se encontrar com os ‘mortais’. Ao contrário, somos enviados com a consciência de ser homens e mulheres perdoados. E essa é a fonte da nossa alegria”.

E, assim como “Jesus não se apresenta aos seus sem chagas”, assim também os seus são convidados a “não dissimular ou esconder” as suas chagas. “Uma Igreja com chagas é capaz de compreender as chagas do mundo de hoje e torná-las suas, sofrê-las, acompanhá-las e buscar curá-las. Uma Igreja com chagas não se coloca no centro, não se crê perfeita, mas põe ali o único que pode curar as feridas e tem nome: Jesus Cristo.”

A consciência de ter chagas liberta o cristão de se “tornar-se autorreferencial”, de se crer “superior”. Liberta da tendência “prometeica” daqueles que “só confiam em suas próprias forças e se sentem superiores aos outros por cumprirem determinadas normas ou por serem inquebrantavelmente fiéis a um certo estilo católico próprio do passado”.

Palavras que se encaixam perfeitamente para descrever a doença do clericalismo e para compreender a perda de credibilidade aos olhos da opinião pública de uma Igreja – a chilena – que era muito amada e considerada como um baluarte seguro durante os anos da ditadura de Pinochet, graças a pastores como o cardeal Raúl Silva Henríquez.

Palavras que chamam toda a Igreja à conversão e também parecem ser úteis para chamar ao essencial aquelas ânsias “reformadoras” e funcionalistas daqueles que – dentro e fora da Cúria – reduzem a slogans vazios o ensinamento do pontífice, agindo, talvez em seu nome, como “super-heróis”.

Traduzido do italiano por Moisés Sbardelotto. Acesse a versão original deste artigo, clicando aqui.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Sexta-feira, 26 de janeiro de 2018 – Internet: clique aqui.

Viagem ao Chile: desafios e decepções

Mauro Lopes

“A viagem de três dias de Francisco ao Chile, encerrada nesta sexta
(19 de janeiro), configura o pior momento de seu papado, foi um fiasco,
é preciso dizer”
Críticas à Igreja e ao Papa por parte de chilenos durante a visita de Francisco

O Papa passou pelo Chile com uma recepção gélida, ruas vazias, debaixo de seguidas reprovações (os repórteres que o acompanharam ficaram surpresos com a reticência dos chilenos).

Não é à toa. As pessoas comuns no Chile estão indignadas com uma Igreja que foi combativa, mas depois de uma avassaladora intervenção de João Paulo II nos anos 1980, tornou-se apoiadora de uma das ditaduras mais sanguinárias do continente, afastou-se do povo e, por fim, esmerou-se por décadas em encobrir sacerdotes abusadores e pedófilos.

Segundo Elisabetta Piqué, vaticanista (jornalistas que cobrem o Vaticano), do argentino La Nación, próxima do Papa e que acompanhou a visita, a Igreja chilena é “elitista, clerical, que está pagando por isso e pelos escândalos de abusos”. Ela sintetizou a reação dos jornalistas ao afirmar que a recepção a Francisco “surpreende muito, porque estamos em um país católico que parece que já não é tão católico”.

O Papa não ajudou a reverter as coisas.

Fez discursos bonitos, carregados de sentido e boas palavras, como sempre – mas as pessoas queriam mais que isso.

O caso mais emblemático é o dos abusos sexuais cometidos por sacerdotes no país, especialmente o caso do padre Fernando Karadima, que abusou de mais de 75 crianças. Karadima, de 87 anos, ligado à direita empresarial e política, foi afastado pela Igreja apenas em 2011, depois de anos de denúncias e complacência dos clérigos chilenos.
D. Juan Barros Madrid
Nomeado pelo Papa Francisco como bispo diocesano de Osorno (Chile)

Qual ação de Francisco está no centro das críticas que está sofrendo no Chile? Em 2015, ele nomeou como bispo de Osorno (no sul do país), Juan Barros, que acobertou Karadima anos a fio, opondo-se a todas as investigações do caso.

Houve protestos expressivos no Chile contra a nomeação, especialmente da comunidade de Osorno, mas eles foram ignorados por Roma.

Pois dom Juan Barros esteve presente na missa campal no Parque O’Higgins, na última terça (16 de janeiro). O fato foi considerado um escândalo e um desrespeito às vítimas de abusos e abriu uma série de questionamentos ao Papa, sob o argumento de que suas palavras de solidariedade aos abusados e suas famílias não correspondem aos fatos e ações do Vaticano.

A comunidade de Osorno conseguiu entregar uma carta ao Papa através do presidente da Câmara dos Deputados, Fidel Espinoza, em que lhe pedem para reverter a nomeação episcopal de Barros - a situação da Igreja chilena é tão lamentável que a comunidade católica de Osorno precisou recorrer a um político para entregar a carta.

Houve mais: as vítimas de Karadima não foram convidadas para o encontro do Papa com pessoas que sofreram abusos de sacerdotes, também na terça.

O ponto culminante foi a inacreditável defesa que Francisco fez do bispo Barros, ao final da viagem afirmando que ele seria vítima de calúnias.

O Papa foi duramente reprovado pelas vítimas de Karadima. José Andrés Murillo, diretor da Fundación para la Confianza, criada para atender as pessoas vitimadas e ele mesmo uma das vítimas do padre Karadima, foi contundente: “Não é a primeira vez que (o Papa) pede perdão, que tem lágrimas de vergonha: aqui, repito, as palavras, se não vão acompanhadas de ações, não valem nada e isso está super claro. Não se trata de que sejam suficientes ou não, as palavras não servem se não são acompanhadas de ações concretas”. E não houve qualquer ação concreta, ao contrário, a única que houve foi a reafirmação, pelo Papa, do poder de um bispo cúmplice. Depois da manifestação do Papa de apoio ao bispo Barros, Murillo divulgou uma carta pesarosa na manhã de hoje (19): “o que o Papa fez é ofensivo e doloroso”.

O tema dos abusos foi tratado como uma “batata quente” durante a visita, e não como uma prioridade para ações concretas. Josefina Canales, presidente da Federação dos Estudantes da Universidade Católica, entregou aos assessores de Francisco uma carta de duas páginas sob o título “A Igreja ausente”, na qual:

Os estudantes criticam a hierarquia chilena pela passividade diante dos abusos, pelo afastamento do povo e, no caso da Universidade Católica, pela expulsão de professores e manutenção de condições de trabalho indignas para os contratados pela instituição.

O reitor da Universidade Católica, Ignacio Sánchez, fez “cara de paisagem” diante da entrega da carta por seus estudantes.

Houve até mesmo repressão policial durante a visita, sem que o Papa ou a Igreja tivessem protestado. A Marcha dos Pobres, com 250 pessoas, convocada por movimentos sociais e que pretendia ir até a missa campal de terça-feira em Santiago, foi dissolvida violentamente pela polícia, que prendeu mais de 20 pessoas. O episódio ecoa tristemente a repressão brutal que sofreu outra manifestação com 250 sem teto durante a visita de João Paulo II ao país, em 1987. Na ocasião, morreu um jovem de 26 anos, Patricio Juica. A repressão atingiu os fiéis que participavam da missa, ferindo 600 pessoas. A Conferência dos Bispos Chilenos, já controlada pelos conservadores, emitiu uma nota culpando os manifestantes e afirmando que os policiais eram vítimas.

O fracasso de Francisco no Chile estendeu-se até à sua relação normalmente intensa e positiva com os povos originários. Os mapuche ficaram profundamente insatisfeitos com a postura do Papa. Antes de falar de paz, devolva as terras usurpadas – estes foram os termos de um documento das comunidades mapuche sobre o encontro com Francisco. Houve indignação com a defesa que Francisco fez por “paz” e “perdão” sem que se tenha manifestado concretamente pela devolução das terras que foram brutalmente arrancadas aos mapuche, vítimas também de um verdadeiro genocídio pelo Estado chileno.

Francisco partiu na manhã desta sexta para o Peru, com uma agenda voltada aos povos da Amazônia e ao Sínodo sobre a região convocado para 2019. Haverá novamente uma questão delicada: os indígenas serão sujeitos ou apenas pauta do encontro do próximo ano em Roma?


Fonte: Outras Palavras – Caminho para Casa / blog do Mauro Lopes – Sexta-feira, 19 de dezembro de 2017 – Internet: clique aqui.

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

E AGORA BRASIL ? ? ?

O julgamento e os impactos políticos da
condenação do ex-presidente Lula.
Algumas leituras

Ricardo Machado
Mulher se emociona diante do julgamento do recurso de Lula pelo
Tribunal Regional Federal da 4ª Região - Porto Alegre - RS

Depois de ter sido condenado pelo juiz Sergio Moro em primeira instância, em julho de 2017, o ex-presidente Lula sofreu novo revés nos tribunais. Desta vez em segunda instância pela caneta dos desembargadores João Pedro Gebran Neto, Leandro Paulsen e Victor Laus do Tribunal Regional Federal da 4ª Região – TRF4, em Porto Alegre, na quarta-feira, 24 de janeiro de 2018. Na prática, com a decisão, Lula se torna, em tese, inelegível no pleito presidencial por se enquadrar na chamada Lei da Ficha Limpa, uma vez condenado em segunda instância, mesmo sem o trânsito em julgado. Ainda assim Lula pode registrar sua candidatura, já que a inelegibilidade só se torna efetiva, do ponto de vista burocrático e legal, a partir da impugnação do candidato pelo Tribunal Superior Eleitoral – TSE.

O resultado, contudo, não causa surpresa. Os desembargadores aumentaram a pena de nove anos e seis meses dada anteriormente para 12 anos e um mês. Se os impactos políticos da decisão ainda serão sentidos ao longo dos próximos meses, no plano da economia de mercado os primeiros sinais foram dados. Na tarde de ontem, o índice geral da Bolsa de Valores de São Paulo, o Ibovespa, subiu 3,35%. Lula mostra que é capaz de animar o sistema financeiro mundial quando está em alta e quando está em baixa. Não deixa de ser irônico que o ex-presidente, em 2002, com a Carta ao povo brasileiro, fez crescer a confiança do mercado internacional no país ao garantir Henrique Meirelles no Ministério da Fazenda, cargo que ocupa novamente, e agora volte a ser motivo de alta na bolsa, não pela ascensão, senão por sua queda.

Pesa sobre Lula a condenação por ter recebido da Construtora OAS um apartamento triplex em Guarujá, no litoral paulista, como propina para favorecer a empresa em contratos de obras da Petrobras. Os advogados do ex-presidente basearam a defesa no TRF4 com a argumentação de que o apartamento não é de sua propriedade e que não há provas contra ele. Nas ruas e nas redes sociais, a queda de braço entre os brasis que se dividem em polos opostos parece estar longe de um fim. Em meio à complexidade do atual cenário político do Brasil há algo absolutamente claro: 24 de janeiro de 2018 já se tornou um dia histórico.

Diante de tal contexto, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU convidou uma série de analistas para, no calor dos acontecimentos, darem suas primeiras impressões sobre o significado e os impactos políticos do julgamento desta quarta-feira. Fizemos três breves perguntas aos entrevistados e as reproduzimos a seguir. Contribuíram com o debate Roberto Romano, José Geraldo de Sousa Júnior, Adriano Pilatti, Rudá Ricci, Bruno Cava e Giuseppe Cocco.
ROBERTO ROMANO

Roberto Romano

É professor de Ética e Filosofia na Universidade Estadual de Campinas - Unicamp. Cursou doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales - EHESS, França. Escreveu, entre outros livros, Igreja contra Estado. Crítica ao populismo católico (São Paulo: Kairós, 1979), Conservadorismo romântico (São Paulo: Ed. UNESP, 1997), Moral e Ciência. A monstruosidade no século XVIII (São Paulo: SENAC, 2002), O desafio do Islã e outros desafios (São Paulo: Perspectiva, 2004) e Os nomes do ódio (São Paulo: Perspectiva, 2009).

IHU On-Line – Como o senhor avalia o julgamento de Lula no TRF4? De que forma podemos compreender a atuação do judiciário no caso?

Roberto Romano – O Judiciário brasileiro, no dia 24-01-2018 deu um passo importante na trilha de instaurar o Estado de Exceção. Nas duas ditaduras do século XX, a de Vargas e a civil-militar de 1964, apesar das torturas, assassinatos de presos por agentes estatais, exílios, cassações, não seguiram a rota do Estado de Exceção de modo tão desastroso. Explico: apesar de existirem tribunais militares para julgar os supostos crimes contra a Segurança Nacional, o rito seguido, pelo menos formalmente, seguia a lógica comum dos tribunais consolidados: acusação, defesa, juízo independente. Em casos raros quem ocupava o cargo de magistrado seguia o rumo de reforçar a acusação, em detrimento de defesa. Vemos, com melancolia, que os togados civis, que deveriam evidenciar a mais estrita observância dos papéis, hoje acusam, perseguem, denunciam, ganham prêmios de empresários (os mesmos empresários que no pretérito e no presente maquinam golpes contra a população que congrega os "negativamente privilegiados" (o termo é de Max Weber). A corporação jurídica, abastecida por privilégios sem conta, está cada vez mais distante da população que, com seus impostos, garante todas as instituições estatais.

A decisão de 24-01-2018, foi mais um tapa na face da cidadania pobre brasileira. O triunfo de Torquemada, lembremos no entanto, é precário. Os juízes que se acautelem, porque os poderosos do Legislativo e do Executivo (que não são conduzidos por pessoas como Luiz Inácio Lula da Silva, mas por práticas autoritárias da direita) logo replicarão, com leis (como a de Abuso de Autoridade) que levará à magistratura ao papel a ela designado pelo Chanceler Francis Bacon: ao papel de "leões sob o trono".

IHU On-Line – Quais os impactos do resultado do julgamento de Lula no cenário político brasileiro e eleitoral de 2018?

Roberto Romano – Os impactos podem ser resumidos no seguinte vocábulo: imprevisibilidade política, econômica e jurídica. O mesmo mercado que hoje comemora a condenação do ex-presidente Lula, logo perceberá que a vitória foi de Pirro. Não sobrou nenhuma candidatura sólida à presidência da república, fora Lula, mesmo dentro do Partido dos Trabalhadores - PT. O que significa: ausência quase total de lideranças e legitimidade política nos que pretendem dirigir um país com mais de 200 milhões de habitantes e com problemas monstruosos.

IHU On-Line – Como fica a esquerda diante do atual contexto? Quais os desafios?

Roberto Romano – Se a esquerda não fizer um exercício de pensamento e imaginação enorme, se ela continuar com a desastrosa política de alianças à direita, que levou ao impeachment de Dilma Rousseff (Michel Temer era aliado do PT, não se olvide) ela pode ouvir os sinos das suas exéquias. É preciso que ela se reinvente à esquerda, o que pode parecer óbvio, mas não é.
JOSÉ GERALDO DE SOUSA JÚNIOR

José Geraldo de Sousa Júnior

Possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal - AEUDF, mestrado e doutorado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto O Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos. Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade.

Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil - OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais. Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB.

IHU On-Line – Como o senhor avalia o julgamento de Lula no TRF4? De que forma podemos compreender a atuação do judiciário no caso?

José Geraldo de Sousa Júnior – Não quero entrar no mérito funcional e técnico que cerca a decisão. Nessa matéria, de resto, constata-se o maior acúmulo de análises que vêm sendo construídas já desde a sentença de primeiro grau. E, nesse aspecto, em comentários domésticos e internacionais, que percorrem desde o campo lógico-semântico ao filosófico, passando é claro, pelo jurídico, nenhum tema recebeu tanto esquadrinhamento. Ouso dizer que talvez somente o Caso Dreifus, no final no século XIX, na França, conduzido sob a base de uma fraude documental e por um disfarce político que a acobertou. Como agora, a dimensão política do processo foi objeto de intenso debate ao qual acorreram intelectuais de todo o mundo, Zola e Rui Barbosa, entre eles.

No julgamento de hoje (ontem) no TRF-4 encontram-se esses mesmos ingredientes, com a captura ainda mais veemente do jurídico pelo político, em um procedimento acalentado pelo corporativismo judicial. Como eu disse, as fragilidades do devido processo legal expostas por tantos meios e modos, não livraram o ex-presidente Lula do libelo cujo fim último é retirá-lo da disputa eleitoral uma vez formado o juízo ilustrado de que o projeto que ele representa não serve aos interesses e motivações que organizam as forças sociais que se organizaram para fazer emergente seu próprio projeto de poder e de sociedade.

Diferentemente do Caso Dreifus, entretanto, a capacidade social de manter viva a concertação que se iniciou com o movimento de impedimento da liderança que representava o projeto popular, manterá esse procedimento sob contínuo esquadrinhamento para exibir toda a sua astuciosidade. Sem se referir diretamente ao Caso Dreifus, mas como arguto interprete da cena social numa Europa na rota do aburguesamento, pode-se dizer agora o que Balzac escreveu em O Coronel Chabert (São Paulo: Companhia das Letras, 2006), seguido de Um Caso Tenebroso: "quando um homem cai nas mãos da Justiça, deixa de ser um ser moral, mas apenas uma questão de direito ou de fato, como aos olhos dos estatísticos se transforma um número", pior ainda quando "os infelizes não disponham de qualquer meio legal para combater este estado de coisas", referindo-se ao estado a que submetia as pessoas o Código de Brumário ano IV (o código do golpe de Luís Bonaparte, o 18 Brumário). O código do estado de exceção.

IHU On-Line – Quais os impactos do resultado do julgamento de Lula no cenário político brasileiro e eleitoral de 2018?

José Geraldo de Sousa Júnior – Ora, o julgamento de Lula na conjuntura é o Mar Vermelho do processo eleitoral de 2018. Penso que Lula pode ainda atravessar a abertura que a sua legitimidade política produz nesse mar encapelado da política porque o julgamento, tanto quanto todos os procedimentos de incriminação que contra ele estão sendo levantados, ao invés de reduzir sua legitimidade a amplifica, como mostram todos os indicadores. E assim, nesse ambiente de alternativas que a História já registrou como reversões notáveis (Getúlio, Mandela, Juscelino), as posições não venham a se modificar e possamos assistir o ditador virar pai da pátria ou o preso político tornar-se presidente de seu país. E pelo impulso da consciência possível do social insurgente (lembremos que o povo que cuspia na tumba do czar, no dia anterior beijava o chão que ele pisava).

E para voltar à metáfora que abre essa resposta, lembremos que o Mar Vermelho fechou-se exatamente sobre as hostes que perseguiam o líder libertador do povo que com ele retomou o seu projeto de sociedade e de História. A própria sequência de procedimentos judiciais, sobretudo no âmbito criminal (que admite imunidades sob condição de resultado eleitoral) e no plano do direito eleitoral, com nuances que certamente o caso sem precedentes afetará, manterá o cenário totalmente imprevisível ao impulso da capacidade mobilizadora de seus principais atores.

IHU On-Line – Como fica a esquerda diante do atual contexto? Quais os desafios?

José Geraldo de Sousa Júnior – A esquerda tem que se dar conta de que é esquerda, que enquanto tal, procede e persegue um projeto de sociedade, cujo horizonte histórico está materialmente desenhado e atualizado pelos movimentos sociais, com balizamento ideológico orientado pelas classes subalternas – trabalhadores do campo e das cidades que neles se instalam – e que se revela no seu protagonismo reivindicatório de exercício da política e também distributivista, cuja realização – eu salientei no livro Estado Democrático da Direita, in Roberto Bueno (org). Democracia: da Crise à Ruptura (São Paulo: Edições Max Limonad, 2017) – se faz na disputa sem quartel com a direita, para que a burocratização por esta engendrada não esvazie o seu próprio conteúdo ideológico, despolitizando e subtraindo o caráter democrático que deve dar substância à participação no poder, no funcionamento do sistema de justiça e na distribuição e gestão democrática dos meios de comunicação.
ADRIANO PILATTI

Adriano Pilatti

É graduado pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, mestre em Ciências Jurídicas pela PUC-Rio e doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro - Iuperj, com pós-doutorado em Direito Público Romano pela Universidade de Roma I - La Sapienza. Foi assessor parlamentar da Câmara dos Deputados junto à Assembleia Nacional Constituinte de 1988. É autor do livro A Constituinte de 1987-1988 - Progressistas, Conservadores, Ordem Econômica e Regras do Jogo (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008). Pilatti também traduziu o livro Poder Constituinte - Ensaio sobre as Alternativas da Modernidade, de Antonio Negri (Rio de Janeiro: Editora Lamparina, 2015).

IHU On-Line – Como o senhor avalia o julgamento de Lula no TRF4? De que forma podemos compreender a atuação do judiciário no caso?

Adriano Pilatti – A turma do TRF-4 seguiu a linha que vem adotando no julgamento de outros recursos da Lava Jato. E o relator seguiu sua tendência de agravar as penas cominadas por Moro. A unanimidade e as falas de legitimação da atuação do judiciário, e especialmente da atuação do juiz de Curitiba, parecem indicar uma espécie de reação corporativa aos questionamentos que a “Operação”, o MPF e a própria Justiça Federal vêm sofrendo. No mérito dos votos proferidos, percebe-se a continuidade de uma tendência mais geral do judiciário e do Ministério Público “como um todo”, que um amigo magistrado chama de “novo paradigma”, novo e triste: o paradigma do punitivismo e do “direito penal do inimigo”; o paradigma da “relativização” das garantias constitucionais, da supervalorização dos indícios e das narrativas construídas a partir deles; o paradigma da “modulação” da presunção de inocência, com o teratológico “in dubio pro societatis” substituindo o milenar “in dubio pro reo. Não é à toa que o país tem a quantidade monstruosa de presos, condenados ou não, que tem hoje. E tudo isso vem sendo legitimado a partir de uma série de “cavalos de pau”, no sentido do punitivismo, que uma exígua e obtusa maioria do Supremo Tribunal Federal - STF vem de dar na jurisprudência garantista daquela que deveria, por missão constitucional, atuar como corte das garantias.

IHU On-Line – Quais os impactos do resultado do julgamento de Lula no cenário político brasileiro e eleitoral de 2018?

Adriano Pilatti – Enormes. Mas com exceção da óbvia elevação da tensão e da polarização políticas, ainda é prematuro afirmar em quais outras direções, a pedra acabou de cair no lago. No curto prazo, as eleições de outubro entram no signo do imponderável, o efeito é nesse sentido “desestabilizador” de expectativas e estratégias. E a incerteza eleitoral pode se prolongar segundo o ritmo e os rumos do processo judicial, criando uma situação agônica e exasperante. TRF4, Superior Tribunal de Justiça – STJ, Tribunal Superior Eleitoral - TSE e Supremo Tribunal Federal - STF seguirão sendo a arena togada em que se realizará uma espécie de prévia para a definição das candidaturas presidenciais. O tabuleiro político-eleitoral desdobra-se em tabuleiro político-judicial-eleitoral, exigindo uma sincronização de tempos entre a ação dos líderes partidários e a das autoridades judiciais. Se confirmada a exclusão de Lula, a própria legitimidade do pleito poderá ser contestada.

IHU On-Line – Como fica a esquerda diante do atual contexto? Quais os desafios?

Adriano Pilatti – Em termos eleitorais, na medida em que no campo de esquerda partidária, até aqui, não construiu uma alternativa competitiva ao lulismo e desafiadora da hegemonia petista, vai depender de como fica o Partido dos Trabalhadores - PT. E teremos um expressivo indicador de como fica o PT já entre março e abril, quando se abre a chamada “janela partidária”, que permite desfiliação e migração de legenda. De todo modo, tudo indica que, eleitoralmente, a esquerda continuará refém do lulismo. Pobre do campo político que depende eleitoralmente de um único homem.

Em termos políticos mais amplos, o campo de esquerda precisaria se refundar, numa espécie de estados gerais das esquerdas, em que se discutisse o mundo tal como é hoje, e não nos tempos do Palácio de Inverno. E se construísse a partir daí uma agenda comum que não se sobrepusesse às agendas específicas de cada movimento social ou organização política, mas que se deixasse atravessar por essa diversidade, crescendo e se renovando com ela. Só que isso é simplesmente impossível neste momento. E um dos entraves, independente de sua vontade, talvez seja o espaço tutelar e providencial ainda ocupado por Lula – pois sua liderança jamais será a mesma no campo da esquerda depois da hostilidade aos levantes de 2013-14 e do estelionato de 2015-16, com a reviravolta na política econômica e a lei “antiterrorismo”. Não deixará de haver quem venha a pensar na necessidade, senão a curto, pelo menos a médio prazo, de uma espécie de parricídio simbólico.
RUDÁ RICCI

Rudá Ricci

É graduado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp e doutor em Ciências Sociais pela mesma instituição. É diretor geral do Instituto Cultiva, professor do curso de mestrado em Direito e Desenvolvimento Sustentável da Escola Superior Dom Helder Câmara e colunista Político da Band News. É autor de Terra de Ninguém (Ed. Unicamp, 1999), Dicionário da Gestão Democrática (Ed. Autêntica, 2007), Lulismo (Fundação Astrojildo Pereira/Contraponto, 2010), coautor de A Participação em São Paulo (Ed. Unesp, 2004), entre outros.

IHU On-Line – Como o senhor avalia o julgamento de Lula no TRF4? De que forma podemos compreender a atuação do judiciário no caso?

Rudá Ricci – O julgamento de hoje [ontem] está envolto em uma forte politização, em parte, em virtude do estilo militante – e não estou me referindo à militância profissional, mas política – do juiz Sergio Moro e dos promotores envolvidos na Operação Lava Jato. A permanente exposição pública e até mesmo conclamação pública de engajamento nesta operação e no processo de “caça aos corruptos” (quase nunca, aos corruptores que foram eleitos como peças de delação) transformou este caso num emblema que dividiu o país. Na verdade, do último ano para cá, esta divisão parece menos poderosa entre os apoiadores da Lava Jato.

Em outras palavras, este processo de tentativa de criminalização de Lula deu ao ex-presidente um álibi extraordinário: o de vítima, perseguido de maneira seletiva por quem não teria provas contra ele. Lula está se tornando o líder político mais popular da história do país em função deste álibi. Álibi que o exime de apresentar um programa de governo sólido e bem amarrado. Seu discurso vem sendo superficial e procura transformar seu caso num caso de defesa da democracia do país. Quantos réus têm à sua disposição tal situação para transformar seu julgamento num julgamento sobre o futuro de toda uma nação? Assim, o julgamento de hoje (ontem) é apenas uma peça deste imenso quebra-cabeças que não termina neste dia 24 de janeiro. Talvez, por este motivo, se Lula fosse absolvido, seria o cenário mais anticlímax da campanha desenhada por Lula há mais de um ano.

Se, ao final, a condenação for confirmada na instância máxima do poder judiciário – no caso, o Supremo Tribunal Federal [STF] – os votos de Lula serão invalidados e nova eleição será convocada. O drama político ganhará contornos de crise permanente. Lula, contudo, pode alterar este script. Poderá, no dia 15 de setembro, desistir da candidatura e alterar a chapa registrada (esta seria a data limite para mudança da chapa apresentada por um partido). Neste caso, faria o restante da campanha como cabo-eleitoral do seu sucessor. Lembremos que 30% dos eleitores brasileiros afirmam, segundo o Datafolha, que votariam em quem Lula indicar. Outros 20% (um pouco mais que este índice) refletiriam se seguiriam a indicação do ex-presidente. Enfim, Lula presidirá as eleições deste ano, com seu nome na urna ou não.

IHU On-Line – Como fica a esquerda diante do atual contexto? Quais os desafios?

Rudá Ricci – A esquerda brasileira parece amadurecida. E me parece que o fiel da balança passou a ser o PSOL. Com a declaração de seu presidente, Juliano Medeiros, de Marcelo Freixo e de Guilherme Boulos – virtual candidato à presidência da república por este partido – em defesa da candidatura de Lula, houve alinhamento das posições do PCdoB, com PT e PSOL. De certa maneira, obrigou as outras legendas deste campo ideológico ou que já foram deste campo (caso do PSB) a assumirem uma posição mais nítida.

A Frente Favela Brasil, partido em formação que envolve lideranças de favelas e regiões periféricas de grandes centros urbanos, lançou uma nota de apoio à candidatura de Lula. Neste caso, o julgamento de Lula gerou um adiamento das discussões programáticas, o que nomeei de álibi. Porque o julgamento se tornou um ato político, um divisor de águas. Este é o motivo da Rede, partido de Marina Silva, ser obrigado a lançar uma nota vaga e temerosa sobre o julgamento de Lula. Não desejava, imagino, ter que se posicionar, mas foi vencida pelos acontecimentos.

Imagino que se Lula fosse absolvido, seu álibi seria extinto e, neste momento, o embate de projetos no interior da esquerda emergiria. O mesmo deve ocorrer se Lula desistir da candidatura e apresentar um outro nome para substituí-lo nesta campanha. Nenhum nome petista tem de perto a grandeza e a aura de mitologia política que Lula ganhou. Não será, qualquer que seja o nome – além de Jaques Wagner, o nome do ex-prefeito Fernando Haddad é muito citado – unanimidade nem mesmo no interior do PT. A disputa estará aberta.

IHU On-Line – Quais os impactos do resultado do julgamento de Lula no cenário político brasileiro e eleitoral de 2018?

Rudá Ricci – O mais importante é a da campanha antecipada de Lula à presidência da república. O próprio processo o coloca sob os holofotes permanentemente. Se fosse absolvido, pelos dados de pesquisas de intenção de votos, teria uma real chance de se eleger em primeiro turno. Se condenado, não terá sua candidatura inviabilizada. Este é um ponto importante que é desconhecido pela maioria da população. Mesmo sendo “ficha suja”, Lula pode registrar sua candidatura. O que pode impedi-lo é a impugnação do registro pelo Tribunal Superior Eleitoral [TSE]. Seria um ato de ousadia que alimentaria ainda mais o conflito político no país, transformando esta eleição numa das mais dramáticas de nossa república. Caso não seja impugnada pelo TSE, a candidatura de Lula pode caminhar até as urnas. Ocorre que será uma candidatura sub judice, ou seja, ainda em julgamento.
BRUNO CAVA

Bruno Cava

É pesquisador associado à Universidade Nômade, autor de A multidão foi ao deserto (São Paulo: Editora Annablume, 2013), sobre as manifestações de junho de 2013, e coorganizador de A terra treme: leituras do Brasil de 2013 a 2016 (São Paulo: Editora Annablume, 2016).

IHU On-Line – Como o senhor avalia o julgamento de Lula no TRF4? De que forma podemos compreender a atuação do judiciário no caso?

Bruno Cava – Lula não foi condenado por suas virtudes, seja como político, seja como líder popular. Não dá pra explicar a confirmação colegiada da sentença de Moro sem reconduzirmos a análise à Junho de 2013. Porque foi aquele movimento que pôs fim ao ciclo lulista, o momento em que os seus principais arranjos começaram a se esfacelar:
* o projeto grandiloquente do neodesenvolvimentismo,
* os pactos peemedebistas de governabilidade,
* os propinodutos bilionários do Petrolão e outros saques diretos da riqueza social.
Tudo isso, naquele momento, virou uma cena de dissenso que mudou a percepção em relação ao projeto do Brasil do futuro, do Brasil Maior, do Novo Rio etc.

Sem o tremor de Junho, não haveria correlação de forças para que uma investigação desse porte e profundidade pudesse chegar aonde chegou, alcançando indistintamente banqueiros, grandes empresários, políticos de calibre, ex-senadores, ex-governadores, ex-presidente da Câmara condenados e presos. O Brasil não foi o único lugar em que, varrido pelo ciclo mundial de lutas deflagrado pelas primaveras árabes, vimos consensos de governo até então tidos por sólidos como rocha se despedaçarem.

Claro que as várias ramificações da operação Lava Jato nos últimos anos não são uma expressão direta do levante junhista, como se houvesse uma relação mecânica de causa e consequência, mas lhe aproveitaram as brechas abertas, colheram aquele impulso originário e deram a ele uma resposta palpável, para além da retórica.

Junho se derramou como uma mancha de óleo que foi avançando onde encontrava o relevo mais favorável: barrado enquanto mobilização de radicalização democrática, encontrou um caminho para desaguar a insatisfação massiva em jovens juízes e promotores da primeira instância do Judiciário. A Lava Jato, que agora finalmente chega a Lula pra valer, foi o vetor real de poder que colheu a legitimidade social do sentimento antipolítico e anticorrupção, e que coalesceu num sincrético e amplo apoio no juiz Moro, nas ações da "República de Curitiba", e na via justicialista mais em geral.

IHU On-Line – Quais os impactos do resultado do julgamento de Lula no cenário político brasileiro e eleitoral de 2018?

Bruno Cava – A sociedade brasileira está intensamente mobilizada. O que cabe perguntar é porque essa mobilização, que tanta repercussão nas ruas e redes teve nos últimos cinco anos, não cristaliza num apoio orgânico a este ou aquele candidato, a este ou aquele partido político, mesmo que novo. No Brasil e no mundo, a hora é a dos outsiders, daqueles que consigam se apresentar como expressão antissistêmica, que consigam formular uma resposta positiva à crise da representatividade, uma "saída por dentro", quer dizer, mergulhando nos impasses e problemas. Por isso, a condenação de Lula não tem os efeitos escatológicos que a retórica inflamada dos lulistas e antilulistas poderia sugerir, nesse embate de narrativas cuja soma final é zero.

Compare-se a mobilização do 24 de janeiro com a intensa polarização que vivenciamos em 2016, durante o processo de impeachment, para se ver como está se esgotando esse momento maniqueu que pretende elaborar o antagonismo da política brasileira numa vulgar dicotomia entre bons e ruins, fascistas e totalitários, coxinhas e petralhas.

O dado que fica, paradoxalmente, é de uma apatia generalizada em relação aos políticos. Mesmo a intenção de voto que as pesquisas de opinião captam ao redor da candidatura de Lula, que terminou seu governo com uma popularidade enorme, ao ser colocada na lupa, parece ser antes um apoio relutante, quase aborrecido, baseado numa lembrança de uma época recente de que já se está sentindo nostalgia (os felizes anos 2000) do que um apoio orgânico, vivo, disposto a ir às últimas consequências. É como o apoio vago que qualquer pesquisa de opinião identificaria no Brasil pela volta da ditadura, inclusive entre os mais pobres, o que no fundo não passa uma nostalgia frágil: não significa que essas pessoas efetivamente se mobilizem para tal, que queiram tanques nas ruas ou tribunais de exceção.

A bem dizer, talvez o maior prejudicado pela provável inabilitação do petista seja Bolsonaro, cuja vitalidade da candidatura vem em boa parte de sua encarnação do Anti-Lula. Sem ele na disputa, contudo, Bolsonaro fica obrigado a apresentar uma candidatura substantiva, com propostas e posicionamentos sujeitos ao escrutínio, além de ter de falar mais de si próprio e sua trajetória, o que serão pontos fracos e podem derretê-lo mais cedo do que se imagina.

IHU On-Line – Como fica a esquerda diante do atual contexto? Quais os desafios?

Bruno Cava – A maior parte da esquerda brasileira virou uma caricatura de si mesma, feita sob medida para personificar um dos lados das “guerras culturais”, contra uma igualmente caricata direita. A negação da potência transformadora de Junho de 2013 a colocou num círculo vicioso de autoalienação: para continuar reproduzindo os próprios públicos, precisa reafirmar a todo momento a consistência de uma narrativa que já deu tantas voltas sobre si (o golpe dentro do golpe dentro do golpe...) que ficou tonta. É como a teoria ptolomaica que, diante das evidências heliocêntricas, recusava-se em cair na real, adicionando cada vez mais um novo epiciclo para salvar o próprio sistema.

Para a esquerda que, em 2016, saiu do governo, Lula era a grande chance de retornar. Para a esquerda não-governista, a volta de Lula era a chance de recompor uma zona de conforto, a de poder pousar nos ombros do PT no poder como um grilo falante.

A liquidação jurídica de Lula, contudo, não significa o seu fim político. Nesse sentido, mesmo a possível prisão não fecha a fatura. Não há, nem no PT nem na esquerda em geral, qualquer outro líder com o mesmo cacife nas urnas. Mesmo alijado da cédula, Lula será o trunfo usado para mobilizar militâncias, excitar os instintos de esquerda, e tentar transferir os votos a outras candidaturas, no âmbito nacional ou local.

No segundo turno, Lula produziria com muita facilidade a unidade das esquerdas, sob o guarda-chuva do voto crítico contra o "mal maior", que o PT nomearia na ocasião. Sem Lula na cédula, essa unificação se torna uma quimera, o que pode acelerar uma fragmentação, inclusive dentro do próprio partido.

Nada disso, entretanto, sugeriria por si só a aparição de uma nova esquerda não-lulista, capaz de incorporar novas bases sociais, numa renovada matriz de organização política e, eventualmente, restituir-nos um movimento real de transformação. Seria preciso, como condição de existência, mais do que superar a figura de Lula e o repisado bordão de unidade contra o avanço do Mal Maior, superar o próprio projeto lulista, sua abordagem da arte de governar e seu modelo de conexão com as lutas contemporâneas.
GIUSEPPE COCCO

Giuseppe Cocco

É graduado em Ciência Política pela Université de Paris VIII e pela Università degli Studi di Padova, mestre em Ciência, Tecnologia e Sociedade pelo Conservatoire National des Arts et Métiers e em História Social pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne), doutor em História Social pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne). Atualmente é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e editor das revistas Global Brasil, Lugar Comum e Multitudes. Coordena a coleção A Política no Império (Civilização Brasileira).

IHU On-Line – Como fica a esquerda diante do atual contexto? Quais os desafios?

Giuseppe Cocco – Assistimos a "grandes" mobilizações do PT com apoio de um monte de linhas auxiliares nas últimas semanas e hoje (ontem) assistiremos a um desfecho (mesmo que provisório). O que acontece? Está se defendendo alguma conquista? Está se empurrando a esquerda institucional para alguma reforma? Está se combatendo o fascismo (proibição das drogas, proibição do aborto, máfias que controlam os serviços públicos) que governa nossas cidades onde pobres e negros são massacrados pelos transportes, pelo trabalho e pelas balas?

Nada disso, a grande mobilização (na Casa Grande de uma empresa semi-estatal e falida) é para defender a ideia que o líder máximo, mesmo que tenha virado o mordomo do grande capital e o padrinho de uma presidenta que quebrou o país e nos entregou nas mãos do vice, tem direito de ser patrimonialista e corrupto como os outros.

Não é mais a igualdade de condições de vida que a esquerda defende, é a igualdade no acesso... à corrupção. A corrupção é agora "política pública".

Do mesmo jeito que o voto crítico nos entregou ao caos, a disputa esquerdista pelo cadáver insepulto de um PT que jogou no lixo um pedaço da gloriosa história das lutas populares brasileiras e mundiais leva todo o mundo para o abismo.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Quinta-feira, 25 de janeiro de 2018 – 02h00 (Horário de Brasília – DF) – Internet: clique aqui.

CONDENAÇÃO DE LULA É CONFIRMADA

Confira duas opiniões contrastantes

Provas insuficientes

Janio de Freitas
Jornalista
LULA discursa na sede do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo (SP)
durante a sessão do Tribunal Regional Federal de Porto Alegre (RS)
Quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Foto: FOLHA-UOL

O resultado: quem considerava Lula inocente e quem entendia faltarem provas indispensáveis para sua condenação, continuam, uns, convictos da inocência e, outros, da insuficiência de comprovação. Quem o achava culpado não mudaria e não foi tentado a fazê-lo.

As exposições condenatórias dos desembargadores Gebran Neto e Leandro Paulsen não foram frágeis, nem forçaram argumentos além do que tem sido usual. Ilações preencheram faltas de demonstração em alguns buracos, mas trataram de revestir-se de fartas quantidades de extratos de depoimentos contrários a Lula.

As cobranças da OAS, por exemplo, a pagamentos devidos por Lula para ficar com o apartamento, levaram o relator Gebran Neto a recorrer a um trecho de Léo Pinheiro, ex-presidente da empreiteira. O pagamento, segundo o relator, foi feito como desconto em programada contribuição da OAS ao PT. Fórmula acertada pelo próprio Pinheiro com o tesoureiro do partido, João Vaccari. Este é um ponto crucial no caso.

Mas, aí chegado, o relator Gebran saltou às pressas para outro assunto. O pagamento indireto ficou, no relatório orientador do julgamento, como fato ocorrido. Sem comprovação de sua ocorrência, no entanto. O que, aliás, veio complementar uma sugestiva providência da Lava Jato de Curitiba. Lá citado pelo ex-presidente da OAS como outra parte do acordo, Vaccari não foi inquirido pelos procuradores nem por Sergio Moro, sobre o desvio financeiro de OAS-PT para o débito de Lula com a empreiteira.
JOÃO GEBRAN NETO
Desembargador do Tribunal Regional Federal 4 de Porto Alegre (RS)
Relator da apelação feita pelos advogados de Lula

Entende-se: o esperável de Vaccari, se ouvido, seria a negação a Léo Pinheiro, enfraquecendo ou neutralizando a única explicação para ressarcimento da OAS pela cobertura e pela obra que a adaptou a pedido de Marisa Letícia da Silva.

O presidente do julgamento, desembargador Leandro Paulsen, ressaltou que aquela turma de julgamento nunca se baseia só em delação. Ao menos desta vez, não faltaram truques próprios dos acusadores – e não menos comuns, em seu inverso, nas defesas.

O salto sobre o pagamento foi, porém, muito prejudicial ao esclarecimento do caso. Os desembargadores aceitaram que a OAS estivesse cobrando de Lula a diferença de valor do pequeno apê para a cobertura, a obra aí e a correção do preço. O que nega o presente como compensação por contratos facilitados. Mas se provado o pagamento por dedução em verba da OAS para o PT, como ficou dito por um só depoente, demonstraria a doação. Se para Lula ou para o PT, até daria uma discussão divertida.

O presidente Leandro Paulsen chegou a dizer, em seu voto: "Tenho assim como comprovado o recebimento do benefício" (do apartamento por Lula). Na verdade, se é possível comprová-lo, os procuradores de Deltan Dallagnol, Sergio Moro e os desembargadores do TRF-4 jogaram fora a oportunidade.

Como aí não se permite dispensar nada contra Lula e o PT, no desperdício parece estar uma escolha forçada na que era a encruzilhada mais visível até agora.

Resumo: amanhã, no Brasil, não é outro dia.

Provas, sim, e claríssimas

Marcelo Coelho
Colunista
CRISTIANO ZANIN MARTINS
Advogado de Lula atuando durante a sessão do Tribunal Regional Federal 4 de Porto Alegre
Quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Bem que a defesa do ex-presidente Lula tentou. Um a um, seus argumentos foram refutados pelo desembargador Gebran Neto, relator do famoso caso do tríplex em Guarujá no Tribunal Regional Federal.

Para o advogado Cristiano Zanin Martins, o processo apresentava as mais diversas falhas. O juiz Sergio Moro, por exemplo, não tinha a imparcialidade necessária: basta lembrar o episódio da condução coercitiva de Lula para prestar depoimento na Polícia Federal.

Nada disso, respondeu o desembargador. A condução coercitiva só foi decretada porque era importante ouvir várias testemunhas ao mesmo tempo - Lula entre elas. O Ministério Público, aliás, tinha pedido a prisão temporária do ex-presidente; Moro foi até menos severo, portanto.

Cerceamento de defesa? O advogado descrevia vários episódios. Sergio Moro tinha recusado o pedido para que se pudesse examinar com mais tempo alguns documentos do processo. Mas aqueles documentos, afirma Gebran, tinham sido incluídos pela própria defesa...

Os advogados também reclamaram das gravações do depoimento de Lula a Sergio Moro: as câmeras só mostravam o rosto do ex-presidente, e não o do juiz ou dos acusadores. Gebran se espanta: mas era Lula quem estava falando!

Para o advogado, era preciso, ademais, reconstituir todo o caminho do dinheiro, desde os supostos ganhos da empreiteira OAS com a Petrobras, até sua transformação em obras e melhorias no apartamento de Guarujá. Mais uma vez, Gebran contestou esse raciocínio. Não importa, disse ele, se o dinheiro usado para corromper alguém possui origem lícita ou ilegal: o que importa é o ato da corrupção em si.

Conforme o conhecido mantra, a defesa de Lula afirmou que "não há provas" de que o apartamento tríplex tenha sido efetivamente presenteado por Léo Pinheiro, da OAS, ao ex-presidente. Afinal, o título de propriedade em nome de Lula não consta em cartório nenhum.
Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região - Porto Alegre (RS) que julgou
o recurso da defesa de Lula

É que, além de corrupção, lembrou o desembargador, o que se fez foi lavagem de dinheiro: ocultava-se o nome de quem se beneficiava com o tríplex. É como se o apartamento estivesse em nome de um laranja, explicou.

Uma rasura grosseira no contrato tentava disfarçar que não era o tríplex, mas sim um apartamento comum, o que continuava, em tese, cabendo a Lula.

E estava fora de "qualquer dúvida razoável" o fato de que o apartamento fora oferecido —e aceito— por Lula. Não é "razoável", com efeito, achar que o presidente da OAS agisse como um simples corretor de imóveis, escolhendo Lula como um comprador entre vários possíveis.

Tanto é assim, que todos os apartamentos daquele prédio no Guarujá foram vendidos, menos o tríplex, "reservado" para o cliente especial. Reformas e mesmo eletrodomésticos foram providenciados para atender ao gosto do casal Lula da Silva.

O revisor, Leandro Paulsen, reforçava. Como alguém que não se considera dono do imóvel escolhe armários ou muda o lugar de uma escada ou da piscina?

Para a defesa, também não ficaram claros os favores específicos que o ex-presidente tenha feito para a construtora. Sem isso, não há como comprovar que houve corrupção.

Há, sim, sentenciou Gebran. É muito diferente o ato concreto de um funcionário específico, cancelando uma multa de trânsito ou alterando um parágrafo de contrato, e a ação política de um presidente, nomeando, por exemplo, os diretores da Petrobras que iriam operar o esquema.

Não, contra-ataca a defesa: quem nomeava os diretores era o conselho da empresa, não o presidente Lula...

Formalmente, sim. Mas, na prática, Lula teve participação direta na nomeação de diretores como Paulo Roberto Costa. Foi desse modo, aliás, que conseguiu romper o boicote do PMDB a votações de seu interesse no Congresso. Inúmeros depoimentos confirmam isso.

Por cerca de três horas, o relator do caso justificou pacientemente os motivos para a condenação. As provas eram claríssimas. Nenhuma versão alternativa para o que aconteceu era mais plausível, ou foi sequer apresentada.

"Para além de qualquer dúvida razoável": esse o critério jurídico para uma condenação. Os outros dois desembargadores, com muita minúcia também, concordaram.

Fonte: Folha de S. Paulo – Poder / Lava Jato – Quinta-feira, 25 de janeiro de 2018 – 02h00 (Horário de Brasília – DF) – Internet: clique aqui; e aqui.