«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

quarta-feira, 29 de abril de 2020

É o cúmulo do cúmulo!

O bolsominion é tão burro e otário que
acredita na própria mentira

Marcelo Coelho
Sociólogo e Escritor

Sem coerência e sem neurônios, a extrema direita esquece
o que disse e o que fez

Primeiramente, assista a este vídeo!
E tire as suas próprias conclusões!
Clique sobre a imagem, abaixo, para assistir:


Está ainda para ser escrito um estudo sobre o papel da burrice na política brasileira. Comentaristas e historiadores sempre supõem que um homem de Estado se move por estratégia e cálculo.

Os melhores instrumentos de análise podem se quebrar, entretanto, quando confrontados com os atos de um verdadeiro energúmeno.

O presidente Bolsonaro nem precisaria ter feito aquele discurso. Só a foto dele [veja abaixo], com todos os ministros enfileirados, já vale por um atestado clínico.

Qual o sentido de chamar todo o gabinete para ouvir, com cara de pastel, aquelas explicações sobre a demissão de Moro? Só se reconhecia, com isso, o tamanho da crise.
Discurso de Bolsonaro é considerado "patético" e oposição pede ...
JAIR BOLSONARO
Discursa em resposta às acusações de Sergio Moro de ingerência política na Polícia Federal
Sexta-feira, 24 de abril de 2020

O presidente juntou Damares, Weintraub, Araújo, Mourão, Guedes e companhia, como se estivesse anunciando um grande plano para o Brasil. O que apresentou foi um discurso disperso, patético, mentiroso e oco, incapaz de responder à única pergunta que importava no momento.

Por que trocar o chefe da Polícia Federal?

Pela versão de Bolsonaro, tratava-se apenas de atender a um pedido do próprio demitido. E, confessadamente, de pôr alguém na Polícia Federal com quem ele pudesse se entender, sem interferências de Moro.

Reduzido ao seu ponto básico, o discurso de Bolsonaro é um escândalo.

Mas o presidente é tão falto de inteligência que nem mesmo percebe o que está dizendo.

Há burrices e burrices. Uma das que predominam, hoje em dia, talvez seja efeito do Facebook e das geringonças digitais.

As imagens, as piadinhas e memes se sucedem com tanta rapidez, que o sujeito perde a memória.

Presidentes como Trump ou Bolsonaro escrevem qualquer coisa no Twitter, e no dia seguinte já não se lembram mais.

Abre o comércio, fecha o STF, usa a máscara, tira a máscara, tanto faz. As falas de Bolsonaro se sucedem como disparos num estande de tiro esportivo.

Pá, pá, pá. Aí o instrutor pega aquele cartaz com uma silhueta humana para ver quantas balas chegaram ao alvo. Nosso herói nem mesmo se interessa pela pontuação que obteve. “Acertei tudo, claro, está OK?”

No “está OK?” se esconde uma insegurança. Mas a insegurança não se confunde com autocrítica. Estimula, apenas, uma nova rodada de disparos.

Junto com a falta de memória, surge a incapacidade de distinguir entre o anedótico e o essencial. O discurso do presidente sobre a demissão de Moro se perdeu, como é notório, em considerações sobre o aquecimento da piscina, os feitos do “número quatro”, a certidão de nascimento da sogra.

É claro, aquilo fazia sentido em sua argumentação — ele queria dizer que foi investigado com base em suposições infundadas. Um advogado talentoso organizaria o discurso nesse rumo, como quem demonstra um teorema.

Bolsonaro é incapaz disso; vai pulando de fato em fato, de caso em caso, de anedota em anedota, como quem clica nas histórias do Instagram ou vagueia num game tipo “GTA”.

A CABEÇA DOS BOLSOMINIONS/ANÁLISE DO DISCURSO ALIENADO/ PSL - YouTube 

É esse o comportamento mental do bolsominion típico:

1) Primeiro, ignora o sentido mais amplo de um fenômeno para se aferrar a um detalhe de fácil compreensão.

Aparece um livro sobre educação sexual, por exemplo. O bolsominion não leu, mas fica sabendo que ali tem uma ilustração meio estranha. Será o pretexto para gritar, espernear, denunciar o diabo a quatro.

Mas ninguém vive sem entender as coisas num contexto. Depois de tirar um fato de seu contexto, o bolsominion terá de achar outro.

2) Aí entra o papel de alguma grande conspiração internacional, que de tão “evidente” não tem como ser contestada.

3) Se alguém contestar, entra a terceira fase do processo. Trata-se de rotular o inimigo: comunista, petralha etc. Os nazistas preferiam falar em judeus. O tiro sempre “acerta”, porque o atirador é completamente míope e confunde tudo.

4) Segue-se a fase autocongratulatória. Moro abandona o barco? Não faz mal. Ele era falso; e nós estamos lutando “o bom combate”, como diz Bolsonaro.

5) Se, apesar de tudo, vier o desmentido, o desastre, o vexame, nenhum problema. Basta se esquecer do que foi dito e do que foi feito. “Torturador? Eu?” Como assim?

Os próprios eleitores de Bolsonaro já se esquecem que votaram nele. “Bolsonarista? Eu? Votei no Amoêdo.”

O bolsominion mente. Mas não tem a inteligência do mentiroso comum. É tão burro que acredita na própria mentira; é otário até quando se arrepende.

Fanatismo dos bolsonaristas já supera qualquer cálculo ou interesse racional

Marcelo Coelho
Sociólogo e Escritor


Viva o Bozo, viva o vírus, viva a morte

Convicções desnatadas” – Marcelo Coelho – Alexandre Mourão
MARCELO COELHO

Em São Paulo, eles buzinam e põem o carro de som bem debaixo de um hospital. Em Brasília, reúnem-se diante de um quartel para pedir o fechamento do STF e do Congresso.

O interessante é que muitos deles usam máscara para se proteger do vírus. Aparentemente, essa turma não segue por completo a ideia de que a Covid-19 na maioria dos casos teria apenas o efeito de uma “gripezinha”.

Não. Esses fanáticos acham, sem dúvida, que o vírus mata mesmo. São contra a quarentena mesmo assim.

Carreatas contra isolamento social em SP, Rio e Brasília têm ...
Carreata a favor do presidente Jair Bolsonaro e contra o governador Doria, em São Paulo (SP)

Imagino várias razões para essa atitude:

1) A primeira é que, protegidos por algum plano de saúde privado, eles querem simplesmente sair de casa e continuar tocando suas empresas.

O isolamento busca evitar o colapso na saúde pública? Que se dane a saúde pública. Meu quarto no Einstein ou no Sírio-Libanês — caso o pior aconteça — está garantido de qualquer jeito.

2) Querer o fim da quarentena tem pouco a ver com algum tipo de solidariedade com o pessoal realmente pobre.

Sei que o desempregado, o diarista, o catador de lata, todos precisam sobreviver; o contaminado que mora num quartinho com quatro filhos não conhece os prazeres e confortos do meu isolamento movido a Amazon, Spotify e Netflix.

É claro que a ajuda financeira aos mais prejudicados, votada rapidamente pelo Congresso (ah, o Congresso!) e reforçada pelo próprio Bolsonaro, poderia ser estendida. Imagino que ainda haja milhares de problemas específicos, casos particulares e dramas pessoais por resolver.

Quem prega o fim da quarentena pode dizer, como Bolsonaro, que se preocupa com essa gente.

Desconfio que seja o contrário. Preocupa-se, isto sim, com o fato de o Estado ajudar — mesmo que de forma provisória — toda essa ralé.

Os bolsonaristas já não eram contra o Bolsa Família? Já não diziam que “nossos impostos” sustentam a vagabundagem no Nordeste? Já não eram a favor da “meritocracia”?

Querem o fim da quarentena para que a vida “volte ao normal”. Ou seja, com o catador de lata voltando a ganhar o que merece, e com a empregada fazendo faxina.

Claro que eles também lutam pelo futuro das próprias atividades — a loja de bijuterias, a butique pet, a consultoria de moda, a assessoria de eventos, a decoração de interiores para festas de noivado, o recolhimento do dízimo.

JOTA CAMELO 

A propriedade é o valor supremo!

O jornalista Eugênio Bucci observou certa vez que o pensamento da direita se resume a um princípio simples. Trata-se, dizia ele, de pôr o direito à propriedade acima de qualquer outro direito.

A sobrevivência do planeta, a terra dos índios, a educação gratuita, o acesso à saúde tudo para a direita pode ser posto em segundo plano. A liberdade, para a direita, tampouco tem valor.

Registro, de passagem, minha repugnância diante do velho ramerrão de Norberto Bobbio, que num livro de muito sucesso identificou a esquerda com a defesa da igualdade e a direita, com a defesa da liberdade.

Santo equilíbrio! Esqueceu-se da América Latina, da Grécia, da Espanha, de Portugal, da Alemanha e da própria Itália — para falar só nas ditaduras do século 20.

Em nome da “liberdade”, os bolsonaristas defendem o fechamento do Congresso. É o direitismo clássico, sem novidade.

Mas quem buzina em frente ao hospital e chama Doria de comunista já foi muito além.

O mundo fanático — no islã de Osama Bin Laden, no Camboja de Pol Pot, na Alemanha de Hitler e no Brasil de Bolsonaro — ignora qualquer cálculo racional.

A caveira nos quepes da SS e nas insígnias do Bope simboliza o que constitui um verdadeiro culto da morte, do genocídio e (por que não?) do autosacrifício até.

Tirem as máscaras, seus dementes.

Um dos mais fanáticos seguidores do direitismo franquista, o general espanhol Millan Astray, celebrizou-se por um discurso feito em 1936, na Universidade de Salamanca.

“Morra a inteligência”, disse ele, um mutilado de guerra. “Viva a morte!”

“Viva la muerte!” Na foto, Bolsonaro e seus filhos comem espigas de milho; uma metralhadora está pendurada na parede.

Os fanáticos gritam na frente do quartel; querem prisões, sangue, tortura e violência.

Buzinam na frente dos hospitais: querem a contaminação, querem os cadáveres dos pobres empilhados no meio da rua, querem a solução final para a miséria brasileira.

Viva Bolsonaro, viva o vírus, viva la muerte.

Fonte: Folha de S. Paulo – Colunas e Blogs – Quarta-feira, 29 de abril de 2020 – Página B-15 – Internet: clique aqui; Quarta-feira, 22 de abril de 2020 – Publicado à 01h00 (Horário de Brasília – DF) – Internet: clique aqui.

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Uma entrevista essencial

“PRECISAMOS REPENSAR NOSSA SOCIEDADE PARA RECONSTRUIR UM SENSO DE SOLIDARIEDADE”

Entrevista com Michael Sandel
Filósofo norte-americano, Professor da Universidade de Harvard

Luciano Huck

Filósofo americano defende que a pandemia oferece a chance para
se planejar um acesso social igualitário
MICHAEL SANDEL

Conheci Hellena Mary há 3 anos. Moradora da área rural de Orobo, cidade próxima a Bom Jardim, Pernambuco, mãe de 3 filhos, ela trabalhava como cozinheira em uma casa de família quando eu recebi pelo celular um videoselfie em que ela discutia e questionava o “jeitinho brasileiro”:

“O problema está em todos nós como povo, porque a gente pertence a um país onde a esperteza é a moeda que é sempre valorizada. Um país onde a gente se sente o máximo porque consegue puxar a TV a cabo do vizinho. A gente frauda a declaração do Imposto de Renda para pagar menos. Onde há pouco interesse pela ecologia, onde as pessoas atiram lixo na rua e depois reclamam da prefeitura que não limpa os bueiros. Camarada bebe e vai dirigir. Pega um atestado que está doente só para faltar ao trabalho. Viaja a serviço da empresa e o que faz? Se o almoço foi R$ 10, ele pega a nota de R$ 20. Entra no ônibus e senta e, se tem um idoso vindo, finge que está dormindo. E quer que o político seja honesto? O brasileiro está reclamando do quê? Como matéria-prima deste país, temos muita coisa boa. Mas falta muito para a gente ser o homem e a mulher de que nosso país precisa. Antes de culpar alguém, a gente tem que fazer uma autorreflexão”.

Dessa maneira muito franca e intuitiva, Hellen Mary discutia ética e fazia uma provocação tão incômoda quanto necessária.

A milhares de quilômetros dali, em Massachusetts (Estados Unidos), um norte-americano ministrava naquele ano um dos cursos mais notórios e concorridos da Universidade de Harvard. Batizado de “Justice”, o curso tinha como tema central reflexões sobre ética. O professor, Michael Sandel, é um dos filósofos mais respeitados da atualidade. A forma como pensa e como leciona fez dele uma celebridade planetária. Já falou para estádios com mais de 10 mil pessoas no Japão e foi eleito pela China Newsweek a “personalidade estrangeira mais influente” de 2011. Seu livro Justice virou best-seller traduzido em dezenas de línguas.

Ao longo da vida, sempre gostei de conectar, construir conexões improváveis. E foi assim que, naquele 2016, eu procurei o professor Sandel. Para minha surpresa, ele topou vir ao Brasil para discutir ética e o “jeitinho brasileiro”. Foi antológico o encontro dele com a cozinheira pernambucana no programa que eu apresento, o Caldeirão.

Em meio à pandemia, em isolamento voluntário, li que Sandel está lançando um novo livro, The Tyranny of Merit: What’s Become of the Common Good? (na tradução literal: “A Tirania do Mérito: O Que Aconteceu com o Bem Comum?”.) Na obra, o professor argumenta que, para superar as crises que estão agitando o mundo, precisamos repensar as atitudes em relação ao sucesso e ao fracasso que acompanharam a globalização e a crescente desigualdade. Sandel mostra a arrogância que uma meritocracia gera entre os vencedores, detalha o julgamento severo que impõe sobre os que foram deixados para trás e traça as terríveis consequências disso sobre boa parte da sociedade. O filósofo oferece uma maneira alternativa de pensar sobre o sucesso. Mais atento ao papel da sorte nos assuntos humanos, mais propício a uma ética de humildade e solidariedade e mais afirmativo a dignidade do trabalho, ele aponta para uma visão mais esperançosa de uma nova política do bem comum.

Na última terça-feira, isolado em sua casa próxima a Boston, Sandel topou uma nova conversa, sobre os conceitos do livro e sobre o impacto da crise do covid-19 sobre uma sociedade já demasiadamente desigual.

Eis uma pitadinha do pensamento do Prof. Michael Sandel.
Clique abaixo, sobre a imagem, e assista a este vídeo legendado:


Em tempo: depois daquele encontro de 2016, Hellena Mary perdeu o emprego de cozinheira. Como milhões de brasileiros, ela não esmoreceu e resolveu empreender. Abriu um ateliê de costura na mesma cidade. Como milhões de brasileiros também, ela acaba de sofrer um baque com a pandemia. O coronavírus forçou-a a fechar o negócio e a ficar em casa com as crianças. Espera conseguir sobreviver com o auxílio emergencial do governo de R$ 1.200 até a vida voltar ao “normal”.

Luciano Huck: Seu livro Justiça e seu curso em Harvard discutem dilemas éticos que enfrentamos e deveremos enfrentar na sociedade moderna, com provocações bastante interessantes. Em um dos exemplos hipotéticos, você fala da programação de carros autônomos e da necessidade de definir a reação do veículo a uma situação de trânsito onde restam apenas duas opções de condução: uma atropelaria um grupo de crianças e a outra provavelmente mataria o condutor. Essa pandemia está criando novos e enormes conflitos éticos. Como no sistema de saúde de países que perderam o controle da pandemia, em que médicos estão tendo que tomar decisões sobre quem vive e quem morre. A Itália e a Espanha estão enfrentando esse dilema médico e abertamente optaram por usar a idade cronológica como critério, priorizando também aqueles que têm melhores chances de recuperação. Além disso, a mulher casada e com filhos pequenos deve ter prioridade sobre a viúva com filhos adultos? Suas analogias teóricas se tornaram realidade em nossas vidas diárias. Como você vê isso?

Michael Sandel: A atual crise tornou real e urgente alguns dos dilemas éticos que discuti no livro. Um deles tem a ver com o acesso aos ventiladores pulmonares nos hospitais. Assim como você mencionou, na Itália e em outros lugares, médicos e hospitais tiveram que fazer escolhas morais contundentes quando havia mais pacientes precisando desesperadamente dos ventiladores pulmonares do que ventiladores disponíveis. Portanto a pergunta é: você deve dar prioridade à primeira pessoa que chegar ou deve dar prioridade à pessoa com maior probabilidade de sobreviver? E a questão da idade? Alguém mais jovem e com mais anos pela frente deve ter prioridade? E, para uma pessoa idosa, é justo decidir com base na idade? E depois há a questão da contribuição para a sociedade. Suponha que médicos e enfermeiras que estão trabalhando tão duro para tentar salvar as pessoas e cuidar delas tenham prioridade caso adoeçam. Alguns argumentam que eles devem poder ir para a frente da fila porque, se puderem ser salvos, poderão ajudar a salvar os outros. Esses foram os dilemas que debatemos na sala de aula e que eu já havia discutido no meu livro Justiça, como exemplos hipotéticos. Mas a pandemia tornou esses dilemas éticos realidade.

Vou dar outro exemplo no qual nos deparamos com um tipo semelhante de dilema: quando, e em que circunstâncias, devemos enviar as pessoas de volta ao trabalho para que a economia possa começar a se mover novamente. Há grandes debates sobre isso agora em muitos países. Devemos estar dispostos a sacrificar um certo número de vidas para que possamos retomar a economia? Se sim, isso significa que estamos colocando um valor monetário na vida? Eu acho que temos que agir com muito cuidado na reabertura da economia para garantir que tenhamos testes suficientes para o vírus, para que não fiquemos em uma posição em que, em prol da reabertura da economia, estaremos sacrificando vidas. E é claro que as vidas que serão sacrificadas primeiro provavelmente serão as vidas das pessoas pobres que são forçadas a voltar ao trabalho, que não têm o luxo daqueles que podem ficar em casa e trabalhar remotamente.  Acho que devemos ter em mente como a questão da desigualdade incide nessa escolha, porque, de certa forma, os trabalhadores dos quais dependemos mais imediatamente hoje, os que são mais essenciais, geralmente são pessoas que não recebem muito dinheiro e que, em circunstâncias normais, não recebem nem sequer muito reconhecimento.
Publicado, no Brasil, pela editora Civilização Brasileira, em 2011

Luciano Huck: Estivemos juntos no Brasil três anos atrás. Você visitou favelas e também frequentou os circuitos mais abastados. Você viu de perto nossa realidade. O Brasil é um dos países com a maior taxa de desigualdade socioeconômica do planeta e aqui, mas não só aqui, estamos passando pela pandemia com flertes abertos com o autoritarismo. Você vê a democracia em risco?

Michael Sandel: Sim, acho que são tempos muito perigosos para a democracia. Vimos isso antes mesmo da pandemia, quando muitas pessoas, frustradas com a política comum e a corrupção, estavam se voltando para figuras populistas. Havia uma espécie de reação contra décadas nas quais quase todos os ganhos econômicos ficaram com o topo (da pirâmide) e a pessoa de classe média não se beneficiou muito. Isso certamente foi verdade nos Estados Unidos nos últimos 40 anos. Assim, houve o fortalecimento de figuras populistas hiper nacionalistas que prometeram dar voz às frustrações, à raiva e ao ressentimento. E essa raiva e ressentimento eram compreensíveis. Mas os candidatos que foram eleitos a partir disso estão agora governando no meio de uma crise para a qual estão mal preparados. E, portanto, acho que, devido ao aprofundamento da desigualdade, agora agravada por essa enorme crise de saúde pública, as tensões no sistema e os danos da desigualdade estão sendo escancarados e seu efeito é aumentado. Vemos o que já estava lá, mas de uma maneira ainda mais perigosa. E, portanto, acho que devemos ter muito cuidado com a tendência a políticas e soluções autoritárias para as frustrações que as pessoas sentem. Penso que os principais partidos partilham a culpa por criar as circunstâncias que levaram os eleitores a abraçarem figuras autoritárias perigosas que agora, infelizmente, têm a responsabilidade de lidar com esta crise.

Luciano Huck: Estamos experimentando algo muito único que só acontece em guerras. Decisões que normalmente teriam levados meses, anos ou décadas para se tornar realidade estão levando dias ou semanas. E acho que, antes da pandemia, como você disse, já estávamos vivendo tempos estranhos, com a ascensão de líderes autoritários com forte tendências antidemocráticas, negacionistas, populistas e etc. e ondas de manifestações de massa expressando descontentamento com a política e com as lideranças sociais e econômicas, principalmente na América Latina e na Europa nos últimos anos. Então, para ir um pouco mais fundo nisso, qual o efeito da pandemia nessa relação descontente entre sociedade e política?

Michael Sandel: Estávamos experimentando, mesmo antes da pandemia, a perda da solidariedade. E, agora que a pandemia chegou, vemos que somos todos mutuamente dependentes. Nós somos contagiosos um para o outro. Em meio à crise, ouvimos muitos políticos com o mesmo slogan: "Estamos todos juntos nisso". De certa forma, é um slogan inspirador, porque a crise revela nossas vulnerabilidades compartilhadas ou dependência mútua. Mas, por outro lado, o slogan "Estamos todos juntos nisso" soa vazio porque ele se insere no contexto de profundas desigualdades. Não é verdade que todos estamos nos sacrificando na mesma medida. Alguns de nós podem trabalhar em casa. Outros estão em contato físico uns com os outros, precisam disso para sobreviver economicamente e são expostos de forma mais direta e imediata ao risco. Precisamos tentar usar esta ocasião para repensar nossas sociedades e nossas economias para reconstruir um senso de genuína solidariedade, para que as vozes autoritárias não sejam as únicas que expressam o sentimento de raiva, ressentimento e frustração. As vozes mais responsáveis precisam encontrar uma maneira de lidar com essas profundas desigualdades para que possamos realmente dizer, e acreditar, que “Estamos todos juntos nisso".

Luciano Huck: Nos últimos anos, tenho ampliado minhas áreas de interesse em políticas públicas e venho garimpando boas ideias em todo o país para questões que considero necessárias. E pude constatar que, em alguns temas de grande importância, como educação, segurança pública ou as reformas do Estado, a sociedade civil e o poder público já produziram muitas propostas e projetos de qualidade. Mas que em outros, como a situação das favelas, não é trivial encontrar caminhos prontos e consistentes para apontar soluções. E eu acredito que estamos correndo o risco de esta pandemia ampliar, ainda mais, o fosso da desigualdade no Brasil. No caso da educação, por exemplo, para mim a ferramenta mais poderosa para gerar oportunidades e mobilidade social, a pandemia tende a acentuar a diferença entre escolas públicas e privadas. Embora quase todos os estudantes no Brasil tenham um telefone celular, o nosso sistema de ensino público continua analógico. Além disso, provavelmente teremos um enorme problema de evasão escolar. Isso já é historicamente um problema no Brasil após as férias escolares, então imagine ao voltar depois de uma crise de saúde que gerou um isolamento de meses. E, mais do que isso, haverá uma enorme pressão familiar para que os jovens contribuam de alguma forma para a renda familiar, fortemente afetada pelo desemprego. O que você acha disso, sobre educação, acesso e desigualdades?

Michael Sandel: Acho que você está certo de como essa pandemia poderá exacerbar as desigualdades, incluindo as desigualdades educacionais. Mas ela também oferece uma oportunidade para repensarmos o acesso à educação, à saúde e ao apoio à renda. Às vezes, grandes crises nacionais e globais podem ser ocasiões para uma espécie de renovação moral e cívica. E acho que é disso que precisamos. Penso que o nosso desafio não é apenas um desafio de saúde pública. Acho que é um desafio ético e moral. Lembro que você mencionou as favelas, onde é muito difícil manter o distanciamento social, dada a proximidade em que as pessoas vivem. Quando visitei seu programa de TV, Luciano, e conversamos sobre o "jeitinho brasileiro", uma das coisas mais marcantes da discussão é que tínhamos pessoas de todas as origens sociais e econômicas. Havia advogados e professores, cozinheiros e faxineiros, todos discutindo juntos. E, quando visitamos uma favela e conversamos com alguns jovens, uma discussão informal, sobre justiça e violência, e sobre o que cidadania realmente significa, o que me impressionou é que as pessoas não precisam apenas de ajuda educacional, econômica e de saúde, mas também precisam e querem ter uma voz e poder sentir que suas vozes são ouvidas. Um dos maiores desafios e oportunidades que temos é encontrar maneiras de criar um diálogo civil, discussões e debates sobre como alcançar algumas dessas reformas em educação e saúde e apoio à renda e lidar com problemas de violência, que incluem as vozes de todos. Seu programa, com a presença de pessoas de todas essas origens, é um exemplo do tipo de discussão que precisamos regularmente, porque isso contribui para um tipo saudável de democracia. Isso é realmente o que significa democracia. Não apenas votar a cada eleição, mas também deliberando entre si através de linhas de classe, raça, etnia e formação econômica. Sobre o bem comum. E é nisso que não somos muito bons hoje em dia. Bem, você faz um trabalho maravilhoso nisso, mas precisamos espalhar mais disso por toda a nossa sociedade.

Luciano Huck: Quando você diz dar “voz ao povo”, a primeira imagem que me veio à mente é sobre as oportunidades de educação e mobilidade social. No seu novo livro A Tirania do Mérito, que será lançado em setembro, você argumenta que, para superar as crises que estão prejudicando nosso mundo, devemos repensar as nossas atitudes em relação ao sucesso e ao fracasso. Você pode detalhar essa sua opinião?

Michael Sandel: Penso que, se olharmos ao longo das últimas décadas da globalização, tem sido uma globalização muito orientada para o mercado. Isso criou vastas desigualdades. Mas esse não é o único problema. Não é apenas o fato de que a maioria dos benefícios foi para aqueles que estão no topo. As atitudes que temos em relação ao sucesso são tais que aqueles que chegam ao topo acreditam que o fizeram por conta própria e que não estão em dívida com mais ninguém. Eles, portanto, sentem que merecem. E quanto àqueles que não tiveram as mesmas oportunidades, como uma educação universitária, e que não atingiram o sucesso, nós dizemos que eles não se empenharam o suficiente e não fizeram por merecer algo melhor. Então acho que precisamos questionar essa forma de pensar. O que tentei fazer no meu novo livro é questionar a arrogância dos bem-sucedidos que acreditam: “Eu sou bem-sucedido porque consegui meu sucesso pelo meu esforço e, portanto, eu não tenho senso de obrigação para com os menos afortunados que eu”. Visto que, se eu tiver uma percepção mais apurada, posso ressignificar o sucesso: “Trabalhei duro e também tive muita sorte: uma família que me apoiou, os professores que me ensinaram, as oportunidades educacionais que tive, a sociedade em que eu cresci. Portanto, devo aos meus concidadãos certas obrigações. Não é só meu trabalho”. Este é o tipo de orientação que estou tentando argumentar, um maior senso de solidariedade no bem comum, decorrente de uma consciência maior daqueles que tiveram a sorte de não o terem feito sozinhos. Há a frase: "lá, exceto pela graça de Deus ou pelo acidente da Fortuna, eu vou". Se tivermos um senso mais agudo da sorte, um senso mais aguçado de graça, mesmo para alcançar o que alcançamos, acho que estaremos mais conscientes em relação às nossas obrigações para com aqueles que não chegaram ao topo, mas que merecem as mesmas oportunidades, respeito e reconhecimento social. Portanto, é uma mudança moral e também uma questão de reorganizar a economia. É uma questão de como encaramos nosso sucesso e nossos relacionamentos um com o outro.
Tradução do título:
"A Tirania do Mérito: o que aconteceu com o bem comum?"
Lançamento para setembro de 2020

Luciano Huck: As empresas mais admiradas ou as mais bem-sucedidas das últimas décadas foram aquelas que tiveram a capacidade de se mostrarem mais eficientes, com culturas internas ancoradas na meritocracia. Você está colocando a questão da meritocracia na vanguarda de outra discussão. No Brasil, é muito difícil discutir esse tópico, porque os pontos de partida aqui não são iguais. Aqui vivemos uma espécie de loteria do código postal, em que o lugar em que você nasceu praticamente determina onde você vai viver e morrer. A mobilidade social no Brasil é praticamente inexistente. Estudos mostram que, se você nasce em uma família pobre, para atingir a média da classe média são necessárias nove gerações. Uma tragédia. A pandemia aumenta ainda mais essa desigualdade de oportunidades e torna a discussão sobre meritocracia um sonho ainda mais distante. Como isso soa para você?

Michael Sandel: Você levantou um ponto muito importante. Um dos problemas com a meritocracia é que não cumprimos os princípios meritocráticos que proclamamos. A "loteria do código postal", como você diz, tem um efeito enorme sobre quem recebe uma boa educação, quem vai para a faculdade, quem consegue bons empregos. Esse é um dos problemas com a meritocracia. Mas há também um segundo problema: ela incentiva atitudes em relação ao sucesso para que os vencedores menosprezem os perdedores e não os identifiquem como concidadãos. Portanto, a meritocracia, mesmo no local onde se trabalha, é prejudicial à solidariedade. Pense na imagem de uma escada, onde os degraus indicam onde você pousa na ordem social e econômica. Um problema com a meritocracia é que, se você nasceu em uma família que fica nos degraus mais baixos, é muito difícil subir para os degraus mais altos, porque você não tem a chance de ir para a faculdade e obter uma boa educação para competir pelos melhores empregos. Esse é um problema. Mas, mesmo quando tentamos melhorar a capacidade das pessoas de subir os degraus da escada, também precisamos nos preocupar com algo além da mobilidade social: qual a distância entre os degraus da escada? Como parte do que vem acontecendo nas últimas décadas, não só é difícil subir de um degrau para outro, como também os degraus ficaram cada vez mais distantes uns dos outros. A escada se esticou. A distância entre os degraus superiores e inferiores é cada vez maior. E nós temos que lidar com os dois problemas, creio, ao mesmo tempo. Mobilidade social, sim, mas também desigualdade como tal, o que significa tornar a vida melhor e mais digna, mesmo para aqueles que, por qualquer motivo, não escalam os degraus. Eles também devem viver vidas dignas.

Luciano Huck: Desde que a pandemia começou, venho dizendo toda semana que a solidariedade deve ser mais contagiosa que o vírus. E, no Brasil, a sociedade civil (população não governamental) se mobilizou sem precedentes para tentar mitigar a fome e a extrema pobreza que invadiram repentinamente a vida de tantas famílias. Ao te ouvir, fico refletindo se isso não faz parte do caráter geral que todos compartilhamos por termos aceitado passivamente o status quo dessa disparidade socioeconômica assustadoramente alta, que não resolvemos até hoje e virou parte da “paisagem” brasileira.

Michael Sandel: Penso que a sociedade civil tem um papel extremamente importante a desempenhar. Nós falamos sobre política e governo e tentamos encontrar alternativas para as perigosas tendências autoritárias que estamos vendo agora. E tudo isso é muito importante. Mas vimos como os principais partidos políticos falharam e como esse fracasso levou à eleição de figuras autoritárias hiper nacionalistas no Brasil e em outras partes do mundo, inclusive nos Estados Unidos, meu país. Acho que precisamos procurar a sociedade civil para ajudar a criar fontes de solidariedade, porque não são apenas as políticas do governo que nos mantêm unidos, mas também as organizações, incluindo organizações locais, que podem trabalhar para promover o acesso à educação, podem tentar levar cuidados de saúde para pessoas que não podem pagar por isso, que podem tentar lidar com o problema da violência nas favelas e outras comunidades... As instituições locais da sociedade civil são muito importantes. Especialmente nas áreas de saúde e educação, as organizações comunitárias têm um papel muito importante a desempenhar na construção do tipo de solidariedade que, com muita frequência, nossos políticos deixam de apoiar e promover. A mídia também tem um papel muito importante na tentativa de promover um diálogo civil mais substantivo, respeitoso. A democracia precisa desse diálogo. Ele precisa chamar a atenção de pessoas de todas as origens sociais e econômicas. E, se a mídia presta atenção apenas aos tipos de provocações mais sensacionalistas e ultrajantes, o discurso público se transforma em uma espécie de jogo de gritos onde ninguém está ouvindo um ao outro. As pessoas estão simplesmente reforçando e gritando sua própria opinião. A mídia tem um papel importante a desempenhar na criação de um tipo melhor de discurso público.

Luciano Huck: Alguns setores no Brasil, como bens e serviços, ganharam um enorme significado durante essa pandemia. Nosso setor agrícola, em particular, está fazendo um trabalho espetacular. Não tivemos nenhum problema de produção ou fornecimento durante esta pandemia. Estamos exportando alimentos para o mundo inteiro como nunca antes. A cadeia de produção está muito bem organizada e criou protocolos de saúde que estão funcionando muito bem. Nossos profissionais de saúde estão mais dedicados do que nunca ao sistema público, e até mesmo os entregadores que estão nas ruas diariamente, e que até meses atrás eram invisíveis e rechaçados por muitos, se tornaram parte fundamental de nossas vidas cotidianas, o que gerou um enorme respeito da sociedade por todos esses profissionais do campo, das ruas, dos hospitais e das rodovias. Como você vê essa mudança?

Michael Sandel: Existe um potencial para essa crise levar a uma reavaliação fundamental de quem realmente contribui mais para nossas vidas sociais e econômicas. De quem realmente dependemos diante de uma crise como essa? Como você diz, as pessoas de quem dependemos não são banqueiros de Wall Street. Não são pessoas que, nos últimos 40 anos, ganharam milhões, bilhões de dólares enquanto trabalhadores comuns enfrentaram salários estagnados. As pessoas de quem dependemos agora são prestadores de cuidados de saúde, médicos e enfermeiros, mas também entregadores, caminhoneiros, policiais e bombeiros, pessoas que mantêm os supermercados abertos, que fornecem nossa comida e a levam para o supermercado ou mesmo para nossas casas. No entanto, nos últimos 40 anos, pessoas que realizam trabalhos como esses não apenas perderam terreno economicamente, como também não foram respeitadas. Isso remonta ao que chamei de "tirania do mérito" no meu novo livro. Um dos lados sombrios da meritocracia é que tendemos a acumular todas as recompensas e todo o reconhecimento social naqueles que ganham muito dinheiro. Eles se tornam os emblemas do sucesso. Mas o que esta crise está mostrando é que aqueles que realmente fazem contribuições valiosas para o bem comum, aqueles que estão nos mantendo vivos, aqueles que mantêm a sociedade funcionando não são os ricos, não são os mais ricos. São, na maioria das vezes, pessoas que lutam para sobreviver. E, no entanto, são eles de quem o resto de nós depende. Portanto, espero que, com isso, possamos reconstruir nossas sociedades e nossas economias para reconhecer, não apenas para aplaudir essas pessoas e agradecê-las, mas também para garantir que suas recompensas econômicas correspondam à importância da contribuição que fazem. Essa é a minha esperança. Mas vai depender do tipo de economia que criarmos quando começarmos a emergir desta crise.

Luciano Huck: Temos discutido quando vamos reiniciar a economia, mas acredito que também deveríamos discutir de que forma vamos reiniciar a economia. Te ouvindo, acredito que temos uma grande oportunidade de mudar a narrativa que tem estado presente nos debates nos últimos anos. Quando reiniciarmos as economias mundiais, teremos a chance de entender que estamos mais interconectados do que nunca. Que podemos e devemos mudar a narrativa pós-pandêmica, adotando políticas menos divisivas e mais fraternas, mais inclusivas. Se você puder compartilhar, qual conselho você desejaria passar para o Brasil, pensando não no que estamos experimentando agora, mas no que virá a seguir?

Michael Sandel: Eu acho que o que vem a seguir, para o Brasil e para todos nós que estamos enfrentando essa crise, depende de como pensamos e agimos durante a crise. Claro, todo mundo quer prever quando o vírus desaparecerá, quando haverá uma vacina e quando podemos voltar ao trabalho. Voltar ao trabalho criará um novo aumento no vírus? São questões de previsão e, para a previsão, contamos com especialistas em saúde pública, médicos e cientistas e precisamos confiar em seu julgamento e sabedoria. Mas, além de prever o que essa crise trará e quando ela terminará, devemos encarar isso como um desafio para criar um tipo diferente de sociedade. Essa pandemia chegou em um momento em que estávamos profundamente divididos. Tínhamos vivido um período de crescente desigualdade e de profundas divisões partidárias, raiva, frustração e ressentimento. E, se voltar ao trabalho, se reabrir a economia significa simplesmente voltar à raiva, ressentimento, partidarismo e corrupção que tínhamos antes, não teremos aprendido nada. Portanto, nosso maior desafio é realmente aprender com essa crise e a usar como uma oportunidade para refletir sobre o que deu errado em nossa vida social, econômica e política. De modo a emergirmos com uma economia na qual podemos dizer com mais verdade do que agora que “Estamos todos juntos nisso" – ou, pelo menos, que estamos caminhando na direção de uma maior solidariedade. Minha esperança é que estejamos nos movendo em direção a uma sociedade em que, em nossos debates políticos, perguntaremos primeiro: “O que devemos uns aos outros como cidadãos e como podemos promover a política do comum? O que nos une de maneira que nos tornará mais fortes?”

Luciano Huck: Professor Michael Sandel, muito obrigado. É uma honra poder conversar com você e compartilhar algumas de suas ideias, certo de que você está ajudando a iluminar o caminho. Fique bem, protegido e saudável.

Fonte: O Estado de S. Paulo – Cultura / Especial – Domingo, 26 de abril de 2020 – Páginas H6-H7 – Internet: clique aqui.

domingo, 26 de abril de 2020

O rei está nu!

Bolsonaro fica nu ao se despir das três bandeiras que o levaram ao poder

Juan Arias

Os próximos dias serão decisivos para saber se, mais uma vez, a Presidência da República cairá nas mãos do vice-presidente
Bolsonaro nega ter usado dinheiro público em sua campanha à ...
JAIR BOLSONARO
em campanha eleitoral para a Presidência da República - 2018

O presidente de extrema direita Jair Bolsonaro manteve ontem [sexta-feira, 24 de abril] um duelo histórico com seu ex-ministro da Justiça, Sergio Moro, que lhe fez graves acusações de querer interferir na Polícia Federal para ficar a par de investigações de corrupção sobre sua família.

Ainda é cedo para saber quais serão as consequências jurídicas e legais sobre tais acusações, mas o que ficou claro é que Bolsonaro vai ficando nu ao rasgar durante seu mandato as três grandes bandeiras com as quais se cobriu durante a campanha e o levaram à vitória.

Primeira bandeira

Era a luta dura contra a corrupção política que naquela época envergonhava o país e que o candidato à Presidência jurou combater. Foi assim que aceitou que o paladino naquele momento de luta contra a corrupção, o à época juiz da Lava Jato, Sergio Moro, entrasse em seu Governo como um superministro da Justiça. Foi seu primeiro gol.

Ele foi perdendo essa bandeira à medida em que foram aparecendo possíveis escândalos de corrupção dentro de sua própria família [veja reportagens abaixo]. Hoje, Bolsonaro, com sua Presidência acossada, está se refugiando até mesmo nos velhos deputados que também estão envolvidos em escândalos de corrupção para que possam salvá-lo de um possível impeachment no Congresso. E acaba de perder sua melhor espada, o ministro da Justiça, Moro, que decidiu deixar o Governo e lançar contra ele acusações tão graves que serão agora analisadas pelo Supremo e podem acabar forçando-o a renunciar.
Para salvar mandato, Bolsonaro negocia com líderes do Centrão ...
Para salvar seu mandato de presidente, Bolsonaro negocia com os líderes do Centrão, entre eles,
à esquerda, Gilberto Kassab (PSD-SP), à direita, Valdemar Costa Neto (PL-SP)

Segunda bandeira

A segunda bandeira era a de acabar no Brasil com a chamada velha política que governava fazendo acordos pouco republicanos com os deputados oferecendo-lhes cargos e benefícios para conseguir aprovar os projetos do Governo.

Bolsonaro havia jurado acabar em seu mandato com aquele velho estilo de governo para governar “escutando mais o povo” do que os deputados e senadores.

Tal bandeira, que lhe rendeu muitos votos nas eleições até mesmo de brasileiros que não gostavam de seu aspecto militar totalitário, mas que estavam aborrecidos com as tais maneiras de governar de costas às pessoas, foi ao chão. E está tentando formar uma maioria que nunca teve no Congresso e sem a qual viu que era impossível governar. E o está fazendo com os métodos da mais rançosa velha política.

Terceira bandeira

Resta a ele, prestes a cair, a última bandeira, a de realizar uma política neoliberal, de menos Brasília e mais Brasil, menos Estado e mais capital privado. Para essa bandeira escolheu o economista da Escola de Chicago, o superliberal Paulo Guedes. Uma bandeira que pretendia reverter a desastrosa política econômica dos governos de Dilma Rousseff, que deixou 14 milhões de trabalhadores na rua.

Essa bandeira neoliberal também já está praticamente murcha e a imprensa fala abertamente que após a saída do popular ministro Moro, já estaria sendo preparada a saída da estrela econômica Guedes, que teria perdido a confiança do Presidente que pretende reverter a política econômica para dar lugar a um populismo que possa ajudá-lo na reeleição.

Ontem foi significativo que durante seu discurso para responder às acusações de Moro, durante o qual esteve cercado por todos os outros ministros, o único sem terno e gravata, de camisa e com a máscara contra o coronavírus, tenha sido justamente o ministro da Economia. Guedes com a máscara mostrava seu contraponto ao Presidente, que insiste em minimizar a epidemia e continua abraçando as pessoas nas ruas e pedindo que tudo volte à vida normal enquanto o número de mortos já se multiplica em maior proporção do que a Espanha.

Despojado das três bandeiras que lhe deram a vitória, o Presidente, cujo Governo faz água por todos os lados, aparece a cada momento mais nu e sozinho. Restam a ele os ministros generais do Exército cuja reação diante das graves acusações lançadas por Moro, ninguém ainda sabe se decidirão abrigar o Presidente nu, ou se farão algum malabarismo para cobrir sua nudez com seu voto de confiança.

Os próximos dias serão decisivos para saber se, mais uma vez, a Presidência da República deste país cairá nas mãos do vice-presidente eleito com ele nas urnas que no Brasil, hoje, é o general Mourão. A última palavra agora será do Congresso e do Supremo, as duas instituições que podem colocar em andamento o impeachment de um Presidente da República.

Um momento que para o Brasil não poderia ser mais crítico, já que o coronavírus, além de a cada dia levar mais vidas, está produzindo uma grave crise econômica com milhões de brasileiros que sem poder trabalhar voltam aos anos terríveis da fome e da miséria.

Polícia Federal identifica Carlos Bolsonaro como articulador em esquema criminoso 
de fake news

Leandro Colon

Investigação sigilosa é conduzida em inquérito no
STF (Supremo Tribunal Federal)
O presidente Jair Bolsonaro e seu filho Carlos, vereador do Rio
O presidente Jair Bolsonaro e seu filho Carlos, vereador do Rio

Em inquérito sigiloso conduzido pelo STF (Supremo Tribunal Federal), a Polícia Federal identificou o vereador Carlos Bolsonaro, filho do presidente Jair Bolsonaro, como um dos articuladores de um esquema criminoso de fake news.

Dentro da Polícia Federal, não há dúvidas de que Bolsonaro quis exonerar o ex-diretor da PF Maurício Valeixo, homem de confiança do ex-ministro da Justiça Sergio Moro, porque tinha ciência de que a corporação havia chegado ao seu filho, chamado por ele de 02 e vereador do Rio de Janeiro pelo partido Republicanos.

Para o presidente, tirar Valeixo da direção da PF poderia abrir caminho para obter informações da investigação do Supremo ou inclusive trocar o grupo de delegados responsáveis pelo caso.

Um dos quatro delegados que atuam no inquérito é Igor Romário de Paula, que coordenou a Lava Jato em Curitiba quando Sergio Moro, agora ex-ministro da Justiça, era o juiz da operação.

Valeixo, diretor da PF demitido por Bolsonaro, foi superintendente da polícia no Paraná no mesmo período e escalado por Moro para o comando da polícia.

Não à toa, na sexta-feira (24), logo após Moro anunciar publicamente sua demissão do Ministério da Justiça, o ministro Alexandre de Moraes, relator do inquérito no Supremo, determinou que a PF mantenha os delegados no caso.

O inquérito foi aberto em março do ano passado pelo presidente do STF, Dias Toffoli, para apurar o uso de notícias falsas para ameaçar e caluniar ministros do tribunal.

Carlos é investigado sob a suspeita de ser um dos líderes de grupo que monta notícias falsas e age para intimidar e ameaçar autoridades públicas na internet. A Polícia Federal também investiga a participação de seu irmão Eduardo Bolsonaro, deputado federal pelo PSL de SP.

A partir de depoimentos e indícios já coletados, a PF agora busca um conjunto de provas que sustente um indiciamento ao fim da investigação.

Procurado pela Folha por escrito e por telefone, o chefe de gabinete de Carlos não respondeu aos contatos.

Após a publicação da reportagem, Carlos compartilhou o texto em uma rede social acompanhado da seguinte mensagem: "Esquema criminoso de... NOTÍCIAS FALSAS O nome em si já é uma piada completa! Corrupção, tráfico, lavagem, licitações? Não! E notaram que nunca falam que notícias seriam essas? É muito mais fácil apontar manipulação feita pela grande mídia. Matéria lixo!".

O vereador acrescentou: "Não é necessário esquema de notícia pra falar o que penso sobre drácula, amante, botafogo, nervosinho, aproveitadores, sabotadores, ou sobre quem quer que seja! Há quem faça isso, e são aqueles que mais acusam. Sabemos quem é amiguinho dos jornalistas que direcionam ataques!".
Provável chefe da PF passou Réveillon de 2019 com Carlos Bolsonaro
Provável chefe da Polícia Federal, Alexandre Ramagem,
passou Réveillon de 2019 com Carlos Bolsonaro

Para o lugar de Valeixo, no comando da PF, Bolsonaro escolheu Alexandre Ramagem, hoje diretor-geral da Abin (Agência Brasileira de Inteligência). Ramagem é amigo de Carlos Bolsonaro, exatamente um dos alvos do inquérito da PF que tramita no STF. [Que bela “transparência” e “combate” à corrupção que esse governo tem, não é mesmo?!]

Os dois se aproximaram durante a campanha eleitoral de 2018, quando Ramagem atuou no comando da segurança do então candidato presidencial Bolsonaro após a facada que ele sofreu em Juiz de Fora (MG).

Carlos foi quem convenceu o pai a indicar Ramagem para o lugar de Valeixo. Os dois ficaram ainda mais próximos quando Ramagem teve cargo de assessor especial no Planalto nos primeiros meses de governo. Carlos é apontado como o mentor do chamado “gabinete do ódio”, instalado no Planalto para detratar adversários políticos.

Segundo aliados de Moro, ao mesmo tempo que a PF avançava sobre o inquérito das fake news, Bolsonaro aumentava a pressão para trocar Valeixo.

“O MP está preparando uma pica do tamanho de um cometa para empurrar na gente”

Sérgio Ramalho

Rachadinha de Flávio Bolsonaro financiou prédios ilegais da milícia no Rio, mostra investigação do MP
Senador Flávio Bolsonaro durante cerimônia de posse do novo Ministro da Saúde Nelson Teich, no dia 17 de abril.
FLÁVIO BOLSONARO
Senador pelo Rio de Janeiro (Republicanos)

FLÁVIO BOLSONARO FINANCIOU e lucrou com a construção ilegal de prédios erguidos pela milícia usando dinheiro público. É o que mostram documentos sigilosos e dados levantados pelo Ministério Público do Rio de Janeiro aos quais o Intercept teve acesso. A investigação preocupa a família Bolsonaro – os advogados do senador já pediram por nove vezes que o procedimento seja suspenso.

O investimento para as edificações levantadas por três construtoras foi feito com dinheiro de “rachadinha”, coletado no antigo gabinete de Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio, como afirmam promotores e investigadores sob a condição de anonimato. O andamento das investigações que fecham o cerco contra o filho de Jair Bolsonaro é um dos motivos para que o presidente tenha pressionado o ex-ministro Sergio Moro pela troca do comando da Polícia Federal no Rio, que também investiga o caso, e em Brasília.

O inquérito do Ministério Público do Rio, que apura fatos de organização criminosa, lavagem de dinheiro e peculato (desvio de dinheiro público) pelo filho de Bolsonaro segue em sigilo. O Intercept teve acesso à íntegra da investigação. Os investigadores dizem que chegaram à conclusão com o cruzamento de informações bancárias de 86 pessoas suspeitas de envolvimento no esquema ilegal, que serviu para irrigar o ramo imobiliário da milícia. Os dados mostrariam que o hoje senador receberia o lucro do investimento dos prédios, de acordo com os investigadores, através de repasses feitos pelo ex-capitão do Bope Adriano da Nóbrega – executado em fevereiro – e pelo ex-assessor Fabrício Queiroz.
 
O esquema funcionaria assim:

* Flávio Bolsonaro pagava os salários de seus funcionários com a verba do seu gabinete na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj).

* A partir daí, Queiroz – apontado no inquérito como articulador do esquema de rachadinhas – confiscava em média 40% dos vencimentos dos servidores e repassava parte do dinheiro ao ex-capitão do Bope, Adriano da Nóbrega, apontado como chefe do Escritório do Crime, uma milícia especializada em assassinatos por encomenda.

* A organização criminosa também atua nas cobranças de “taxas de segurança”, ágio na venda de botijões de gás, garrafões de água, exploração de sinal clandestino de TV, grilagem de terras e na construção civil em Rio das Pedras e Muzema.

* As duas favelas, onde vivem mais de 80 mil pessoas, ficam em Jacarepaguá, na zona oeste do Rio, e assistiram a um boom de construções de prédios irregulares nos últimos anos. Em abril do ano passado, dois desses prédios ligados a outras milícias desabaram, deixando 24 mortos e dez feridos.

* O lucro com a construção e venda dos prédios seria dividido, também, com Flávio Bolsonaro, segundo as investigações, por ser o financiador do esquema usando dinheiro público.

Condecorado por Flávio Bolsonaro com a Medalha Tiradentes, principal honraria do Rio, o ex-caveira Adriano da Nóbrega foi morto a tiros em fevereiro em um controverso cerco policial no interior da Bahia com indícios de queima de arquivo. Foragido da Justiça, o ex-capitão estava escondido no sítio de um vereador bolsonarista. Os diversos celulares do miliciano ainda aguardam por perícia.

As investigações do Ministério Público (MP) revelaram que os repasses da rachadinha chegavam às mãos do capitão Adriano por meio de contas usadas por sua mãe, Raimunda Veras Magalhães, e sua esposa, Danielle da Costa Nóbrega. As duas ocupavam cargos comissionados no gabinete do deputado na Alerj entre 2016 e 2017. Ambas nomeadas por Queiroz, amigo do ex-capitão dos tempos de 18º batalhão da Polícia Militar, Jacarepaguá.

Segundo o MP, a mãe e a mulher de Adriano movimentaram ao menos R$ 1,1 milhão no período analisado pela investigação, amealhado com o esquema de rachadinha por meio de contas bancárias e repasses em dinheiro a empresas, dentre as quais dois restaurantes, uma loja de material de construção e três pequenas construtoras.

Com sede em Rio das Pedras, as construtoras São Felipe Construção Civil Eireli, São Jorge Construção Civil Eireli e ConstruRioMZ foram registradas, segundo o MP, em nome de “laranjas” do Escritório do Crime. O dinheiro então chegava aos canteiros de obras ilegais por meio de repasses feitos pelo ex-capitão aos laranjas das empresas.
Trecho de interceptação detalha registro da construtora em nome de laranja

O papel de “investidor” nas construções da milícia ajudaria a explicar a evolução patrimonial de Flávio Bolsonaro, que teve um salto entre os anos de 2015 e 2017 com a aquisição de dois apartamentos: um no bairro de Laranjeiras e outro em Copacabana, ambos na zona sul do Rio. Os investimentos também permitiram a compra de participação societária numa franquia da loja de chocolates Kopenhagen.

Flávio entrou na vida política em 2002, com apenas um carro Gol 1.0, declarado por R$ 25,5 mil. Na última declaração de bens, de 2018, o senador disse ter R$ 1,74 milhão. A elevação patrimonial coincide com o período em que a mãe e a mulher do ex-capitão estavam nomeadas em seu gabinete.

O papel de Adriano

A ligação do ex-capitão com as pequenas empreiteiras envolvidas no boom da verticalização em Rio das Pedras e Muzema foi levantada em meio à investigação sobre as execuções da vereadora Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes, na noite de 14 de março de 2018. Foi a partir das quebras de sigilos telefônicos e telemáticos dos integrantes do Escritório do Crime que os promotores descobriram que o grupo paramilitar havia evoluído da grilagem de terras à construção civil, erguendo prédios irregulares na região e, assim, multiplicando seus lucros.

Adriano da Nóbrega e dois outros oficiais da PM integrantes do grupo – o tenente reformado, Maurício da Silva Costa, e o major Ronald Paulo Alves Pereira – usaram, segundo os promotores, nomes de moradores de Rio das Pedras para registrar as construtoras na junta comercial do Rio de Janeiro. A estratégia de usar “laranjas”, segundo o MP, foi adotada para tentar dar legitimidade às atividades do Escritório do Crime na construção civil.

A descoberta foi usada pelos promotores como base para a abertura do inquérito que resultou na Operação Intocáveis – nome escolhido numa referência às patentes de oficiais da Polícia Militar ostentadas pelos chefes da organização criminosa. A ação contra a milícia foi coordenada pelo Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado do MP, o Gaeco, e desencadeada, em janeiro de 2019, como forma de fechar o cerco à milícia suspeita de arregimentar os assassinos da vereadora do PSOL. Na ocasião, o ex-capitão Adriano e outros 12 suspeitos tiveram as prisões decretadas.
Trecho da denúncia cita a milícia de Adriano, construções e empresas em nome de laranjas

Dados do inquérito a que tive acesso comprovam que Adriano, Costa e Pereira eram os “donos ocultos” das construtoras ConstruRioMZ, São Felipe Construção Civil e São Jorge Construção Civil. As três empresas foram registradas na junta comercial no segundo semestre de 2018, respectivamente, em nome Isamar Moura, Benedito Aurélio Carvalho e Gerardo Mascarenhas, conhecido como Pirata. Os três “laranjas” foram presos na operação policial, juntamente com os oficiais da PM Costa e Pereira.

Numa das interceptações, o miliciano Manoel de Brito Batista, que atuava como uma espécie de gerente das obras, alerta em tom ameaçador a um interlocutor que o questiona sobre um prédio recém erguido na favela Rio das Pedras: “Eu tenho oito apartamentos naquele prédio, o resto é tudo do Adriano e do Maurício. Entendeu? Você procura eles e fala com eles, entendeu? Não adianta ficar me mandando mensagem”. Batista também foi preso na Operação Intocáveis.
Manoel era o síndico dos negócios no ramo imobiliário

Na denúncia do MP, Batista é citado como responsável pela supervisão dos canteiros de obras e pela negociação de imóveis. Numa das escutas telefônicas, ele oferece um andar inteiro num prédio recém erguido por 60 parcelas de R$ 4 mil. Valor previamente acertado com o ex-capitão Adriano, ora tratado por “Gordinho”, ora por “Patrãozão”, apelidos captados nas investigações da rachadinha e das execuções de Marielle e Anderson.
Trecho de conversa entre Manoel e Adriano

Era Adriano que definia preços, condições de pagamentos e, em muitos dos casos, fazia a cobrança dos valores diretamente aos compradores e inquilinos. Não há na investigação uma estimativa dos lucros obtidos pela milícia no ramo imobiliário, mas o preço médio dos apartamentos, com dois quartos, sala, banheiro e cozinha nas duas favelas gira em torno de R$ 100 mil.

Planilhas apreendidas durante a operação policial num imóvel usado como sede do Escritório do Crime, o Moradas do Itanhangá, indicavam retiradas semanais feitas pelo ex-capitão e também pelo tenente reformado Maurício e pelo o major Ronald, também amigo de Flávio Bolsonaro. Além de ser o responsável pela contabilidade do grupo, Ronald também foi homenageado por Flávio Bolsonaro com uma menção honrosa em 2004. Em várias conversas gravadas pelo MP, o major aparece combinando de se encontrar com Batista para “bater” as contas no fim da semana.
Major Ronald mantinha planilhas contábeis, com repasses de dinheiro para Adriano, plantas de prédios e outros documentos relacionados às construções ilegais

“O MP está preparando uma pica do tamanho de um cometa para empurrar na gente”

A frase, acima, de Queiroz foi dita em áudios de WhatsApp divulgados pelos jornais O Globo e Folha de S. Paulo em outubro. Desde então, muito se especulou a que ele se referia. Investigadores ouvidos pela reportagem acreditam que Queiroz sabia que o inquérito tinha identificado o uso do dinheiro desviado no esquema de rachadinha para financiar o boom de construções ilegais na Muzema e em Rio das Pedras, comunidade onde Fabrício Queiroz se refugiou em dezembro de 2018, como revelam as quebras de sigilos telefônicos e telemáticos.

Na opinião de envolvidos na investigação da rachadinha, a conclusão do cruzamento de dados financeiros dos 86 citados no inquérito, dentre eles o atual senador Flávio Bolsonaro, vai ser capaz de comprovar os crimes, entre eles lavagem de dinheiro. E, assim, explicar a suspeita evolução patrimonial do primeiro-filho e, sobretudo, justificar a movimentação do senador para tentar a todo custo paralisar o trabalho dos promotores.
Item 29 revela que o crime de lavagem de dinheiro está sendo apurado em procedimento específico no inquérito da rachadinha do então deputado Flávio Bolsonaro

Antes da publicação da reportagem, o Ministério Público foi consultado formalmente sobre as investigações relacionadas ao uso de parte dos recursos obtidos com o esquema de rachadinha no gabinete do ex-deputado no financiamento de construções da milícia. Por e-mail, a assessoria de imprensa do órgão confirmou a existência dos procedimentos investigatórios que serviram de base para a reportagem. Disse o MPRJ: “após consulta junto às coordenações dos grupos com atribuição nas investigações”, foi informado que os procedimentos encontram-se com sigilo decretado, razão pela qual as questões enviadas pela reportagem não poderiam ser elucidadas.
Resposta do Ministério Público por e-mail aos questionamentos da reportagem
confirmando a existência da investigação

Nas redes sociais e nas poucas entrevistas em que falou sobre o esquema de rachadinha, Flávio Bolsonaro afirma ser vítima de perseguição da imprensa e critica o vazamento de informações do processo, que está sob segredo de justiça. O político também afirma não ter conhecimento sobre o fracionamento de salários de seus funcionários. Procurado pelo Intercept, o senador não se manifestou.

O filho 01 chegou a atribuir a responsabilidade das supostas irregularidades a Queiroz, que teve identificados 438 transferências e depósitos em suas contas, totalizando cerca de R$ 7 milhões entre os anos de 2014 e 2017.

Queiroz também fez depósitos regulares de cheques e em dinheiro em contas do primeiro-filho e da primeira-dama, Michelle Bolsonaro, que numa das operações recebeu R$ 24 mil. Na ocasião, o presidente disse que o valor era parte de um empréstimo de R$ 40 mil que teria feito ao ex-assessor parlamentar e amigo. Para os investigadores, apenas a conclusão do inquérito permitirá o esclarecimento do fluxo de dinheiro, mas a decisão sobre o prosseguimento da investigação depende dos desembargadores do Tribunal de Justiça do Rio, que suspenderam os julgamentos devido à pandemia de coronavírus.

Desde o início da investigação, em outubro de 2018, o trabalho dos promotores foi suspenso três vezes, atendendo à defesa de Flávio Bolsonaro. Ao todo, os advogados impetraram nove pedidos no Supremo Tribunal Federal e no Tribunal de Justiça do Rio, alegando que as quebras de sigilo bancário e fiscal do então deputado estadual não poderiam ter sido concedidas por um juiz de primeira instância. Medo de que alguém descobrisse que nem só de chocolate é feito o milionário patrimônio do senador que entrou na vida política em 2002 com um Gol 1.0 e um sobrenome influente.

Fontes: El País – Brasil – Opinião / Coluna – Publicado em 25 de abril de 2020 – Às 10h31 (Horário de Brasília – DF) – Internet: clique aqui; Folha de S. Paulo – Poder / Governo Bolsonaro – Sábado, 25 de abril de 2020 – Publicado às 16h31 – Atualizado às 22h03 – Internet: clique aqui; The Intercept Brasil – Sábado, 25 de abril de 2020 – Publicado às 7h30 – Internet: clique aqui.