Isso é ético, isso é cristão???
Dilema
ético, os idosos e a metáfora da guerra
Guita Grin Debert e Jorge Félix*
Parte da sociedade é tratada como inútil e
improdutiva
A paciente Gina Dal Colleto Fernandes, 97 anos, recebe alta no hospital Vila Nova Star, em São Paulo, após se recuperar da Covid-19 |
A metáfora da guerra tem sido utilizada para espelhar a
luta que está sendo travada contra a Covid-19. Essa analogia é moralmente
preocupante. Na situação de guerra, o desafio é curar os soldados e
mandá-los de volta para a batalha. Numa epidemia é muito diferente.
Precisamos salvar a vida dos civis preservando valores e sensibilidades da sociedade
humana. As democracias enaltecem os princípios de igualdade e
solidariedade. Sabemos que os determinantes da saúde são sociais e que é
próprio dos Estados modernos procurarem reduzir desigualdades que marcam a vida
social.
Por essa
razão há um mal-estar em dizer, com todas as letras, que o jovem tem
prioridade em relação ao idoso em caso de colapso do sistema de saúde. Na
Itália e na Espanha, diante desse dilema médico, associações de classe optaram
abertamente pelo critério da idade cronológica. Deram prioridade àqueles que
teriam “recuperação mais rápida” ou “maior expectativa de vida” — ou, ainda,
“maior expectativa de vida com qualidade”.
Quando a
expressão causa indignação, a metáfora da guerra instrumentaliza, vestida de
benignidade. Qualidade de vida é uma expressão fluida e imprecisa. A
metáfora levou uma associação médica a propor que, em relação aos idosos,
deveria ser dada prioridade à probabilidade de sobrevivência livre de
deficiências. É ainda mais preocupante quando as decisões baseadas em
preocupações médicas de combate clínico às doenças são substituídas por decisões
utilitárias sobre quem são as pessoas mais relevantes para compor a
sociedade quando terminar a epidemia.
Guita Grin Debert |
As escolhas
orientadas em termos do que são considerados “benefícios sociais” são pura
hipocrisia:
* teria
uma mulher casada e com filhos pequenos prioridade sobre a viúva com filhos
adultos?
* Um
patrão sobre sua empregada?
As
metáforas têm um enorme poder, e sabemos que em tempos de guerra a capacidade
crítica se vê pressionada a tomar decisões que têm o potencial de oferecer
atestados de óbitos prematuros a um contingente da população que passa a
ser tratado como inútil e improdutivo.
Dar
prioridade à “expectativa de vida” com o objetivo de garantir ao jovem a
oportunidade de envelhecer não é uma decisão clínica. É, antes, uma opinião
destituída de reflexão social. Ou apenas uma suposição.
A nossa Carta
Constitucional, a Política Nacional do Idoso (lei 8.842/1994), o Estatuto
do Idoso (lei 10.741/2003) seguem concepções inclusivas e foram
elaboradas por instituições em sintonia com a sociedade civil. Esse marco
legal construiu um aparato estatal de defesa dos direitos da pessoa idosa. Não lutamos
contra a doença da mesma forma que enfrentamos um inimigo na guerra.
As conquistas de direitos dos idosos não podem
ser ameaçadas por decisões incongruentes que permitem um genocídio dos mais
velhos.
A ética em
saúde pública é distinta da ética clínica. As políticas de saúde
tratam da prevenção às doenças e, com toda razão, defendem o isolamento e têm
reiterado que “precisamos ficar em casa”. Os profissionais de saúde cumprem uma
função clínica e espera-se que todos eles tomem decisões baseadas no que é
clinicamente relevante sem influência de preconceito social, decisões
utilitárias ou soluções simplistas para o dilema do momento.
Jorge Félix |
Em 2016, o Conselho
Federal de Medicina, criou diretrizes de definição de prioridades na
admissão em UTIs. A resolução 2.156/2016 do CFM considera que a prioridade
de admissão deve respeitar critérios de uma escala de 1 a 5, partindo de
pacientes com alta probabilidade de recuperação até os pacientes com doença em
fase terminal. O artigo 9º diz que as decisões devem ser feitas de
forma explícita, “sem discriminação por questões de religião, etnia,
sexo, nacionalidade, cor, orientação sexual, idade, condição social, opinião
política, deficiência, ou quaisquer outras formas de discriminação”. Em
situações excepcionais seria preciso fazer modificações nessa resolução?
Responder afirmativamente é enfrentar o desafio de não estimular os
preconceitos e as discriminações sociais.
* Guita Grin Debert: Professora
do Departamento de Antropologia e pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero
da Unicamp, é autora de “Reinvenção da Velhice” (Prêmio Jabuti de Ciências
Sociais; ed. Edusp).
Jorge
Félix: Doutor em ciências sociais e professor de Gerontologia da
USP, é autor de “Economia da Longevidade” (Aller Editora).
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