Só o vírus e a morte ganham
Editorial
Jornal
“O Estado de S. Paulo”
Mesmo que revele uma competência ímpar,
Nelson Teich precisará de um tempo que não existe. A troca de ministro é
imprudência que só se explica pelos interesses eleitorais de Jair Bolsonaro
NELSON TREICH & LUIZ HENRIQUE MANDETTA na solenidade de posse do novo Ministro da Saúde |
O presidente
Jair Bolsonaro decidiu trocar seu ministro da Saúde em plena pandemia de
covid-19. Trata-se de uma decisão exclusivamente política, já que o
atual titular do Ministério, Luiz Henrique Mandetta, vinha fazendo um trabalho
tecnicamente bastante razoável, em especial quando consideradas as duríssimas
circunstâncias – que, não bastasse a ferocidade do coronavírus em si, incluem sabotagem
explícita do próprio Bolsonaro e dos filhos do presidente.
O
substituto de Mandetta, o oncologista Nelson Teich, terá o imenso desafio de
montar uma nova equipe e se inteirar de toda a estrutura montada para enfrentar
a pandemia justamente no momento em que esta começa a atingir o pico no País.
Mesmo que revele competência ímpar, o novo ministro precisará de tempo – e tempo
é um luxo que as autoridades sanitárias na linha de frente desta crise não têm.
Portanto, a
troca de ministros é uma evidente imprudência de Bolsonaro, que só se
explica por seus interesses eleitorais. O fato de que Luiz Henrique Mandetta
desfruta de popularidade muito superior à do presidente explica, em grande
medida, o nervosismo de Bolsonaro com seu agora ex-ministro. O presidente se
sentiu desautorizado por Mandetta quando este resolveu ignorá-lo e, baseado na
ciência, sustentou o discurso segundo o qual a única forma de conter a
pandemia é manter a população em isolamento social.
Como se
sabe, Bolsonaro é fervoroso defensor do fim do isolamento e da “volta à
normalidade”, mesmo que isso cause mais mortes – mas isso, para o presidente,
“é da vida”. Seu comportamento é tão irresponsável que mereceu lugar de
destaque na imprensa internacional.
Traduzindo a manchete do jornal Financial Times: "A 'Aliança do Avestruz': líderes negando a ameaça do coronavírus" |
O Washington
Post, por exemplo, considerou Bolsonaro “de longe o caso mais grave de
improbidade” entre os líderes mundiais ao lidar com a crise. O Financial
Times, por sua vez, colocou Bolsonaro no que chamou de “Aliança do
Avestruz”, grupo dos únicos quatro chefes de governo no mundo que minimizam
ou negam a ameaça da covid-19 – já chamada de “gripezinha” pelo presidente
brasileiro. E a revista The Economist chegou a dizer que Bolsonaro foi
tão longe que em seu próprio governo é tratado “como aquele parente
problemático que dá sinais de demência”.
Obcecado em
mostrar sua autoridade – “eu sou o presidente”, costuma
repetir, como se isso fosse necessário –, Bolsonaro provavelmente espera que o
novo titular do Ministério da Saúde não o contrarie e, sobretudo, não o
ofusque. Não será surpresa se, sob nova direção, o Ministério passar a
chancelar os palpites de Bolsonaro – que, além de um inviável “isolamento vertical”,
incluem a receita de um remédio cuja eficácia não está comprovada, ao contrário
de seus efeitos colaterais, já suficientemente documentados. Também não será
surpresa se, no embalo desse discurso, mais e mais cidadãos se sentirem
estimulados a abandonar a quarentena, como, aliás, já está acontecendo, o
que tende a acelerar o colapso do sistema
hospitalar.
O
presidente quer também um ministro da Saúde que esteja a seu lado na briga
contra os governadores, a quem atribui a responsabilidade pela crise econômica
que está erodindo sua popularidade e ameaça sua reeleição. O ex-ministro
Mandetta, ao contrário, sempre deixou claro seu pleno alinhamento com as duras
medidas adotadas pelos governadores, pois não é possível falar em retomada
da atividade econômica com um vírus letal à solta por aí.
Diante
disso, espera-se que os governadores e prefeitos fiquem firmes na manutenção do
isolamento social. Numa vitória do bom senso, o Supremo Tribunal Federal
decidiu na quarta-feira passada que Estados e municípios têm autonomia para
estabelecer o grau do isolamento necessário para conter o avanço da pandemia,
contrariando o presidente Bolsonaro, que julga ter o poder de deliberar a esse
respeito.
Todas essas
garantias institucionais, no entanto, não serão suficientes para impedir que um
Ministério da Saúde subserviente ao obscurantismo bolsonarista cause ainda mais
confusão – com a qual somente o vírus ganha. Como disse o ex-ministro Mandetta
à revista Veja, “o vírus não negocia com ninguém, não negociou com o
Trump, não vai negociar com nenhum governo”. Só nos resta esperar que o
novo ministro cultive as virtudes da paciência, da prudência e do bom senso.
Na
disputa, corda arrebentou nas bandas
do
Planalto
Carlos
Melo
Cientista
Político e Professor do Insper
A
negação da realidade escolheu o pior de dois mundos,
os
desastres na saúde e na economia
LUIZ HENRIQUE MANDETTA Despede-se do Ministério da Saúde |
O desastre principia com a negação
da realidade. Como Donald Trump, Jair Bolsonaro é presidente que
afronta os fatos porque, para ele, é sempre possível dar o dito por não dito;
alegar mal-entendido e acusar os outros. A prática é manjada, mas
rebaixar a pandemia à “gripezinha” foi seu o paroxismo. O vírus se impôs e
transformou a pandemia em “crise humanitária”.
Indispondo-se com o mundo e com seu ministro da Saúde, o
presidente perdeu elos com:
*
nações,
*
com o Congresso,
* com
os governadores e
*
com o Supremo Tribunal Federal.
Ficou institucionalmente só, agarrado a radicais e a um
paradoxo: sendo contra a quarentena, somente seu sucesso [da quarentena] –
com poucas mortes – é que reanimaria a tese da “gripezinha”, para que possa
dizer “eu disse”.
A queda de braço com Luiz Henrique Mandetta ficará para a
história. Sem admitir que salvar vidas e empregos não é incompatível, tentou
se impor ao ministro – o que já é estranho – com certo cálculo: como a
Economia de Paulo Guedes já patinava, a Saúde e os governadores seriam bodes
expiatórios do fracasso econômico.
Até onde pôde, equilibrou-se na ambiguidade e, assim, num
dia condescendia, no outro desdizia. “Isso cansa.” Mas, o presidente não
percebia lidar com profissionais. O DEM, partido do ministro, é hoje o que mais
se assemelha ao antigo PSD – de Juscelino, Valadares, Tancredo e outras raposas
–, sabe andar no fio da navalha. Articulado com os seus, o ministro permitiu
que o presidente esticasse a corda para que arrebentasse nas bandas do Planalto.
O cálculo se inverteu: se a quarentena obtiver sucesso,
será obra do abnegado Mandetta. Já o fracasso será creditado à
irascibilidade de Bolsonaro, algoz do ministro. Mas, ao final, não haverá
ganho: suspeita-se que muitos morrerão e o desastre econômico será inevitável.
A negação da realidade escolheu o pior de dois mundos.
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