Espetáculo deprimente
Nunca
a elite do Brasil ofereceu um triste episódio como agora na pandemia
Elio Gaspari
Jornalista,
autor de cinco volumes sobre a história do regime militar
Os barões da medicina privada querem falar de
tudo,
menos do colapso de hospitais do SUS
Francisco Clementino de San Tiago Dantas (1911-1964) Jurista e político |
Atribui-se
ao professor San Tiago Dantas uma observação
mortífera: “A Índia tem uma grande elite e um povo de merda, o Brasil tem um
grande povo e uma elite de merda”.
Com
certeza, San Tiago disse que “vêm se processando há séculos no Brasil um
trabalho social de contínua desorientação das ‘elites’, que as vai afastando do
exame cultural e político dos valores nacionais”.
No discurso
de posse que não viveu para ler, Tancredo Neves disse
a mesma coisa: “Temos construído esta Nação com êxitos e dificuldades, mas não
há dúvida, para quem saiba examinar a História com isenção, de que o nosso
progresso político deveu-se mais à força reivindicadora dos homens do povo do
que à consciência das elites”.
Nunca a
elite nacional ofereceu um triste episódio como o que os Três Poderes da
República e boa parte do andar de cima vêm oferecendo diante da epidemia de
coronavírus. (Ressalvada a doação de R$ 1 bilhão pelo Itaú Unibanco, a maior da
história nacional.)
O Brasil
foi um dos últimos países a abolir a escravidão. O século
20 teve 36 anos de ditaduras. Em 1978 o supermercado Carrefour foi expulso da
Associação de Supermercados do Rio porque aceitava cartões de crédito.
A ponte
aérea Rio-São Paulo levou anos para dar aos seus passageiros acesso a programas
de milhagem que existiam há mais de uma década. Os
fazendeiros que insistiram em comprar escravos empobreceram. O supermercado que
liderou a expulsão do Carrefour sumiu e o oligopólio das aéreas foi à garra.
Sendo
velho, o atraso poderia ter aprendido. Já morreram mais de mil pessoas e o
oportunismo epidêmico do andar de cima agravou-se. O presidente da
República diz que a Covid-19 é uma gripezinha, afrontando a ciência e a opinião
pública. O ministro da Saúde é hostilizado pela charanga do Planalto porque
defende o isolamento.
Os inimigos
de Bolsonaro passaram a ser seu ministro e os governadores de São Paulo e do
Rio de Janeiro. Já à Covid, que está matando gente, ele deu compreensão. Do
outro lado do balcão, a Câmara aprovou um pacote de ajuda aos estados que é visto
como uma bomba fiscal, e o ministro da Economia avisa que o Executivo
deverá vetá-lo.
A mentalidade escravagista, ainda, predomina na mente de muitos da elite brasileira |
Empresários
beneficiados pelos programas federais provisórios defendem sua transformação em
mimos permanentes. Fazem tudo isso sabendo que depois da epidemia virá
a recessão.
É como se o
Brasil tivesse virado um grande pernil e cada um vai lá para tirar sua fatia. Admita-se
que todos têm razão, inclusive Bolsonaro com sua gripezinha.
Se cada um continuar gritando, quem ganha é a
Covid.
Os barões
da medicina privada querem falar de tudo, menos do colapso de hospitais do SUS
(que está carregando o piano). Falta que essas duas turmas conversem, partindo
de uma premissa: “Eu não quero te quebrar, mas você não pode querer me matar”.
Todos os
lados acham que têm razão, mas não conseguem conversar. À
primeira vista pode-se achar que isso se deve à polarização bolsonariana. É
pouco. Em 1830 o deputado Antônio Ferreira França apresentou um projeto de
abolição gradual da escravidão. Ela acabaria em 1851. Acabou em 1888 porque
havia gente interessada nisso.
Há
hospitais públicos recusando-se a admitir pacientes. Por quê?
Porque chegam mortos.
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