Uma entrevista essencial
“PRECISAMOS
REPENSAR NOSSA SOCIEDADE PARA RECONSTRUIR UM SENSO DE SOLIDARIEDADE”
Entrevista
com Michael Sandel
Filósofo
norte-americano, Professor da Universidade de Harvard
Luciano Huck
Filósofo americano defende que a pandemia
oferece a chance para
se planejar um acesso social igualitário
MICHAEL SANDEL |
Conheci Hellena
Mary há 3 anos. Moradora da área rural de Orobo, cidade próxima a Bom
Jardim, Pernambuco, mãe de 3 filhos, ela trabalhava como cozinheira em uma
casa de família quando eu recebi pelo celular um videoselfie em que ela
discutia e questionava o “jeitinho brasileiro”:
“O problema está em todos nós como povo, porque
a gente pertence a um país onde a esperteza é a moeda que é sempre
valorizada. Um país onde a gente se sente o máximo porque consegue puxar a
TV a cabo do vizinho. A gente frauda a declaração do Imposto de Renda para
pagar menos. Onde há pouco interesse pela ecologia, onde as pessoas atiram lixo
na rua e depois reclamam da prefeitura que não limpa os bueiros. Camarada bebe
e vai dirigir. Pega um atestado que está doente só para faltar ao trabalho.
Viaja a serviço da empresa e o que faz? Se o almoço foi R$ 10, ele pega a nota
de R$ 20. Entra no ônibus e senta e, se tem um idoso vindo, finge que está
dormindo. E quer que o político seja honesto? O brasileiro está reclamando
do quê? Como matéria-prima deste país, temos muita coisa boa. Mas falta
muito para a gente ser o homem e a mulher de que nosso país precisa. Antes
de culpar alguém, a gente tem que fazer uma autorreflexão”.
Dessa
maneira muito franca e intuitiva, Hellen Mary discutia ética e fazia uma
provocação tão incômoda quanto necessária.
A milhares
de quilômetros dali, em Massachusetts (Estados Unidos), um
norte-americano ministrava naquele ano um dos cursos mais notórios e
concorridos da Universidade de Harvard. Batizado de “Justice”, o
curso tinha como tema central reflexões sobre ética. O professor, Michael Sandel, é um dos filósofos mais respeitados
da atualidade. A forma como pensa e como leciona fez dele uma celebridade
planetária. Já falou para estádios com mais de 10 mil pessoas no Japão e
foi eleito pela China Newsweek a “personalidade estrangeira mais
influente” de 2011. Seu livro Justice virou best-seller traduzido em
dezenas de línguas.
Ao longo da
vida, sempre gostei de conectar, construir conexões improváveis. E foi assim
que, naquele 2016, eu procurei o professor Sandel. Para minha surpresa, ele
topou vir ao Brasil para discutir ética e o “jeitinho brasileiro”. Foi
antológico o encontro dele com a cozinheira pernambucana no programa que eu
apresento, o Caldeirão.
Em meio à
pandemia, em isolamento voluntário, li que Sandel está lançando um novo livro, The
Tyranny of Merit: What’s Become of the Common Good? (na tradução literal:
“A Tirania do Mérito: O Que Aconteceu com o Bem Comum?”.) Na obra, o professor
argumenta que, para superar as crises que estão agitando o mundo, precisamos
repensar as atitudes em relação ao sucesso e ao fracasso que acompanharam a
globalização e a crescente desigualdade. Sandel mostra a arrogância que uma
meritocracia gera entre os vencedores, detalha o julgamento severo que impõe
sobre os que foram deixados para trás e traça as terríveis consequências disso
sobre boa parte da sociedade. O filósofo oferece uma maneira alternativa de
pensar sobre o sucesso. Mais atento ao papel da sorte nos assuntos humanos,
mais propício a uma ética de humildade e solidariedade e mais afirmativo a
dignidade do trabalho, ele aponta para uma visão mais esperançosa de uma nova
política do bem comum.
Na última
terça-feira, isolado em sua casa próxima a Boston, Sandel topou uma nova
conversa, sobre os conceitos do livro e sobre o impacto da crise do covid-19
sobre uma sociedade já demasiadamente desigual.
Eis
uma pitadinha do pensamento do Prof. Michael Sandel.
Clique
abaixo, sobre a imagem, e assista a este vídeo legendado:
Em tempo:
depois daquele encontro de 2016, Hellena Mary perdeu o emprego de cozinheira.
Como milhões de brasileiros, ela não esmoreceu e resolveu empreender. Abriu um
ateliê de costura na mesma cidade. Como milhões de brasileiros também, ela
acaba de sofrer um baque com a pandemia. O coronavírus forçou-a a fechar o
negócio e a ficar em casa com as crianças. Espera conseguir sobreviver com o
auxílio emergencial do governo de R$ 1.200 até a vida voltar ao “normal”.
Luciano Huck: Seu livro Justiça e seu
curso em Harvard discutem dilemas éticos que enfrentamos e deveremos enfrentar
na sociedade moderna, com provocações bastante interessantes. Em um dos
exemplos hipotéticos, você fala da programação de carros autônomos e da
necessidade de definir a reação do veículo a uma situação de trânsito onde
restam apenas duas opções de condução: uma atropelaria um grupo de crianças e a
outra provavelmente mataria o condutor. Essa pandemia está criando novos e
enormes conflitos éticos. Como no sistema de saúde de países que perderam o
controle da pandemia, em que médicos estão tendo que tomar decisões sobre quem
vive e quem morre. A Itália e a Espanha estão enfrentando esse dilema médico e
abertamente optaram por usar a idade cronológica como critério, priorizando
também aqueles que têm melhores chances de recuperação. Além disso, a mulher casada
e com filhos pequenos deve ter prioridade sobre a viúva com filhos adultos?
Suas analogias teóricas se tornaram realidade em nossas vidas diárias. Como
você vê isso?
Michael
Sandel: A atual crise tornou real e urgente alguns dos dilemas
éticos que discuti no livro. Um deles tem a ver com o acesso aos ventiladores
pulmonares nos hospitais. Assim como você mencionou, na Itália e em outros
lugares, médicos e hospitais tiveram que fazer escolhas morais contundentes
quando havia mais pacientes precisando desesperadamente dos ventiladores
pulmonares do que ventiladores disponíveis. Portanto a pergunta é: você deve
dar prioridade à primeira pessoa que chegar ou deve dar prioridade à pessoa com
maior probabilidade de sobreviver? E a questão da idade? Alguém mais jovem e
com mais anos pela frente deve ter prioridade? E, para uma pessoa idosa, é
justo decidir com base na idade? E depois há a questão da contribuição para a
sociedade. Suponha que médicos e enfermeiras que estão trabalhando tão duro
para tentar salvar as pessoas e cuidar delas tenham prioridade caso adoeçam.
Alguns argumentam que eles devem poder ir para a frente da fila porque, se
puderem ser salvos, poderão ajudar a salvar os outros. Esses foram os dilemas
que debatemos na sala de aula e que eu já havia discutido no meu livro Justiça,
como exemplos hipotéticos. Mas a pandemia tornou esses dilemas éticos
realidade.
Vou dar
outro exemplo no qual nos deparamos com um tipo semelhante de dilema: quando, e
em que circunstâncias, devemos enviar as pessoas de volta ao trabalho para que
a economia possa começar a se mover novamente. Há grandes debates sobre isso
agora em muitos países. Devemos estar dispostos a sacrificar um certo número
de vidas para que possamos retomar a economia? Se sim, isso significa que
estamos colocando um valor monetário na vida? Eu acho que temos que agir com
muito cuidado na reabertura da economia para garantir que tenhamos testes
suficientes para o vírus, para que não fiquemos em uma posição em que, em prol
da reabertura da economia, estaremos sacrificando vidas. E é claro que as
vidas que serão sacrificadas primeiro provavelmente serão as vidas das pessoas
pobres que são forçadas a voltar ao trabalho, que não têm o luxo daqueles que
podem ficar em casa e trabalhar remotamente. Acho que devemos ter em mente como a questão
da desigualdade incide nessa escolha, porque, de certa forma, os trabalhadores
dos quais dependemos mais imediatamente hoje, os que são mais essenciais,
geralmente são pessoas que não recebem muito dinheiro e que, em circunstâncias
normais, não recebem nem sequer muito reconhecimento.
Publicado, no Brasil, pela editora Civilização Brasileira, em 2011 |
Luciano Huck: Estivemos juntos no Brasil
três anos atrás. Você visitou favelas e também frequentou os circuitos mais
abastados. Você viu de perto nossa realidade. O Brasil é um dos países com a
maior taxa de desigualdade socioeconômica do planeta e aqui, mas não só aqui,
estamos passando pela pandemia com flertes abertos com o autoritarismo. Você vê
a democracia em risco?
Michael
Sandel: Sim, acho que são tempos muito perigosos para a
democracia. Vimos isso antes mesmo da pandemia, quando muitas pessoas,
frustradas com a política comum e a corrupção, estavam se voltando para figuras
populistas. Havia uma espécie de reação contra décadas nas quais quase
todos os ganhos econômicos ficaram com o topo (da pirâmide) e a pessoa de
classe média não se beneficiou muito. Isso certamente foi verdade nos Estados
Unidos nos últimos 40 anos. Assim, houve o fortalecimento de figuras
populistas hiper nacionalistas que prometeram dar voz às frustrações, à raiva e
ao ressentimento. E essa raiva e ressentimento eram compreensíveis. Mas os
candidatos que foram eleitos a partir disso estão agora governando no meio de
uma crise para a qual estão mal preparados. E, portanto, acho que, devido ao
aprofundamento da desigualdade, agora agravada por essa enorme crise de saúde
pública, as tensões no sistema e os danos da desigualdade estão sendo
escancarados e seu efeito é aumentado. Vemos o que já estava lá, mas de uma
maneira ainda mais perigosa. E, portanto, acho que devemos ter muito cuidado
com a tendência a políticas e soluções autoritárias para as frustrações que as
pessoas sentem. Penso que os principais partidos partilham a culpa por criar
as circunstâncias que levaram os eleitores a abraçarem figuras autoritárias perigosas
que agora, infelizmente, têm a responsabilidade de lidar com esta crise.
Luciano Huck: Estamos experimentando algo
muito único que só acontece em guerras. Decisões que normalmente teriam levados
meses, anos ou décadas para se tornar realidade estão levando dias ou semanas.
E acho que, antes da pandemia, como você disse, já estávamos vivendo tempos
estranhos, com a ascensão de líderes autoritários com forte tendências
antidemocráticas, negacionistas, populistas e etc. e ondas de manifestações de
massa expressando descontentamento com a política e com as lideranças sociais e
econômicas, principalmente na América Latina e na Europa nos últimos anos.
Então, para ir um pouco mais fundo nisso, qual o efeito da pandemia nessa
relação descontente entre sociedade e política?
Michael
Sandel: Estávamos experimentando, mesmo antes da pandemia, a perda
da solidariedade. E, agora que a pandemia chegou, vemos que somos todos
mutuamente dependentes. Nós somos contagiosos um para o outro. Em meio à crise,
ouvimos muitos políticos com o mesmo slogan: "Estamos todos juntos
nisso". De certa forma, é um slogan inspirador, porque a crise revela
nossas vulnerabilidades compartilhadas ou dependência mútua. Mas, por outro
lado, o slogan "Estamos todos juntos nisso" soa vazio porque ele se
insere no contexto de profundas desigualdades. Não é verdade que todos
estamos nos sacrificando na mesma medida. Alguns de nós podem trabalhar em
casa. Outros estão em contato físico uns com os outros, precisam disso para
sobreviver economicamente e são expostos de forma mais direta e imediata ao
risco. Precisamos tentar usar esta ocasião para repensar nossas sociedades e
nossas economias para reconstruir um senso de genuína solidariedade, para
que as vozes autoritárias não sejam as únicas que expressam o sentimento de
raiva, ressentimento e frustração. As vozes mais responsáveis precisam
encontrar uma maneira de lidar com essas profundas desigualdades para que
possamos realmente dizer, e acreditar, que “Estamos todos juntos nisso".
Luciano Huck: Nos últimos anos, tenho
ampliado minhas áreas de interesse em políticas públicas e venho garimpando
boas ideias em todo o país para questões que considero necessárias. E pude
constatar que, em alguns temas de grande importância, como educação, segurança
pública ou as reformas do Estado, a sociedade civil e o poder público já
produziram muitas propostas e projetos de qualidade. Mas que em outros, como a
situação das favelas, não é trivial encontrar caminhos prontos e consistentes
para apontar soluções. E eu acredito que estamos correndo o risco de esta
pandemia ampliar, ainda mais, o fosso da desigualdade no Brasil. No caso da
educação, por exemplo, para mim a ferramenta mais poderosa para gerar
oportunidades e mobilidade social, a pandemia tende a acentuar a diferença
entre escolas públicas e privadas. Embora quase todos os estudantes no Brasil
tenham um telefone celular, o nosso sistema de ensino público continua
analógico. Além disso, provavelmente teremos um enorme problema de evasão escolar.
Isso já é historicamente um problema no Brasil após as férias escolares, então
imagine ao voltar depois de uma crise de saúde que gerou um isolamento de
meses. E, mais do que isso, haverá uma enorme pressão familiar para que os
jovens contribuam de alguma forma para a renda familiar, fortemente afetada
pelo desemprego. O que você acha disso, sobre educação, acesso e desigualdades?
Michael
Sandel: Acho que você está certo de como essa pandemia poderá
exacerbar as desigualdades, incluindo as desigualdades educacionais. Mas ela
também oferece uma oportunidade para repensarmos o acesso à educação, à saúde e
ao apoio à renda. Às vezes, grandes crises nacionais e globais podem ser
ocasiões para uma espécie de renovação moral e cívica. E acho que é disso que precisamos.
Penso que o nosso desafio não é apenas um desafio de saúde pública. Acho que
é um desafio ético e moral. Lembro que você mencionou as favelas,
onde é muito difícil manter o distanciamento social, dada a proximidade em que
as pessoas vivem. Quando visitei seu programa de TV, Luciano, e conversamos
sobre o "jeitinho brasileiro", uma das coisas mais marcantes da
discussão é que tínhamos pessoas de todas as origens sociais e econômicas.
Havia advogados e professores, cozinheiros e faxineiros, todos discutindo
juntos. E, quando visitamos uma favela e conversamos com alguns jovens, uma
discussão informal, sobre justiça e violência, e sobre o que cidadania
realmente significa, o que me impressionou é que as pessoas não precisam
apenas de ajuda educacional, econômica e de saúde, mas também precisam e
querem ter uma voz e poder sentir que suas vozes são ouvidas. Um dos
maiores desafios e oportunidades que temos é encontrar maneiras de criar um diálogo
civil, discussões e debates sobre como alcançar algumas dessas reformas em
educação e saúde e apoio à renda e lidar com problemas de violência, que
incluem as vozes de todos. Seu programa, com a presença de pessoas de todas
essas origens, é um exemplo do tipo de discussão que precisamos regularmente,
porque isso contribui para um tipo saudável de democracia. Isso é realmente o
que significa democracia. Não apenas votar a cada eleição, mas também deliberando
entre si através de linhas de classe, raça, etnia e formação econômica.
Sobre o bem comum. E é nisso que não somos muito bons hoje em dia. Bem, você
faz um trabalho maravilhoso nisso, mas precisamos espalhar mais disso por toda
a nossa sociedade.
Luciano Huck: Quando você diz dar “voz ao
povo”, a primeira imagem que me veio à mente é sobre as oportunidades de
educação e mobilidade social. No seu novo livro A Tirania do Mérito, que
será lançado em setembro, você argumenta que, para superar as crises que estão
prejudicando nosso mundo, devemos repensar as nossas atitudes em relação ao
sucesso e ao fracasso. Você pode detalhar essa sua opinião?
Michael
Sandel: Penso que, se olharmos ao longo das últimas décadas da
globalização, tem sido uma globalização muito orientada para o mercado.
Isso criou vastas desigualdades. Mas esse não é o único problema. Não é apenas
o fato de que a maioria dos benefícios foi para aqueles que estão no topo. As
atitudes que temos em relação ao sucesso são tais que aqueles que chegam ao
topo acreditam que o fizeram por conta própria e que não estão em dívida com
mais ninguém. Eles, portanto, sentem que merecem. E quanto àqueles que não
tiveram as mesmas oportunidades, como uma educação universitária, e que não
atingiram o sucesso, nós dizemos que eles não se empenharam o suficiente e não
fizeram por merecer algo melhor. Então acho que precisamos questionar essa
forma de pensar. O que tentei fazer no meu novo livro é questionar a
arrogância dos bem-sucedidos que acreditam: “Eu sou bem-sucedido porque
consegui meu sucesso pelo meu esforço e, portanto, eu não tenho senso de
obrigação para com os menos afortunados que eu”. Visto que, se eu tiver uma
percepção mais apurada, posso ressignificar o sucesso: “Trabalhei duro e também
tive muita sorte: uma família que me apoiou, os professores que me ensinaram,
as oportunidades educacionais que tive, a sociedade em que eu cresci. Portanto,
devo aos meus concidadãos certas obrigações. Não é só meu trabalho”.
Este é o tipo de orientação que estou tentando argumentar, um maior senso de
solidariedade no bem comum, decorrente de uma consciência maior daqueles
que tiveram a sorte de não o terem feito sozinhos. Há a frase: "lá, exceto
pela graça de Deus ou pelo acidente da Fortuna, eu vou". Se tivermos um
senso mais agudo da sorte, um senso mais aguçado de graça, mesmo para alcançar
o que alcançamos, acho que estaremos mais conscientes em relação às nossas
obrigações para com aqueles que não chegaram ao topo, mas que merecem as mesmas
oportunidades, respeito e reconhecimento social. Portanto, é uma mudança
moral e também uma questão de reorganizar a economia. É uma questão de como
encaramos nosso sucesso e nossos relacionamentos um com o outro.
Tradução do título: "A Tirania do Mérito: o que aconteceu com o bem comum?" Lançamento para setembro de 2020 |
Luciano Huck: As empresas mais admiradas
ou as mais bem-sucedidas das últimas décadas foram aquelas que tiveram a
capacidade de se mostrarem mais eficientes, com culturas internas ancoradas na
meritocracia. Você está colocando a questão da meritocracia na vanguarda de
outra discussão. No Brasil, é muito difícil discutir esse tópico, porque os
pontos de partida aqui não são iguais. Aqui vivemos uma espécie de loteria do código
postal, em que o lugar em que você nasceu praticamente determina onde você vai
viver e morrer. A mobilidade social no Brasil é praticamente inexistente.
Estudos mostram que, se você nasce em uma família pobre, para atingir a média
da classe média são necessárias nove gerações. Uma tragédia. A pandemia aumenta
ainda mais essa desigualdade de oportunidades e torna a discussão sobre
meritocracia um sonho ainda mais distante. Como isso soa para você?
Michael
Sandel: Você levantou um ponto muito importante. Um dos
problemas com a meritocracia é que não cumprimos os princípios meritocráticos
que proclamamos. A "loteria do código postal", como você diz, tem
um efeito enorme sobre quem recebe uma boa educação, quem vai para a faculdade,
quem consegue bons empregos. Esse é um dos problemas com a meritocracia. Mas há
também um segundo problema: ela incentiva atitudes em relação ao sucesso
para que os vencedores menosprezem os perdedores e não os identifiquem como
concidadãos. Portanto, a meritocracia, mesmo no local onde se trabalha,
é prejudicial à solidariedade. Pense na imagem de uma escada, onde os
degraus indicam onde você pousa na ordem social e econômica. Um problema com a
meritocracia é que, se você nasceu em uma família que fica nos degraus mais
baixos, é muito difícil subir para os degraus mais altos, porque você não tem a
chance de ir para a faculdade e obter uma boa educação para competir pelos
melhores empregos. Esse é um problema. Mas, mesmo quando tentamos melhorar a
capacidade das pessoas de subir os degraus da escada, também precisamos nos
preocupar com algo além da mobilidade social: qual a distância entre os degraus
da escada? Como parte do que vem acontecendo nas últimas décadas, não só é
difícil subir de um degrau para outro, como também os degraus ficaram cada vez
mais distantes uns dos outros. A escada se esticou. A distância entre os
degraus superiores e inferiores é cada vez maior. E nós temos que lidar com
os dois problemas, creio, ao mesmo tempo. Mobilidade
social, sim, mas também desigualdade
como tal, o que significa tornar a vida melhor e mais digna, mesmo para
aqueles que, por qualquer motivo, não escalam os degraus. Eles também devem
viver vidas dignas.
Luciano Huck: Desde que a pandemia
começou, venho dizendo toda semana que a solidariedade deve ser mais contagiosa
que o vírus. E, no Brasil, a sociedade civil (população não governamental) se
mobilizou sem precedentes para tentar mitigar a fome e a extrema pobreza que
invadiram repentinamente a vida de tantas famílias. Ao te ouvir, fico
refletindo se isso não faz parte do caráter geral que todos compartilhamos por
termos aceitado passivamente o status quo dessa disparidade
socioeconômica assustadoramente alta, que não resolvemos até hoje e virou parte
da “paisagem” brasileira.
Michael
Sandel: Penso que a sociedade civil tem um papel extremamente
importante a desempenhar. Nós falamos sobre política e governo e tentamos
encontrar alternativas para as perigosas tendências autoritárias que estamos
vendo agora. E tudo isso é muito importante. Mas vimos como os principais
partidos políticos falharam e como esse fracasso levou à eleição de figuras
autoritárias hiper nacionalistas no Brasil e em outras partes do mundo,
inclusive nos Estados Unidos, meu país. Acho que precisamos procurar a
sociedade civil para ajudar a criar fontes de solidariedade, porque não são
apenas as políticas do governo que nos mantêm unidos, mas também as
organizações, incluindo organizações locais, que podem trabalhar para
promover o acesso à educação, podem tentar levar cuidados de saúde para pessoas
que não podem pagar por isso, que podem tentar lidar com o problema da
violência nas favelas e outras comunidades... As instituições locais da
sociedade civil são muito importantes. Especialmente nas áreas de saúde e
educação, as organizações comunitárias têm um papel muito importante a
desempenhar na construção do tipo de solidariedade que, com muita frequência,
nossos políticos deixam de apoiar e promover. A mídia também tem um papel
muito importante na tentativa de promover um diálogo civil mais substantivo,
respeitoso. A democracia precisa desse diálogo. Ele precisa chamar a
atenção de pessoas de todas as origens sociais e econômicas. E, se a mídia
presta atenção apenas aos tipos de provocações mais sensacionalistas e
ultrajantes, o discurso público se transforma em uma espécie de jogo de gritos
onde ninguém está ouvindo um ao outro. As pessoas estão simplesmente reforçando
e gritando sua própria opinião. A mídia tem um papel importante a desempenhar
na criação de um tipo melhor de discurso público.
Luciano Huck: Alguns setores no Brasil,
como bens e serviços, ganharam um enorme significado durante essa pandemia.
Nosso setor agrícola, em particular, está fazendo um trabalho espetacular. Não
tivemos nenhum problema de produção ou fornecimento durante esta pandemia.
Estamos exportando alimentos para o mundo inteiro como nunca antes. A cadeia de
produção está muito bem organizada e criou protocolos de saúde que estão
funcionando muito bem. Nossos profissionais de saúde estão mais dedicados do
que nunca ao sistema público, e até mesmo os entregadores que estão nas ruas
diariamente, e que até meses atrás eram invisíveis e rechaçados por muitos, se
tornaram parte fundamental de nossas vidas cotidianas, o que gerou um enorme
respeito da sociedade por todos esses profissionais do campo, das ruas, dos
hospitais e das rodovias. Como você vê essa mudança?
Michael
Sandel: Existe um potencial para essa crise levar a uma
reavaliação fundamental de quem realmente contribui mais para nossas vidas
sociais e econômicas. De quem realmente dependemos diante de uma crise como
essa? Como você diz, as pessoas de quem dependemos não são banqueiros de
Wall Street. Não são pessoas que, nos últimos 40 anos, ganharam milhões,
bilhões de dólares enquanto trabalhadores comuns enfrentaram salários
estagnados. As pessoas de quem dependemos agora são prestadores de cuidados
de saúde, médicos e enfermeiros, mas também entregadores, caminhoneiros,
policiais e bombeiros, pessoas que mantêm os supermercados abertos, que
fornecem nossa comida e a levam para o supermercado ou mesmo para nossas casas.
No entanto, nos últimos 40 anos, pessoas que realizam trabalhos como esses não
apenas perderam terreno economicamente, como também não foram respeitadas. Isso
remonta ao que chamei de "tirania do mérito" no meu novo livro. Um
dos lados sombrios da meritocracia é que tendemos a acumular todas as
recompensas e todo o reconhecimento social naqueles que ganham muito dinheiro.
Eles se tornam os emblemas do sucesso. Mas o que esta crise está mostrando é
que aqueles que realmente fazem contribuições valiosas para o bem comum,
aqueles que estão nos mantendo vivos, aqueles que mantêm a sociedade
funcionando não são os ricos, não são os mais ricos. São, na maioria das
vezes, pessoas que lutam para sobreviver. E, no entanto, são eles de quem o
resto de nós depende. Portanto, espero que, com isso, possamos reconstruir
nossas sociedades e nossas economias para reconhecer, não apenas para aplaudir
essas pessoas e agradecê-las, mas também para garantir que suas recompensas
econômicas correspondam à importância da contribuição que fazem. Essa é a minha
esperança. Mas vai depender do tipo de economia que criarmos quando
começarmos a emergir desta crise.
Luciano Huck: Temos discutido quando vamos
reiniciar a economia, mas acredito que também deveríamos discutir de que forma
vamos reiniciar a economia. Te ouvindo, acredito que temos uma grande
oportunidade de mudar a narrativa que tem estado presente nos debates nos
últimos anos. Quando reiniciarmos as economias mundiais, teremos a chance de
entender que estamos mais interconectados do que nunca. Que podemos e devemos
mudar a narrativa pós-pandêmica, adotando políticas menos divisivas e mais
fraternas, mais inclusivas. Se você puder compartilhar, qual conselho você
desejaria passar para o Brasil, pensando não no que estamos experimentando
agora, mas no que virá a seguir?
Michael
Sandel: Eu acho que o que vem a seguir, para o Brasil e para todos
nós que estamos enfrentando essa crise, depende de como pensamos e agimos
durante a crise. Claro, todo mundo quer prever quando o vírus desaparecerá,
quando haverá uma vacina e quando podemos voltar ao trabalho. Voltar ao
trabalho criará um novo aumento no vírus? São questões de previsão e, para a
previsão, contamos com especialistas em saúde pública, médicos e cientistas e
precisamos confiar em seu julgamento e sabedoria. Mas, além de prever o que
essa crise trará e quando ela terminará, devemos encarar isso como um desafio
para criar um tipo diferente de sociedade. Essa pandemia chegou em um
momento em que estávamos profundamente divididos. Tínhamos vivido um
período de crescente desigualdade e de profundas divisões partidárias, raiva,
frustração e ressentimento. E, se voltar ao trabalho, se reabrir a economia
significa simplesmente voltar à raiva, ressentimento, partidarismo e corrupção
que tínhamos antes, não teremos aprendido nada. Portanto, nosso maior
desafio é realmente aprender com essa crise e a usar como uma oportunidade para
refletir sobre o que deu errado em nossa vida social, econômica e política.
De modo a emergirmos com uma economia na qual podemos dizer com mais verdade do
que agora que “Estamos todos juntos nisso" – ou, pelo menos, que estamos
caminhando na direção de uma maior solidariedade. Minha esperança é que
estejamos nos movendo em direção a uma sociedade em que, em nossos debates
políticos, perguntaremos primeiro: “O que devemos uns aos outros como
cidadãos e como podemos promover a política do comum? O que nos une de maneira
que nos tornará mais fortes?”
Luciano
Huck: Professor Michael Sandel, muito
obrigado. É uma honra poder conversar com você e compartilhar algumas de suas
ideias, certo de que você está ajudando a iluminar o caminho. Fique bem,
protegido e saudável.
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