O vírus somos nós (ou uma parte de nós)
Para
refletir
Eliane Brum
Escritora,
repórter e documentarista
O futuro está em disputa: pode ser Gênesis ou
Apocalipse
(ou apenas mais da mesma brutalidade)
Jovem em Mumbai, Índia, no primeiro dia de quarenta imposta no país diante da pandemia de coronavírus, nesta quarta-feira, dia 25 de março de 2020 Foto: INDRANIL MUKHERJEE / AFP |
No
princípio era o vírus. Coronavírus. Em menos de dois meses após a primeira
morte, registrada na China em 9 de janeiro, ele atravessou o mundo a bordo de
nossos corpos que voam em aviões. Tornou-se onipresente no planeta, ainda que
tão invisível quanto certos deuses para olhos humanos. Hoje, 1,7 bilhão de
pessoas, cerca de um quinto da população global, está em isolamento.
Escolas, restaurantes, cinemas e até shoppings cerraram as portas, fronteiras
de países e de continentes fecharam, aviões se esvaziaram, presidentes
maníacos finalmente foram reconhecidos como presidentes maníacos, neoliberais
foram vistos clamando — “cadê o Estado? cadê o Estado?” —, ardorosos
defensores dos planos privados de saúde compartilharam campanhas pelo
fortalecimento do SUS, terraplanistas exigiram respostas da ciência.
Pelas janelas do Facebook, Twitter, Whatsapp e Instagram, pessoas decretam: o
mundo nunca mais será o mesmo.
Não será. Mas
talvez seguirá sendo bastante do mesmo. Além de nossa sobrevivência, o que
disputamos neste momento é em que mundo viveremos e que humanos seremos depois
da pandemia. Essas respostas vão depender do modo como vivermos a pandemia. O
depois, o pós-guerra global do nosso tempo, vai depender de como escolhemos
viver a guerra. Não é verdade que na guerra não há escolhas. A verdade é
que, na guerra, as escolhas são muito mais difíceis e as perdas decorrentes
dela são muito maiores do que em tempos normais.
As
duas escolhas (caminhos) que temos
Na guerra,
temos dois caminhos pessoais que determinam o coletivo:
* nos
tornarmos melhores do que somos ou
* nos
tornarmos piores do que somos.
Esta é a
guerra permanente que cada um trava hoje atrás da sua porta. Momentos
radicais expõem uma nudez radical. Isolados, é também com ela que nos
viramos. O que o espelho pode mostrar não é a barriga flácida. Pouco importa,
já não há onde nem para quem desfilar barrigas-tanquinho. O duro é encarar
um caráter flácido, uma vontade desmusculada, um desejo sem tônus que antes
era mascarado pela espiral dos dias. O duro é ser chamado a ser e ter medo
de ser. Porque é isso que momentos como este fazem: nos chamam a ser.
Em tempos
mais normais, podemos fingir que não escutamos o chamado a ser. Cobrimos essa
voz com automatismos, a vida se resume a consumir a vida consumindo o
planeta. Consumidores não são, já que consomem o ser. E agora, quando já não se
pode consumir, porque logo pode não haver o que consumir nem quem possa
produzir o que consumir, como é que se aprende a separar os verbos? Como se
faz um consumidor se tornar um ser?
ELIANE BRUM Autora deste artigo |
Quem
é, de fato, o inimigo?
Se usamos a
palavra guerra, precisamos olhar cuidadosamente para o inimigo. É o
vírus, essa criatura que parece uma bolinha microscópica cheia de pelos, quase
fofa? É o vírus, esse organismo que só segue o imperativo de se reproduzir?
Penso que não. O vírus não tem consciência, não tem moral, não tem escolha.
Vamos precisar derrotá-lo em nossos corpos, neutralizá-lo para reiniciar isso
que chamamos de o outro mundo que virá. Tudo indica, porém, que outras
pandemias acontecerão, outras mutações. A forma como vivemos neste planeta
nos tornou vítimas de pandemias. O inimigo somos nós. Não exatamente nós,
mas o capitalismo que nos submete a um modo
mortífero de viver. E, se nos submete, é porque, com maior ou menor
resistência, o aceitamos. Escapar do vírus da vez poderá não nos salvar do
próximo. O modo de viver precisa mudar. Nossa sociedade precisa se tornar
outra.
O impasse
imposto pela pandemia não é novo. É o mesmo impasse colocado há anos, décadas,
pela emergência climática. Os cientistas — e mais recentemente os
adolescentes — repetem e gritam que é preciso mudar urgentemente o jeito de
viver ou estaremos condenados ao desaparecimento de parte da população. E,
quem sobreviver, estará condenado a uma existência muito pior num planeta
hostil.
Todos os
dados mostram que a Terra, esta que segue redonda, está superaquecendo em
níveis incompatíveis com a vida de muitas espécies. Esse superaquecimento
mudará radicalmente — para pior — o nosso habitat. Todas as informações
científicas apontam que é preciso parar de devorar o planeta, que há que se
mudar radicalmente os padrões de consumo, que a ideia de crescimento
infinito é uma impossibilidade lógica num mundo finito. É um fato
comprovado que os humanos, pela emissão de carbono desde a revolução
industrial, cortando árvores, queimando carvão e depois petróleo, se tornaram
uma força de destruição capaz de alterar o clima do planeta.
Desde o
segundo semestre de 2018 adolescentes do mundo inteiro abandonam as escolas
toda sexta-feira para gritar nas ruas que os adultos estão roubando seu futuro.
Eles dizem: parem de consumir, fiquem no chão, nosso planeta não aguenta
mais tanta emissão de carbono. Dizem ainda, literalmente: “vocês estão
cagando no nosso futuro”. Greta Thumberg, a jovem ativista sueca, avisou
repetidamente: “nossa casa está em chamas”. Acordem.
Está tudo
escrito, falado, repetido, documentado. Ninguém pode dizer que não sabe. Bem,
Bolsonaro, o maníaco que nos governa, sempre pode, porque diz e desdiz a cada
minuto. Mas, sério, quem ainda aguenta falar nesse demente, que está
criminosamente aumentando o risco de morte dos brasileiros, a não ser para
gritar “Fora!”? Isolemos esse boçal, deixemos Bolsonaro procurando onde estão
suas orelhas, aprendendo a como enfiar a máscara no rosto sem tapar os olhos.
O
vírus é o “aperitivo” daquilo que está vindo
O efeito da
pandemia é o efeito concentrado, agudo, do que a crise climática está
produzindo de forma muito mais lenta. É como se o vírus desse uma palhinha
do que viveremos logo mais. Conforme os níveis de superaquecimento global, chegaremos
a um estágio de transformação do clima e, por consequência do planeta, para o
qual não há volta, não há vacina, não há antídoto. O planeta será outro.
É por isso
que cientistas, intelectuais indígenas e ativistas climáticos têm gritado
para uma maioria que se finge de surda, para não ter que sair do seu
conforto mudando velhos hábitos, que é preciso alterar
os padrões de consumo radicalmente, que é preciso pressionar
radicalmente os governantes para políticas públicas imediatas, que é preciso
combater radicalmente as grandes corporações que destroem o planeta. Mas, como
a crise climática é lenta, sempre foi possível fingir que não estava acontecendo,
chegando ao paroxismo de eleger negacionistas como Jair Bolsonaro, Donald Trump
e toda a conhecida corja de destruidores do mundo.
O vírus não
permite fingimentos. Ele possivelmente saltou de um morcego, espécie cujo
habitat também destruímos, para se hospedar no organismo dos humanos. Nada mais
fez do que tocar sua vida de vírus. De repente, homens e mulheres do mundo
inteiro que fingiam não ter nem corpo nem limites, transbordando na internet,
tiveram que se haver com a própria carne e com os próprios contornos. Já não
há mais como escapar do corpo. E já não há mais como permanecer refestelado
no próprio umbigo.
O filósofo e sociólogo esloveno Slavoj Zizek no Círculo de Belas Artes, em Madri Foto: JAIME VILLANUEVA |
Desfez-se
a ilusão
Toda a
ilusão de que o mundo é controlado pelos humanos se desfez em tempo recorde. E a
humanidade finalmente descobriu que há um mundo além de si, povoado por outros
que podem até mesmo acabar com a nossa espécie. Outros que a gente nem consegue
enxergar. No nosso furor de espécie dominante, extinguimos tantas outras e
tantos modos de vida, trancamos animais maravilhosos em jaulas, criamos campos
de concentração de bois, porcos e galinhas, envenenamos peixes com mercúrio
apenas porque gostamos de ouro, promovemos holocaustos diários para nos
alimentar, estupramos vacas com aparelhos porque desejamos comer seus
tenros bebês em refinadas refeições e desejamos roubar seu leite dia após dia, arrancamos
a floresta para fazer campo de soja para alimentar animais escravizados.
Podíamos tudo.
E aí vem o
vírus, que não está interessado em nos passar nenhuma mensagem, só está mesmo
cuidando da própria vida, e mostra: vocês, humanos, não estão sozinhos nesse
planeta nem têm o controle que acreditam ter. E então aqueles que
debochavam dos cientistas do Clima e da Terra, chamavam a crise climática de
“complô marxista”, querem agora saber como a ciência pode salvá-los da bolinha
peluda. Até tentaram inventar que o novo coronavírus é uma “gripezinha”, “uma
fantasia”, “uma histeria”. Mas o povo brinca com tudo e está pronto a acreditar
em qualquer bobagem, até em Terra Plana, desde que lhe garantam seguir no seu modo
zumbi. Mas o povo não brinca com saúde. Quando o assunto é saúde, até a
Terra Plana dá voltas.
A cruel
separação social com o vírus e com a mudança climática
Menciono
“humanidade”, “povo”, “população”. Mas não há homogeneidade aí, não existe um
genérico chamado “humano”. Assim como não estamos todos no mesmo barco. Nem
para o coronavírus nem para a crise climática. Mais uma vez, a comparação entre
coronavírus e crise do clima faz todo o sentido. A ONU criou o conceito de
“apartheid climático”, um reconhecimento de que as desigualdades de raça, sexo,
gênero e classe social são determinantes também para a mudança do clima, que as
reproduz e as amplia.
Aqueles que serão os mais atingidos pelo
superaquecimento global
— negros e indígenas, mulheres e pobres —
foram os que menos contribuíram para provocar a
emergência climática.
E aqueles
que produziram a crise climática ao consumir o planeta em grandes porções e
proporções — os brancos ricos de países ricos, os brancos ricos de países
pobres, os homens, que nos últimos milênios centralizaram as decisões, nos trazendo
até aqui — são os que serão menos afetados por ela. São esses que já
passaram a erguer muros e a fechar as fronteiras muito antes do coronavírus
porque temem os refugiados climáticos que criaram
e que serão cada vez mais numerosos no futuro bem próximo.
Na pandemia
de coronavírus há o mesmo apartheid. É bem explícito qual é a população que tem
o direito a não ser contaminada e qual é a população que aparentemente pode ser
contaminada. Não é coincidência que a primeira morte por coronavírus no Rio
de Janeiro foi uma mulher, empregada doméstica, a quem a “patroa” nem
reconheceu o direito à dispensa remunerada do trabalho, para fazer o
necessário isolamento, nem achou necessário contar que poderia estar
contaminada por coronavírus, cujos sintomas já sentia depois de voltar de um
Carnaval na Itália. Essa primeira morte no Rio é o retrato do Brasil e das
relações entre raça e classe no país, expostas em toda a sua brutalidade
criminosa pela radicalidade de uma pandemia.
O espantoso
é que a necessidade de muitos de ter sua casa limpa e a comida pronta pela
empregada doméstica, a quem negaram o direito ao isolamento remunerado, é
maior até do que o instinto de sobrevivência. Isso nos informa muito sobre uma
parcela da sociedade brasileira, esta em que os porteiros continuam abrindo
a porta dos edifícios para os moradores não tocarem eles mesmos na maçaneta,
quando vão ao jardim arejar ou ao supermercado comprar comida. Ficar sem
empregados domésticos parece ser mais trágico do que enfrentar o vírus para uma
parcela das classes média e alta brasileiras. Esta última muito acostumada a
acreditar-se a salvo do pior, porque em geral está.
O poder de
devastação do vírus é determinado pelas escolhas dos governos e da população
que elegeu os governantes. Neste momento, os brasileiros estão tendo que se
haver com a escolha de:
* sucatear o
SUS,
* com a
escolha de reduzir o investimento em programas sociais que pudessem reduzir a
desigualdade,
* com a
escolha de não fazer reforma agrária nem redistribuição de renda,
* com a
escolha de não priorizar o saneamento básico e a moradia digna.
* Com a
escolha de fazer teto para gastos públicos também em áreas essenciais como
saúde e educação.
Cadê
os neoliberais, cadê os defensores do Mercado???
Os
brasileiros estão sendo obrigados a se haver, principalmente, com a escolha
de fazer do “Mercado” um deus-entidade que se autorregula. Se o Mercado foi
a explicação de tudo para as medidas mais brutais defendidas por essa praga
persistente chamada “economistas neoliberais” ou “ultraliberais”, que se
autodeclararam com autoridade e poder para determinar todas as áreas de nossa
vida, cadê o Mercado agora? Por que não pedem que o Mercado resolva a
pandemia?
Ao contrário, os representantes
do Mercado estão demitindo e dispensando os empregados e pedindo ajuda
emergencial do Governo para não falir.
Mas, não se
iludam. Assim que a pandemia passar, o Mercado voltará com todo o seu poder
de oráculo para, por meio de suas sacerdotisas, os economistas neoliberais
ou ultraliberais, nos ditar tudo o que temos que fazer para sair da recessão.
Este ônus, como sempre, será dividido igualmente entre os mais pobres.
O vírus — e
não as péssimas escolhas — será o culpado de todas as mazelas. Até o
corona, como sabemos, a economia do mundo capitalista e do Brasil de Paulo
Guedes estava uma maravilha, parece até que domésticas estavam planejando uma
excursão para a Disney quando foram impedidas pelo maldito vírus com nome de
ducha. E, claro, o maníaco do Planalto vai dizer que não é nem ele nem seu
Posto Ipiranga os incompetentes, mas “a histeria” com a “gripezinha”.
BYUNG-CHUL HAN Filósofo sul-coreano radicado na Alemanha, onde vive, leciona e escreve |
“Isolamento
físico” e “aproximação social”
Nada está
dado, porém. Não é só o futuro que está em disputa, mas o presente. Isoladas
em casa, as pessoas passaram a fazer o que não faziam antes: enxergar umas as
outras, reconhecer umas as outras, cuidar umas das outras. Justo agora,
quando ficou muito mais difícil, parece ter se tornado mais fácil alcançar o
outro. Quem criou esse conceito —b“isolamento social”b— estava com falha de
raciocínio. O que temos que fazer e muitos estão fazendo é “isolamento
físico”, como apontou no Twitter o sociólogo Ben Carrington. O que está
acontecendo hoje é exatamente o contrário de isolamento social. Fazia muito
tempo que as pessoas, no mundo inteiro, não socializavam tanto.
No Brasil,
o grande momento de socialização é o panelaço de “Fora Bolsonaro!” nas
janelas. Em outros países têm música, até poesia, nas sacadas. Para os
brasileiros, mostrar que se encontraram com a realidade do outro é reconhecer a
realidade de que botaram um maníaco no Planalto e
precisam tirá-lo de lá se quiserem sobreviver. Mas também por aqui há
festas de aniversário com bolinho na porta e vizinhos cantando parabéns das
janelas, jovens fazendo compras para os velhos do prédio, avós almoçando com as
netas pelo FaceTime, famílias e grupos de amigos conversando por aplicativos
como há tempo não faziam. É incrível, mas finalmente os humanos descobriram
que podem usar o celular para se encontrarem, em vez de se isolarem cada um
no seu aparelho em torno de mesas de bares e restaurantes.
Muitas das
ações da direita e da extrema direita no Brasil dos últimos anos tiveram como
objetivo neutralizar e sepultar uma insurreição das periferias, no sentido mais
amplo, que começava a questionar, de forma muito contundente, os privilégios de
raça e de classe. Começava a reivindicar sua justa centralidade. Marielle
Franco era um exemplo icônico destes Brasis insurgentes que já não aceitavam o
lugar subalterno e mortífero ao qual haviam sido condenados. A pandemia
mostrou explicitamente que a rebelião continua viva. O Brasil das elites
boçais, aliado à nova boçalidade representada pelos mercadores da fé alheia,
não conseguiu matar a insurreição. O “Manifesto das Filhas e dos Filhos das
Empregadas Domésticas e das Diaristas” [para ler, clique aqui],
afirmando que não permitiriam que os patrões deixassem suas mães morrer pelo
coronavírus, foi talvez o grito mais potente deste momento, impensável
apenas alguns anos atrás.
Dezenas de
“vaquinhas” estão em curso, grande parte delas organizadas a partir das favelas
e das periferias, para garantir alimentação e produtos de limpeza para a
parcela da população a quem o direito ao isolamento é sequestrado pela
desigualdade brasileira. Em geral, o lema é “Nós por Nós”: séculos de
história provaram que só os explorados e os escravos podem salvar a si mesmos.
Alguns
organizadores dessas campanhas temem que o tempo dos corações abertos, onde
brotam margaridas de solidariedade, pode acabar em algumas semanas, quando
a comida escassear e a fome se estabelecer, quando o medo de o dinheiro acabar,
para aqueles que ainda têm dinheiro mas não sabem por quanto tempo, empedre
veias e artérias, quando o número de casos estiver tão fora do controle que o
sistema de saúde implodir. É lá, neste lugar ao qual possivelmente ainda
chegaremos, que vamos definir quem de fato somos — ou quem queremos ser. Então
saberemos. Não me parece que, desta vez, as pessoas aceitarão morrer como
gado. Em especial, as mesmas pessoas de sempre.
O
capitalismo após a pandemia do coronavírus
A
consciência da própria mortalidade costuma ter um efeito muito poderoso sobre
as subjetividades. Filósofos têm disputado a interpretação do que será ou pode
ser o mundo do pós-coronavírus. O esloveno Slavjoj Zizek acredita no
poder subversivo do vírus, que pode ter dado um golpe mortal no capitalismo:
“Talvez outro vírus muito mais benéfico também se espalhe e, se tivermos sorte,
irá nos infectar: o vírus do pensar em uma sociedade alternativa, uma sociedade
para além dos Estados-nação, uma sociedade que se atualiza nas formas de
solidariedade e cooperação global”.
O
sul-coreano Byung-Chul Han, que dá aulas na Universidade de Artes de
Berlim, acredita que Zizek está errado. “Após a pandemia, o capitalismo
continuará com ainda mais pujança. E os turistas continuarão a pisotear o
planeta”, afirma. “A comoção é um momento propício que permite estabelecer
um novo sistema de Governo. Também a instauração do neoliberalismo veio
precedida frequentemente de crises que causaram comoções. É o que aconteceu na
Coreia e na Grécia. Espero que após a comoção causada por esse vírus não
chegue à Europa um regime policial digital como
o chinês. Se isso ocorrer, como teme Giorgio Agamben, o estado de exceção
passaria a ser a situação normal. O vírus, então, teria conseguido o que nem
mesmo o terrorismo islâmico conseguiu totalmente”.
Mas também
ele se aproxima da ideia de uma outra sociedade possível no pós-guerra
pandêmica:
“O vírus não vencerá o capitalismo. A revolução
viral não chegará a ocorrer. Nenhum vírus é capaz de fazer a revolução. O vírus
nos isola e individualiza. Não gera nenhum sentimento coletivo forte. De alguma
maneira, cada um se preocupa somente por sua própria sobrevivência. A
solidariedade que consiste em guardar distâncias mútuas não é uma solidariedade
que permite sonhar com uma sociedade diferente, mais pacífica, mais justa. Não
podemos deixar a revolução nas mãos do vírus. Precisamos acreditar que após
o vírus virá uma revolução humana. Somos NÓS, PESSOAS dotadas de RAZÃO,
que precisamos repensar e restringir radicalmente o capitalismo destrutivo,
e nossa ilimitada e destrutiva mobilidade, para nos salvar, para salvar o clima
e nosso belo planeta”.
Penso que a
beleza que ainda resta no mundo é justamente que nada está dado enquanto ainda
estivermos vivos. O vírus, que arrancou todos do lugar, independentemente do
polo político, está aí para nos lembrar disso. A beleza é que, de repente,
um vírus devolveu aos humanos a capacidade de imaginar um futuro onde desejam
viver.
Se a
pandemia passar e ainda estivermos vivos, será no momento de recompor as humanidades
que poderemos criar uma sociedade nova. Uma sociedade capaz de entender que
o dogma do crescimento nos trouxe até este
momento, uma sociedade preparada para compreender que qualquer futuro
depende de parar de esgotar o que chamamos de recursos naturais — e que os
indígenas chamam de mãe, pai, irmão.
O futuro
está em disputa. No amanhã, demorando ou não a chegar, saberemos se a
parte minoritária, mas dominante, da humanidade seguirá sendo o vírus hediondo
e suicida, capaz de exterminar a própria espécie ao destruir o planeta-corpo
que a hospeda. Ou se barraremos essa força de destruição ao nos inventarmos de
outro jeito, como uma sociedade consciente de que divide o mundo com outras
sociedades. Saberemos, após tantas especulações, se o que vivemos é Gênesis
ou Apocalipse, na interpretação do senso comum. Ou nada tão grandiloquente,
mas imensamente decepcionante: a reedição de nossa invencível capacidade de
adaptação ao pior, com a imediata adesão aos discursos salvacionistas que
já nos escravizaram tantas vezes.
A pandemia
de coronavírus revelou que somos capazes de fazer mudanças radicais em tempo
recorde. A aproximação social com isolamento físico pode nos ensinar
que dependemos uns dos outros. E por isso precisamos nos unir em torno de um
comum global que proteja a única casa que todos temos. O vírus,
também um habitante deste planeta, nos lembrou de algo que tínhamos esquecido:
os outros existem. Às vezes, eles são chamados novo coronavírus. Ou SARS-CoV-2.
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