Um matrimônio problemático!
Apoio
a Bolsonaro já pesa sobre reputação de evangélicos, diz teólogo
Matheus Leitão
Pastor Ed René Kivitz critica postura do
presidente de se opor
à ciência durante a pandemia:
“Vida humana não pode entrar em conta de custo-benefício”
ED RENÉ KIVITZ Pastor da Igreja Batista de Água Branca |
O teólogo e
pastor da Igreja Batista de Água Branca (Ibab), em São Paulo, Ed René
Kivitz, um dos mais populares religiosos do país, acredita que a associação da fé cristã protestante com o governo Jair
Bolsonaro já está pesando sobre a reputação dos evangélicos.
Em
entrevista à coluna, o pastor, um dos poucos líderes evangélicos críticos da
atual gestão federal e da mistura de religião com política, sustenta que,
de acordo com os valores cristãos, a vida humana não pode entrar em conta de
custo-benefício, pois a morte que pode ser evitada é inaceitável.
A crítica é
direta à postura do presidente no atual contexto da pandemia do coronavírus,
quando o político reiteradamente resolveu contrapor-se à ciência e às medidas
de combate da doença, como o isolamento social, usando a economia do país como
subterfúgio.
Ed René
Kivitz destaca que uma pessoa morrer de velhice, ou com uma enfermidade que,
apesar dos cuidados da medicina, não foi possível evitar, é lamentável. Já um
óbito que poderia ser evitado com cuidados profiláticos e terapêuticos, e se
aceita, contabilizando essa morte como o ônus para outros ganhos, contraria
o que é o natural do evangelho: ou seja, o acolher, o cuidar do pobre e da
viúva, dos desassistidos, dos enfermos.
“Esse descuido para com a vida humana é
incompatível com os valores da fé cristã.
Então, uma igreja que dá suporte a essa
identidade política se compromete mesmo”,
afirma Ed René Kivitz, que faz cultos online
para mais de seis mil pessoas
durante o período de isolamento social.
Defensor
ferrenho do estado laico, o pastor tem dado palestras pelo país reafirmando o
direito dos cristãos de defender seus valores na esfera política, mas não de
impô-los à sociedade.
Na
entrevista, o líder religioso fala sobre os riscos que a igreja evangélica
brasileira corre ao se associar ao governo Bolsonaro (os evangélicos são
hoje uma das suas principais bases de apoio político) no atual momento de crise
sanitária, quando o vírus se alastrar pelas camadas mais pobres.
Segundo
ele, há um risco duplo. O primeiro é que a comunidade religiosa (os fiéis), em
um determinado momento, pode se voltar contra o governo, que a instruiu de
maneira inadequada. E o segundo, que mais preocupa o pastor e teólogo, é um
conflito de fé como o que ocorreu na Europa pós-guerra, quando as pessoas se
perguntavam onde estava Deus enquanto ocorria o holocausto.
“Porque essas pessoas, elas não estão
ignorantes quanto aos riscos do vírus, mas elas estão acreditando que a
bênção de Deus sobre elas é suficiente para poupá-las dessa fatalidade,
enfim, poupá-las da morte. E aí as pessoas não vão apenas questionar o governo,
mas elas vão questionar a própria benção de Deus”, afirma.
Na
entrevista, Ed René Kivitz afirma ainda que, no caso do movimento evangélico, o
principal dano à imagem tem a ver com reforçar a ideia de que religião e
ciência são coisas antagônicas, que não conversam e que se hostilizam
mutuamente. “Essa é uma visão muito equivocada da relação religião e
ciência, mas fica reforçada num momento como esse”.
Jair Bolsonaro é batizado no rio Jordão (Israel) pelo pastor e político Everaldo Dias Pereira (PSC), em 12 de maio de 2016 Mas se declara católico (!!!) e comunga até no Santuário de Aparecida (SP) |
Leia abaixo
a primeira parte da entrevista do pastor e teólogo à coluna:
Blog
– Os evangélicos hoje são uma das principais bases do presidente, que se apoia
contra a ciência, contra aquilo que está sendo feito no mundo inteiro em
relação à pandemia. O desgaste político de se aliar não pode pesar às próprias
lideranças evangélicas e à igreja em algum momento?
Ed
René Kivitz – É, eu acho que vai pesar sim. Na verdade, acho que já
está pesando no sentido de comprometer a reputação desse contingente
evangélico. À medida em que o governo vai sofrendo avaliação negativa, toda
a sua base de apoio sofre também. E no caso do movimento evangélico, o
principal dano tem a ver com reforçar a ideia de que religião e ciência são
coisas antagônicas, que não conversam e que se hostilizam mutuamente. Essa é
uma visão muito equivocada da relação religião e ciência, mas fica reforçada
num momento como esse. Reforçar a ideia de que religião é para pessoas
ignorantes, que desprezam a importância da educação e do esclarecimento. Já
o outro dano eu acho que também é no sentido valorativo, se posso chamar assim,
que é associar o evangelho a um governo de índole tão contrária ao respeito
à vida humana. Não apenas na questão já sabida das declarações do
presidente Bolsonaro:
* quanto à tortura,
* quanto à violência,
* toda a ênfase de armamento,
* de uma ação belicosa,
* uma cultura bélica e violenta, mas ultimamente também,
* o desprezo à vida humana, submetendo a vida humana a
esse cálculo pragmático de “pessoas têm que morrer, paciência, temos que
salvar o país e a economia do país… e se as pessoas morrerem, paciência”.
Quer dizer, esse descuido para com a vida humana é incompatível com os
valores da fé cristã. Então, uma igreja que dá suporte a essa identidade
política se compromete mesmo.
Blog
– De que forma, na sua opinião?
Ed
René Kivitz – Por exemplo, a vida humana, a morte que pode ser
evitada é inaceitável. A gente lamenta a morte quando não foi possível evitar.
A gente chama isso de fatalidade. A gente ofereceu todo cuidado disponível, mas
não foi possível. Então isso é uma fatalidade e é inerente à finitude humana.
Sabe, uma pessoa morrer de velhice, ou com uma enfermidade que, apesar dos
cuidados da medicina, não foi possível evitar a morte, a gente lamenta. Mas uma
morte que poderia ser evitada com cuidados profiláticos e com cuidados
terapêuticos, e a gente aceita e contabiliza essa morte que poderia ser evitada
como o ônus para outros ganhos numa a relação de custo-benefício… a vida
humana não pode entrar em conta de custo-benefício.
Jair Bolsonaro (à direita), tendo ao seu lado os pastores Silas Malafaia, Magno Malta (de óculos), na Marcha para Jesus - São Paulo (SP) - maio de 2018 |
Blog
– É possível que a doença avance, agora, entre as camadas mais pobres, onde
estão uma base grande dos evangélicos. Isso não pode revelar ainda mais a
contradição desse apoio da igreja ao Bolsonaro?
Ed
René Kivitz – Acho que tem um risco duplo aí. O primeiro é
que a comunidade religiosa, em um determinado momento, vai se voltar contra
o governo, que a instruiu de maneira inadequada. Mas o risco maior que
eu vejo é o abalo e a crise de fé que isso pode gerar. Porque essas
pessoas, elas não estão ignorantes quanto aos riscos do vírus, mas elas estão
acreditando que a bênção de Deus sobre elas é suficiente para poupá-las dessa
fatalidade, enfim, poupá-las da morte. E aí as pessoas não vão apenas
questionar o governo, mas elas vão questionar a própria benção de Deus, o poder
de Deus, a existência de Deus. Eu temo que isso gere uma crise de fé muito
grande, muito significativa.
Blog
– Qual a dimensão desta crise de fé?
Ed
René Kivitz – Eu acho que pode, pode gerar uma crise de fé, como a
que aconteceu na Europa pós-guerra: “onde estava Deus enquanto estava
acontecendo o holocausto? Onde estava Deus enquanto nossos filhos morriam e os
nossos corpos eram empilhados?”. Essa pergunta a respeito do papel e do
lugar de Deus no mundo ela vai começar a ser feita com muito mais
intensidade, eu acho.
Blog
– Durante, mas também no pós-pandemia?
Ed
René Kivitz – Eu acho que sim. O que eu quero dizer é que eu não
consigo avaliar qual é o rebote do apoio da comunidade evangélica para com o
governo, mas eu temo a ressaca dessa experiência na experiência de fé. É
o que me ocupa mais, é o que me preocupa mais.
Blog
– Qual será mais fácil de medir?
Ed
René Kivitz – Não sei porque a medida do apoio evangélico ao governo
vai ser a urna. Tem um critério muito objetivo, mas as crises de fé, e as
doenças da alma, e as doenças espirituais ou as sequelas espirituais de uma
crise de fé é difícil de você mensurar. Acho que a questão, o desenlace da
relação com o governo talvez seja mais fácil de mensurar.
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