A religião diante da pandemia
O
momento atual na visão de líderes religiosos
Giovanna Wolf e Maria Fernanda
Rodrigues
Uma das mensagens comuns é a necessidade de
cuidar e si e dos outros; entrevistados também ressaltam a oportunidade para promover
mudanças
Como os
líderes religiosos estão avaliando esse momento de pandemia? Ouvimos sete
deles, que falam que essa época ensina a valorizar o que há de mais
imprescindível: o amor e a solidariedade. Também ressaltam que este período é
uma oportunidade de refletir e promover mudanças. Confira, abaixo, o que eles
disseram:
Dom Odilo Pedro Scherer |
DOM ODILO PEDRO SCHERER
CARDEAL-ARCEBISPO
DE SÃO PAULO
«A
pandemia nos dá a ocasião de revermos prioridades»
“As
reflexões feitas em nome da Igreja Católica são numerosas e aquelas do Papa
Francisco são as mais expressivas e representativas. Ele fala pela Igreja
Católica como um todo.
Pessoalmente,
vivo como a maioria das pessoas a apreensão diante dos riscos de contágio com o
vírus e me preocupo com a saúde de todo o povo. Faço votos e rezo para que os
pesquisadores e cientistas encontrem o quanto antes uma vacina para a prevenção
contra o vírus e uma medicação eficaz para combater os efeitos dessa virose.
Enquanto isso não acontece, uno minha voz à das autoridades sanitárias que
recomendam medidas e comportamentos que ajudem a evitar o contágio.
Em relação
às ações da própria Igreja, nós suspendemos temporariamente as celebrações da
liturgia católica e outros encontros e reuniões das nossas comunidades e
paróquias, para evitar aglomerações e o risco do contágio. Mantemos uma rede
de organizações de ajuda solidária às pessoas doentes ou necessitadas de
alimento e outras ajudas, como aos pobres, de maneira geral.
Nossa
preocupação também é alimentar a fé religiosa das pessoas, pois ela tem
grande importância nessas horas difíceis. Quando experimentamos e reconhecemos
nosso limite, nós damos espaço para que Deus possa agir em nós e através de
nós. A fé religiosa não é mera resignação diante dos fatos e situações,
mas uma luz que dá um sentido mais profundo às realidades que vivemos.
A pandemia
do coronavírus nos traz muitos questionamentos. Antes de tudo, devemos
reconhecer que, apesar de todos os recursos de segurança pessoal e coletiva que
possamos ter (dinheiro, poder, boa organização econômica e social), continuamos
frágeis e expostos a riscos imprevisíveis e, aparentemente,
insignificantes, como no caso de um vírus. Isso nos deve levar a ser
humildes e a renunciar a qualquer delírio de onipotência ou superioridade.
Penso que a
pandemia nos dá a ocasião de revermos valores e prioridades na vida e nossas
atitudes diante desses valores e prioridades:
* A vida e a
saúde,
* a família,
* cada
pessoa e a companhia das pessoas,
* a
sensibilidade diante do sofrimento alheio e a solidariedade,
* o afeto,
* o amor
gratuito e a ternura,
* a
natureza, nossa “casa comum”,
* a arte e a
cultura, como construção de nosso convívio…
Todos esses
valores ajudam a expressar o melhor que trazemos dentro de nós: nossa
humanidade.
Por outro
lado, a pandemia nos obriga a rever os modos de vida muito acelerados que
levamos, arrastados por uma economia que visa ao acúmulo mais que à
satisfação das necessidades básicas. A pandemia oferece uma boa ocasião para
refletirmos juntos sobre questões cruciais que movem imensas somas de
dinheiro e, ao mesmo tempo, causam imensos sofrimentos pelo mundo:
* as
guerras,
* as
ideologias que semeiam o ódio e a divisão,
* o consumo
desenfreado e
* o acúmulo
de riquezas, que colocam em risco até mesmo a sustentabilidade da vida no nosso
planeta.
Existe algo
de muito errado em tudo isso!
Em vez de
investir em armamentos, bens supérfluos e consumo de vaidades, por que não
investir mais em saúde, educação, moradia, saneamento básico e bem-estar
essencial para todos? Por que não sentar em torno de uma mesa e tomar
decisões eficazes para erradicar doenças endêmicas, miséria e fome, que ainda
existem e matam milhões de pessoas no mundo a cada ano? Por que duvidar em
fazer isso, quando existem os recursos para fazê-lo?
Como vamos
sair dessa pandemia?
Antes de
tudo, espero sairmos vivos e com muitas lições aprendidas. E que essas
lições não sejam logo esquecidas. Sinceramente, espero sairmos mais solidários
e atenciosos uns com os outros; mais humildes e gratos por tantos bens da
natureza e da cultura, que temos à nossa disposição. E que também saiamos
com a fé religiosa reencontrada, ou renovada.”
Rab. Michel Schlesinger |
MICHEL SCHLESINGER
RABINO
DA CONGREGAÇÃO ISRAELITA PAULISTA E REPRESENTANTE DA CONFEDERAÇÃO ISRAELITA DO
BRASIL PARA O DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO
«Único
caminho para superar essa crise é darmos as mãos uns aos outros»
“Vivemos um
momento de inflexão, muito especial, repleto de desafios e com oportunidades
proporcionais a esses desafios. Minha esperança como religioso é que
possamos identificar as oportunidades que existem em meio a esses desafios e
nos fortalecermos como indivíduo e como sociedade. Se existe uma coisa que
o coronavírus ensinou de forma inequívoca é que estamos todos no mesmo barco. O
coronavírus não escolheu nacionalidade, idioma, religião, cor de pele,
preferência sexual. O coronavírus ameaça a todos da mesma forma. Isso
significa que a solução também deverá ser coletiva e a partir da cooperação
entre todos. Não existe outro caminho para superar essa crise que não seja
darmos as mãos uns aos outros e fazermos juntos essa travessia.
Falo de
travessia porque estamos justamente na festa da nossa travessia do Mar
Vermelho, o Pessach, quando os judeus lembram o momento de terem saído
do Egito e da escravidão, atravessado o Mar Vermelho e conquistado a liberdade.
Penso que essa liberdade ainda não é absoluta. A liberdade absoluta só vai
acontecer quando ela for para todo mundo, universal, para todos os homens e
mulheres.
Os que se
sentem mais livres estão equivocados. Eles precisam olhar para trás e ver que a
travessia ainda não foi realizada por todos e estender a mão para que todos
possam fazer essa travessia. E o coronavírus acentua esse sentimento de que
estamos todos no mesmo barco, de que somos afetados da mesma forma e que,
portanto, temos de buscar coletivamente uma solução.
Se apenas
esse aprendizado for conquistado, já vejo uma enorme evolução. Quando olho por
uma perspectiva histórica mais recente, depois da Segunda Guerra Mundial,
quando seis milhões de judeus e tantos outros milhões de não judeus foram
assassinados, o mundo parecia ter aprendido alguma lição. Foi criada a Organização
das Nações Unidas, foi feita a Declaração Universal dos Direitos do
Homem.
Havia um
sentimento de que nossos destinos estão interligados e que nós temos de
cooperar e trabalhar em conjunto. Nos últimos anos, eu identifico um
retrocesso nesse processo. Voltou a existir no mundo um discurso
ultranacionalista e xenófobo, e o coronavírus é a oportunidade de
interrompermos esse processo e voltarmos a entender o quanto somos parte da
mesma raça, que é a raça humana, antes de qualquer coisa – antes de
religião, de nacionalidade –, e como humanos temos de defender uns aos outros,
respeitar uns aos outros, e temos de ver na nossa diversidade a oportunidade de
aprendizado e crescimento.”
Pr. Marcos Botelho |
PASTOR MARCOS BOTELHO
IGREJA
PRESBITERIANA COMUNIDADE DA VILA
«Aproveite
o momento para olhar para onde estamos caminhando»
“A pandemia
é um tempo para a humanidade dar dois passos para trás e repensar atitudes
em relação ao consumismo desenfreado, à religião e à família. É uma oportunidade
para olharmos para a sociedade doentia em que vivemos e para onde
estamos caminhando. Também para os pais e as mães darem mais atenção aos filhos
e para os cônjuges estarem mais juntos.
Do ponto de
vista bíblico, Deus não perde o controle de nada. Mas isso não quer dizer que
Ele mandou fazer a pandemia. É uma consequência do que a gente está fazendo
na natureza nos últimos anos. As coisas erradas vão ter consequências, o
que a gente planta, a gente colhe. Porém, Deus ensinou os filhos a serem corajosos
e a enfrentarem as situações.
É uma
chance para agirmos de forma diferente, mas isso não significa que realmente as
pessoas vão mudar. Muitas vezes, os seres humanos não aprendem: estamos
vendo por aí lutas por máscaras e respiradores, que evidenciam o egoísmo. Mas há
sempre a opção também de agir pensando no próximo, com amor e solidariedade.
É um
momento em que Deus nos colocou para pensar obrigatoriamente. É hora de mudar. O que você quer da sua vida? É um xeque-mate.
Não se
isole. Fique em casa, mas não isole a alma. Aproveite o momento para
olhar para sua casa, para a família, para a sociedade e para onde estamos
encaminhando.”
Ali Zoghbi |
ALI ZOGHBI
VICE-PRESIDENTE
DA FEDERAÇÃO DAS ASSOCIAÇÕES MUÇULMANAS DO BRASIL
«Essa
doença uniformizou a diferença de classe:
todos estamos sofrendo»
“Neste
momento devemos agir para preservar a vida, porque ela é essencial e
prioritária. O Islã é uma religião que acredita e aceita a ciência, e sempre a
teve como um suporte e um sinal da misericórdia divina.
A visão do
Islã é de que Deus é onisciente: nenhuma folha cai de uma árvore sem a ciência
do Criador. Acreditamos no livre-arbítrio, e também que a sociedade cria suas
próprias armadilhas no decorrer da história. Como muçulmano, entendo que nós
somos responsáveis por esse tipo de epidemia que está nos assolando, por
conta da maneira como estamos lidando com o alimento, com o meio ambiente, com
uma série de fatores da nossa trajetória.
Entendemos
essa pandemia com súplicas de que esse momento, tão difícil e delicado, que tem
provocado mortes de seres humanos, possa ser um prenúncio de uma sociedade
mais adequada, mais harmoniosa e mais justa no futuro. A pandemia vem no
sentido de demonstrar que os caminhos que estão sendo adotados estão
provocando sofrimento e morte e, portanto, precisam ser revistos.
Em tudo na
história, quando estamos no meio do processo, não conseguimos fazer uma
avaliação precisa, nem do que está acontecendo nem do que está por vir. O tempo
vai mostrar para nós com mais clareza quais serão os resultados. Imagino que
nada será como antes. Teremos reflexões muito profundas em diversos setores,
desde o sistema econômico até o de relacionamento humano. Essa doença
praticamente uniformizou a diferença de classe: todos somos seres humanos que
estão sofrendo com a situação.
A pandemia
demonstrou o quanto somos insignificantes, é uma lição de humildade. Existe
uma arrogância do ser humano em entender que talvez ele poderia suplantar as
coisas da natureza e suplantar um pequeno vírus como esse. Mas essa doença
deixou os seres humanos de joelhos.”
Monge Sato |
MONGE SATO
REGENTE
DO TEMPLO SHIN-BUDISTA DE BRASÍLIA
«Não
devemos voltar à realidade da mesma forma que saímos»
“A crise
é um perigo, mas também uma oportunidade. Se mal tratada, pode nos levar ao
buraco. Porém, pode ser um ensejo para sermos melhores. É um momento de
aprendizagem, de pensar em quem somos nós como humanidade:
* Somos a
humanidade que cria desigualdades e que trata a natureza como inimiga?
* Será que é
esse tipo de vida que queremos?
Não devemos
voltar à realidade normal, depois da pandemia, da mesma forma que saímos. É o
momento de pensar o que é uma vida humanitária normal. É competição ou
solidariedade? Se nós podemos ser solidários nesta crise, por que não
podemos ser solidários em tempos normais?
Essa crise
é muito especial. Normalmente, em outras crises, as pessoas que tinham posses
se sentiam defendidas. Nesta pandemia ninguém está imune. É hora de
rever o privilégio. A terra pertence a todos, mas no sistema que estamos
vivendo algumas camadas têm privilégios. Será que todo esse avanço
científico e tecnológico está beneficiando todos ou apenas os poderosos?
Será
preciso muita serenidade e calma. As pessoas estão ficando irritadas e
ansiosas, mas é um momento importante de reflexão, para refletirmos quem nós
somos. Essa irritação é porque nós não estamos
acostumados a entrar fundo em nós próprios.
É um tempo
de autoconhecimento, de prestar atenção não só em si, mas nas relações com as
pessoas. Queremos sempre mais, e talvez possa ser um aviso de que o planeta
tem seus limites. O grande avanço científico e tecnológico nos promete
abundância material, mas não o amor, a solidariedade e a equidade.
De repente
percebemos a importância do ar. As pessoas ficam sem ar com essa doença, elas
morrem porque falta ar. Colocamo-nos todos iguais perante ao ar, que é um
bem-comum e universal. E a espiritualidade é tão valiosa quanto o ar.”
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