«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

sábado, 30 de abril de 2016

6º Domingo da Páscoa – Ano C – Homilia

Evangelho: João 14,23-29

Naquele tempo, disse Jesus a seus discípulos:
23 «Se alguém me ama, guardará a minha palavra, e o meu Pai o amará, e nós viremos e faremos nele a nossa morada.
24 Quem não me ama, não guarda a minha palavra. E a palavra que escutais não é minha, mas do Pai que me enviou.
25 Isso é o que vos disse enquanto estava convosco.
26 Mas o Defensor, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, ele vos ensinará tudo e vos recordará tudo o que eu vos tenho dito.
27 Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou; mas não a dou como o mundo. Não se perturbe nem se intimide o vosso coração.
28 Ouvistes que eu vos disse: “Vou, mas voltarei a vós”. Se me amásseis, ficaríeis alegres porque vou para o Pai, pois o Pai é maior do que eu.
29 Disse-vos isto, agora, antes que aconteça, para que, quando acontecer, vós acrediteis.»

JOSÉ ANTONIO PAGOLA

A PAZ NA IGREJA

No evangelho de João podemos ler um conjunto de discursos em que Jesus se vai despedindo dos seus discípulos. Os comentaristas  o chamam de «O discurso de despedida». Nele se respira uma atmosfera muito especial: os discípulos têm medo de ficar sem o seu Mestre; Jesus, por seu lado, insiste em lhes dizer, que apesar da sua partida, jamais sentirão a sua ausência.

Repete-lhes, até cinco vezes, que poderão contar com «o Espírito Santo». Ele os defenderá, pois os manterá fiéis à sua mensagem e ao seu projeto. Por isso, chama-lhe «Espírito da verdade». Em um momento determinado, Jesus explica-lhes melhor o que terão de fazer: «O Defensor, o Espírito Santo… ele vos ensinará tudo e vos recordará tudo o que eu vos tenho dito». Este Espírito será a memória viva de Jesus.

O horizonte que oferece aos seus discípulos é grandioso. De Jesus nascerá um grande movimento espiritual de discípulos e discípulas que o seguirão defendidos pelo Espírito Santo. Manter-se-ão em sua verdade, pois esse Espírito ensinar-lhes-á tudo o que Jesus lhes foi comunicando pelos caminhos da Galileia. Ele os defenderá no futuro da perturbação e da covardia.

Jesus deseja que compreendam bem o que significará para eles o Espírito da verdade e Defensor de sua comunidade: « Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou». Não só lhes deseja a paz. Oferece-lhes a sua paz. Se viverem guiados pelo Espírito, recordando e guardando as suas palavras, conhecerão a paz.

Não é uma paz qualquer. É a sua paz. Por isso lhes diz: «não a dou como o mundo». A paz de Jesus não se constrói com estratégias inspiradas na mentira ou na injustiça, mas atuando com o Espírito da verdade. Os discípulos hão de se reafirmar nele: «Não se perturbe nem se intimide o vosso coração».

Nestes tempos difíceis de desprestígio e perturbação que estamos sofrendo na Igreja, seria um grave erro pretender, agora, defender a nossa credibilidade e autoridade moral atuando sem o Espírito da verdade prometido por Jesus. O medo continuará penetrando no cristianismo se procuramos assentar a nossa segurança e a nossa paz distanciando-nos do caminho traçado por Ele.

Quando na Igreja se perde a paz, não é possível recuperá-la de qualquer maneira nem serve qualquer estratégia. Com o coração repleto de ressentimento e cegueira não é possível introduzir a paz de Jesus. É necessário converter-nos humildemente à sua verdade, mobilizar todas as nossas forças para deixar caminhos errados, e deixar-nos guiar pelo Espírito que animou a vida inteira de Jesus.

Traduzido do espanhol por Telmo José Amaral de Figueiredo.

Fonte: MUSICALITURGICA.COM – Homilías de José A. Pagola – Segunda-feira, 25 de abril de 2016 – 17h00 – Internet: clique aqui.

sexta-feira, 29 de abril de 2016

O clima não espera, mas falta-nos urgência

Washington Novaes
Jornalista

Alertas não faltam!
Faltam programas governamentais para levar a
população a fazer sua parte
INUNDAÇÕES NA CHINA E EM VÁRIAS PARTES DO MUNDO
O clima está maluco! Como afirmam as pessoas. De fato, todo o planeta já está sentindo as mudanças climáticas!

Há poucos dias a ONU divulgou que 175 países já haviam ratificado o Acordo de Paris, adotado em dezembro de 2015. É o maior apoio já registrado a um pacto das Nações Unidas. Mas algumas nações – como Arábia Saudita e Nigéria, grandes produtoras de petróleo – não assinaram, embora seja forte a pressão no mundo todo, com o aumento da temperatura planetária e a intensificação de desastres provocados por mudanças do clima, consequência das emissões de poluentes. O objetivo central do acordo são políticas e ações para evitar que a temperatura da Terra chegue a 2 graus Celsius além do que estava no início da revolução industrial – se possível, que não ultrapasse 1,5 grau.

Já há algum tempo essas mudanças do clima passaram a fazer parte das nossas preocupações cotidianas, tantos são os problema noticiados – inundações, desabamentos, perdas de safras agrícolas, enchentes em áreas urbanas, etc. Abril de 2016 tem registrado as maiores temperaturas – na casa dos 35 graus Celsius. O recorde anterior era de 34,6 graus Celsius em abril de 1998. Mas agora se prevê que os termômetros poderão subir ainda mais.

Países responsáveis por 55% das emissões preveem, entre outros dramas, que com mais 2 graus na temperatura certamente ilhas poderão ser varridas do mapa, segundo o conceituado consultor da revista New Scientist Fred Pearce (fevereiro e março 2016). E Edward O. Wilson, autor de estudos respeitados, agora no livro Half-Earth (Liveright) afirma que mais ocupação humana pode levar a extinções em massa e danos irreparáveis à biosfera.

Segundo alguns cientistas, já seria impossível ficarmos abaixo de 1,5 grau. Mas há outras visões. Joeri Rogelj, do Instituto Internacional de Análises Aplicadas, na Áustria, por exemplo, é dos que pensam ser possível não ultrapassar 1,5 grau, retirando desde já da atmosfera parte dos poluentes que os seres humano ali colocaram. Também seria indispensável reduzir a zero até 2050 as emissões, limitando-as a 800 gigatoneladas cumulativas entre hoje e a metade do século. E manter as emissões em zero depois de 2050 seria suficiente para conter a temperatura abaixo de 2 graus. Para baixar até 1,5 grau seria preciso remover da atmosfera 500 gigatoneladas.

Há quem proponha até, para controlar emissões, desde plantar maciçamente na região do Saara até criar formatos de agricultura nos oceanos. Será viável, será suficiente? – perguntam outros especialistas, lembrando que desde o início da revolução industrial aumentamos a concentração de poluentes na atmosfera, de 280 partes por milhão (ppm) para 400. Em consequência, no ano passado as estações meteorológicas registram um aumento da temperatura global em 1 grau Celsius acima da que vigorava nos tempos pré-industriais. O Painel do Clima da ONU (IPCC), que trabalha com 430 partes por milhão – que correspondem a 1,5 grau –, acha que com programas eficazes poderíamos chegar ao fim deste século com esse nível. Argumenta que as geradoras de energia, juntamente com fontes industriais, já baixaram suas emissões para os níveis de 2013, embora a economia global tenha crescido 6%.

Cientistas que alimentam esperanças, como os do Tyndall Centre, da Universidade East Anglia, do Reino Unido, lembram algumas causas. Primeiro, a China está reduzindo seu consumo de carvão, por causa da poluição urbana; e a contribuição do carvão para geração de energia nos Estados Unidos encolheu de 53% para 35% em cinco anos. Segunda causa: os investimentos em energias renováveis hoje são maiores, globalmente, que os investimentos em usinas movidas a combustíveis fósseis – e podem crescer mais. Em terceiro lugar, a eficiência energética continua a aumentar na maioria dos lugares. A universidade afirma que as emissões podem ainda aumentar, mas estão próximas do pico insuperável, com as políticas já vigentes na China, nos Estados Unidos e na União Europeia.

Uma das dificuldades maiores para chegar a níveis mais altos está nos sistemas de transportes. A solução mais provável, diz a New Scientist, estaria em veículos elétricos, que exigirão baterias mais eficientes. Muitos cientistas ridicularizam, entretanto, projetos de armazenar em certos locais as emissões retiradas da atmosfera. Um programa para armazenar 500 gigatoneladas de emissões custaria 270 trilhões de dólares e consumiria um quarto do suprimento mundial de energia.
VEÍCULOS ELÉTRICOS COM BATERIAS CADA VEZ MAIS DURÁVEIS SÃO UMA ALTERNATIVA

De qualquer forma, as soluções terão de ser urgentes. Na revista Eco 21, Robert Glasser, que representa a ONU em negociações sobre clima, afirmou que no ano passado 92% dos 98,6 milhões de pessoas afetadas por 346 desastres “enfrentaram fenômenos como secas e enchentes muito fortes no clima de todo o planeta”. Uma seca de três anos e o desmatamento maciço em florestas na Nicarágua nas últimas décadas secaram a maioria das fontes hídricas superficiais (Eco-Finanças, 11/4). Os padrões de circulação das águas no Sul do Oceano Atlântico estão sofrendo transformações que poderão ter consequências muito fortes no clima em todo o planeta, noticiou este jornal no dia 17 último, relatando pesquisas de um grupo de cientistas de 17 países.

Chega-se ao Brasil. O Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) alerta que o País precisa reduzir o desmatamento em 87% até 2025, em relação a 2014, para cumprir a sua meta de corte de emissões que causam o efeito estufa. Em 2030 será necessário zerar as emissões por desmatamento e reduzi-las em outros setores para atingir a meta proposta internacionalmente. Nas projeções para 2025 o País emitirá 1,51 bilhão de toneladas de CO2 (9,6% mais do que as metas previstas internacionalmente (1,38 bilhão).
Alertas não faltam. Faltam recursos e ações governamentais. E faltam programas para levar a população a cumprir a sua parte.

Fonte: O Estado de S. Paulo – Espaço aberto – sexta-feira, 29 de abril de 2016 – Pág. A2 – Internet: clique aqui.

Por que vários Estados do Brasil estão "quebrados"?

Ao menos três dos Estados mais ricos do Brasil
estão no vermelho

José Roberto Castro e Lilian Venturini

É uma matéria de meses atrás, mas que retrata bem aquilo
que ainda hoje está acontecendo
MANIFESTAÇÕES EM FRENTE À SECRETARIA DE ESTADO DA FAZENDA
NO RIO DE JANEIRO
- SERVIDORES APOSENTADOS PROTESTAM PELO NÃO PAGAMENTO DAS PENSÕES

Pelo menos três dos cinco Estados mais ricos do Brasil sofrem com graves problemas financeiros. Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Minas Gerais têm dificuldades para cumprir seus compromissos mais básicos, como manutenção de hospitais e pagamento de servidores [RJ não paga nem pensão dos servidores públicos aposentados!].

No Rio, o governo repassou hospitais à administração municipal por falta de recursos. Em Minas, o governo atrasou os salários de dezembro e não sabe de onde tirar recursos para pagar os próximos meses. A situação do Rio Grande do Sul é a que se arrasta há mais tempo, com funcionários recebendo os vencimentos em parcela e o governo atrasando o pagamento da dívida com a União.

As causas do rombo

Em todos os casos, há causas estruturais e conjunturais para os problemas nas contas. O conjuntural é a queda de arrecadação de impostos por conta da crise econômica. Juntos, Minas e Rio, por exemplo, arrecadaram cerca de R$ 10 bilhões a menos do que o previsto no início de 2015. No caso fluminense, há ainda os problemas pela queda na arrecadação de royalties do petróleo – dinheiro pago pelas petroleiras aos estados e municípios produtores.

Os problemas estruturais são os enfrentados por praticamente todos os Estados brasileiros. Gastando mais do que arrecadavam, aumentando o custo da máquina pública, eles foram se endividando ao longo dos anos. A União assumiu parte dessa dívida em 1998 e hoje o pagamento de juros consome boa parte das receitas e limita o poder de investimento.

No fim de dezembro [2015], endividados, governadores foram à Brasília para pedir, entre outras coisas, o aval do governo federal para voltar a tomar empréstimos no exterior. “Esses empréstimos só complicaram o quadro. O governador toma o empréstimo, resolve a situação daquele governo e empurra o problema para o governo seguinte”, analisa o presidente da Federação Brasileira de Associações de Fiscais de Tributos Estaduais (Febrafite), Roberto Kupski, que chama a taxa cobrada pelo governo federal pelos empréstimos de “agiotagem”.

Nos últimos dias de 2015, depois de se encontrar com governadores, a presidente Dilma Rousseff publicou um decreto em que regulamenta a troca do indexador da dívida de Estados e municípios. Em vez de pagarem a inflação medida pelo IGPD-I mais uma taxa que variava entre 6 e 9%, Estados e municípios vão pagar a taxa Selic ou a inflação do IPCA mais 4%.

Pela maneira antiga os juros ficariam entre 16% e 19% em 2015. Na nova fórmula, a taxa fica em cerca de 14%. Segundo Kupski, a troca do indexador é um alívio que não resolve a situação. “Para pagarem isso os Estados teriam que ter crescimento de 4% acima da inflação. É como se, em vez de matar uma pessoa com cinco tiros, matasse só com três”.
FUNCIONÁRIOS PÚBLICOS DO RIO GRANDE DO SUL
PROTESTAM NAS GALERIAS DA ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO
DEVIDO ATRASO NO PAGAMENTO DOS SALÁRIOS

Rio Grande do Sul

O Rio Grande do Sul está quebrado. Foram décadas de déficit nas contas públicas e demora na busca de soluções. Agora o Estado não consegue mais honrar os empréstimos feitos com a União, repassar recursos aos municípios ou pagar seus servidores públicos em dia.

O governo de José Ivo Sartori (PMDB) cortou gastos, o que resultou na precarização de serviços públicos. Além disso, a Assembleia Legislativa Estadual aprovou o aumento do ICM-S, principal imposto estadual. Mesmo assim o orçamento do governo gaúcho não é sustentável. O Estado só fechou as contas no azul sete vezes nos últimos 43 anos. E em alguns desses anos o superávit só foi conseguido graças a receitas extraordinárias vindas de privatizações e venda de ações do Banrisul, por exemplo.

O Estado gasta ainda cerca de 75% de sua receita com funcionalismo público. A dívida pública é de cerca de R$ 61 bilhões. Só com a União, os débitos ultrapassam os R$ 50 bilhões, e o pagamento parcelado consome 13% da receita estadual todo mês.

Rio de Janeiro

Na antevéspera do Natal [de 2015], depois de a Justiça obrigar o Estado a repassar dinheiro à Saúde, o governador do Rio de Janeiro, Luiz Fernando Pezão (PMDB), decretou situação de emergência para agilizar ajuda federal. Hospitais estavam fechados e pessoas morreram na fila aguardando atendimento."Peço desculpas à população do Rio de Janeiro. Tenho esperança que amanhã já estaremos com a situação melhor", disse o governador no dia 23.

A prefeitura da capital assumiu a administração de hospitais que o governo não estava conseguindo financiar, o que significará uma economia de R$ 504 milhões anuais aos cofres do Estado.

O problema adicional do Rio de Janeiro é que a arrecadação é muito dependente da produção de petróleo. Com o setor enfrentando a crise da Petrobras e o preço do barril bem abaixo do que anos atrás, as verbas do Estado foram prejudicadas. Em 2015, o Rio arrecadou cerca de R$ 3,5 bilhões menos que o previsto.

Minas Gerais

O salário de dezembro dos servidores não foi pago. O governador Fernando Pimentel (PT) colocou a culpa na queda de arrecadação por conta da crise econômica. Segundo dados publicados pela Folha de S. Paulo, o Estado de Minas esperava arrecadar R$ 50,1 bilhões em 20154, mas só atingiu R$ 42,8 – um recuo de 14,57%.

"Tal situação se deve às dificuldades financeiras ora enfrentadas pelo Estado de Minas Gerais, que registrou, sobretudo em 2015, forte redução da arrecadação de ICMS", explicou o governo em nota.

Por enquanto, a data definida para o pagamento do salário dos mais de 428 mil servidores da ativa é 13 de janeiro. Não há, porém, a certeza de que os compromissos dos próximos meses serão honrados no dia marcado.
O ATENDIMENTO À SAÚDE É A ÁREA QUE MAIS SE RECENTE 
DA FALTA DE VERBAS E MÁ ADMINISTRAÇÃO DAS CONTAS PÚBLICAS

Contas também preocupam prefeituras

A realidade financeira de parte das cidades brasileiras também é preocupante, segundo pesquisa elaborada pela CNM (Confederação Nacional dos Municípios), entre setembro e novembro de 2015.

Das 4.080 cidades consultadas (ao todo são 5.568 municípios no país), 42,6% delas vão fechar as contas de 2015 no vermelho. A confederação atribui o resultado ao impacto da crise econômica, que reduziu a arrecadação financeira e o repasse de recursos ao longo do ano. Do universo de prefeituras avaliadas, 62,5% das administrações relatam dívidas com fornecedores e 13% estão devendo salários a servidores. O atraso chega a seis meses.

3.357
é o número de cidades onde, segundo os prefeitos, a saúde foi a área mais afetada pela crise econômica. Os impactos se traduziram na falta de remédios, fechamento de postos e redução de profissionais.

Para a CNM, uma das maneiras de aliviar a situação das contas municipais é a revisão do Pacto Federativo, principal reivindicação da confederação. O pacto é definido pela Constituição Federal e estabelece, entre outras coisas, como é feita a partilha dos recursos arrecadados com o pagamento de impostos e quais gastos cabem aos governos federal, estadual e municipal.

A CNM defende mudanças na divisão das receitas por entender que o modelo atual sobrecarrega as cidades. De acordo com a confederação, atualmente a União fica com cerca de 60% de tudo o que é arrecadado no país e apenas 16% são repassados às prefeituras.

Fonte: Nexo Jornal – 07/01/2016 – 12h27 – Internet: clique aqui; e 29/12/2015 – 00h19 – Internet: clique aqui.

quinta-feira, 28 de abril de 2016

O Evangelho da nova fraternidade

Entrevista com Christoph Theobald

Lorenzo Fazzini
Avvenire
27-04-2016

Não devemos pensar na missão como em um anúncio voluntarista e de caráter institucional. O Evangelho já está lá onde o cristão chega para testemunhá-lo.
CHRISTOPH THEOBALD
Teólogo jesuíta - Centro Sèvres - Paris

De origem alemã, francês por adoção, Christoph Theobald é um dos teólogos mais lidos e citados em nível internacional hoje*, em particular pela sua profunda e argumentada reflexão sobre o "estilo" evangélico como característica peculiar da presença cristã no mundo.

Chegou recentemente às livrarias italianas Fraternità (Ed. Qiqajon, 94 páginas), texto em que estão incluídas duas conferências nas quais o jesuíta do Centro Sèvres de Paris explica o sentido dessa dimensão da vida. Além disso, foi o Papa Francisco que enfatizou a sua importância desde a sua aparição na Praça de São Pedro no dia 13 de março de três anos atrás, quando usou, na primeira saudação como pontífice, precisamente o termo "fraternidade".

Eis a entrevista.

No seu ensaio, você enfatiza muito a dimensão social do Evangelho. A Igreja de hoje tem bem ciente esse aspecto da mensagem cristã?

Christoph Theobald: Eu acho que existiu uma longa tradição que ressaltou e implementou esse vínculo intrínseco entre anúncio evangélico e dimensão social. Talvez, porém, esse aspecto se tornou mais atenuado em outra época. Explico-me. Na França, no norte da Itália, na Alemanha e na Áustria, entre o fim do século XIX e a primeira metade do século XX, vimos surgir um verdadeiro catolicismo social, por exemplo, com Pio XI e mediante a difusão da Ação Católica. Um catolicismo social cuja metodologia foi, depois, condensada no lema "ver, julgar, agir", cunhado pelo teólogo belga, depois cardeal, Joseph-Léon Cardijn. Foi essa visão do anúncio cristão que levou à redação da constituição pastoral Gaudium et spes, que desenvolveu a questão social do Evangelho em relação a vários âmbitos: família, economia, política, paz...

Além disso, durante o Concílio Vaticano II surgiu aquele grupo pela "Igreja pobre e dos pobres" em torno das figuras do cardeal Giacomo Lercaro e de Dom Hélder Câmara, que, depois, levaram à conferência do Celam de Medellín, à opção preferencial pelos pobres, à teologia do povo da qual o Papa Francisco é um apoiador. Talvez, como eu mencionava antes, no período turbulento do pós-Concílio, uma época muito controversa, houve um retorno à identidade cristã nos países do mundo ocidental com os pontificados de João Paulo II e de Bento XVI em torno da liturgia e da catequese. Isso ocorreu, talvez, por um certo medo do relativismo. Nesse sentido, algumas experiências particulares, como as dos padres operários e, mais em geral, do catolicismo social, foram postas à margem. Com Francisco, em vez disso, tanto com a Evangelii gaudium quanto com a Laudato si’, o papa volta a pedir que a Igreja tome o caminho do catolicismo social.

Você citou uma certa "linha" que, de Lercaro, chega a Francisco. A sensibilidade desse percurso espiritual e teológico é patrimônio comum da Igreja de hoje?

Christoph Theobald: Há muito a fazer, e há resistências. É isso que eu penso realmente. Eu acredito que isso está presente no âmbito laical, assim como no clero. Aquilo a que o Papa Francisco chama é verdadeiramente uma conversão, uma mudança de olhar. É preciso passar de um interesse da Igreja que podemos definir como centrípeto, para o qual os pastores querem trazer as pessoas para dentro da Igreja, a um olhar no qual a Igreja se põe a serviço do futuro do mundo, da vida, da cultura, do futuro das novas gerações. Queremos uma ou outra perspectiva? O que Francisco nos pede é uma conversão que remete à afirmação de Jesus: "Eu vim para trazer fogo sobre a terra. E como gostaria que já estivesse aceso". Francisco nos indica que o trabalho a ser feito é, acima de tudo, de natureza espiritual.

Em Fraternità, você usa uma expressão muito curiosa, a da "Igreja rabdomante". O que significa?

Christoph Theobald: A fórmula pode parecer um pouco surpreendente e metafórica, mas eu gostaria de explicá-la brevemente. O anúncio do Evangelho não pode mais ocorrer segundo a ordem que chamaríamos "de implantação" a partir de fora. Outra perspectiva, em vez disso, nos diz que o anúncio do Evangelho já é precedido pela presença discreta de Deus no coração das pessoas e do mundo. O modo de ser da Igreja deve seguir o de Jesus, que percorria a Galileia e ia procurar as falhas da sociedade com um anúncio de vida, que já era esperado pelos homens e pelas mulheres daquele tempo. Não devemos pensar na missão como em um anúncio voluntarista e de caráter institucional. O Evangelho já está lá onde o cristão chega para testemunhá-lo.

Pode nos dar um exemplo concreto de tudo isso?

Christoph Theobald: Tomemos a carta encíclica Laudato si’, quando o papa diz que a primeira Declaração do Rio sobre o Ambiente é um texto profético. Isso significa que o traço de profetismo próprio do povo de Deus já estava presente no profetismo do movimento ecológico, que não era cristão. Como bem sabemos, a ecologia não foi iniciada pela Igreja, mas nasceu no leito dos chamados movimentos alternativos. Pois bem, a Igreja encontrou esse valor alhures e, de lá, releu a sua grande tradição, assim como a Escritura, e elaborou uma teologia da criação que, antes, ela não tinha explicitado em todos os seus aspectos.

O termo "fraternidade" pode ser colocado ao lado do valor da misericórdia, princípio-guia do pontificado do Papa Francisco?

Christoph Theobald: Em extrema síntese: são diferentes, mas também são a mesma coisa. O conceito de fraternidade é evidentemente cristão, mas a sua força consiste no fato de que, ao longo do tempo, ele se secularizou, em particular a partir da Declaração dos Direitos Humanos, que deu origem à República francesa. Mas, enquanto os princípios de liberdade e de igualdade podem ser normalizados em instituições jurídicas, a fraternidade é uma espécie de transcendência imanente sobre a qual não é possível legislar.

No coração das nossas constituições republicanas, de fato, há a liberdade e a igualdade, enquanto a fraternidade é algo que não pode se tornar lei. Eis, então, a sugestão do Papa Francisco: devemos realizar uma "mística da fraternidade", que nos faça ver em todos, em particular nos marginalizados e nos últimos (os pobres, os deficientes, os idosos, as crianças...) a presença de Deus. A misericórdia, nesse sentido, se torna a fraternidade que vai até o fim. E quem é capaz disso? Deus em Jesus Cristo. "Sejam misericordiosos como o Pai de vocês que está nos céus" é uma tarefa árdua. Mas é um convite que nos leva a ter um coração dócil e aberto.

Traduzido do italiano por Moisés Sbardelotto. Acesse a versão original desta matéria, clicando aqui.

* No Brasil, foram publicados, até o momento, os seguintes livros de Christoph Theobald: A História dos Dogmas. Vol. 4: A Palavra da Salvação (séculos XVIII-XX) (Edições Loyola, 2006 – coautoria de: Bernard Sesboüé); A Revelação (Ed. Loyola, 2007); Transmitir um Evangelho de Liberdade (Ed. Loyola, 2009); A Recepção do Concílio Vaticano II. Vol. I: Acesso à fonte (Editora Unisinos, 2015).

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Quinta-feira, 28 de abril de 2016 – Internet: clique aqui.

A raiva sadia da sociedade civil brasileira

Juan Arias

Melhor uma sociedade com raiva, inclusive dividida em suas opiniões, que uma apática ou sem vontade de lutar, o melhor cheque em branco para os governantes
B R A S Í L I A 
Praça dos Três Poderes - vista dos céus sobre a cidade

O mundo está olhando para o Brasil. A imprensa internacional se pergunta se é verdade que o colosso da América Latina está quebrado.

Olhava para o país antes, quando era visto como a nova Meca, e o analisa hoje, quando parece que os deuses o abandonaram.

Durante o milagre, até meus amigos espanhóis queriam correr para trabalhar e viver aqui. O Brasil era um sonho.

Hoje o país vive uma de suas maiores crises, não só econômica, mas até de identidade, de ética e estética, como escreve Eliane Brum em sua magnífica coluna Tupi or not to be [clique aqui para ler].

Talvez o Brasil então nem tivesse chegado ao ápice, nem hoje se precipitou irremediavelmente no inferno de uma crise sem esperança.

Talvez nos anos dourados de Lula, sob a magia da caravana de milhões de pobres resgatados da miséria, faltaram as grandes reformas estruturais que impedissem a crise no futuro.

E hoje, talvez, aqueles que acreditam que o Brasil está rodando para o abismo não consigam ver que a crise poderia marcar o tempo das reformas (começando pela do Estado) que ninguém até agora foi capaz de enfrentar e que agora se tornaram indispensáveis e urgentes para resgatar o país da crise.

O grande protagonista do possível resgate do Brasil é hoje, sem dúvida, a sociedade civil com seu despertar (até mesmo agressivo), sua rejeição unânime aos corruptos e sua falta de piedade com a classe política, que com maior ou menor responsabilidade paralisou e apequenou o país.

Há quem acuse a sociedade de ter permanecido adormecida enquanto a classe política mergulhava na corrupção. E talvez essa letargia, que retardou o nascimento dos indignados, também teve sua parcela de responsabilidade. [Letargia = estado de profunda e prolongada inconsciência, semelhante ao sono profundo].

Hoje, no entanto, essa sociedade ainda conservadora, mas indignada, com raiva, dividida entre as possíveis saídas para a crise, a favor ou contra a destituição presidencial (impeachment), é o que existe de mais vivo neste país.

Uma sociedade que descobriu que os representantes que elegeu para o Congresso se assemelham mais a um circo do que a um Parlamento, com uma boa maioria de congressistas envolvida na corrupção, alheia às reformas que o país necessita.

O que está acontecendo no Brasil é uma epifania [manifestação/revelação] da sociedade, que hoje está convencida de que o país representado por aqueles que elegeu não é o que hoje escolheria, e grita: “Fora todos eles!”

É um pleonasmo, mas retrata que o tecido social não é hoje, como foi no passado, o espelho da mediocridade dos políticos.

O assombro que hoje produz nos brasileiros a corrupção, os privilégios de seus governantes, o luxo dos gastos públicas e a dor daqueles que começam a sentir na carne os frutos amargos de crise econômica é a primeira luz em meio a tantas sombras.

Melhor uma sociedade com raiva, inclusive asperamente dividida em suas opiniões, que uma apática, passiva ou sem vontade de lutar, perigosamente embalada no popular: “Fazer o quê?”, que era o melhor cheque em branco para os governantes.

Hoje a sociedade está acordada, discute, se irrita. É uma sociedade que talvez ainda não saiba bem o que quer, mas que está começando a saber o que já não quer.

Você acha pouco?

Fonte: El País – Brasil – Opinião – Quarta-feira, 27 de abril de 2016 – 14h27 – Internet: clique aqui.

O QUE NÓS SOMOS? QUEM SOMOS? BRASIL EM BUSCA DE SUA IDENTIDADE!

Tupi or not to be

Eliane Brum*

Em nome de Deus e do New York Times,
a disputa do impeachment e dos Brasis:
um país que precisa convidar os estrangeiros para dizerem o
que se passa dentro dele!
ELIANE BRUM
Jornalista e escritora

O 17 de abril de 2016 tornou explícito que esta não é apenas uma crise política e uma crise econômica. Mas também uma crise de identidade, de ética e de estética. Os holofotes lançados sobre a Câmara dos Deputados, em transmissão ao vivo pela TV, iluminaram o horror. E iluminaram o horror mesmo para aqueles que torciam pela aprovação da abertura do processo de impeachment de Dilma Rousseff. No dia seguinte, algo também revelador aconteceu: a disputa foi levada ao território “estrangeiro”. Não uma disputa qualquer, mas a disputa sobre como nomear o acontecido. Vale a pena seguir essa pista.

A imprensa internacional aponta para o Brasil e diz, com variações, que o espetáculo é ridículo, o que aconteceu foi um circo. A presidente Dilma Rousseff e o PT vão disputar lá fora o nome da coisa: é um golpe – ou um “coup”. O presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB), despacha dois enviados especiais para garantir outra narrativa: o impeachment é legítimo, as instituições brasileiras funcionam, tudo está dentro das normas. Vozes se erguem para acusar Dilma Rousseff de expor o Brasil no “exterior”, prejudicando a imagem do país, reduzindo-o a uma “republiqueta de bananas”. Na ONU, Dilma recua da palavra “golpe” e escolhe, para oficialmente representá-la, outra palavra, uma que não constitui quebra: “retrocesso”. Não é ali que se dá a disputa. A guerra está no território dos narradores. E os narradores contemporâneos encontram-se em grande parte (ainda) na imprensa.

A disputa do impeachment aprofundou o que já havia sido exposto nas manifestações de 2013: a crise da imprensa brasileira não é apenas de modelo de negócios, mas de credibilidade. Como acontece com os partidos políticos, a da imprensa é também uma crise de representação, já que parcelas significativas da população não se reconhecem na cobertura. Neste sentido, o olhar do outro, aqui representado pela imprensa internacional, devolve algo sem o qual não se faz jornalismo que mereça este nome: devolve o espanto, lugar de partida de quem deseja decifrar o mundo que vê.

E, a partir do espanto, busca compreender como uma presidente democraticamente eleita por 54 milhões de votos, sem crime de responsabilidade comprovado, tem a abertura de seu processo de impeachment comandado por um réu do Supremo Tribunal Federal, numa Câmara em que parte dos deputados é investigada por crimes que vão de corrupção ao uso de trabalho escravo, num espetáculo que desvela pelo grotesco as fraturas históricas do país.

A narrativa construída por uma parte da imprensa brasileira sobre o momento mais complexo da história recente do país, a forma como essa parcela da mídia ocupa seu papel como protagonista, assim como as consequências dessa atuação, merecem toda atenção. Possivelmente muitos livros serão escritos sobre esse tema, as perguntas recém começaram a ser feitas. Nesse artigo, porém, quero seguir uma outra pista, que considero fascinante demais para ser perdida. Também não se trata aqui de analisar o que a imprensa de outros países disse de fato – e que está longe de ser homogêneo como se quer vender. Não se trata aqui “deles”, mas de “nós”.

A pista que investigo aqui parte da interrogação sobre o que significa levar a disputa narrativa ao território simbólico do grande outro, “o estrangeiro”. E não qualquer estrangeiro, mas o que fala principalmente inglês, depois alemão e francês e espanhol (da Espanha, não da América Latina). E o que significa dar a essa entidade, chamada “imprensa estrangeira”, a palavra para nomear o que aconteceu – e acontece – no Brasil.

O que é o horror, este que nos persegue desde o domingo 17 de abril? O horror é a impossibilidade da palavra. O horror é também uma infância que nunca acaba. É tudo menos banal que num dos momentos mais ricos de sentidos da história recente faltem palavras para narrar o Brasil. Em parte porque elas foram barradas pelos muros de um lado e outro, interditando o diálogo. E palavras que não atravessam produzem silenciamento. Em parte porque as palavras foram distorcidas, violadas e esvaziadas. E isso produz apagamento.

Mas há mais do que isso. É tudo menos banal que as palavras que faltam sejam procuradas em outro lugar. Porque, se não conseguimos construir uma narrativa em nome próprio, como constituir um país?

Este é o abismo, como sabiam os modernistas de 22. Ou este ainda é o abismo. Que ainda o seja vai demandar que nos lancemos na tarefa imperativa de encontrar as palavras que agora faltam. Ou de inventá-las. Não na língua de Camões, mas “nas línguas que roçam a de Camões”, como cantou Caetano Veloso.

Que em vez disso nos lancemos em busca de que o outro nos nomeie, de que o outro diga o nome da coisa que se passa aqui, é bem revelador. Agora menos a Europa e mais os Estados Unidos, agora menos Paris e mais Nova York, agora menos Le Monde e mais New York Times. Como se diante da cena ainda por decifrar não fôssemos capazes de falar em nome próprio.

E aqui, sempre vale a pena sublinhar, não se trata de nenhuma invocação de nacionalismos ou de purismos aos moldes Aldo Rebelo. É bem o contrário disso. O outro, seja ele quem ou o quê for, pode e deve falar sobre nós. É importante que fale. Mas a interrogação aqui é outra: é por que delegamos a ele a palavra que não somos capazes de encontrar – ou de criar. E que diz respeito ao próprio jogo de identidade/desidentidade essencial à construção de uma pessoa – e também de um país. E como isso está na própria raiz da crise.
 
CARTA DE PERO VAZ DE CAMINHA - REPRODUÇÃO
O Brasil, este que nasce pela invasão dos europeus e promove primeiro o genocídio indígena, depois o dos negros escravizados – ambos ainda em curso, vale dizer –, nasce com a carta do português Pero Vaz de Caminha. Parte da nossa trajetória é narrada pelo olhar de viajantes notáveis, como o francês Auguste de Saint-Hilaire. O que se diz do Brasil, e que portanto o constitui como narrativa, é dito em língua estrangeira, como todo país que nasce da usurpação do corpo de um outro.

O Brasil, estrangeiro a si mesmo, já que o que aqui existia em 1500 não era Brasil, é constituído pelo conflito, pela dominação e pelo extermínio expressado também na construção da língua. A língua portuguesa, ainda que tenha se imposto junto com seus falantes, foi tomada ela mesma pelos invadidos e pelos escravizados. Ou pelas línguas indígenas primeiro, pelas africanas depois. Não fosse essa contra-invasão pela palavra, a resistência dos invadidos e dos escravos, não seria possível existir um país em nome próprio. Persiste e resiste nas curvas do corpo da língua portuguesa a vida dos mortos.

Essa construção é um campo de conflitos permanente. Basta lembrar as batalhas ocorridas nos últimos anos entre a tal norma culta do português e as variações do português brasileiro, consideradas pelas elites como indesejáveis e menores – “erradas”. Basta escutar as línguas criadas nas periferias urbanas e na floresta amazônica, as línguas vivas que disputam o nome próprio do Brasil. Que no momento em que se disputa a narrativa sobre a coisa que aqui acontece, ou sobre o nome da coisa que aqui acontece, ela seja levada à língua do “estrangeiro”, talvez seja “a nossa mais completa tradução”.

Há muitas razões e significados. Mas talvez exista também uma nostalgia do colonizador. Uma demanda de paternidade. Ou de autoridade. Digam vocês, os que sabem, o que acontece aqui. Deem-nos um nome.

Nossas elites, como se sabe, são jecas. Primeiro cortejavam a França, agora é tudo em inglês. Americano, de preferência. Os Estados Unidos como a colônia que conseguiu virar metrópole e, por fim, a grande potência mundial. Que uma parcela da imprensa e das elites seja agora achincalhada em inglês é uma ironia das mais interessantes.

Com a ascensão de Lula ao poder, o primeiro presidente que não pertencia às elites, a expectativa de alguns, entre os quais me incluo, era a da fundação de uma nova ideia de país. Dito de outra forma, que o Brasil fosse menos um imitador e mais um criador. E isso também na economia.
EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO
é professor do Museu Nacional do Rio de Janeiro desde 1978. Também lecionou na École des Hautes Études en Sciences Sociales em Paris e nas universidades de Chicago e Cambridge.

Eduardo Viveiros de Castro coloca bem essa perspectiva numa entrevista dada ao Outras Palavras, em 2012, quando já se sabia que essa possibilidade tinha sido perdida, pelo menos no governo Lula: “Penso, de qualquer forma, que se deve insistir na ideia de que o Brasil tem – ou, a essa altura, teria – as condições ecológicas, geográficas, culturais de desenvolver um novo estilo de civilização, um que não seja uma cópia empobrecida do modelo americano e norte-europeu. Poderíamos começar a experimentar, timidamente que fosse, algum tipo de alternativa aos paradigmas tecno-econômicos desenvolvidos na Europa moderna. Mas imagino que, se algum país vai acabar fazendo isso no mundo, será a China. Verdade que os chineses têm 5.000 anos de história cultural praticamente contínua, e o que nós temos a oferecer são apenas 500 anos de dominação europeia e uma triste história de etnocídio, deliberado ou não. Mesmo assim, é indesculpável a falta de inventividade da sociedade brasileira, pelo menos das suas elites políticas e intelectuais, que perderam várias ocasiões de se inspirarem nas soluções socioculturais que os povos brasileiros historicamente ofereceram, e de assim articular as condições de uma civilização brasileira minimamente diferente dos comerciais de TV”.

Lula, como bem sabemos, adotou um modelo de desenvolvimento que ignorava o maior desafio desse momento histórico, a mudança climática. E Dilma Rousseff mostrou-se uma governante com pensamento cimentado no século 20, às vezes no 19. Mas é na produção simbólica que fica claro como ainda se tratava de “vencer” no campo do outro. Ou de ser reconhecido “pelos grandes” – ou “pelos adultos”.

Lula termina seu segundo mandato festejado na Europa e nos Estados Unidos como aquele que incluiu dezenas de milhões de brasileiros no mundo do consumo. A “invenção” do Brasil era deveras interessante: tirar pessoas da pobreza sem mexer na renda dos mais ricos. Com esse milagre made in Brazil, Lula só poderia ser “o cara de Obama”. “This is my man, right there. I love this guy” [trad.: Este é o meu homem, ali mesmo. Eu amo esse cara], disse o presidente americano em 2009. “The most popular politician on Earth” [trad.: O político mais popular da Terra].

O que ficou encoberto no meio da festa é que a “mágica” [lulista] obedecia a uma receita velha: exportação de matérias-primas, como o Brasil fazia desde os primórdios. Também esquecia-se de dizer que essa “criação” era feita na base da destruição do meio ambiente, como sempre foi desde 1500. A novidade não era tão nova assim. E tão logo o encanto se desfez, os mais ricos, em cuja renda os governos do PT não tocaram, se voltaram contra Dilma Rousseff.

O destinatário da produção de símbolos revela-se na escolha dos acontecimentos que deveriam mostrar, de forma definitiva, que o eterno país do futuro finalmente havia chegado a um presente glorioso. Dois eventos internacionais, dois eventos para o mundo ver: a Copa do Mundo de 2014 e a Olimpíada de 2016.

Há um sujeito confuso nessa narrativa. Um sujeito sujeitado. Quando se joga no campo do outro, segundo os termos do outro, se perde por 7X1. A Olimpíada é assombrada por um mosquito, vilão arcaico que denuncia velhas mazelas como a falta de saneamento básico. E a nova ciclovia do Rio desaba matando duas pessoas no mesmo dia em que a tocha olímpica é acesa na Grécia. A construção, tanto a simbólica quanto a concreta, não para em pé. Lost in translation [perdidos na tradução].

Será sempre lost in translation enquanto não se encontrar o nome próprio. Enquanto o Brasil não falar em nome próprio. Enquanto o Brasil seguir insistindo em ser descoberto quando o que precisa é se inventar. Essa realidade é o cenário da extraordinária peça de Felipe Hirsch e Os Ultralíricos, A Tragédia Latino-Americana, em que os blocos são construídos para em seguida desabarem e serem rearranjados para logo depois virarem ruínas e tudo então ser mais uma vez reconstruído para desabar de novo e de novo e de novo.

Sobre esses blocos em permanente construção e dissolução, Pero Vaz de Caminha recita sua carta, agora narrada em inventiva prosa pelo escritor Reinaldo Moraes. Para parodiar o português, o brasileiro invade a língua do invasor. “Antão dizia eu que antes de alguém ter tempo de dizer chupa! já saltávamos aos cangotes daquelas fêmeas naturaes, feitos javalis resfolegantes de animalesco e represado d’sejo, e elas viram o que era bom pa tosse, pá. E às vezes que por qualquer razão já não queriam mais ter seus urifícios frequentados brutalmente pela nossa nobre gente, dávamos-lhes uns cascudos, mor d’elas calarem as matracas, e nelas mandávamos grosso fumo, pá, refodidas vezes, e era pimba na pombinha e peroba na peladinha! Aquilo era um vidão, pá”.

Criar o que pode ser chamado de um “em nome próprio” foi o desafio dos principais movimentos culturais do século 20, dos modernistas de 22 ao Cinema Novo e à Tropicália. Não por coincidência, processos interrompidos por ditaduras. Em 2013, o novo voltou a ocupar as ruas com enorme potência, para ser reprimido pelas bombas de gás da Polícia Militar e pela violência da palavra “vândalos”, usada pela imprensa conservadora para silenciar o que não queria escutar ou o que não era capaz de interpretar.

É de 2013 que ainda se trata hoje, e se tratará por muito tempo. Do que já não pode ser contido, do que reivindica novas palavras para poder ser dito. Não mais como discurso, como nos movimentos da modernidade, mas como fragmentos, ou como discurso contra discurso, em nossa principal irrupção estética de pós-modernidade.

O Brasil não é pátria nem mátria, mas fátria, como cantou Caetano. Para encontrar as palavras com que construiremos a narrativa do hoje é preciso olhar para:
* Oswald de Andrade,
* para Villa-Lobos,
* para Glauber Rocha,
* para Zé Celso Martinez Corrêa,
* para Davi Kopenawa e Ailton Krenak,
* para Mano Brown e Emicida,
* para Eliakin Rufino,
* para Sérgio Vaz,
* para Laerte,
* para Mundano. Para tantos.
* Para o perspectivismo ameríndio de Eduardo Viveiros de Castro.
* Para a literatura de Carolina Maria de Jesus.
* Para a Comissão da Verdade. A dos crimes da ditadura. E a dos crimes da democracia.
* Para o funk das que não são recatadas e que comandam seus próprios lares.
* Para as famílias que têm dois homens e nenhuma mulher e as que têm uma mulher e outra mulher, para as que tem três padrastos e nenhuma madrasta, para as de uma mulher só. E para as mulheres que antes foram homens.
* Para os deuses que se recusam a ser vítimas de estelionato no microfone do parlamento.

Para refundar o Brasil é preciso perceber que as periferias são o centro. Que nossa capital simbólica não é São Paulo, mas Altamira.
CENA DO FILME "TERRA EM TRANSE" DE GLAUBER ROCHA

Inevitável lembrar de Terra em transe (1967), filme de Glauber Rocha.

Diz o jornalista, depois de descobrir que as palavras são inúteis:

– Não é possível esta festa de bandeiras, com guerra e Cristo na mesma posição. Não é possível a potência da fé, não é possível a ingenuidade da fé. (...) Não assumimos a nossa violência, não assumimos nossas ideias, o ódio dos bárbaros adormecidos que somos. Não assumimos nosso passado. (...) Não é possível acreditar que tudo isso é verdade.... Até quando suportaremos, até quando além da fé e da esperança suportaremos...

Diz o político que se corrompeu:

– Aprenderão! Aprenderão! Nominarei essa terra. Botarei essas histéricas tradições em ordem. Pela força. Pelo amor da força. Pela harmonia universal dos infernos chegaremos a uma civilização!

O que fazer diante do horror? Retomar a palavra, a que atravessa os muros. Enfrentar o desafio de construir uma narrativa, necessariamente polifônica, sobre o momento, em todos os espaços. Não desviando das contradições, para evitar que elas manchem a limpidez do discurso. Ao contrário. Abraçando-as, porque elas criam o discurso.

O nome da coisa é a palavra que precisamos encontrar para inventar o Brasil.

* Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Ela é uma das mais premiadas jornalistas brasileiras. Ganhou quase 40 prêmios de reportagem, como Esso, Vladimir Herzog, Ayrton Senna e Sociedade Interamericana de Imprensa. Nasceu em 1966 em Ijuí, Rio Grande do Sul. Iniciou sua trajetória como repórter no jornal Zero Hora, de Porto Alegre, em 1988. Desde 2000, é repórter especial da revista Época, em São Paulo. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas.

Fonte: El País – Brasil – Opinião – Segunda-feira, 25 de abril de 2016 – 13h54 – Internet: clique aqui.