A saliva regando a intolerância entre nós, brasileiros!

O cuspe e a política:
como a saliva rega a semente da intolerância

Daniel Martins de Barros*

Cuspir é o sinal de desprezo máximo, do desejo que o outro não exista. Espanta ver esse recurso empregado por quem diz defender a democracia. 
DANIEL MARTINS DE BARROS
Psiquiatra

O cuspe na cara está na moda. Tivesse ficado restrito aos gêmeos antípodas Wyllys e Bolsonaro [deputados federais] eu não me manifestaria sobre o tema. Mas como muitos fenômenos sociais, a coisa está se alastrando. Zé de Abreu [ator da Globo] cuspiu num casal que o ofendeu. Manifestantes organizaram um ato para cuspir em fotos de políticos que votaram a favor do impeachment. Como aposto que a coisa ainda vai crescer, acho que vale a pena pensar sobre a cusparada.

Como toda agressividade, cuspir pode ser um ato reativo ou instrumental.

1ª) Reativa, como o nome diz, é a agressão ocorrida como resposta a uma provocação. O cuspe aparece mais frequentemente nessas ocasiões em crianças, em pacientes com retardo mental ou em idosos com demência, e é fácil entender porquê. Nessa população o cérebro ainda não amadureceu o suficiente para conseguir lidar com a raiva e a frustração ou já perdeu essas capacidades – por isso, quando provocadas elas se descontrolam mais facilmente. Como são pessoas vulneráveis, com desvantagens numa eventual altercação física, o cuspe, com sua capacidade de alcançar à distância, permite uma reação agressiva que, se não chega a ser muito lesiva, ao menos põe à salvaguarda o agressor.

Se fosse esse nosso caso nacional já seria ruim. Mas acho que é pior.

2ª) A outra forma de agressão, instrumental, é aquela feita deliberadamente, é planejada com intuito de se conseguir algum objetivo. E qual o significado do cuspe nessa situação? Ele não tira de combate um oponente. Não impõe restrição física. Não fere nem mata. Seu objetivo, portanto, é simbólico. Mas símbolo de quê? A que a cusparada poderia se remeter? A saliva é algo tão pessoal que só temos contato com a de outra pessoa num contexto de extrema intimidade – pense na mãe que lambe a cria, pense num beijo apaixonado ou no sexo oral. Mas existe outra situação em que alguém é exposto à força e contra sua vontade a fluidos íntimos de outra pessoa? Sim, é isso mesmo: simbolicamente, cuspir em alguém é análogo ao estupro – é um ato que destitui o sujeito de sua condição de ser humano. Simboliza mais do que a morte (pois normalmente os mortos são respeitados) – é signo do desprezo a ponto de anular a existência alheia. (Evidentemente é uma analogia, um simbolismo, pois é óbvio que o estupro real é incomparável à uma cuspida real).

Por isso digo que é pior do que se os cuspidores tivessem apenas reagido intempestivamente. É pior porque com sua atitude eles estão dizendo que não querem que exista a outra opinião. Desprezam a existência de uma visão de mundo alternativa, e gostariam que a dissidência fosse aniquilada.  Ou alguém acha que cuspir num opositor o fará mudar de atitude, trocar de lado? Não, eles não querem transformar opositores em aliados – querem relegá-los ao desprezo, ao esquecimento, ao nada.

É muito mais do que triste. É perigoso. Já disse antes e repito: guerras civis começam assim.

Todo mundo diz que defende a democracia, o espírito republicano, a liberdade. É fácil fazer isso diante do que concordam conosco. Mas precisamos entender de uma vez por todas que lutar por liberdade de fato é mais do que garantir o direito de as pessoas pregarem o oposto de nossas crenças – é ficar sinceramente satisfeito que elas possam defender quaisquer absurdos.

* DANIEL MARTINS DE BARROS é psiquiatra do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo (IPq-HC), onde atua como coordenador médico do Núcleo de Psiquiatria Forense e Psicologia Jurídica (Nufor). Doutor em Ciências e bacharel em Filosofia, ambos pela Universidade de São Paulo (USP).

Fonte: ESTADÃO.COM.BR – Blogs – Terça-feira, 26 de abril de 2016 – 11h12 – Internet: clique aqui.

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