Dois especialistas nos ajudam a melhor ler e compreender do Documento sobre a Família
A pressa da curiosidade e a paciência
da complexidade
Andrea Grillo*
Aconselho que se leia a "alegria do amor" (Amoris Laetitia) com
"amor pela alegria". Sem amor pela alegria,
nunca poderemos ver
a alegria do amor.
PAPA FRANCISCO Em sua Exortação Apostólica sobre a Família apresenta uma nova maneira de se olhar para a família, o amor conjugal e familiar, a educação dos filhos e a sexualidade |
Entre
os aspectos mais singulares dessa "expectativa"
da nova exortação apostólica "sobre o amor na família", há uma
tensão muito particular entre duas exigências opostas:
a) por um lado, talvez por
causa de recentes incidentes com alguns jornalistas, nunca se viu um "silêncio" tão alto sobre um texto de
publicação próxima. Quem o conhece não fala a respeito, e quem gostaria ou
deveria falar a respeito não sabe nada dele.
b) por outro lado, existem alguns elementos do texto – o comprimento e o "estilo novo" – que aconselhariam
uma leitura pacata e meditada. Parece precisamente que a Amoris laetitia não pode
ser lida "na correria": nem materialmente, porque é um documento
muito longo, nem estilisticamente, porque parece que está escrito em um estilo
"diferente" – como já vimos para a Evangelii gaudium.
E
então? A combinação desses dois fatores poderia tornar os primeiros dias depois
da publicação particularmente complexos e confusos.
Permito-me sugerir três
pequenos remédios para diminuir a confusão:
a) desaconselho que se leia o documento apenas parcialmente: justamente a sua extensão
poderia quase impor uma leitura apenas parcial e rapsódica, mas é preciso resistir
a isso. Apenas na sua integralidade
serão compreendidos realmente cada parte e o todo;
b) desaconselho que se leiam apenas as respostas aos problemas mais
candentes,
mas aconselho que se integrem essas importantes e esperadas respostas às propostas de vida cristã, na abordagem
global à fé e ao mundo, como delineamento de um "estilo cristão"
renovado e convertido;
c) aconselho que se leia a "alegria do amor" com "amor
pela alegria". Já circularam nos últimos dias previsões e profecias inspiradas na
tristeza, na desventura, no desencanto, na desconfiança, na resignação. Antes ainda de ler, há quem diga, não
importa se com esperança ou temor: "Não haverá nada de novo".
ANDREA GRILLO Teólogo italiano autor deste artigo |
Nunca pode haver nada de
novo se não se espera nada. Tanto o desesperado quanto o presunçoso são sem esperança. Sem amor pela alegria, nunca poderemos ver
a alegria do amor. Portanto, se um cardeal do outro lado do oceano diz:
"O documento vai falar de matrimônio, não de divórcio", embora
dizendo algo óbvio, ele parece querer se defender do texto e da história, mas poderia ficar surpreso ao ler,
justamente no Evangelho, que Jesus não veio para os sãos, mas pelos doentes.
Estranhos
paradoxos nos são reservados pela nossa fé no Kyrios [Senhor Jesus Cristo]. Para compreendê-los, é preciso unir,
à impaciência da curiosidade, a pacatez da complexidade.
*
ANDREA GRILLO é teólogo italiano leigo casado, professor
do Pontifício Ateneu Santo Anselmo,
de Roma, do Instituto Teológico
Marchigiano, de Ancona, e do Instituto
de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, de Pádua.
Traduzido do italiano por Moisés Sbardelotto. Para acessar a
versão original deste artigo, clique aqui.
Fonte: ZENIT.ORG – Sexta-feira, 8 de abril
de 2016 – Internet: clique aqui.
Amoris Laetitia, o documento do
papa Francisco sobre o amor, matrimônio
e família
Massimo
Faggioli*
É legítimo esperar que sobre algumas questões haja
aberturas significativas que seguiriam e dariam substância aos muitos discursos
de Francisco sobre o papel da lei na Igreja e sobre a catolicidade inclusiva da
Igreja
PAPA FRANCISCO Deixou sua marca nesta nova Exortação Apostólica sobre a Família: sua abordagem é concreta, pastoral e fundamentada no Amor e Misericórdia |
A
esperada exortação apostólica Amoris Laetitia do papa Francisco
sobre o amor na família é publicada nesta sexta-feira, 08 de abril, e é um
documento muito importante para compreender papa Francisco e a Igreja que ele
guia no presente.
Em primeiro lugar é
um documento que se destina a atualizar e, de qualquer maneira, irá tomar o
lugar do seu precedente publicado há 35 anos, Familiaris Consortio de João Paulo II, o papa que mais
contribuiu para o magistério da Igreja no que se refere aos temas do matrimônio
e a sexualidade na sociedade e na cultura contemporânea.
Francisco canonizou João Paulo II e
dele recebeu o magistério, mas também corrigiu o rumo sobre algumas questões
durante estes três anos do seu pontificado (por exemplo, dando uma ênfase muito menor sobre a questão da contracepção para os
casais que já têm filhos).
Um segundo motivo de interesse está na relevância da matéria, que vê o ensino
da Igreja e os modelos sociais e culturais do mundo ocidental muito distantes,
numa distância que é também aquela entre
a doutrina oficial da Igreja e a vida real de muitos católicos.
A Igreja Católica construiu
de si mesma,
no curso do último século e, particularmente, a partir da encíclica Humanae Vitae de Paulo VI (1968), a imagem de
uma instituição que não compreende e não aceita o amor humano fora do horizonte
do instituto familiar tradicional. É algo que Francisco sabe bem, melhor do
que seus predecessores, inclusive porque ele foi ordenado padre depois da Humanae Vitae [no dia 13 de dezembro de
1969].
Um terceiro motivo está ligado particularmente ao papel
exercido na Igreja católica, hoje, pelo pontificado do papa Francisco: um papa
eleito no final de uma longa época marcada por João Paulo II e Bento XVI, e um papa que de muitas maneiras mudou as
prioridades do papado desde o início.
Num
certo sentido é um papa que vive em coabitação (para usar um termo
corrente da política) com uma “maioria”
que não pensa necessariamente como ele no que se refere às questões ligadas à
moral tradicional. O famoso “quem
sou eu para julgar?” de papa Francisco sobre os homossexuais fez, literalmente,
perder o sono a não poucos bispos e cardeais.
Enfim,
Amoris Laetitia é importante porque é uma “exortação apostólica pós-sinodal”,
isto é, um texto do papa escrito tendo em conta as discussões e as conclusões
dos dois Sínodos dos Bispos sobre a família por ele convocados em outubro
de 2014 e outubro de 2015. Amoris Laetitia não é a primeira
exortação apostólica (o Sínodo dos Bispos foi criado como instituição, por
Paulo VI, em setembro de 1965), mas é a primeira exortação apostólica que
emerge depois de um Sínodo dos Bispos
caracterizado por um verdadeiro debate aberto entre os bispos e também, de
certo modo, entre o papa e alguns bispos
claramente céticos acerca da direção impressa à Igreja pelo papa Francisco.
Será
muito interessante ver que tipo de uso faz a Amoris Laetitia dos documentos finais e das discussões do Sínodo, e
que tipo de recepção será reservado ao
documento pelos católicos abertamente céticos (como muitos bispos
norte-americanos e africanos) no que se
refere às aberturas de Francisco.
São
muitas as questões sobre as quais se espera do texto indicações sobre a
trajetória do catolicismo. É previsível que a atenção de muitos se deterá
somente sobre os capítulos que tratam do matrimônio cristão e outras formas de
matrimônio, sobre a contracepção, sobre homossexualidade e gender [questões de gênero], sobre o papel da mulher. Mas o papa Francisco sempre mostrou uma grande
atenção à necessidade de enquadrar as questões morais clássicas no interior de
um olhar não idealizado da realidade do ser humano sempre atento às grandes
questões sociais e econômicas do nosso tempo. Papa Francisco é, sobretudo,
um pastor de almas, mas também é um anti-ideólogo.
Seria ingênuo esperar deste
texto mudanças radicais e improvisadas, do dia para a noite, sobre questões
sensíveis
(como a acesso dos divorciados recasados à eucaristia) especialmente tendo em conta o fato que Francisco governa a Igreja com
um episcopado mundial plasmado durante 35 anos por
João Paulo II e Bento XVI.
Mas
é legítimo esperar que sobre algumas questões haja aberturas significativas que
seguiriam e dariam substância aos muitos discursos de Francisco sobre o papel
da lei na Igreja e sobre a catolicidade inclusiva da Igreja. Particularmente, será interessante ver como
Francisco articula a questão da descentralização da Igreja sobre questões que
requerem unidade de magistério, mas aplicações pastorais diferenciadas segundo
os diferentes contextos culturais no catolicismo global.
Se
os documentos precedentes de Francisco, Evangelii
Gaudium de novembro de 2013 e Laudato
Si’ de maio de 2015, são uma indicação, é de se esperar um texto muito fiel ao pensamento de Francisco e não
tímido em mostrar a direção para onde a Igreja caminha. É certamente um catolicismo em movimento: Amoris Laetitia é publicada apenas uma
semana antes da viagem extraordinária à ilha de Lesbos para encontrar os
prófugos e os refugiados. A teologia de
Francisco sobre o amor e a família se formou muito mais nos encontros com a
humanidade real do que numa continuidade absoluta do magistério.
Traduzido do italiano pelo Instituto Humanitas Unisinos On-line. Acesse
a versão original deste artigo, clicando aqui.
*
MASSIMO FAGGIOLI é italiano e professor de História do
Cristianismo na University of St. Thomas,
Estados Unidos.
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