O que é a política brasileira? – Uma reflexão séria!
Minúscula política
José de Souza
Martins*
Para sociólogo, o pensamento arcaico que marca, define
e desestabiliza o processo político brasileiro contamina tudo: favorece
partidos sem ideais, barra a alternância de poder e só estimula a troca de
favores. No processo de impeachment
da presidente Dilma assistimos ao grande momento dos insignificantes, que
melhor fariam se não aparecessem. Já os grandes nomes, em outros tempos
chamados “pais da pátria”, não são convocados a agir.
O SISTEMA POLÍTICO NO BRASIL POSSUI, NA VERDADE, APENAS DOIS GRANDES PARTIDOS: O PARTIDO DO PODER E O PARTIDO QUE ESTÁ FORA PODER OS DEMAIS PARTIDOS SE ALINHAM CONFORME SEUS INTERESSES |
O modo tumultuado e desencontrado como tem
sido enfrentada a questão da proposta de impeachment
da Presidente da República acaba revelando
peculiaridades ocultas, mas decisivas, do nosso sistema político. Diferente
do que ocorre em outros países, de sistemas íntegros e articulados, o nosso é mais uma aleatória combinação de
concepções impolíticas. No próprio dia em que a comissão da Câmara aprovou
a proposta de admissibilidade do impedimento, houve momentos em que não se
sabia se se tratava de uma disputa de torcidas de futebol ou de uma disputa
propriamente partidária. Aliás, o
futebol é no Brasil o grande e impróprio parâmetro da política. O impeachment de Dilma Roussef está sendo
votado na perspectiva da transitoriedade própria das Copas do Mundo. Depois que
passar, passou.
Uma superposição de camadas de arcaísmos
vários define as referências do processo político brasileiro. Os oradores dirigiam a palavra a suas
províncias e povoados. Não se manifestavam como corpo político da nação.
Alguns aludiram a suas religiões,
ainda que indiretamente. O que também é estranho. O Estado brasileiro não é nem
pode ser confessional. Religião é assunto privado. A religião do Estado é a
cidadania. Falaram para o eleitor oculto, em vez de representá-lo.
Já tivemos um regime parlamentarista no
Império e, na República, no curto período de redução dos poderes do presidente
João Goulart, em 1961-1963. No entanto,
de maneira quase imperceptível, um parlamentarismo tosco persiste entre nós.
É o que se vê na invocação de suposta incompetência e mesmo de incapacidade
para governar para remover a Presidente e transferir o poder ao seu sucessor
legítimo e constitucional. Ao questionar
essa legitimidade, ela própria e seu partido revelam a mesma mentalidade desse
parlamentarismo arcaico e subsistente.
Foi o PT
aliás, que difundiu entre seus militantes a ideia da possibilidade de depor o
governante quando este se conduzisse em desacordo com o ideário das facções
eleitoralmente majoritárias, mas socialmente minoritárias. Um frade petista [Frei
Betto], de grande destaque e de grande responsabilidade no apoio católico ao
Partido dos Trabalhadores e à irresistível ascensão política de Lula, logo
depois da posse de Fernando Henrique Cardoso na Presidência, assinava suas
mensagens com um enfático “Fora FHC”.
Uma concepção golpista e totalitária de que legítimo era o partido dele e não o
dos outros, o partido do “Eles” dos discursos petistas, porque negação e recusa do princípio de que um
regime democrático se baseia na possibilidade da rotação dos partidos no poder.
Há uma mentalidade
ditatorial subjacente a palavras de ordem desse tipo. Não é estranho que o mesmo religioso lamentasse nos primeiros anos do
governo Lula que o PT estava no governo, mas não estava no poder. Que poder
é esse? O poder absoluto que criminaliza o ato legítimo de cidadãos que, como
no caso atual, apoiados na Constituição da República, pedem que se apure atos
de governo em desacordo com a lei e, em decorrência, julgue a Câmara a admissibilidade
do impedimento da governante? Aparentemente, sabemos pouco o que é o impeachment. Vai bem que conste da Constituição e das leis, vai bem se aplicado aos
outros, mas é golpe se aplicado a “nós”.
OLHA O PT AÍ PEDINDO A SAÍDA, O IMPEACHMENT DE FERNANDO HENRIQUE CARDOSO Manifestação em Brasília (DF), 26 de agosto de 1999 NAQUELE TEMPO NÃO ERA GOLPE, ERA "VONTADE POPULAR"! |
O elenco de
rótulos para negar a legitimidade do impeachment,
medida constitucional, é um desdobramento dessa mentalidade absolutista e
arcaica. O
dedo notório de “fábricas” de
estereótipos negativos, de ambos os lados, mostra que o povo propriamente
dito, nas concepções deste momento adverso, repete e grita palavras de ordem
que mobilizam desfigurando o real, coisa de marqueteiros que manipulam a
opinião pública com os mesmos critérios com que manipulam gostos e apetites dos
que desfilam nos corredores do supermercado.
De certo modo, tudo isso nos mostra que o impeachment, mesmo que justificado e
eventualmente necessário, no fundo, é irrelevante. Porque o País se governa por si mesmo. Lula esteve muito perto de ser
impedido em 2005, quando do escândalo do
mensalão. Quando se deu conta disso, tornou-se abúlico e indeciso, sem a
segurança dos discursos firmes e enfáticos das portas de fábricas do ABC ou do
aplauso das multidões proletárias congregadas no Estádio de Vila Euclides, em
São Bernardo do Campo. No entanto, nem por isso o país parou. Nos tumultuados
anos entre a morte de Getúlio Vargas e a deposição de João Goulart, as
evidências da crise econômica e da crise política eram muitas. Ainda assim, o
País não parou. Só foi parar com a eleição de Jânio Quadros e sua sucessão pelo
vice-presidente, quando o Brasil ficou sem um projeto político, coisa que voltou a ocorrer nos dois
mandatos de Dilma Roussef, quando a
política de coalizão a fez negociar o mandato e a governação com os escalões
inferiores de partidos políticos irrelevantes porque frágeis. Os mesmos
que, em boa parte, vão decidir o seu destino.
Ainda que as multidões sejam capazes de
manifestações impressionantes como as da Avenida Paulista, neste 2016, em favor
do impeachment ou contra ele, passado o momento da disputa, tudo voltará
à rotina da indiferença. Multidão não é governo nem tem mandato. No outro
extremo, longe das metrópoles, a multidão silenciosa dos que não se manifestam
nas avenidas das capitais está por trás dos deputados indecisos, os que esperam
um sinal que lhes venha dos ermos e lonjuras para votar de acordo com a
peculiar concepção de mandato político que os leva ritualmente às urnas quando
as eleições são convocadas. Essa gente silenciosa poderá decidir tanto o
destino da Presidente quanto o destino das oposições, quanto o destino do
Brasil. Os que ainda vivem no mundo da
troca política de favores, do toma lá dá cá, das muitíssimas migalhas e farelos
que caem da mesa do poder e dos poderosos, terão neste domingo sua vez e hora.
Não será o vermelho nem o azul, nem o verde nem o amarelo, que decidirão nossos
caminhos daqui para a frente. Será o
cinzento da definição de última hora. O minúsculo e não o maiúsculo.
Em boa parte, porque não temos no Brasil, propriamente, um sistema
partidário, que represente
efetivamente a diversidade de correntes ideológicas. Nem mesmo temos o que,
com segurança, poderíamos definir como ideologias ou correntes partidárias
modernas e comparáveis, para que os eleitores possam fazer o que é propriamente
uma escolha entre alternativas. As
esquerdas, de verdade, estão fragmentadas e diluídas em extensa diversidade
de querelas e não propriamente de orientações filosóficas. Já a unidade do
partido majoritário, que é o PMDB, é
tão somente a da convergência de interesses para assegurar o vínculo entre
governos locais e o cofre do governo central. Se a dona do cofre perde a chave,
saem atrás de quem a chave terá.
Por isso, há aqui dois grandes partidos,
o partido do poder e o partido que está fora do poder. Já
no Império era assim: Conservadores
e Liberais, que se alternavam no poder sob a diáfana proteção do Poder
Moderador de Dom Pedro II. Foi a única vez em que os partidos tiveram a certeza
da alternância do poder, não sendo, portanto, necessário o golpe de Estado para
promovê-la. A República Velha
inaugurou o ciclo do partido único sob o disfarce do binarismo partidário. Os
excluídos acabarão com esse sistema na Revolução de Outubro de 1930. O que nos
levará à ditadura para impor o projeto político de nação que a República
oligárquica inviabilizara, que terminará com a deposição de Vargas e, no
retorno de 1950, seu suicídio em 1954. Um
novo regime binário nascerá com o golpe de 1964, sob condição de que apenas
um partido governaria.
JOSÉ DE SOUZA MARTINS Sociólogo e ex-professor da USP |
A abertura
política de 1985 supostamente se fez para assegurar a pluralidade dos partidos
e a alternância do poder. A irresistível ascensão política do PT à Presidência trouxe no bojo,
novamente, o bloqueio dessa alternância, através
dos vários mecanismos de corrupção e de dominação, como o Bolsa Família, que sob disfarce
eleitoral e democrático, fecharam as portas à troca cíclica de partidos no
poder. Era inevitável que o movimento pendular da política brasileira,
entre alternar o mando político e bloqueá-lo, levasse a uma solução drástica
para remoção do partido da Presidência, nela mantido por meios que, do ponto de
vista formal, parecem abusivos. Por acaso, o recurso encontrado foi o do impeachment. Independente das múltiplas
motivações que movem a roda da História no sentido de excluir do poder o
Partido dos Trabalhadores, o que explica
as ocorrências de agora é a dinâmica política do retorno cíclico da
possibilidade da renovação do poder, algo que está fora das cogitações
explícitas dos que agitam bandeiras nas ruas e dos que agitam cartazes no
Parlamento.
A alternância que se abre com a sucessão que
decorrerá do impeachment, se
aprovado, é alternância minada pelo fascínio
do poder, o mesmo fascínio que capturou Lula, privando-o da lucidez que
teve em diferentes momentos da história política brasileira: quando seus
poderosos e ambiciosos coadjuvantes imaginavam que estavam indo, ele já estava
voltando. Foi assim no caso do mensalão. Mas não está sendo assim no caso
presente. Atraído pelo olhar fatal da serpente do poder, ele se equivoca
fazendo campanha eleitoral para 2018, quando a prioridade histórica é agora
completamente outra, a da salvação
nacional.
Não erra sozinho. Os partidos não estão
recorrendo aos notáveis da política brasileira, aqueles cujo carisma lhes
permitiria a palavra de bom senso
que era tão própria dos que, no período colonial, eram chamados de “pais da
pátria”. Com exceção de Fernando Henrique Cardoso, que tem tomado a palavra
mesmo quando não lha dão, e de Marina Silva, da Rede, que tem falado mesmo
quando não é convidada a fazê-lo, não se
vê o protagonismo explícito e necessário de Olívio
Dutra, do PT, de Cristovam Buarque, do PPS, de Pedro
Simon e de Jarbas Vasconcelos, do PMDB e de tantos mais cujo magistério
ajudaria o país a escapar da armadilha de achar que estamos apenas decidindo,
antes do tempo, a eleição de 2018.
* JOSÉ DE SOUZA MARTINS é
sociólogo, membro da Academia Paulista de Letras, entre outros livros, autor de
Do PT das Lutas Sociais ao PT do Poder
(Editora Contexto).
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