O QUE HÁ DE NOVO NA EXORTAÇÃO SOBRE A FAMÍLIA DE PAPA FRANCISCO

A maravilhosa complexidade do bem possível 
e o “doce comprimento” de Amoris Laetitia

Andrea Grillo*

Na Exortação Apostólica "Amoris Laetitia" lemos o início oficial de uma perspectiva diferente sobre as formas de amor humano.
O "comprimento doce" de um documento que abre uma nova era, à luz da Palavra de Deus e da experiência dos homens
PAPA FRANCISCO
Não teme tomar a família como ela é hoje e oferecer-lhe a acolhida da misericórdia e do amor em meio
a um mundo sempre mais complexo e desafiador para a vivência das verdades de Cristo

Não seria difícil pensar que encontraríamos, em Amoris Laetitia, todos os vestígios do caminho, rico e complexo, que a Igreja realizou nos últimos três anos. Mas nesse documento se exprime, bem mais, o fecundo trabalho de um caminho muito mais longo, que começa no dia após a perda do poder temporal, em 1880, e que chega, ao longo de muitas e diferentes fases, a esta nova transição histórica. Somente uma leitura mais atenta poderá melhor clarear o alcance e a articulação deste documento. Pelo momento, podemos somente reagir a alguns elementos novos e relevantes do texto:

a) Sai-se da lógica de um “documento sobre o matrimônio e sobrea a família” – como era ainda para Familiaris Consortio (exortação apostólica de João Paulo II de 1981) e como era, no início, Arcanum Divinae sapientiae, em  1880, de Leão XIII, – e entra-se em uma consideração que poderíamos definir, em sentido amplo, pastoral” e “moral” da questão do amor. Somente assim pode-se compreender plenamente a vasta extensão do documento, que tem, em seu interior,  diversos níveis de discurso, que vão do sapiencial ao descritivo, do moral ao bíblico, do parenético (exortação moral) ao testemunhal. Como já havíamos lido em Evangelii Gaudium (primeira exortação apostólica de Papa Francisco, publicada em 24 de novembro de 2013), o estilo de papa Francisco é intencionalmente “superabundante” para atestar a “necessária incompletude” do pensamento cristão, para deixar aberto o sistema, para garantir que o “máximo de misericórdia” possa irromper. Esta reviravolta é claríssima no início e ao final da Exortação, mas aparece continuamente na textura do texto. Apesar da diversidade de seus registros, o anúncio do primado da misericórdia e da insuficiência de uma lógica “objetiva” – mesmo que justamente defendida na sua necessidade – aparece como o “basso continuo” (expressão musical que, significa a sustentação harmônica de toda a composição musical) do documento.

b) Prevalece amplamente a novidade de uma admirada descrição do “positivo do amor” em relação aos esclarecimentos indignados do negativo. Em todas as passagens mais delicadas – de caráter bíblico, doutrinal, espiritual ou disciplinar – o texto mantém esta “vocação à integração”, que assume um papel de “discrimen” (lat.: distinção, diferença). Em uma Igreja que conheceu “duas vias” – excluir ou integrar – as contingências atuais impõem uma escolha muito clara em vantagem da integração. Isto – reconhece-o o próprio documento em suas páginas finais – requer um empenho não somente “pastoral”, mas “teológico” de qualidade diversa. O texto, em sua primeira página, reconhece “a necessidade de continuar a aprofundar com liberdade algumas questões doutrinais, morais, espirituais e pastorais. A reflexão dos pastores e dos teólogos, se é fiel à Igreja, honesta, realística e criativa, nos ajudará a atingir uma maior clareza” (Amoris Laetitia [AL], 2).
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c) Sobretudo no início e no final do documento gastam-se muitas páginas – que permanecerão, seguramente, entre as mais importantes – ao recolocar corretamente a relação com a tradição. E aqui eu gostaria de destacar dois critérios fundamentais, que modificam profundamente o estilo eclesial, tanto pastoral quanto teológico:

* O princípio da superioridade do tempo sobre o espaço ajuda a compreender, ao mesmo tempo, um redimensionamento das pretensões do Magistério e a legitimidade da coexistência de interpretações diversas: “nem todas as discussões
doutrinais, morais ou pastorais devem ser resolvidas através de intervenções magisteriais. Naturalmente, na Igreja, é necessária uma unidade de doutrina e práxis, mas isto não impede que existam maneiras diferentes de interpretar alguns aspectos da doutrina ou algumas consequências que decorrem dela” (AL, 3).

* A superação de uma leitura excessivamente rígida e injusta da “objetividade do pecado” como incontornável obstáculo à comunhão eclesial e sacramental. “Por causa dos condicionalismos ou dos fatores atenuantes, é possível que uma pessoa, no meio duma situação objetiva de pecado – mas subjetivamente não seja culpável ou não o seja plenamente –, possa viver em graça de Deus, possa amar e possa também crescer na
vida de graça e de caridade, recebendo para isso a ajuda da Igreja” (AL, 305).

Estas duas passagens – que abrem uma região até agora explorada somente por alguns nichos pastorais, preciosas, mas até este momento, nos limites da clandestinidade – tornam possível o acesso da “pastoral ordinária” a uma lógica oficialmente diferenciada. A “complexidade” desta passagem é proporcional à indiferença com a qual, até agora, foi considerada em linha geral.

d) O princípio de misericórdia como “arquitrave do edifício eclesial”: isto determina a necessidade de um repensamento estrutural da relação entre doutrina e pastoral. A doutrina, que não muda, tem porém necessidade de falar uma língua diversa e de ser compreendida com um pensamento diferente. A insistência, ao longo de toda a Exortação, a não transformar a doutrina “em pedras” – e a assumir um perfil “materno” da doutrina – não é simplesmente um “recurso pastoral”, mas diz respeito à interpretação do sentido e do alcance da própria doutrina sobre o matrimônio, sobre a família e sobre o amor. A mudança de estilo e de linguagem acrescenta um paradigma doutrinal novo e mais amplo.

e) A superação da “proibição de reconciliação / comunhão” como primeira regra do tratamento das situações “irregulares”, que era ainda reafirmada pela Familiaris Consortio. As palavras integração, acompanhamento e discernimento tornam-se, agora, e somente agora, a via geral, mesmo se jamais genérica, de uma abordagem amorosa e misericordiosa a cada um e a todos. A lógica do “discernimento em foro íntimo” e do “acompanhamento em um itinerário” aparece, com clareza – mesmo se em forma voluntariamente não determinada – como novas exigências da pastoral ordinária. Caberá à pastoral, aos párocos e aos bispos, determiná-lo “qui ed ora” (it.: aqui e agora). A isto não estávamos habituados, ao menos, há um século. E vamos ter de arregaçar as mangas.
PAPA FRANCISCO EM SUA EXORTAÇÃO SOBRE O AMOR NA FAMÍLIA,
ASSUME A REALIDADE FAMILIAR TAL COMO ELE É NO MUNDO DE HOJE!

f) A história pessoal e a consciência dos sujeitos tornam-se relevantes para a recepção da doutrina. Ainda mais, sem esta recepção, a melhor doutrina resta letra morta. “Somos chamados a formar as consciências, não a pretender substituí-las” (AL, 37); por isso a consciência “deve ser melhor envolvida na práxis da Igreja” (AL, 303): este princípio final, composto com o princípio de misericórdia, determina o horizonte novo de uma “pastoral do amor” que deverá tomar formas adequadas para aproveitar esta histórica oportunidade de renovação. A inteira “pastoral do amor” deve ser lida à luz deste duplo princípio: a misericórdia do Deus que dá e as consciências dos sujeitos que recebem, com Cristo e a Igreja como generosos mediadores.

Mas estes primeiros pontos dignos de nota [elencados acima], não devem desprezar uma forte originalidade do texto, seja quanto à estrutura, seja quanto ao estilo. A estrutura prevê um início com um primeiro capítulo “bíblico” de leitura da família concebido com originalidade e com sabedoria, com estilo imediato e corte transversal, que torna-se também critério de leitura de tudo aquilo que segue.

A releitura do matrimônio feliz – do qual não se esconde jamais nem a alegria nem o drama – acompanha um repensamento da abordagem das crises e das “irregularidades”, que não conhece mais nem as proibições objetivas nem os limites intransponíveis. Nisto, repito, está também a “reviravolta” em relação à Familiaris Consortio, texto que hoje passou o testemunho e concluiu a sua novidade, recolhida acuradamente no novo texto, mas nele também superada. A este resultado o caminho sinodal pode chegar graças ao confronto, ao diálogo, à escuta recíproca. E mesmo as páginas “autocríticas”, que aparecem no início do segundo capítulo do texto (sobretudo AL, 35-38), e que configuram sabiamente um “juízo sobre a realidade contemporânea”, evitando cruzadas ou lamentações desmedidas, ajudam a reconduzir a doutrina e a prática eclesial ao olhar de Jesus. Nesta lógica, o texto continua a indicar com lúcida clareza no matrimônio uma das vocações mais elevadas do homem e da mulher, mas quer também redescobrir, com uma força até agora desconhecida ao Magistério moderno, que “Jesus Se apresenta como Pastor de cem ovelhas, não de noventa e nove; e quer tê-las todas” (AL, 309).

À luz desta primeira leitura – integral, mas necessariamente inicial – podemos reconhecer que papa Francisco quis aceitar o desafio de uma realidade complexa, que a Igreja não pode simplificar demais, sem perder, ao mesmo tempo, a bênção da misericórdia de Deus e a caridade na relação com os homens: “Jesus «espera que renunciemos a procurar aqueles abrigos pessoais ou comunitários que permitem manter-nos à distância do nó do drama humano, a fim de aceitarmos verdadeiramente entrar em contato com a vida concreta dos outros e conhecermos a força da ternura. Quando o fazemos, a vida complica-se sempre maravilhosamente»” (AL, 308).

Esta “maravilhosa complexidade” – para usar a liberdade de linguagem tão típica de papa Francisco – abrirá sempre melhor a Igreja não somente ao bem máximo – que continua a brilhar como o ideal primário para todos – mas também ao bem possível – que alimenta cotidianamente a realidade dinâmica de muitas famílias felizes e de não poucas famílias feridas.
ANDREA GRILLO
Teólogo leigo casado italiano especialista em Liturgia e Sacramentos

Traduzido do italiano por Telmo José Amaral de Figueiredo.

* ANDREA GRILLO é teólogo italiano leigo casado, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, de Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, de Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, de Pádua.

Fonte: Blog “Come se non” – Andrea Grillo – Publicado: Sexta-feira, 8 de abril de 2016 – Internet: clique aqui.

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