Quem irá fazer acontecer a visão de Igreja do Papa Francisco?
Robert Mickens*
National Catholic Reporter
12-04-2016
“A
grande maioria dos bispos, do clero mais jovem (com menos de 45 anos) e dos
seminaristas está exatamente na estrada que São João Paulo II e seu sucessor
alemão construíram. Muitos deles encontram-se em conflito com Francisco e tudo
o que ele está fazendo para a renovação da Igreja”
O Papa Francisco, com a publicação de Amoris Laetitia (A alegria do amor),
apresentou uma reflexão ampla e profunda sobre uma miríade de questões (muitas
vezes confusas) concernentes ao matrimônio,
à família e à sexualidade humana.
E, ao assim fazer, o papa de 79 anos também
trouxe uma visão clara do discipulado cristão. É uma visão que se baseia mais na responsabilidade pessoal e no
discernimento orante do que no mero seguimento de normas religiosas.
Mais que isso, neste mesmo documento ele
esboça um perfil do ministro ordenado. Sacerdotes
e bispos devem ser líderes a serviço que, com misericórdia e paciência,
acompanham, dialogam e colaboram, com humildade, com o seu povo na qualidade de
discípulos companheiros. O papa não quer pastores que abordem raivosamente
os fiéis que ficam aquém das normas e leis morais “como se fossem pedras que se
atiram contra a vida das pessoas”.
Em uma palavra, ele propõe novamente o modelo
de discipulado e liderança surgido no Concílio Vaticano II (1962-1965). O papa está tentando pegar o caminho que a
Igreja havia embarcado na primeira década ou mais após o Concílio, uma caminhada que João Paulo
II estancou e que começou a “corrigir”, recalibrá-la já no começo de seu longo
pontificado (1978-2005).
Esta adoção de Francisco àquele caminho
anterior deveria ser amplamente incentivada por muitos dos assim-chamados
“católicos do Vaticano II”, que permaneceram envolvidos ativamente na Igreja
apesar do retorno de Wojtyla. Tal adoção poderia dar novas esperanças àqueles
muitos ex-católicos que acham que a Igreja, sob o papa polonês santificado,
abandonou-os quando mudou o curso da instituição.
Há aqui um desafio muito sério. A grande
maioria dos bispos, do clero mais jovem (com menos de 45 anos) e dos seminaristas
está exatamente na estrada que São João Paulo II e seu sucessor alemão
construíram. Muitos deles encontram-se
em conflito com Francisco e tudo o que ele está fazendo para a renovação da
Igreja.
Muitos destes
líderes religiosos são personalidades rígidas, obsessas com a “clareza”
doutrinal,
pessoas que definem suas identidades em um mundo religioso do tipo preto ou
branco (como o uniforme que vestem) e exalam
a confiança de serem reconhecidos como os guardiões da Verdade que acreditam
ser de posse somente da Igreja.
Esse tipo de
clérigo (e
os leigos
clericalistas que continuam a pôr os sacerdotes em um pedestal) serão de pouca utilidade para a
implementação da visão de Igreja que o Papa Francisco desvelou em Amoris Laetitia.
E, pelo que ouço, não parece que os seminários – pelo menos aqui em Roma e em grande
parte dos Estados Unidos da América (EUA) – trazem grandes esperanças de mudança no curto prazo.
O Pontifício Colégio Norte-Americano da
Cidade Eterna é um exemplo do que estou falando. Tenho certa familiaridade com
o lugar, dado que fui seminarista aí entre os anos de 1986 e 1988. As amizades
que fiz com algumas pessoas muito legais – algumas hoje são ordenadas (vários
como bispos), outras deixaram o ministério ativo – não alteram a minha
convicção de que, como na maioria dos outros seminários, o Pontifício Colégio Norte-Americano está construído sobre um modelo e uma mentalidade inadequados para a preparação dos sacerdotes de hoje.
Por muito tempo, o citado seminário em Roma
manteve o título de ser aquele que tinha o menor índice de evasão entre todos
os seminários americanos. É difícil localizar os registros de informações das
quais os bispos não sentem orgulho, mas sabe-se que um número incomum de
ex-alunos do Colégio Norte-Americano abandona a vida sacerdotal logo após a ordenação,
na comparação com as evasões notadas em outros seminários.
Esse não é exatamente um motivo de orgulho
para uma instituição que foi pensada a fim de perpetuar o tipo de liderança
episcopal e um modelo de Igreja que emergiu durante as últimas três décadas com
a hierarquia americana cada vez mais
conservadora.
Afinal de contas, ele está sob a autoridade
de um conselho de administradores e da Conferência dos Bispos Católicos dos
Estados Unidos. O seu atual presidente é Dom
John Myers, arcebispo de Newark, filiado ao Opus Dei. Bispos, cardeais e doadores ricos são convidados
frequentes no Colégio. Quando o hoje Cardeal
Timothy Dolan era o reitor (1994-2001), ele anexou uma série de suítes e
apartamentos para o seu uso exclusivo. Os moradores locais acostumaram-se com a
presença constante de príncipes da Igreja e de poderosos do mundo dos negócios.
PONTIFÍCIO COLÉGIO NORTE-AMERICANO EM ROMA Vista geral - construído sobre a colina Gianicolo, próximo ao Vaticano |
O Pontifício Colégio Norte-Americano foi
criado em 1859, no reinado de Pio IX, quando um punhado de alunos se alojaram
em um prédio modesto próximo da Fontana di Trevi. Desde a década de 1950, o
colégio se situa na colina Gianicolo onde, de um lado, pode-se desfrutar de uma
visão impressionante da Basílica de São Pedro e do Vaticano e, de outro, tem-se
um panorama espetacular de toda a cidade de Roma.
Este “novo”
local foi propositalmente pensado para ser grande e imponente (construído na arquitetura fascista em blocos) para mostrar à Santa Sé e ao resto do mundo
que a jovem Igreja americana tinha dinheiro e que poderia bancar a si própria.
“Não é um lar, é muito mais”, costumávamos
dizer.
Já no começo, o seminário ficou conhecido
como o lugar que preparava os futuros bispos dos EUA, instrumentalizando os
seus líderes episcopais com pedigree
romano. Realmente, desde o início do
século até 1974 o reitor era quase sempre um bispo. O último entre eles foi
o falecido James Hickey (1969-1974),
que seria mais tarde o cardeal arcebispo de Washington.
Vários outros bispos americanos de hoje –
incluindo os cardeais Raymond Burke, James Harvey, Daniel DiNardo e Timothy
Dolan – estiveram no Pontifício Colégio Norte-Americano durante os seus cinco
anos como reitor. Os “Hickey Boys”, como são conhecidos, quase se transformaram
na última geração em série desta fábrica de bispos.
Durante os dezesseis anos seguintes
(1974-1990), uma sucessão de três reitores – os monsenhores Harold Darcy, Charlie Murphy e Larry
Purcell – tentaram preparar os
estudantes sob um modelo de liderança a serviço, que estava em voga após o
Vaticano II.
Acrescentaram uma formação pastoral e
programas ministeriais, com uma atmosfera comunitária menos regimentada,
apelando à maturidade e responsabilidade dos alunos em cooperar com os seus
esforços.
Porém, no
começo dos anos 1980, algo mudou. Uma nova geração de bispos americanos
mais conservadores começou, cada vez mais, a mandar seminaristas para o Colégio,
eram estudantes que se autoidentificavam
como conservadores ou tradicionais. Encorajados por seus bispos, foram
abertamente críticos com os professores “progressistas” da instituição.
Anos mais tarde, um aluno descreveu estes
tempos como os “anos negligentes” quando descobriu que eu havia sido um aluno
dessa época.
O seminário é um tempo de discernimento e,
diante disso, o Monsenhor Purcell e sua equipe de formação foram contratados
pelos bispos dos EUA para ajudar-nos em nosso discernimento e, talvez, até
mesmo fazer um juízo sobre se éramos, ou não, verdadeiramente chamados ao
sacerdócio. Tornou-se evidente, porém, que havia
aqueles bispos contundentes que mandavam alunos ao Colégio de Roma já
determinados a ordená-los ao sacerdócio – independentemente do que a equipe de
formação viesse a dizer.
Uma grande mudança ocorreu no Colégio em
1990, e as estrelas começaram a se alinhar quando nomearam como reitor o Monsenhor Edwin O’Brien, de Nova York.
Como um filho favorito do Cardeal John
O’Connor, O’Brien reforçou imediatamente a disciplina e refez o código de
vestimenta do seminário. Os que
descrevem hoje o Colégio Norte-Americano como uma instalação católica ao estilo
das bases militares dos EUA falam isso com base no que o Cardeal O’Brien
construiu. Este prelado hoje é o Patrono dos Cavaleiros do Santo Sepulcro.
EDWIN O'BRIEN: é um cardeal católico romano e Grão-mestre da Ordem Equestre do Santo Sepulcro de Jerusalém, arcebispo-emérito de Baltimore, nos Estados Unidos |
Conhecido por insistir que os seus
seminaristas tenham os seus sapatos bem engraxados, cabelos bem cortados e
camisas bem passadas, ele trouxe junto
de si católicos ricos para ajudar no financiamento do Colégio. Entre outras
iniciativas, deu início ao que é hoje o evento anual “Jantar do Reitor”: uma noite
de gala para entreter os benfeitores com a presença de bispos e cardeais do
Vaticano.
A 24ª edição do Jantar aconteceu na
quinta-feira passada, 7 de abril, e as “doações” começaram com o preço de U$
450,00 por prato. A cúpula da hierarquia americana estava presente, incluindo o
núncio apostólico de Washington que, em breve, iria se aposentar, Dom Carlo
Maria Viganò.
Inscritos no
começo do ano acadêmico estavam 252 alunos, um recorde histórico. Este número representa
cerca de 100 residentes a mais do que havia na década de 1980. Pode-se creditar
ao Cardeal Dolan as iniciativas de elevar este número de seminaristas. Durante
os seus anos como reitor, o lema “200 para 2000” fez parte de uma campanha para
aumentar a população do Colégio a duzentos seminaristas durante o Grande
Jubileu. Isso não aconteceu, mas hoje o número foi até superado.
Isso também é parte de um esforço dos bispos americanos de convencer
os seus iguais no Vaticano de que as vocações sacerdotais nos EUA estão em
ascensão – o que é patentemente falso. Na verdade, os líderes mais
poderosos na hierarquia americana incentivam os bispos a enviarem mais alunos
para Roma, esvaziando outros seminários até o ponto de alguns deles – como o
Colégio Americano em Lovaina, na Bélgica, fundado antes do Colégio de Roma –
serem forçados a fechar ou fundir-se com outros.
O Monsenhor
James Checchio, que fora reitor de 2005 até janeiro deste ano,
supervisionou este período de inscrições sem precedentes. Natural de Nova
Jersey e prestes a ser ordenado Bispo de Metuchen (Nova Jersey) no próximo mês,
também acompanhou a construção de uma torre de dez andares, acrescentando
outros 36 mil metros quadrados (salas de aula, capelas e salas de estar) ao
Pontifício Colégio Norte-Americano. O prédio foi erguido em dezoito meses, um
milagre em um país onde é particularmente complicado se conseguir as várias
autorizações necessárias junto às autoridades públicas. O projeto teria custado
7 milhões, que foram pagos por benfeitores generosos.
Instituições
ruins podem às vezes trazer um grande prejuízo a pessoas boas. E é difícil ver como lugares
como o Pontifício Colégio Norte Americano estão preparando os sacerdotes do
futuro a terem o “cheiro das ovelhas”
ou ajudando-os a abraçar o sonho do Papa
Francisco de uma “Igreja pobre para os pobres”.
Traduzido do
inglês por Isaque Gomes Correa.
Acesse a versão original deste artigo, clicando aqui.
* Robert Mickens
é editor-chefe da revista Global Pulse.
Desde 1986, ele tem vivido em Roma (Itália), onde ele estudou Teologia na
Pontifícia Universidade Gregoriana antes de trabalhar 11 anos na Rádio Vaticano e ainda uma outra década
como correspondente do The Tablet,
publicação de Londres (Inglaterra).
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