«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

As coisas poderiam ser diferentes!

Uma análise de fundo a partir do
golpe de Estado na Bolívia

Bruno Lima Rocha*

Como perder, facilmente, o poder para a direita
com o apoio dos meios de comunicação,
de parte das igrejas evangélicas e dos
Estados Unidos da América
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BRUNO LIMA ROCHA

Introdução

As palavras que seguem somam uma reflexão de fundo antecedida pelo fato, imediato, do golpe de Estado na Bolívia. O modelo de análise seria tomando por base o caso boliviano, a Constituição Plurinacional e a multiplicidade jurídica que assegura a “autonomia decisória e soberania popular de fato nos territórios”. Não imaginava que teria de fechar o texto assistindo ao vivo pela Telesur e Bolívia TV o discurso de renúncia do presidente e seu vice.

Golpe de Estado na Bolívia

Domingo, 10 de novembro, se decreta um golpe de Estado na Bolívia. Inicia com a quarta reeleição da dupla de candidatos do Movimento ao Socialismo (MAS) - IPSP (Instrumento Político pela Soberania dos Povos). Deixo aqui a crítica, explícita, de que o MAS/IPSP teria, necessariamente, de indicar novos candidatos e assim quebrar o ciclo de concentração de poder, algo que, evidentemente, fortalece a posição dos partidos à direita e ligados ao imperialismo mais tacanho. Ocorre justo o oposto.

Evo e Linera concorreram. Na noite de 20 de outubro estariam ganhando, mas teria um segundo turno. Logo a contagem é interrompida e no retorno, pela legislação boliviana, a chapa oficialista supera em dez por cento o segundo colocado, o ex-presidente Carlos Mesa e, teria vencido. A oposição obviamente não aceita o resultado – na verdade não aceitaria resultado algum – e retomam uma sublevação a partir de Santa Cruz de La Sierra. Liderados por Luís Fernando Camacho, à frente do Comitê Cívico desta localidade (que possui expansão nacional) operando como força de choque, iniciam os cercos nas grandes cidades, nas estradas e ampliam a conspiração junto às forças mais reacionárias. Articulações com igrejas evangélicas com base nos Estados Unidos, papel fundamental da União Europeia, da recontagem da Organização dos Estados Americanos (OEA) e fortes suspeitas da presença de operadores brasileiros (ver aqui). Há que se levar em conta o papel dos meios de comunicação privados e pertencentes aos oligarcas, como também do acionar de redes muito conservadoras de igrejas pentecostais. Lemas como “a bíblia de volta ao palácio” circularam influenciados por robôs e servidores que teriam a mesma origem dos operados nas eleições brasileiras. Ou seja, um enredo mais ou menos previsível.

Na manhã de domingo, 10 de novembro, já sem nenhuma capacidade de defesa do Estado e menos ainda das instituições de base (das organizações sociais), altos mandos militares se declararam em desobediência ao Chefe de Estado e aquartelados. Segundo o que circula através de militantes feministas na Bolívia, o procedimento dos “centros e uniões cívicas” é cercar uma sede de sindicato, associação ou movimento indígena, incendiar esta sede, baixar a bandeira Wiphala (indígena de base aimará), erguer a bandeira do país e entoar o hino nacional. Ato explicitamente racista e anti-indígena. Era previsível a capacidade de instabilizar e surpreende o fato de não se montar uma estrutura de resistência.

É incompreensível. O governo deposto do MAS, no último pronunciamento público de Evo, afirma que confiava inteiramente na Polícia Nacional! Isso depois de tudo o que a Bolívia passou, contando apenas com o século XXI. Dia 20 de outubro, domingo, foram às eleições sabendo que poderia haver virada de mesa por parte da direita. Logo, porque não prepararam a base para resistir? Tinham base social para isso? Pelo visto não. Ah, Evo reclama, quase 80% da formação da Polícia Nacional é de origem indígena. E? O pertencimento étnico supera a disciplina militarizada? Óbvio que não. Confiaram cegamente na “lealdade dos militares”? Em 2008 a tentativa de golpe foi derrotada na rua. E a resistência? Onde estão os Ponchos Rojos? E agora?
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Transformar uma sociedade através do Estado?

Definitivamente o Estado é um aparelho complexo, tem desde o serviço público sob alguma forma de pressão popular (como no caso brasileiro, o combalido SUS ou a educação pública) e ao mesmo tempo não é só governo e serviços, tem corpos especializados permanentes, verdadeiros estamentos, como o Judiciário, o Ministério Público (MPF e Estaduais) e o conjunto do aparelho repressivo.

O Estado se for dotado de corpos militarizados (tal é o caso do golpe cívico-midiático-policial na Bolívia, em curso), tem relação de mando e obediência e divisão social do trabalho entre oficiais e praças. Logo, este tipo de instituição não produz novas formas de reprodução da vida, ao contrário. Tais corpos tendem a se reproduzir mesmo sob mudanças extremas de regimes, vide o caso do Império Russo (Okhrana), Períodos soviéticos (Cheka, GPU, NKVD, KGB) e Rússia de novo (KGB).
Portanto, assim como é necessário ousar no arranjo Jurídico (a exemplo das Constituições Plurinacionais de Equador e Bolívia) é preciso ousar em instituições tabus, como as de autodefesa na América Latina. Se militarizar um processo de câmbio, mata a semente, ou ficamos dependentes das cadeias de comando (tal como Velasco Alvarado foi sucedido por militares pró-Estados Unidos, o mesmo ocorrendo no Panamá, quando Manuel Noriega termina tomando o poder após o assassinato de Omar Torrijos). O inverso também é verdadeiro. Se não nos defendermos, como país e territórios soberanos, morremos quase todos e enterramos vivos nossos projetos.

Qual economia política aponta processos de câmbio?

É preciso repensar a economia política mesmo dentro do capitalismo. Se não romper com a falácia fiscalista (a mentira vem assim: “não tem verba porque não tem dinheiro, não tem dinheiro porque não há crescimento”) NÃO HÁ SAÍDA DE CRÉDITO. Se esta falácia acima citada fosse verdadeira, os Estados Unidos não teriam saído da Grande Depressão. É circulando dinheiro em suas várias funções (unidade de conta, reserva de valor, elemento de troca, garantia de depósitos e transações) que faz girar a economia capitalista e outras também (como com moedas sociais). Logo, se não romper com a falácia fiscalista (insisto com isso), as comunidades territoriais vão sobreviver com seus recursos, mas haverá ausência de política pública.

Mas só a economia capitalista na forma de serviço público não resolve. Essa constatação vale para reservas territoriais e a gigantesca mancha metropolitana na América Latina. Os territórios e seus projetos produtivos não precisariam ficar apenas no jogo econômico do capitalismo. Já ocorrem feiras de trocas, circulação de moedas sociais, crédito comunitário sem usar a moeda oficial. Enfim, como os tempos que vêm serão de ainda maior escassez, quanto maior o volume de experiências de economia comunal melhor, até porque, não se desenvolve tudo do zero se houver transformação da sociedade, ainda que na forma intermediária de duplicidade ou multiplicidade jurídica.
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Senadora Jeanine Áñéz Chávez se autoproclamou presidente da Bolívia,
em um parlamento sem quórum e com apoio militar

Quem governa e como governa? Fazer o que com as relações de poder local?

É preciso pensar alguma forma de co-governo, de elementos de pressão no poder municipal e nas regiões. Tem tradições que chamam isso de municipalismo libertário e ecologia social, mas podemos denominar de outros conceitos, tal é o caso do Curdistão sob Confederalismo Democrático. Tem experiências vitoriosas deste municipalismo na América Latina, tanto no maior autogoverno e autonomia, como em Chiapas e em todos os estados mexicanos, como na ação urbana de Cochabamba, Bolívia, na chamada “guerra da água” que ocorreu entre abril e junho de 2000. Ali foi a virada que levou, inclusive, à vitória na Guerra do Gás, em 2003 e a consequente vitória eleitoral do MAS/IPSP (em dezembro de 2005) e a Constituição Plurinacional (de fevereiro de 2009).

Fazer dos territórios formas de vida e escolas de resistência múltipla e igualitária?

Para no mínimo gerar um Impasse Político, ou uma dualidade de Poder Político no país, tomando como exemplo a ação da Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE), é preciso além da luta por terra e território, ousando em nova juridicidade baseada em usos e costumes e, no caso brasileiro, necessariamente passando por Diálogo Inter-religioso (não sei se esse termo está correto, mas fico aguardando aportes para o conceito adequado). Unir o povo na sua diversidade, também nos quesitos de jurisdição e resolução de conflitos. Isso já ocorre em diversos locais da América Latina e do Caribe. Um exemplo se dá nos municípios de maioria indígena na Guatemala, como uma compensação e até vitória pontual depois de 33 anos de guerra civil (1962-1995). No caso brasileiro, há uma consideração importante. Temos a condição demográfica de não contar com uma maioria indígena e sermos um país metropolitano, onde a população afro-brasileira é majoritária e as culturas afro-brasileiras operam como espinha dorsal da nacionalidade moderna. Logo, o debate entre Religiões Afro-Brasileiras, Cristianismo Popular e sim, uma enorme parcela das Igrejas Evangélicas - como projeto de poder social materializável - esse debate mesmo sendo delicado, deve seguir. Importante ressaltar que o reboquismo nunca leva a nada a não ser ao desastre. A CONAIE só está viva porque não teve adesão, não se subordinou ao governo de Rafael Correa. Mas só consegue virar situações limites porque faz aliança com a luta urbana e metropolitana.
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Trabalhadores bolivianos protestam contra golpe militar em seu país

Projeto político, projetos políticos e consequências?

Eu seria irresponsável se não lhes colocasse a relevância da soberania alimentar e a defesa do território diante das pressões do Sistema Internacional, incluindo aí a China, que é dona da Syngenta, por exemplo. O mínimo que um país precisa é se alimentar, ter energia o suficiente para o que necessita ou projeta, manter seus recursos naturais sob controle popular e poder se defender. Mesmo em uma situação de um governo mais à esquerda, sem necessariamente um processo de câmbio, quem vai empurrar este “suposto governo” é o conjunto de povos auto organizados dos Brasis. O mesmo se dá nos demais países da América Latina. Não devemos nos perguntar se isso está acontecendo, se vai ter virada de mesa. Mas sim quando os colonialistas e seus aliados internos vão tentar dar uma ou mais viradas de mesa. Um impasse político com controle territorial de uma parcela do país é algo que já ocorre em vários países da América Latina (como nos territórios indígenas do México, Colômbia, Bolívia, diversos países caribenhos, dentre outros) e pode se tornar um modelo mais unificador para as esquerdas de nosso Continente.

Homenagens: Honduras e Bolívia

Queria dedicar esse minúsculo esforço do texto acima à memória da liderança Garífuna (equivale a quilombola em português ou palenquero na tradição colombiana e venezuelana) Francisco Guerrero Centeno (39 anos) e antes o martírio da dirigente também garífuna María Digna Montero.

Centeno era liderança na comunidade de Masca, na costa (atlântica caribenha) de Honduras. Este país sofreu o primeiro golpe de Estado de novo tipo na América Latina (junho de 2009) já na execução do Projeto Pontes, no ciclo dos chamados Golpes Constitucionais auxiliados pelo Departamento de Estado dos Estados UnidosHonduras 2009, Paraguai junho 2012 e Brasil abril de 2016. O mais recente golpe de Estado se deu no fechamento desse texto, em novembro de 2019, na Bolívia.
Williams Kaliman - chefe das Forças Armadas da Bolívia - pede a renúncia de Evo Morales
Continuando a análise...

Tópico zero: Quem mandou chamar a OEA para fazer uma auditoria vinculante das eleições bolivianas?

Não bastou a eleição fraudada de Honduras em novembro de 2017? Será que houve algum grau de “inocência” supondo que a mesma OEA iria se comportar com a desenvoltura do início da crise hondurenha em junho de 2019? Realmente não é descritível o absurdo. Já que era para ter referência em alguma instituição gringa, porque não convocaram a Fundação Carter. Em geral esta fundação ou centro de direitos humanos vinculados ao ex-presidente dos Estados Unidos Jimmy Carter (democrata da Georgia, cristão renovado, 1976-1980 no mandato). Tais missões incluem, por exemplo, a avaliação dos processos eleitorais venezuelanos, em geral com resultados positivos ainda que com falhas e penalidades de todas as chapas concorrentes. Ou seja, porque o gabinete do MAS aceitou a presença da OEA?! Não tem explicação lógica alguma!

A presidenta interina “eleita” de forma indireta na sessão sem quórum do Senado

No dia 12 de novembro a segunda vice-presidente do Senado, senadora Jeanine Áñéz Chávez (eleita pelo Partido Progresso Bolívia – Convergência Nacional) depois perfilada na aliança União Democrática assume a linha sucessória da Presidência da República em uma sessão suspendida por falta de quórum, tanto na Câmara de Deputados como no Senado. As bancadas do MAS/IPSP (Movimento ao Socialismo/Instrumento Político pela Soberania dos Povos) equivalem a 2/3 de ambas as casas legislativas e não compareceram. Antes, essa mesma bancada foi a público exigindo garantias e punição para o fascista Luis Fernando Camacho e seus seguidores. Não obtiveram nenhuma das duas exigências e se retiraram. Pela regra constitucional, o mandato tampão seria de 90 dias de governo sem governo. Seria...

no dia 13 de novembro a TV boliviana, canal PAT (com base em Santa Cruz de la Sierra e ligada umbilicalmente aos capitais que dominam o Comitê Cívico Pró-Santa Cruz e as hordas fascistoides), coloca um advogado constitucionalista e um cientista político justificando todo o processo de eleger uma presidenta para mandato tampão sem ter quórum nem na Câmara nem no Senado. Segundo o que relatam, Em Alto, acima de La Paz, e no Chapare, zona tropical de Cochabamba, fortes redutos aymaras e do MAS, estariam sob ocupação militar conjunta do Exército e Polícia Nacional. Em 90 dias a senadora irmã de pastor pentecostal terá de organizar eleições gerais. Parece a Argentina depois da “revolução libertadora” de junho de 1955 dos oligarcas e militares gorilistas, propondo “democracia” sem a maior base popular. Jeanine pode ser sucedida por uma “junta cívico-militar”? Pode seguir como títere de empresários cruceños e militares arrivistas?

E caso venham as eleições? E se o MAS ganha? E se o MAS não concorre? Como impedir o MAS de concorrer? Apenas criminalizando o partido?

Cabe trazer um “detalhe”. A Bolívia cresce há mais de 13 anos uma média de 4% ao ano e tem investimentos pesados de China e Rússia, além de outros países. Esse capital externo vai seguir no país? Pelo visto não, e o acionar de capitais russos e chineses é tão oportunista como a direção do MAS vem se provando irresponsável e recalcitrante.
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Carlos Andrés Áñéz Dorado - sobrinho da autoproclamada Presidente da Bolívia,
Jeanine Áñéz Chávez, foi preso traficando centenas de quilos de cocaína

A Bolívia da direita colonizada em júbilo. A direita boliviana como a caricatura que haveria deixado de ser

A senadora que assume na Bolívia em sessão sem quórum no Senado é tia de Narco, irmã de pastor picareta, apoiada por fascistas com empresas de agronegócio e contas fantasmas no Panamá e sua primeira reunião foi com a milicada gorilia e vende pátria que deu o golpe no domingo. Jeanine toma posse com a bíblia na mão blasfemando já no primeiro discurso. É um momento de júbilo para latino-americanos que incorporam o complexo de “sudaca” e de “cucaracha”. A maldita direita miamera [=  amante de Miami] pró Estados Unidos deve estar tendo gozos múltiplos em suas alucinações de dominada que domina no seu quintal.

Para além da caricatura, existem laços bem profundos com a economia política do crime que o Departamento de Justiça através da DEA finge combater. No departamento de Beni, de onde vem a presidenta ilegítima Jeanine Áñéz Chávez os nexos político-criminais são muito mais profundos do que se imagina. Traduzi o relato da Rede Erbol de outubro de 2017, após a prisão de dois narcotraficantes bolivianos em solo brasileiro levando 480 quilos de cocaína em um avião leve:

«Fábio Andrade Lima Lobo é filho da ex-candidata do MAS a
vice-governadora Carmen Lima Lobo.
Seu pai é o capo narco colombiano Célimo Andrade (ex-membro do Cartel de Cáli).
Já o outro preso, Carlos Andrés Áñéz Dorado é sobrinho da
senadora Jeanine Añez Chávez, de acordo com o Ministro.»

São dois outros os familiares de Fabio Andrade com ligação política. À época eram o prefeito de San Joaquín e um ex-candidato para a assembleia departamental de Beni assembleísma departamental, o primeiro pela aliança MNR-UD e o segundo pela UD.

Enquanto circulavam denúncias desse gênero (e pela experiência acumulada, isso é só o começo, vide Honduras e o caso do irmão do presidente preso nos Estados Unidos por narcotráfico) o comando da Polícia Nacional golpista fazia um pronunciamento público. Na cerimônia improvisada, o substituto do golpista que renunciou na segunda após o golpe, dizia que a instituição respeita a bandeira Whipala, que a mesma representa todo o país, ocidente e oriente bolivianos, indígenas e não indígenas e não vai mais tolerar o desrespeito à bandeira indígena. A senadora Jeanine Áñez Chávez, do partido Unidade Democrática (UD), do departamento de Beni, advogada e ex-diretora do conglomerado de comunicação Totalvisión repetiu o mesmo gesto. Ela, a presidenta tampão, “eleita” no Senado sem quórum, fez o mesmo gesto de desrespeito aos símbolos originários. Será que consegue “governar” sem essa lealdade, sem esse respaldo da maioria da população do país?
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Multidões de indígenas saem às ruas na Bolívia protestando contra o golpe cívico-militar

Solidariedade aos povos da Bolívia e crítica ao MAS, sem tergiversar

Sei que o tema é delicado, mas não há como negar que a direção do MAS, a partir de sua dupla de governo, realmente forçou a barra. Foram ao plebiscito em fevereiro de 2016 e perderam. Não era para terem concorrido à 4a reeleição e poderiam sim, perfeitamente, produzir um gigantesco processo de consulta e participação popular de modo a indicar a nova chapa do então oficialismo. Fizeram tudo ao contrário, rachando as bases sociais e indígenas e criando condições para um voto de protesto no oligarca Carlos Mesa (à frente de um guarda-chuva chamado de Comunidade Cidadã e ainda por cima com um vice com mestrado em administração pública por Harvard!), o ex-vice de Goni (Gonzalo Sánchez de Lozada) posto a correr em outubro de 2003 na Guerra do Gás. Por mais absurdo que possa ser o adversário de Evo, houve muita subestimação na convocatória do “voto de protesto”.

É fato. Personalismo radicalizado não deixa de ser personalismo. Um colega professor universitário na área da geografia, com muitas conexões bolivianas além de experiência direta na região, vem alertando para o tema e de forma apropriada. Nos quatorze anos de Evo e seu vice-presidente campeão das manobras, houve abundância de tensões na relação soberania dos Territórios e a ênfase no modelo extrativista para bater caixa, superávit, manter índices de crescimento e assim atingir as metas de governo foram as mazelas constantes de Evo e Linera.

Sim, governar é fazer escolhas, mas antes de mais nada é fazer andar os processos legitimadores destas escolhas. E, mais importante, passando por consulta soberana, já que a própria constituição Plurinacional assegura isso.

Deu tudo errado na dupla institucionalização incompleta. Não tem nada perdido, mas os racistas colonizados viraram a mesa e com os altos mandos militares ao lado e ajudando. Há que se rever a relação com as Forças Armadas, ao menos as forças eleitorais que se dedicam a ganhar parcelas de poder na urna da democracia liberal pós-colonial. Muitas lições, aprendidas na rua, nos assassinatos em Cochabamba e na rebelião de El Alto que está bem longe de terminar.

Sim, em alto e bom som há que se compreender. A luta na Bolívia não é por Evo nem pelo MAS, não apenas. Vai muito além disso, ultrapassa as condenáveis maquinações de Álvaro García Linera e tem um significado concreto para toda América Latina e Caribe.

Tal significado pode incidir na apreciação de nossas sociedades sobre outros países. Os governos “amigos” como Rússia e China fazem jogo duplo, reconhecendo “de facto” o governo de Jeanine - a eleita no Senado sem quórum - enquanto dizem que houve um golpe de Estado. O jogo no Sistema Internacional não é sujo não, é imundo e asqueroso.

A base do equívoco das análises “progressistas”: desconsiderar que é Whipala ou nada!
Existe um problema de fundo em muitas, muitas análises de colegas das esquerdas (sem ironias e senões) a respeito da crise institucional e do golpe de Estado na Bolívia, ocorrido no domingo 10 de novembro.

Em geral não trazem nada de novo, e ao contrário, há uma tendência em desconhecer ou desconsiderar (o que é quase o mesmo efeito). Ao não levar em conta o mais importante, o Estado Plurinacional e o fato de que em geral na Bolívia, quem ganha não leva, porque não há capacidade estatal para governar se não houver um mínimo de consenso de oposição de, ao menos, metade das Nações originárias.

Faltou uma institucionalidade originária e popular que pudesse fazer frente ao aparelho de repressão do Estado? Sim, sem dúvida. Ou seja, o problema não era o modelo em si, mas a condição incompleta do modelo, sob a tutela do MAS de García Linera mandando muito acima do IPSP dos Povos.

É duro falar isso agora, mas os fatos são os fatos. Já da parte de cá dos Andes, ou fazemos um esforço gigantesco para não apenas compreender a luta das 36 Nações Originárias da terra de Juana Azurduy e Bartolina Sisa, ou jamais iremos mensurar as reais possibilidades das lutas dos povos dos Brasis, incluindo a defesa incondicional dos territórios indígenas e quilombolas, assim como a urgente necessidade de promover um ecumenismo desde a base para contrapormos ao Cristofascismo tão bem retratado e denunciado por teólogas de avançada como Nancy Cardoso.

A evidência conclusiva

Para nós, latino-americanos, só nos resta fazer como José Gervasio Artigas, sendo brancos ou não, e mergulhar nas raízes das lutas de resistência deste pedaço de mundo, aplicar um estatuto de igualdade absoluta, tanto nas reivindicações como no estatuto da juridicidade e pelear ao lado de Andrés Guazurarí (Andresito Guacurarí y Artigas) e Joaquín Lenzina (el Negro Ansina). Somente assim vamos compreender que «nada podemos esperar a não ser de nós mesmos!».

«A la huella a la huella, de Bartolina Sisa y Juana Azurduy

* Bruno Lima Rocha tem doutorado e mestrado em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e graduação em Jornalismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Atua como docente de Ciência Política e Relações Internacionais e também como analista de conjuntura nacional e internacional. É editor do portal Estratégia & Análise, onde concentra o conjunto de sua produção midiática, analítica e acadêmica.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Segunda-feira, 11 de novembro de 2019 – Internet: clique aqui e Segunda-feira, 18 de novembro de 2019 – Internet: clique aqui.

Dois fatos que mostram o que é o Brasil de hoje

Aumento de mortalidade no país está diretamente ligado a corte de verbas no SUS

Marina Amaral

O Sistema Único de Saúde (SUS) apesar de sofrer com a falta de recursos desde a fundação, é responsável por uma das
maiores coberturas públicas de saúde no mundo
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DR. GASTÃO WAGNER DE SOUSA CAMPOS

Quando as bases do Sistema Único de Saúde (SUS) foram lançadas, em 1986, na 8a Conferência Nacional de Saúde, o dr. Gastão Wagner de Sousa Campos concluía o mestrado em medicina preventiva. O título de sua dissertação – “Os médicos e a política de saúde: entre a estatização e o empresariamento dos serviços de saúde” – coincide com o caminho profissional que traçaria a partir dali; sua tese de doutorado foi defendida um ano depois da criação do SUS, regulamentado em 1990, dois anos depois da Constituição cidadã.

Desde então, o dr. Gastão acumula os afazeres de médico e professor da Unicamp com a militância pela saúde pública. Presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) até o ano passado, ele continua a lutar pela permanência do SUS, que, apesar de sofrer com a falta de recursos desde a fundação, é responsável por uma das maiores coberturas públicas de saúde no mundo.

«Se a sociedade brasileira não pelejar pelo SUS no cotidiano,
quando for votar e escolher quem é a favor do SUS,
se os profissionais não defenderem o SUS, ele fica muito mais ameaçado.
Nos estudos que os políticos e sociólogos fazem – por exemplo, do sistema inglês, bem mais velho que o nosso, tem 90 anos já –, quem fez a defesa principal do SUS inglês foram os profissionais, os trabalhadores da saúde, 
que buscam apoio na sociedade e encontram.
Se deixar por conta dos governantes, aí eu sou pessimista»,
diz quando indagado sobre o futuro do sistema de saúde que
atende 160 milhões de brasileiros e universalizou as vacinas e
o tratamento contra a aids e contra alguns tipos de câncer.

Leia a entrevista feita e descubra por que o aumento da mortalidade de adultos nos últimos cinco anos e o da mortalidade infantil nos últimos três estão diretamente ligados à queda de recursos para o SUS, o que tende a se agravar neste governo, com as medidas propostas pelo ministro da Economia, Paulo Guedes.

Observação: a entrevista foi feita na semana passada, antes das medidas anunciadas ontem pelo governo Bolsonaro.
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Eis a entrevista.

Qual a atual situação do SUS e que impactos as medidas de Paulo Guedes podem ter sobre a saúde?

Dr. Gastão: Ao longo dos seus 32 anos, o SUS sempre foi subfinanciado, ou seja, já havia recursos insuficientes para o tamanho da necessidade de saúde da população, da extensão da cobertura do SUS. Mas isso se agravou, principalmente a partir da aprovação da emenda constitucional do teto de gastos, porque há mais ou menos cinco anos o orçamento federal para saúde, para o SUS, não repõe nem o valor da inflação, e aí ficamos com o fixo em torno de 210, 216, 220 bilhões [de reais], o que, na prática, é uma redução do gasto em saúde. Isso, evidentemente, tem consequências; a gente já tem investigação epidemiológica indicando o aumento da mortalidade de adultos nesses cinco anos, inclusive com artigos publicados em revistas internacionais da área de saúde. Por quê? O SUS reduziu a capacidade de compra de insulina para diabetes, de remédio para hipertensão. E as pessoas que dependem do SUS, que são 70% da população brasileira, têm aumentado o risco de internação, de agravamento dessas enfermidades crônicas e de morte. A gente já tem objetivamente a diminuição da expectativa de vida de adultos. E já tinha uma análise dos últimos três anos mostrando o aumento da mortalidade infantil depois de 25 anos de queda rápida. A gente tem uma inversão da curva na mortalidade das faixas menor de 1 ano e, também, menor de 5 anos. Então, o problema do financiamento é muito grave, é concreto.

E o objetivo do ministro Paulo Guedes é diminuir ainda mais o gasto em saúde e educação. Ele teve que retirar da proposta que o Ministério da Economia mandou ao Congresso a inclusão do gasto com aposentadorias de trabalhadores, de profissionais da saúde, no gasto obrigatório [com saúde], porque os presidentes da Câmara Federal e do Senado avisaram que não iriam apoiar. Isso reduziria em torno de 18% a 20% do gasto, que já é insuficiente. Mas eles insistem na proposta de desindexação do gasto municipal com saúde e educação, o que também vai ser um desastre; o volume de investimentos no SUS vai ficar ao arbítrio de cada prefeito e de cada governador. Porque o previsto é que, nesse mínimo de 15% do orçamento que eles são obrigados a gastar em saúde, não pode entrar o pagamento de funcionários aposentados, coleta de lixo, apesar de tudo isso indiretamente ter a ver com a saúde. São 15% estritamente no SUS, na atenção à saúde, preventiva e assistencial. E os estados são obrigados a gastar 10% do orçamento estadual. E é isso que o ministro da Economia, com essa ideia de redução a qualquer custo dos gastos públicos, à custa da vida das pessoas, quer mudar. O problema para ele – e a solução para nós – é que ele precisa de emenda para mudar a Constituição, dois terços de aprovação no Congresso, o que é bem mais difícil.
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Você acha que está em curso uma campanha contra a saúde pública, a favor da privatização, em que se diz que o SUS é um elefante branco, que não funciona…

Dr. Gastão: Há um movimento geral de desconstrução de políticas públicas. A ideia é que cada um que se vire no mercado. Isso é uma tragédia anunciada num país muito desigual, e o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. O SUS tem tido uma capacidade de resistência maior, apesar de todos os problemas que tem, do que outras políticas públicas. As universidades públicas, a política de ciência e tecnologia têm sido muito mais atacadas proporcionalmente do que a área da saúde. É que a desconstrução do SUS produz o que a gente chama de barbárie sanitária: num tempo muito curto, muita gente morre. Toda a vacinação do Brasil, 80% do tratamento de câncer das pessoas são através do SUS. Então reduzir isso, politicamente, é muito delicado.

A gente vê reportagens mostrando as filas dos hospitais, a dificuldade de fazer exames e cirurgias. Isso não leva os brasileiros a acreditar que o SUS é um sistema que não funciona?

Dr. Gastão: Eu acho que é um paradoxo: a força do SUS é a sua existência e a debilidade do SUS são os vazios assistenciais, a burocracia, a desigualdade: numa cidade tem fila para tal tipo de câncer, em outra cidade tem outra, em outra região não tem acesso ao tratamento de câncer. O SUS é muito heterogêneo e tem muitos problemas. O necessário seria investir para corrigir essas falhas, mas estamos agravando esses problemas. Só que é uma desconstrução lenta, sabe? Os políticos municipais, federais e estaduais não têm muita coragem de viver com isso de fechar hospital; eles fazem de forma estratégica, usando meios que dificultam a compreensão da população, como essa proposta do ministro da Economia. E todo esse radicalismo liberal contra política pública, servidor público, contra universidade, está atingindo o SUS. E aí vira só resistência, a política pública não consegue avançar, se renovar. Então, o SUS tem essa situação ambígua. As pessoas se queixam muito, mas não querem que retirem o que já têm.
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Comparado a outros países que têm sistemas de saúde privados, como se sai um serviço público como o SUS? É de fato ineficiente? Como é em relação a países como a Inglaterra, que tem sistemas públicos também?

Dr. Gastão: Na comparação, os países com os sistemas privados de saúde predominantes, como os Estados Unidos, perdem: são caros, têm menor produtividade. Ao contrário de outras áreas – na telefonia, por exemplo –, o mercado produz mais barato e com mais produtividade; na saúde e educação, já há pesquisas indicando que não é assim. Os sistemas públicos gastam melhor e têm uma cobertura maior, uma inclusão maior, um acesso maior a medicamentos, vacinas. E comparar o SUS a sistemas públicos de saúde de outros países é difícil. Tem 160 milhões de pessoas que só usam o SUS no Brasil. É muita coisa, é maior que a população da Inglaterra. Na Inglaterra, 96% das pessoas – ou em Portugal, 98% dos portugueses – usam o sistema nacional de saúde, o SUS deles. No Brasil, regularmente é 60% a 70% que usam o SUS, mas, como a gente tem pouco recurso, a nossa cobertura é menor e é muito heterogênea. 

Nas cidades do Nordeste, o acesso ao SUS é pior do que aqui no SUS do Sudeste. Se no SUS do Sudeste você pegar uma cidade como São Paulo, os centros e os bairros intermediários têm um acesso muito melhor do que as pontas, do que as periferias, onde moram 40% da população de São Paulo, onde moram 40% da população de Campinas. 

O SUS é um sistema público que devia se voltar aos mais carentes e vulneráveis, mas isso acontece muito lentamente. Eu estava vendo essas estatísticas da mortalidade por câncer no Brasil: quanto mais pobre, maior a mortalidade; quanto menor a renda, maior a mortalidade por câncer. É assim.

E isso é por falta de acesso a medicamento, a terapia, a cirurgia? Qual é o nó?

Dr. Gastão: Falta de acesso à atenção em saúde. Quem tem acesso? O SUS garante a quimioterapia, garante medicamentos, não têm faltado. Mas, se a pessoa é pobre, ela vai no posto de saúde na periferia, e a equipe lá, o médico, a enfermeira, desconfia de câncer de mama: o acesso à mamografia é difícil, desorganizado, não dá para você sair com a consulta marcada como deveria ser. A expansão do SUS não se dá conforme a vulnerabilidade da população; se dá conforme a capacidade de pressão política. A gente tem concentração de hospitais em algumas cidades e, dentro das cidades, em algumas regiões. Na parte preventiva, o SUS universalizou algumas coisas, independentemente da renda, da classe social. Vacinas, por exemplo, o SUS universalizou e democratizou: a cobertura de vacinas é alta, e hoje em dia são os setores da classe média e da classe alta que estão se recusando a tomar a vacina. Agora, há 30 milhões de pessoas no Brasil que não têm a água tratada até hoje, 50% da população sem saneamento – esgoto a céu aberto –, e não é só na zona rural, nas cidades também, em ocupações, favelas. Então, acaba tendo diferença na prevenção também.

Essa desigualdade econômica, social, cultural, política interfere. Outra área que é preventiva e é assistencial ao mesmo tempo e que o SUS universalizou: as políticas em relação à aids. A gente não vê diferença de mortalidade de pessoas que vivem com aids entre as que têm renda baixa e a população de classe média ou com maior poder de renda. Porque o SUS foi atrás de acesso, do diagnóstico e tratamento e orientação de prevenção, quase que universal. Em relação ao câncer, isso já não acontece, embora alguns [tipos de câncer] quase tenham se universalizado, como o câncer de útero, de colo de útero, que depende do tratamento de prevenção, de fazer Papanicolau. E poderia se universalizar porque a gente briga no SUS para as enfermeiras poderem fazer também, mas os médicos não querem. Mesmo os médicos proibindo, as enfermeiras fazem, e assim cerca de 70% ou 80% das mulheres brasileiras fazem Papanicolau. E a gente tem uma queda em todo o Brasil, mais acentuada em algumas regiões, que tem levado quase ao desaparecimento de câncer de útero através da prevenção e do tratamento logo no comecinho. O câncer, quanto mais cedo tratar melhor, então precisa universalizar o acesso. A desigualdade prejudica na área preventiva e na área assistencial.

[...]
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Alguns dados apontam também para um aumento de mortalidade materna. O senhor tem alguma notícia sobre isso?

Dr. Gastão: Então, a mortalidade materna está caindo devagar, e já estava caindo devagar antes. Ou seja, não se avançou. A mortalidade infantil caiu rapidamente, mas a mortalidade neonatal, que é o primeiro mês de vida, também cai muito devagar no Brasil. Tanto a mortalidade de crianças de até 1 mês quanto a de mulheres no parto e pós-parto são altas porque estão ligadas ao atendimento hospitalar, onde o SUS tem um impacto menor. Os hospitais não seguem muito as normas do SUS, principalmente pelo corporativismo médico. Aí cada um faz o que quer, do jeito que quer e entende. E, apesar de 80% das mulheres no Brasil fazerem o pré-natal regularmente com mais de sete atendimentos durante os nove meses de gravidez, o que é o mínimo necessário, o parto e a assistência ao parto são muito ruins no Brasil, e a gente tem esse problema que é a epidemia de cesarianas.

E isso está diretamente ligado à mortalidade materna? A cesariana é mesmo mais perigosa para a mãe?

Dr. Gastão: O risco de se fazer uma cirurgia de anestesia geral, de ter infecção hospitalar é muito maior. Por incrível que pareça, se você pegar por classe social, a mortalidade materna é tão alta entre os ricos da classe média alta quanto entre a população mais pobre, porque no setor privado 96% dos partos são cesarianas, no SUS é 46% – e ainda é muito alto. A recomendação mundial da OMS é de no máximo 20%. Ou seja, há uma mistura de mercado com dificuldades de atendimento no parto normal – a mortalidade é menor, mas não é simples. Apesar de o SUS pagar, os médicos não fazem analgesia em quem é negra e pobre – e eu estou falando em bases estatísticas que mostram que eles se recusam muito mais a fazer analgesia em mulheres negras do que em mulheres brancas.

Eles se recusam a fazer analgesia nas mulheres negras?

Dr. Gastão: Tem uma pesquisa da Fiocruz, “Nascer no Brasil”, com dados que indicam isso, sim (clique aqui para ver essa parte da pesquisa). O que falei sobre o aumento da mortalidade adulta no Brasil nos últimos cinco anos está em um artigo que saiu em novembro agora no Lancet [acesse, clicando, aqui]. São vários autores, mas o autor brasileiro mais conhecido é Maurício Barreto. E há um ano e meio foi publicado um artigo sobre mortalidade infantil que mostrou o efeito positivo da expansão da estratégia de saúde da família de atenção primária e do Bolsa Família.
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Os efeitos são assim rápidos, então? Quando há queda de renda, aumento do desemprego, quanto tempo demora para a gente perceber isso na saúde pública?

Dr. Gastão: É o que eu estou te falando: o efeito é bem rápido. Pode piorar em cinco, mesmo em três anos. Quando tem uma crise no crescimento econômico com repercussão social, aumento do desemprego, diminuição do salário mínimo real, da capacidade de compra das pessoas, é muito rápido o aumento da morte de idosos e de crianças. Essa história de que o crescimento da economia por si só garante o bem-estar, de que é necessário a economia crescer para se ter política pública como a do SUS, salário desemprego, Bolsa Família, é falsa.

O crescimento do mercado tende a concentrar renda
se não houver a política pública que impõe limites
através de impostos e do redirecionamento dos gastos.
Precisa ter um Estado democrático, aberto e transparente,
porque, se tiver corrupção, politicagem e apadrinhamento,
as políticas públicas entram no orçamento, mas não têm efetividade.

Temos que garantir uma gestão do governo adequada. Tudo depende de política. O governo brasileiro atual e grande parte da imprensa dizem que, se houver crescimento econômico, será tudo resolvido, transporte público, habitação. Mas não é assim.

[...]

Uma última pergunta só para fechar. O SUS tem salvação? O senhor acha que é possível a gente manter esse sistema público de saúde e num funcionamento mais eficiente? É uma questão de vontade política, uma questão de orçamento…

Dr. Gastão: Estamos nisso, em garantir a sobrevivência do SUS. Se vai sobreviver ou não, só Deus sabe. Mas há muitas possibilidades e a necessidade do país também é muito grande. Parece que a sobrevivência do SUS – eu queria chamar atenção para isso – depende muito do governo. E depende do governo, do orçamento público, do Estado brasileiro, das leis. Mas depende muito, talvez até mais, da população e da sociedade e, particularmente dentro da sociedade, dos profissionais de saúde. Se a sociedade brasileira não pelejar pelo SUS no cotidiano, quando for votar e escolher quem é a favor do SUS, se os profissionais não defenderem o SUS, ele fica muito mais ameaçado. Nos estudos que os políticos e sociólogos fazem – por exemplo, do sistema inglês, bem mais velho que o nosso, tem 90 anos já –, quem fez a defesa principal do SUS inglês foram os profissionais, os trabalhadores da saúde, que buscam apoio na sociedade e encontram. Se deixar por conta dos governantes, aí eu sou pessimista.

Desmatamento já reduz chuvas e pode
afetar safra no sul da Amazônia

Bruno Lupion

Estudo aponta que substituição em larga escala da floresta por pasto
ou áreas de plantio tem provocado a redução do período de chuvas. Desmatamento indiscriminado pode colocar
em risco prática de dupla safra na região
Amazonas Soja Plantage Archiv 2013
A região sul da Amazônia, perdeu, de 1998 a 2012 uma área de floresta equivalente ao tamanho da Áustria

Somado ao efeito das mudanças climáticas e outros fatores de larga escala, o período de chuvas na região, que compreende Rondônia, sul do Amazonas, norte do Mato Grosso e sul do Pará, foi encurtado em 27 dias no período de 1998 a 2012, com impacto na dupla safra, quando agricultores plantam no mesmo terreno soja e, depois, milho.

Os números estão em pesquisa realizada por dois pesquisadores da Universidade Federal de Viçosa, em Minas Gerais, e um da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, publicada em setembro pela Royal Meteorological Society.

O trabalho se baseou em dados de um satélite da Nasa dedicado a medir chuvas tropicais e em informações sobre o uso da terra na região, uma das fronteiras agrícolas que mais avançaram nos últimos anos no mundo. No período estudado, de 1998 a 2012, foram desmatados 82.260 km2 na área — 68% para pasto e os outros 32% para agricultura — equivalente ao tamanho da Áustria.

Um dos autores do estudo, Argemiro T. Leite-Filho afirmou à DW Brasil que a pesquisa comprova e mede a relação entre desmatamento e chuvas na região.

Segundo ele, a cada 10% de uma determinada área desmatada,
a estação chuvosa no mesmo local se encurta em 0,9 dias, em média,
sem considerar o efeito das mudanças climáticas.

Ele alerta que as mudanças provocadas pela substituição da floresta, somada a outras dinâmicas climáticas, podem inviabilizar o plantio do milho após a colheita da soja, prática hoje corrente na região.

Eis a entrevista.
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Argemiro Teixeira Leite-Filho

Como vocês mediram o período da estação chuvosa?

Argemiro T. Leite-Filho: Usamos os dados coletados pelo satélite TRMM [Tropical Rainfall Measuring Mission, missão de medição de chuvas tropicais, em tradução livre], que entrou em órbita em 1998. Usamos imagens de setembro de 1998 até o final de 2012.

Processamos os dados pixel a pixel, cada um cobrindo uma área de 28 km por 28 km, para medir a chuva que ocorria diariamente e marcar o início e o fim da estação chuvosa, usando um método já consagrado e ideal para dados provenientes de satélites.

E como vocês mediram o desmatamento?

Argemiro: Usamos uma base de dados sobre o uso da terra na região, feita a partir de imagens de sensoriamento remoto e do censo agrícola realizado por IBGE e IPEA. E medimos o percentual de desmatamento em cada pixel, também de 28 km por 28 km, ano a ano.

Por que vocês usaram essa metodologia?

Argemiro: Identificamos uma lacuna nos estudos sobre o tema, que em geral são baseados em modelagem [quando pesquisadores criam modelos matemáticos sobre o ciclo das chuvas e a ocupação do solo e simulam o efeito do desmatamento].

Nosso estudo foi feito com dados observados, pixel a pixel, para identificar como o desmatamento dentro de cada pixel afeta a estação chuvosa no mesmo pixel. Não avaliamos como o desmatamento em outras regiões influencia aquela área, pois para isso teríamos que rodar modelos climáticos.

Selecionamos a região do sul da Amazônia porque lá é possível notar um acoplamento forte entre o clima e a floresta, há uma estação seca e uma estação chuvosa bem marcadas, e é uma área onde o desmatamento agrícola avançou bastante nas últimas décadas.

O que vocês encontraram?

Argemiro: A mensagem principal é que o desmatamento afeta todas as métricas da estação chuvosa. Além de atrasar o início da estação, acelera seu fim e, consequentemente, reduz o período de chuvas.

Existem algumas suposições, não baseadas em dados científicos, de que esse efeito seria simplesmente resultado das mudanças climáticas, não relacionado ao desmatamento.

Para provar que o desmatamento também afeta as chuvas na região, retiramos os efeitos de larga escala ligados às mudanças climáticas e fatores de larga escala e isolamos o efeito do desmatamento.

Quão menor ficou a estação chuvosa no sul da Amazônia?

Argemiro: Se somarmos o efeito do desmatamento às dinâmicas climáticas de larga escala, houve uma redução da estação chuvosa de, em média, 27 dias desde 1998. Ou seja, o produtor perdeu praticamente um mês de janela climática para plantar.

Se consideramos apenas o efeito do desmatamento, identificamos 0,9 dias de redução da estação chuvosa a cada 10% de área desmatada. Se um pixel tiver 80% de área desmatada, a estação chuvosa naquela área será, em média, 7,2 dias menor, com variação de 2,4 dias para mais ou para menos.

Isso pode parecer pouco, mas daí vem a importância de incluir também os mecanismos de larga escala. Somados, o resultado se torna ainda mais preocupante.
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Como os efeitos do desmatamento e de larga escala se relacionam?

Argemiro: A estação chuvosa é controlada por fatores remotos, como a temperatura do mar, a umidade que vem do oceano e o El Niño, e fatores locais, como a evaporação de água da própria floresta, que depois se precipita na forma de chuva. O desmatamento reduz a injeção de vapor de água na atmosfera e altera o balanço de energia e, consequentemente, modifica os padrões de precipitação na região.

Em alguns anos, fenômenos globais como o El Niño já tendem a fazer as chuvas durarem menos. Se temos condições remotas desfavoráveis e a ocorrência do desmatamento, os efeitos se somam para reduzir a estação chuvosa.

O que esses resultados dizem sobre a legislação ambiental em vigor?

Argemiro: O Código Florestal exige que, na região da Amazônia, 80% da área das propriedades deve ser preservada como floresta. O objetivo do legislador foi, entre outros objetivos, proteger a biodiversidade, mas nossos resultados mostram que, se a lei for seguida, ela também ajuda a conter a modificação de chuvas na região.

Manter a floresta de pé não é só uma questão de seguir a legislação para não receber multa e não perder aceso ao crédito agrícola. Manter a floresta de pé é uma questão de sobrevivência para a agricultura praticada ali.

Qual é o impacto da redução da estação chuvosa na agricultura?

Argemiro: O mais comum na região é os agricultores plantarem a soja primeiro e, logo depois da colheita, plantarem o milho, que eles chamam de milho safrinha. Essa safrinha é tão comum que responde hoje por mais da metade do milho produzido no Brasil, e é fundamental para o agronegócio. Hoje os produtores conseguem plantar duas culturas na mesma estação chuvosa, mas quanto mais desmatar, mais prejudicamos a segunda.

No Mato Grosso, por exemplo, e estimativa é que são necessários no mínimo 200 dias de estação chuvosa para que a cultura da soja possa se desenvolver e ser colhida, e depois o produtor ainda plantar o milho e o milho se desenvolver. Um total de 27 dias a menos pode tornar inviável a segunda safra.

Fontes: Agência Pública – Entrevista – Quinta-feira, 14 de novembro de 2019 – 12h11 (Horário de Brasília – DF) – Internet: clique aqui; Deutsche Welle Brasil – Notícias/Brasil – Sábado, 16 de novembro de 2019 – Internet: clique aqui