As coisas poderiam ser diferentes!
Uma
análise de fundo a partir do
golpe
de Estado na Bolívia
Bruno Lima Rocha*
Como perder, facilmente, o poder para a direita
com o apoio dos meios de comunicação,
de parte das igrejas evangélicas e dos
Estados Unidos da América
BRUNO LIMA ROCHA |
Introdução
As palavras
que seguem somam uma reflexão de fundo antecedida pelo fato, imediato, do golpe
de Estado na Bolívia. O modelo de análise seria tomando por base o caso
boliviano, a Constituição Plurinacional e a multiplicidade jurídica que
assegura a “autonomia decisória e soberania popular de fato nos territórios”.
Não imaginava que teria de fechar o texto assistindo ao vivo pela Telesur e
Bolívia TV o discurso de renúncia do presidente e seu vice.
Golpe
de Estado na Bolívia
Domingo, 10
de novembro, se decreta um golpe de Estado na Bolívia. Inicia com a quarta
reeleição da dupla de candidatos do Movimento ao
Socialismo (MAS) - IPSP (Instrumento Político
pela Soberania dos Povos). Deixo aqui a crítica, explícita, de que o
MAS/IPSP teria, necessariamente, de indicar novos candidatos e assim quebrar
o ciclo de concentração de poder, algo que, evidentemente, fortalece a
posição dos partidos à direita e ligados ao imperialismo mais tacanho. Ocorre
justo o oposto.
Evo e
Linera concorreram. Na noite de 20 de outubro estariam ganhando, mas teria um
segundo turno. Logo a contagem é interrompida e no retorno, pela legislação
boliviana, a chapa oficialista supera em dez por cento o segundo colocado, o
ex-presidente Carlos Mesa e, teria vencido. A oposição obviamente não aceita
o resultado – na verdade não aceitaria resultado algum – e retomam uma
sublevação a partir de Santa Cruz de La Sierra. Liderados por Luís Fernando Camacho, à frente do Comitê Cívico
desta localidade (que possui expansão nacional) operando como força de choque, iniciam
os cercos nas grandes cidades, nas estradas e ampliam a conspiração junto às
forças mais reacionárias. Articulações com igrejas evangélicas com base nos
Estados Unidos, papel fundamental da União Europeia, da recontagem da
Organização dos Estados Americanos (OEA) e fortes suspeitas da presença de
operadores brasileiros (ver aqui).
Há que se levar em conta o papel dos meios de comunicação privados e
pertencentes aos oligarcas, como também do acionar de redes muito
conservadoras de igrejas pentecostais. Lemas como “a bíblia de volta ao
palácio” circularam influenciados por robôs e servidores que teriam a mesma
origem dos operados nas eleições brasileiras. Ou seja, um enredo mais ou menos
previsível.
Na manhã de
domingo, 10 de novembro, já sem nenhuma capacidade de defesa do Estado e
menos ainda das instituições de base (das organizações sociais), altos
mandos militares se declararam em desobediência ao Chefe de Estado e
aquartelados. Segundo o que circula através de militantes feministas na
Bolívia, o procedimento dos “centros e uniões cívicas” é cercar uma sede
de sindicato, associação ou movimento indígena, incendiar esta sede, baixar a
bandeira Wiphala (indígena de base aimará), erguer a bandeira do país e entoar
o hino nacional. Ato explicitamente racista e anti-indígena. Era
previsível a capacidade de instabilizar e surpreende o fato de não se montar
uma estrutura de resistência.
É
incompreensível. O governo deposto do MAS, no último pronunciamento público
de Evo, afirma que confiava inteiramente na Polícia Nacional! Isso depois
de tudo o que a Bolívia passou, contando apenas com o século XXI. Dia 20 de
outubro, domingo, foram às eleições sabendo que poderia haver virada de mesa
por parte da direita. Logo, porque não prepararam a base para resistir?
Tinham base social para isso? Pelo visto não. Ah, Evo reclama, quase 80% da
formação da Polícia Nacional é de origem indígena. E? O pertencimento étnico
supera a disciplina militarizada? Óbvio que não. Confiaram cegamente na
“lealdade dos militares”? Em 2008 a tentativa de golpe foi derrotada na rua.
E a resistência? Onde estão os Ponchos Rojos? E agora?
Transformar
uma sociedade através do Estado?
Definitivamente
o Estado é um aparelho complexo, tem desde o serviço público sob alguma forma
de pressão popular (como no caso brasileiro, o combalido SUS ou a educação
pública) e ao mesmo tempo não é só governo e serviços, tem corpos
especializados permanentes, verdadeiros estamentos, como o Judiciário, o Ministério
Público (MPF e Estaduais) e o conjunto do aparelho repressivo.
O Estado se
for dotado de corpos militarizados (tal é o caso do golpe
cívico-midiático-policial na Bolívia, em curso), tem relação de mando e
obediência e divisão social do trabalho entre oficiais e praças. Logo, este
tipo de instituição não produz novas formas de reprodução da vida, ao
contrário. Tais corpos tendem a se reproduzir mesmo sob mudanças extremas de
regimes, vide o caso do Império Russo (Okhrana), Períodos soviéticos (Cheka,
GPU, NKVD, KGB) e Rússia de novo (KGB).
Portanto, assim
como é necessário ousar no arranjo Jurídico (a exemplo das Constituições
Plurinacionais de Equador e Bolívia) é preciso ousar em instituições tabus,
como as de autodefesa na América Latina. Se militarizar um processo de
câmbio, mata a semente, ou ficamos dependentes das cadeias de comando (tal como
Velasco Alvarado foi sucedido por militares pró-Estados Unidos, o mesmo
ocorrendo no Panamá, quando Manuel Noriega termina tomando o poder após o
assassinato de Omar Torrijos). O inverso também é verdadeiro. Se não nos
defendermos, como país e territórios soberanos, morremos quase todos e
enterramos vivos nossos projetos.
Qual
economia política aponta processos de câmbio?
É preciso
repensar a economia política mesmo dentro do capitalismo. Se não romper
com a falácia fiscalista (a mentira vem assim: “não tem verba porque não
tem dinheiro, não tem dinheiro porque não há crescimento”) NÃO HÁ SAÍDA DE
CRÉDITO. Se esta falácia acima citada fosse verdadeira, os Estados Unidos não
teriam saído da Grande Depressão. É circulando dinheiro em suas várias
funções (unidade de conta, reserva de valor, elemento de troca, garantia de
depósitos e transações) que faz girar a economia capitalista e outras também
(como com moedas sociais). Logo, se não romper com a falácia fiscalista
(insisto com isso), as comunidades territoriais vão sobreviver com seus
recursos, mas haverá ausência de política pública.
Mas só a
economia capitalista na forma de serviço público não resolve. Essa constatação
vale para reservas territoriais e a gigantesca mancha metropolitana na América
Latina. Os territórios e seus projetos produtivos não precisariam ficar apenas
no jogo econômico do capitalismo. Já ocorrem feiras de trocas, circulação de
moedas sociais, crédito comunitário sem usar a moeda oficial. Enfim, como
os tempos que vêm serão de ainda maior escassez, quanto maior o volume de
experiências de economia comunal melhor, até porque, não se desenvolve tudo
do zero se houver transformação da sociedade, ainda que na forma intermediária
de duplicidade ou multiplicidade jurídica.
Senadora Jeanine Áñéz Chávez se autoproclamou presidente da Bolívia, em um parlamento sem quórum e com apoio militar |
Quem
governa e como governa? Fazer o que com as relações de poder local?
É preciso pensar
alguma forma de co-governo, de elementos de pressão no poder municipal e
nas regiões. Tem tradições que chamam isso de municipalismo libertário e
ecologia social, mas podemos denominar de outros conceitos, tal é o caso do
Curdistão sob Confederalismo Democrático. Tem experiências vitoriosas
deste municipalismo na América Latina, tanto no maior autogoverno e autonomia,
como em Chiapas e em todos os estados mexicanos, como na ação urbana de
Cochabamba, Bolívia, na chamada “guerra da água” que ocorreu entre abril
e junho de 2000. Ali foi a virada que levou, inclusive, à vitória na Guerra do
Gás, em 2003 e a consequente vitória eleitoral do MAS/IPSP (em dezembro de
2005) e a Constituição Plurinacional (de fevereiro de 2009).
Fazer
dos territórios formas de vida e escolas de resistência múltipla e igualitária?
Para no
mínimo gerar um Impasse Político, ou uma dualidade de Poder Político no país,
tomando como exemplo a ação da Confederação das Nacionalidades Indígenas do
Equador (CONAIE), é preciso além da luta por terra e território, ousando em
nova juridicidade baseada em usos e costumes e, no caso brasileiro,
necessariamente passando por Diálogo Inter-religioso (não sei se esse
termo está correto, mas fico aguardando aportes para o conceito adequado). Unir
o povo na sua diversidade, também nos quesitos de jurisdição e resolução de
conflitos. Isso já ocorre em diversos locais da América Latina e do Caribe.
Um exemplo se dá nos municípios de maioria indígena na Guatemala, como uma
compensação e até vitória pontual depois de 33 anos de guerra civil
(1962-1995). No caso brasileiro, há uma consideração importante. Temos a
condição demográfica de não contar com uma maioria indígena e sermos um país
metropolitano, onde a população afro-brasileira é majoritária e as culturas
afro-brasileiras operam como espinha dorsal da nacionalidade moderna. Logo,
o debate entre Religiões Afro-Brasileiras, Cristianismo Popular e sim, uma
enorme parcela das Igrejas Evangélicas - como projeto de poder social
materializável - esse debate mesmo sendo delicado, deve seguir. Importante
ressaltar que o reboquismo nunca leva a nada a não ser ao desastre. A CONAIE só
está viva porque não teve adesão, não se subordinou ao governo de Rafael
Correa. Mas só consegue virar situações limites porque faz aliança com a luta
urbana e metropolitana.
Trabalhadores bolivianos protestam contra golpe militar em seu país |
Projeto
político, projetos políticos e consequências?
Eu seria
irresponsável se não lhes colocasse a relevância da soberania alimentar e a
defesa do território diante das pressões do Sistema Internacional,
incluindo aí a China, que é dona da Syngenta, por exemplo. O mínimo que um
país precisa é se alimentar, ter energia o suficiente para o que necessita ou
projeta, manter seus recursos naturais sob controle popular e poder se defender.
Mesmo em uma situação de um governo mais à esquerda, sem necessariamente um
processo de câmbio, quem vai empurrar este “suposto governo” é o conjunto de
povos auto organizados dos Brasis. O mesmo se dá nos demais países da América
Latina. Não devemos nos perguntar se isso está acontecendo, se vai ter
virada de mesa. Mas sim quando os colonialistas e seus aliados internos vão
tentar dar uma ou mais viradas de mesa. Um impasse político com controle
territorial de uma parcela do país é algo que já ocorre em vários países da
América Latina (como nos territórios indígenas do México, Colômbia, Bolívia,
diversos países caribenhos, dentre outros) e pode se tornar um modelo mais
unificador para as esquerdas de nosso Continente.
Homenagens:
Honduras e Bolívia
Queria
dedicar esse minúsculo esforço do texto acima à memória da liderança Garífuna
(equivale a quilombola em português ou palenquero na tradição
colombiana e venezuelana) Francisco Guerrero Centeno (39
anos) e antes o martírio da dirigente também garífuna María
Digna Montero.
Centeno era
liderança na comunidade de Masca, na costa (atlântica caribenha) de Honduras.
Este país sofreu o primeiro golpe de Estado de novo tipo na América Latina
(junho de 2009) já na execução do Projeto Pontes, no ciclo dos chamados Golpes Constitucionais auxiliados pelo Departamento
de Estado dos Estados Unidos: Honduras
2009, Paraguai junho 2012 e Brasil abril de 2016. O mais recente
golpe de Estado se deu no fechamento desse texto, em novembro de 2019, na Bolívia.
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Williams Kaliman - chefe das Forças Armadas da Bolívia - pede a renúncia de Evo Morales |
Continuando a
análise...
Tópico zero: Quem
mandou chamar a OEA para fazer uma auditoria vinculante das eleições bolivianas?
Não bastou
a eleição fraudada de Honduras em novembro de 2017? Será que houve
algum grau de “inocência” supondo que a mesma OEA iria se comportar com a
desenvoltura do início da crise hondurenha em junho de 2019? Realmente não
é descritível o absurdo. Já que era para ter referência em alguma instituição
gringa, porque não convocaram a Fundação Carter. Em geral esta fundação
ou centro de direitos humanos vinculados ao ex-presidente dos Estados Unidos
Jimmy Carter (democrata da Georgia, cristão renovado, 1976-1980 no mandato).
Tais missões incluem, por exemplo, a avaliação dos processos eleitorais
venezuelanos, em geral com resultados positivos ainda que com falhas e
penalidades de todas as chapas concorrentes. Ou seja, porque o gabinete do
MAS aceitou a presença da OEA?! Não tem explicação lógica alguma!
A
presidenta interina “eleita” de forma indireta na sessão sem quórum do Senado
No dia 12
de novembro a segunda vice-presidente do Senado, senadora Jeanine Áñéz
Chávez (eleita pelo Partido Progresso Bolívia – Convergência Nacional)
depois perfilada na aliança União Democrática assume a linha sucessória da
Presidência da República em uma sessão suspendida por falta de quórum, tanto na
Câmara de Deputados como no Senado. As bancadas do MAS/IPSP
(Movimento ao Socialismo/Instrumento Político pela Soberania dos Povos)
equivalem a 2/3 de ambas as casas legislativas e não compareceram. Antes, essa
mesma bancada foi a público exigindo garantias e punição para o fascista Luis Fernando Camacho e seus seguidores. Não
obtiveram nenhuma das duas exigências e se retiraram. Pela regra
constitucional, o mandato tampão seria de 90 dias de governo sem governo.
Seria...
Já no
dia 13 de novembro a TV boliviana, canal PAT (com base em Santa Cruz de la
Sierra e ligada umbilicalmente aos capitais que dominam o Comitê Cívico Pró-Santa
Cruz e as hordas fascistoides), coloca um advogado constitucionalista e um
cientista político justificando todo o processo de eleger uma presidenta para
mandato tampão sem ter quórum nem na Câmara nem no Senado. Segundo o que
relatam, Em Alto, acima de La Paz, e no Chapare, zona tropical de Cochabamba,
fortes redutos aymaras e do MAS, estariam sob ocupação militar conjunta do
Exército e Polícia Nacional. Em 90 dias a senadora irmã de pastor
pentecostal terá de organizar eleições gerais. Parece a Argentina depois da
“revolução libertadora” de junho de 1955 dos oligarcas e militares gorilistas,
propondo “democracia” sem a maior base popular. Jeanine pode ser sucedida
por uma “junta cívico-militar”? Pode seguir como títere de empresários cruceños
e militares arrivistas?
E caso
venham as eleições? E se o MAS ganha? E se o MAS não concorre?
Como impedir o MAS de concorrer? Apenas criminalizando o partido?
Cabe trazer
um “detalhe”. A Bolívia cresce há mais de 13 anos uma média de 4% ao ano e
tem investimentos pesados de China e Rússia, além de outros países. Esse
capital externo vai seguir no país? Pelo visto não, e o acionar de capitais
russos e chineses é tão oportunista como a direção do MAS vem se provando
irresponsável e recalcitrante.
Carlos Andrés Áñéz Dorado - sobrinho da autoproclamada Presidente da Bolívia, Jeanine Áñéz Chávez, foi preso traficando centenas de quilos de cocaína |
A
Bolívia da direita colonizada em júbilo. A direita boliviana como a caricatura
que haveria deixado de ser
A senadora
que assume na Bolívia em sessão sem quórum no Senado é tia de Narco, irmã
de pastor picareta, apoiada por fascistas com empresas de agronegócio e
contas fantasmas no Panamá e sua primeira reunião foi com a milicada
gorilia e vende pátria que deu o golpe no domingo. Jeanine toma posse com a
bíblia na mão blasfemando já no primeiro discurso. É um momento de júbilo
para latino-americanos que incorporam o complexo de “sudaca” e de “cucaracha”. A
maldita direita miamera [= amante de
Miami] pró Estados Unidos deve estar tendo gozos múltiplos em suas
alucinações de dominada que domina no seu quintal.
Para além
da caricatura, existem laços bem profundos com a economia política do crime
que o Departamento de Justiça através da DEA finge combater. No
departamento de Beni, de onde vem a presidenta
ilegítima Jeanine Áñéz Chávez os nexos político-criminais são muito mais
profundos do que se imagina. Traduzi o relato da Rede Erbol de outubro de
2017, após a prisão de dois narcotraficantes bolivianos em solo
brasileiro levando 480 quilos de cocaína em um avião leve:
«Fábio Andrade Lima Lobo é
filho da ex-candidata do MAS a
vice-governadora Carmen Lima Lobo.
Seu pai é o capo narco colombiano Célimo Andrade (ex-membro
do Cartel de Cáli).
Já o outro preso, Carlos Andrés Áñéz
Dorado é sobrinho da
senadora Jeanine Añez Chávez, de acordo com o Ministro.»
São dois
outros os familiares de Fabio Andrade com ligação política. À época eram o
prefeito de San Joaquín e um ex-candidato para a assembleia departamental de
Beni assembleísma departamental, o primeiro pela aliança MNR-UD e o segundo
pela UD.
Enquanto
circulavam denúncias desse gênero (e pela experiência acumulada, isso é só o
começo, vide Honduras e o caso do irmão do presidente preso nos Estados Unidos
por narcotráfico) o comando da Polícia Nacional golpista fazia um
pronunciamento público. Na cerimônia improvisada, o substituto do golpista
que renunciou na segunda após o golpe, dizia que a instituição respeita a bandeira
Whipala, que a mesma representa todo o país, ocidente e oriente bolivianos,
indígenas e não indígenas e não vai mais tolerar o desrespeito à bandeira
indígena. A senadora Jeanine Áñez Chávez, do partido Unidade Democrática
(UD), do departamento de Beni, advogada e ex-diretora do conglomerado de
comunicação Totalvisión repetiu o mesmo gesto. Ela, a presidenta tampão, “eleita”
no Senado sem quórum, fez o mesmo gesto de desrespeito aos símbolos originários.
Será que consegue “governar” sem essa lealdade, sem esse respaldo da maioria da
população do país?
Multidões de indígenas saem às ruas na Bolívia protestando contra o golpe cívico-militar |
Solidariedade
aos povos da Bolívia e crítica ao MAS, sem tergiversar
Sei que o
tema é delicado, mas não há como negar que a direção do MAS, a partir de sua
dupla de governo, realmente forçou a barra. Foram ao plebiscito em
fevereiro de 2016 e perderam. Não era para terem concorrido à 4a
reeleição e poderiam sim, perfeitamente, produzir um gigantesco processo de
consulta e participação popular de modo a indicar a nova chapa do então
oficialismo. Fizeram tudo ao contrário, rachando as bases sociais e
indígenas e criando condições para um voto de protesto no oligarca Carlos Mesa
(à frente de um guarda-chuva chamado de Comunidade Cidadã e ainda por cima com
um vice com mestrado em administração pública por Harvard!), o ex-vice de Goni
(Gonzalo Sánchez de Lozada) posto a correr em outubro de 2003 na Guerra do Gás.
Por mais absurdo que possa ser o adversário de Evo, houve muita subestimação
na convocatória do “voto de protesto”.
É fato. Personalismo
radicalizado não deixa de ser personalismo. Um colega professor
universitário na área da geografia, com muitas conexões bolivianas além de
experiência direta na região, vem alertando para o tema e de forma apropriada.
Nos quatorze anos de Evo e seu vice-presidente campeão das manobras, houve
abundância de tensões na relação soberania dos Territórios e a ênfase no modelo
extrativista para bater caixa, superávit, manter índices de crescimento e assim
atingir as metas de governo foram as mazelas constantes de Evo e Linera.
Sim,
governar é fazer escolhas, mas antes de mais nada é fazer andar os processos
legitimadores destas escolhas. E, mais importante, passando por consulta
soberana, já que a própria constituição Plurinacional assegura isso.
Deu tudo
errado na dupla institucionalização incompleta. Não tem
nada perdido, mas os racistas colonizados viraram a mesa e com os altos
mandos militares ao lado e ajudando. Há que se rever a relação com as
Forças Armadas, ao menos as forças eleitorais que se dedicam a ganhar parcelas
de poder na urna da democracia liberal pós-colonial. Muitas lições, aprendidas
na rua, nos assassinatos em Cochabamba e na rebelião de El Alto que está bem
longe de terminar.
Sim, em
alto e bom som há que se compreender. A luta na Bolívia não é por Evo nem
pelo MAS, não apenas. Vai muito além disso, ultrapassa as condenáveis
maquinações de Álvaro García Linera e tem um significado concreto para toda
América Latina e Caribe.
Tal
significado pode incidir na apreciação de nossas sociedades sobre outros
países. Os governos “amigos” como Rússia e China fazem jogo duplo,
reconhecendo “de facto” o governo de Jeanine - a eleita no Senado sem
quórum - enquanto dizem que houve um golpe de Estado. O jogo no Sistema
Internacional não é sujo não, é imundo e asqueroso.
A base do
equívoco das análises “progressistas”: desconsiderar que é Whipala ou nada!
Existe um
problema de fundo em muitas, muitas análises de colegas das esquerdas (sem ironias
e senões) a respeito da crise institucional e do golpe de Estado na Bolívia,
ocorrido no domingo 10 de novembro.
Em geral
não trazem nada de novo, e ao contrário, há uma tendência em desconhecer ou
desconsiderar (o que é quase o mesmo efeito). Ao não levar em conta o mais
importante, o Estado Plurinacional e o fato de que em geral na
Bolívia, quem ganha não leva, porque não há capacidade estatal para governar se
não houver um mínimo de consenso de oposição de, ao menos, metade das Nações
originárias.
Faltou uma
institucionalidade originária e popular que pudesse fazer frente ao aparelho de
repressão do Estado? Sim, sem dúvida. Ou seja, o problema não era o
modelo em si, mas a condição incompleta do modelo, sob a tutela do MAS de
García Linera mandando muito acima do IPSP dos Povos.
É duro
falar isso agora, mas os fatos são os fatos. Já da parte de cá dos Andes, ou
fazemos um esforço gigantesco para não apenas compreender a luta das 36 Nações
Originárias da terra de Juana Azurduy e Bartolina Sisa, ou jamais iremos
mensurar as reais possibilidades das lutas dos povos dos Brasis, incluindo a
defesa incondicional dos territórios indígenas e quilombolas, assim como a urgente
necessidade de promover um ecumenismo desde a base para contrapormos ao Cristofascismo tão bem retratado e denunciado por
teólogas de avançada como Nancy Cardoso.
A evidência conclusiva
Para nós,
latino-americanos, só nos resta fazer como José Gervasio Artigas, sendo
brancos ou não, e mergulhar nas raízes das lutas de resistência deste pedaço de
mundo, aplicar um estatuto de igualdade absoluta, tanto nas reivindicações como
no estatuto da juridicidade e pelear ao lado de Andrés Guazurarí
(Andresito Guacurarí y Artigas) e Joaquín Lenzina (el Negro Ansina).
Somente assim vamos compreender que «nada podemos esperar a não ser de nós
mesmos!».
«A la
huella a la huella, de Bartolina Sisa y Juana Azurduy!»
* Bruno Lima Rocha tem doutorado e
mestrado em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul –
UFRGS e graduação em Jornalismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro -
UFRJ. Atua como docente de Ciência Política e Relações Internacionais e também
como analista de conjuntura nacional e internacional. É editor do portal Estratégia
& Análise, onde concentra o conjunto de sua produção midiática,
analítica e acadêmica.
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