Como acabar com a classe média e... começar uma revolta!
Classe
média endividada exige sua parte em crescimento econômico do Chile
Rodrigo Cavalheiro
Enviado
especial a Santiago, Chile
Saturados por dívidas, estudantes e aposentados
chilenos se revoltam
contra valor de pensões e custo elevado de ensino,
saúde e
transporte;
entre as reclamações principais está a falta
de poder do Estado
para monitorar a alta dos preços
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Protestos em grafite e pichações contra o presidente Piñera em Santiago FOTO: RODRIGO CAVALHEIRO / ESTADÃO |
A revolta
chilena ganhou corpo quando o governo de Sebastián Piñera ridicularizou suas
exigências iniciais e logo tornou-se a maior mobilização pós-ditadura, em
reação ao uso do Exército na repressão. Mais de um milhão foram às ruas. A
raiz da insatisfação, entretanto, está em distorções acumuladas por décadas, em
governos de direita e de esquerda, escondidas em bons indicadores
macroeconômicos que não se converteram em alívio nas contas, pelo contrário.
“Quem
não se endivida no Chile, não vive”
Os chilenos
nunca estiveram tão endividados. De tudo que uma família recebe no
Chile, 73% são dedicados a pagar dívidas, segundo o Banco Central. Em um
dos cafés abertos em Santiago, na sexta-feira, um feriado que terminaria em
violentos protestos, o garçom Alejandro Segovia, de 30 anos, comentava, sem
moderar a voz, não entender a boa imagem chilena no exterior.
“Quem não
se endivida no Chile, não vive”, disse ao O Estado de S. Paulo,
enquanto servia um café expresso vendido a R$ 10,20. O custo de vida e os
baixos salários têm relação direta com a crise. A oferta de educação e
saúde gratuitas existe, mas fica restrita aos mais pobres. E este não é o rosto
desses protestos.
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SEBASTIÁN PIÑERA - Presidente do Chile Foto: Pedro López / AFP |
Quem
é que está se revoltando
Os atos têm
a cara da classe média. Mais exatamente de jovens e seus avós – que não
querem mais endividar-se com as cotas de aposentadoria, ensino, saúde e
transporte. Seus cartazes não pedem estatização desses setores. Denunciam
a falta de poder do Estado para monitorar a alta dos preços.
Quando a
tarifa do metrô foi elevada em 30 pesos (R$ 0,16), o que detonou o
descontentamento entre estudantes há três semanas, tratava-se do 21.º
aumento em 12 anos. Para atravessar Santiago, um motorista passa por
oito pedágios.
Aos 30
anos, Segovia sabe que estará endividado até os 50. Terá de pagar 240 parcelas,
hoje de 58 mil pesos (R$ 311), pelo curso de nível técnico de quatro anos em
administração de empresas. No total, R$ 43 mil.
Ele não tem
alternativa. Para tentar uma bolsa, precisaria ter renda inferior a 200 mil
pesos (R$ 1 mil). Só que recebe o salário mínimo. São 301 mil pesos (R$ 1,6
mil) por mês, que passarão a 350 mil pesos (1,8 mil). O aumento foi uma das
concessões feitas por Piñera, em um pacote de US$ 1,2 bilhão.
Além de
anular o aumento no metrô, o presidente elevou o mínimo, suspendeu reajustes de
pedágio, mudou o gabinete. Recuou até no principal ponto de sua reforma
tributária, uma renúncia fiscal de US$ 800 milhões por ano, planejada para
atrair empresas.
Pesquisa da
consultoria Cadem feita ainda durante o estado de emergência e antes da marcha
que reuniu mais de um milhão no dia 25, dá a ele aprovação de 14%.
“Piñera é
um pato manco, como dizem os americanos (presidente que segue no cargo, mas sem
poder). Se já não cumpriria suas metas, muito menos agora”, avalia o
cientista político Raul Sohr. “Antes de assumir, em 2010, pegou um terremoto
que matou 800. E agora este, político”, lembra.
Entre 1965
e 2014, a renda per capita chilena aumentou de US$ 14 mil para US$ 36 mil. A
questão é que a maior parte da população não se vê vivendo naquilo que
Piñera chamou de “oásis” dias antes de os protestos começarem.
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Atos de rua contra o Presidente Piñera - Santiago - Chile |
Um
país com uma classe média baixa vulnerável
Segundo o
Ministério de Desenvolvimento Social, em 1990, a pobreza no Chile superava os
43%. Hoje, é de 10%. “Isso fez surgir uma classe média baixa altamente
vulnerável, com risco de cair novamente na pobreza. Eles são os novos
indignados, um terço”, diz Mario Waissbluth, especialista do centro de sistemas
públicos da Universidade do Chile.
Conforme o
sociólogo Alejandro Marambio, professor da Universidade Católica de Maule, o
endividamento chileno tem como peculiaridade o fácil acesso a empréstimos em
grandes lojas. O principal modo de se endividar são os cartões de crédito
desses estabelecimentos (42% dos casos). “Em geral, são compras de bens
básicos”, explica.
Equívocos
na avaliação da revolta chilena
Uma
simplificação corrente sobre os atos no Chile é que eles seriam de esquerda ou
contra o neoliberalismo. Há 83% de apoio às manifestações, segundo a
consultoria Activa Research, o que coloca entre eles boa parte dos
eleitores de Piñera. Um sintoma dessa transversalidade ideológica são
protestos inéditos em zonas de alto padrão, como Las Condes e Barrio Alto.
Um
país com alta concentração de renda e desigualdade
Os liberais
descontentes alegam que a riqueza do país, um polo de mineração e pesca,
parou na mão de famílias beneficiadas com as privatizações conduzidas pelo
ditador Augusto Pinochet. “As privações de Pinochet foram um escândalo.
Poucas famílias se tornaram donas de gigantescas estatais sem pagar um peso.
Essas fraudes são conhecidas”, critica o analista Mario Waissbluth.
A Constituição
chilena, de 1980, foi escrita 10 anos antes do fim da ditadura (1973-1990).
Um de seus eixos é dar ao Estado um papel subsidiário, o que explica as
poucas ferramentas de controle sobre a iniciativa privada. Esta é agora a
única concessão que interessa aos manifestantes: uma reforma constitucional
que permita ao Estado controlar abuso de preços.
Outro
equívoco em relação ao movimento chileno é reduzi-lo a um ato contra a
desigualdade, pois só ela não explicaria o seu alcance. O Chile é o sétimo
país mais desigual do mundo, de acordo com o Coeficiente de Gini, mas está
atrás de Haiti (2.º), Honduras (3.º), Colômbia (4.º), Brasil (5.º) e Panamá
(6.º). O mais desigual é a África do Sul. Entre esses países, o Chile é o de
melhor nível educacional, o que poderia explicar o inconformismo.
“Em boa
parte, estamos falando em desigualdade no tratamento, de oportunidades.
Há uma desigualdade material, mas há uma indignação com o fato de o país ter
crescido muito e vários não terem influência política”, diz Eduardo Engel,
professor da Universidade do Chile e diretor do centro de estudos Espaço
Público. Sua interpretação reforça a mensagem de uma das pichações que tomaram
todos os prédios nos dois quilômetros que separam a Praça Itália, centro das
manifestações, do Palácio La Moneda. “Não são 30 pesos, são 30 anos.”
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