«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

domingo, 31 de janeiro de 2021

Cristofascismo

 Uma teologia do poder autoritário: a união entre o bolsonarismo e o maquinário político sócio-religioso

 Patricia Fachin e João Vitor Santos

Instituto Humanitas Unisinos On-Line 

Entrevista especial com Fábio Py

Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e professor do Programa de Pós-Graduação em Políticas Sociais da Universidade Estadual do Norte Fluminense - UENF. Ele é autor de Pandemia cristofascista (São Paulo: Editora Recriar, 2020). O livro online está disponível aqui. 

A maneira de se governar, hoje, no Brasil de Jair Bolsonaro é baseada no fundamentalismo que pratica o ódio aos diferentes

FÁBIO PY

O uso da linguagem cristã, a apropriação do cristianismo e o aceno que o presidente Bolsonaro faz a determinados grupos religiosos, especialmente aos evangélicos e aos católicos conservadores que formam a sua base eleitoral, indicam uma novidade em relação a outros momentos em que chefes de Estado e líderes religiosos estiveram lado a lado. O traço distintivo desta relação é que “o bolsonarismo se constrói a partir e junto às máquinas sociorreligiosas” e o “maquinário político sociorreligioso de Edir Macedo, Silas Malafaia, R. R. Soares e Valdomiro Santiago” está voltado às demandas do bolsonarismo, diz o teólogo Fábio Py à IHU On-Line. A partir dessas relações, o presidente instituiu o que Py vem chamando de “cristofascismo”, uma “forma de governança baseada no fundamentalismo que pratica o ódio aos diferentes”. 

De acordo com o pesquisador, Silas Malafaia, pastor pentecostal da Assembleia de Deus, embora seja um “agente quase desprezado” nas análises sobre o bolsonarismo, é não só o principal articulador do presidente no meio religioso, como alguém que tem o potencial de atrair para a base bolsonarista um público que ainda está distante: os jovens. “No evento The Send Brasil, que é uma reaproximação dos movimentos evangélicos do sul dos Estados Unidos com o Brasil, Malafaia foi um dos pregadores e Bolsonaro também participou. Este é um evento de renovação espiritual dos jovens brasileiros e ocorreu em três grandes estádios, em três regiões do Brasil, simultaneamente, com mais de cem mil jovens. Imagine o poder desse movimento. Na fala de Malafaia, enfatizou-se que os jovens não deveriam perder de vista a importância de seguir o evangelho de verdade, não se curvando aos humanismos e aos esquerdismos das universidades do Brasil”, relata. 

Fábio Py interpreta a presença do bolsonarismo entre evangélicos e católicos conservadores como uma consequência do afastamento e da recusa de incluir a religião no debate público. A aproximação destes grupos com Bolsonaro, menciona, pode ser compreendida como um “pagamento da falta de diálogo”. “A esquerda e grupos de reflexão mais crítica quase sempre desprezaram a religião e, principalmente, os setores evangélicos. Eles são tratados quase sempre como manipulados ou dentro do esquema do senso comum”, afirma. 

Na entrevista a seguir, concedida por WhatsApp, o teólogo também analisa a leitura que os evangélicos fazem da Bíblia, especialmente do Antigo Testamento, e o impacto destas narrativas nas periferias brasileiras. “No cotidiano da periferia é este imaginário que importa: Isaac lutar contra o anjo, e o profeta lutar tanto a ponto de ir contra Deus, porque, ao lutar tanto, ele mobiliza Deus. A Universal usa essa linguagem o tempo todo, dizendo: você vai orar tanto, tanto, tanto, que Deus vai abrir mão e vai permitir... É uma nova forma de acesso. É escandaloso na teologia tradicional protestante, Deus se curva diante da luta das pessoas, mas... Essa caminhada da indicação da guerra cultural e da guerra bíblica é muito importante para a formação social da periferia”. 

Apesar da proximidade de líderes religiosos com o presidente, os sinais de desgaste já começaram a aparecer e, desde o início da pandemia de covid-19, alguns grupos estão reavaliando o apoio incondicional a Bolsonaro. “Algumas estruturas tradicionais, como os protestantes tradicionais, já estão fazendo uma crítica do alinhamento com o governo. Os presbiterianos e os metodistas começaram a fazer uma crítica das ações do presidente durante a pandemia, principalmente por não seguir as recomendações da Organização Mundial da Saúde - OMS”, informa. 

Confira a entrevista. 

IHU On-Line - Políticos se utilizam da religião para ampliar sua base eleitoral ou religiosos se aproximam dos políticos por conta dos interesses das suas igrejas?

Fábio Py – Os dois fenômenos ocorrem. A formação brasileira se deu a partir de um elemento religioso: a Companhia das Índias Ocidentais foi uma megacorporação capitalista que demandou a colonização brasileira, feita pedagogicamente a partir das ordens religiosas católicas. Vale a pena lembrarmos o papel do jesuitismo, do beneditismo, dos carmelitas na formação brasileira. Há um processo que implica no ajustamento da geografia e na instrumentação cultural feita pela Igreja Católica à época.

No meio evangélico isso é mais recente, remonta aos anos 1930, com a Confederação Evangélica Brasileira - CEB, que também tem uma preocupação política. Neste período, surgiram os primeiros religiosos evangélicos que pleitearam indicações políticas. Um exemplo disso é a eleição de Guaracy Silveira, primeiro evangélico protestante eleito e reeleito para deputado [em 1934 e 1946].

Posteriormente houve um processo de rearticulação da estrutura militar e a eleição de evangélicos ressurgiu na Nova República, quando passa a haver um interesse muito forte das grandes estruturas religiosas evangélicas nas eleições. Nesse contexto, as pautas de religião e política começam a se confundir, embora essas esferas nunca tenham sido separadas, como os pensadores da modernidade cismam em traçar.

A partir da Nova República [1988], as grandes estruturas evangélicas – os pentecostalismos e os protestantes tradicionais, como os batistas – começaram a se preocupar com as eleições. [Nilson] Fanini teve uma preocupação muito clara em eleger Arolde de Oliveira, que é um magnata da comunicação evangélica. O bispo Macedo também começou a se preocupar com as eleições a partir de 1988. Então, as relações religiosas e políticas nunca foram separadas, elas estão ligadas umbilicalmente. 

EDIR MACEDO orando e impondo as mãos sobre JAIR BOLSONARO

IHU On-Line – Considerando que estas relações são históricas, a aproximação e o aceno que políticos como Trump e Bolsonaro fazem a grupos religiosos representam uma continuidade destas relações ou alguma novidade?

Fábio Py – São as duas coisas: existe uma continuidade – Macedo foi ligado às bases do petismo e a Universal foi uma das últimas instituições da sociedade civil a se desvencilhar de Dilma Rousseff –, mas também existe uma novidade. 

Máquinas sócio-religiosas pró-Bolsonaro 

O bolsonarismo se constrói a partir e junto às máquinas sociorreligiosas e a Universal tornou-se uma máquina sociorreligiosa pró-Bolsonaro. Ele recorre ao maquinário político sociorreligioso de Edir Macedo, Silas Malafaia, R. R. Soares e Valdomiro Santiago e, hoje, todas essas engrenagens estão voltadas às demandas do bolsonarismo. É nesse contexto de articulação cristã que se deve reconhecer que nunca na história do Brasil um governo se assumiu “extremamente cristão”. Bolsonaro diz que o “Brasil é laico, mas o presidente é cristão”, o que é um acinte. Esse discurso é muito pouco problematizado em termos oficiais e nas instituições do Estado brasileiro. Atualmente, isto chama atenção: o governo Bolsonaro traz para si só a sua base social, que é absolutamente religiosa. Nesta base estão os cristãos católicos conservadores, representados pelo padre Paulo Ricardo, e os evangélicos que também compartilham das mesmas pautas, como o pastor da Michelle [Bolsonaro], Josué Valandro Jr., de formação batista. 

Campanhas de jejum 

Estamos desprezando o fato de que pessoas ligadas ao presidente, como Valandro Jr. e Malafaia, estejam promovendo campanhas de jejum nas redes sociais. Eles não se mobilizam via discussão política comum, ou das humanidades, mas sim, via religião. Isso pode ser exemplificado quando se percebe que o governo Bolsonaro se sustenta em cima de muitas campanhas de oração desses grupos que o apoiam.

O que o Partido Republicano Progressista (PRP) fez na campanha eleitoral de 2018 foi impressionante. Em Campos dos Goytacazes, colocavam entre 200 e 300 pessoas, por dia, distribuindo panfletos pró-Bolsonaro e [Wilson] Witzel no Rio de Janeiro. Em um município de 500 mil habitantes, imagine o impacto disto: no mês das eleições, diariamente duzentas pessoas se espalhavam pela cidade distribuindo panfletos de campanha. Os partidos conseguem no máximo 50 pessoas por dia; eles, pelo acesso da IURD [Igreja Universal do Reino de Deus], conseguiram centenas. Ou seja, existiu um grande maquinário eleitoral pró-Bolsonaro junto às estruturas religiosas que o apoiaram.

Nesse caso não estou me referindo às pequenas estruturas, que não estão assim tão ligadas ao bolsonarismo. O meio católico e, especialmente, o meio evangélico, que é muito malvisto pelos analistas, não são coesos. As grandes estruturas estão juntas com o bolsonarismo, mas nas igrejas comunitárias, das roças e favelas, essa vinculação é mais complexa. 

SILAS MALAFAIA discursando ao lado de JAIR BOLSONARO

IHU On-Line – O que explica a adesão desses grupos religiosos ao projeto político do presidente?

Fábio Py – Há um ajuste de pautas. Acompanho Bolsonaro há algum tempo, dentro do Programa de Políticas Sociais da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF), e investiguei a dinâmica religiosa em torno dele ao longo dos quatro anos que antecederam as eleições. Neste período, ele foi fazendo um ajustamento religioso: batizou-se no Jordão [em Israel], casou-se com uma religiosa batista, e foi ganhando características mais próximas ao público evangélico.

Ele diz que é católico, mas que se converteu, ou seja, foi se ajustando tanto ao público católico conservador como aos evangélicos, porque esses grupos estão cada vez mais nas mídias, nas grandes cenas, porque têm TVs. Ele compreendeu esse lugar como sendo um espaço de construção da sua candidatura, da sua eleição e do seu próprio governo. Bolsonaro sempre foi tratado como alguém da extrema direita e, ao longo do tempo, foi se ajustando às pautas evangélicas.

Esse ajuste tem a ver com as negociações que desenvolveu ao longo da campanha com essas estruturas. Lembro que na semana anterior à eleição de 2018, no domingo, o bispo Macedo disse que iria votar em Bolsonaro; na segunda-feira, os metodistas falaram que iriam votar nele; depois os batistas e assim foi durante a semana toda. Na sexta-feira antes da eleição, a grande maioria das estruturas evangélicas se posicionou a favor de Bolsonaro.

Então, há um acoplamento parcial entre as pautas do bolsonarismo e esse setor conservador evangélico e católico; contudo, a história nos mostra que esse ajuste é tênue, pois essas estruturas já se vincularam ao petismo e agora se vinculam ao governo Bolsonaro. Edir Macedo é um grande articulador político e creio que eles querem ter um projeto de poder, e o Crivella significa isso. [Observação: esta entrevista é anterior à prisão do “bispo” Crivella e das graves denúncias de corrupção em sua gestão à frente da Prefeitura do Rio de Janeiro]. 

IHU On-Line – Como foi no petismo ou agora a relação é diferente?

Fábio Py – Sim, como foi no petismo, mas esse encaixe atual é mais denso com as estruturas religiosas porque, no petismo, algumas dessas estruturas não estavam tão juntas. Por exemplo, os batistas (da CBB - Convenção Batista Brasileira) não assumiram as pautas de Lula e Dilma, tampouco o presbiterianismo (IPB - Igreja Presbiteriana do Brasil). Contudo, hoje pode-se dizer que ambas as estruturas se relacionam de alguma forma com o governo Bolsonaro. O secretário executivo da CBB, Sócrates Oliveira, que é o grande mobilizador institucional dos batistas, frequenta atualmente a igreja de Bolsonaro e Michelle. Ou seja, essas relações são muito próximas.

No processo eleitoral também houve uma mudança em relação ao apoio a Bolsonaro: nas eleições anteriores, se fazia um processo denso de quem seriam os candidatos, mas na última eleição os líderes evangélicos esperaram o último momento – e isso foi genial – para intensificar a campanha eleitoral. O processo padrão era intensificar a campanha um ou dois meses antes e, com isso, as pessoas tinham tempo para ler sobre os candidatos, conversarem, e a consequência era não aderirem necessariamente às indicações dos bispos, pastores ou apóstolos. Mas, como os pastores intensificaram a campanha mais fortemente na semana da eleição, o eleitor das igrejas não teve um momento para formular uma crítica.

Por que Witzel foi eleito? De forma geral, porque na semana anterior à eleição houve, nas igrejas, uma grande operação de campanha com seu nome. Ora, eles treinaram 20 anos para fazer isso e conseguiram: elegeram Crivella, Witzel, Bolsonaro. Ninguém conhecia Witzel, mas eles ajudaram significativamente a elegê-lo. O que acontece é que as estruturas religiosas entraram na última hora e por isso tiveram mais fôlego em relação ao que estava sendo feito antes. Se essa hipótese estiver certa, não se pode negar que nesta eleição houve um toque de genialidade política dessas estruturas. 

WILSON WITZEL é batizado em igreja evangélica no Rio de Janeiro (2020)

IHU On-Line – O recente encontro entre Crivella e Bolsonaro e a postura do prefeito do Rio de Janeiro em relação à pandemia indicam uma parceria para promover a reeleição de Crivella?

Fábio Py – Durante a pandemia, Edir Macedo se reajustou com Bolsonaro e reforçou seu apoio. Quando ele reforça o apoio, toda a estrutura da Universal o acompanha, porque sua gestão é absolutamente centralizadora. Macedo é um grande articulador político e o seu sobrinho [Crivella] sempre se manteve ligado à estrutura, logo, vinculado ao seu tio. Então, entendo que houve um ajuste com Bolsonaro via Universal.

Bolsonaro sempre obtém 30% dos votos nas pesquisas. Com a aproximação, Crivella está querendo se garantir para as próximas eleições, e com o apoio de Bolsonaro, ele conseguiria, no Rio de Janeiro, pelo menos 30% dos eleitores desde o início. Desde que Crivella voltou de Brasília, ele assumiu todas as pautas de Bolsonaro: começou a parte da ação com a relativização da quarentena e reabertura do comércio. Ele vem operando um reajustamento mais claro com as pautas do presidente. 

IHU On-Line – Em que consiste a ideia de cristofascismo? Quais as bases teóricas desse conceito e de que forma o cristofascismo tem se manifestado na conjuntura brasileira?

Fábio Py – Li textos da Dorothee Sölle pela indicação nas aulas da querida professora Maria Clara Bingemer (PUC-Rio). Quando Bolsonaro começou a falar em “Deus acima de todos”, percebi a linha de discursos de traços autoritários que estavam sendo proferidos por ele. E, com a expressão acima, ele está se apropriando do cristianismo, tal como se teceu na época do nazismo. Inspirei-me nos textos de Dorothee Sölle, uma teóloga que escreveu nos anos 1970 e 1980, lembrando como era na época do nazismo, ao descrever os fenômenos neonazistas nos Estados Unidos, quando lecionou na Universidade de Columbia, em Nova York. Contudo, ela é uma teóloga mística e não estava tão preocupada com as descrições. As minhas pesquisas estão mais preocupadas em descrever, a partir da Ciência Política, Ciências Sociais e História, a apropriação que Bolsonaro faz da teologia evangélica fundamentalista expressa pelo texto bíblico:Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. Ora, deve-se lembrar que esse fragmento bíblico é simbólico, pois é o jargão das igrejas protestantes de evangelização no Brasil e nas Américas.

Os evangélicos do sul dos Estados Unidos, que são ligados historicamente aos grandes latifúndios e ao racismo e vieram evangelizar o Brasil, usam esse texto há muitos anos. As igrejas batistas e metodistas, chamadas de protestantes tradicionais, também usam esse texto. Assim, quando Bolsonaro faz uso do texto bíblico, ele está dialogando com o setor, sinalizando que está alicerçado num conjunto de práticas e ações políticas do cristianismo ao longo da história do Brasil e do mundo. 

DOROTHEE SÖLLE (1929-2003): teóloga e escritora alemã

Cristofascismo 

Nessa linha, o cristofascismo seria a apropriação de uma teologia fundamentalista pelo governo autoritário, que tem práticas:

* de desprezo pelos pobres,

* de defesa da família idealizada cristã,

* de contrariedade em relação às políticas de esquerda e

* em relação aos setores ditos minoritários.

Deve-se ressaltar, novamente, que Bolsonaro está apoiado sobre uma lógica fundamentalista (evangélica) que tem como sua base social e hermenêutica de argumentação a ideia de família.

Há todo um discurso de acoplamento e de relacionamento do governo atual com o fundamentalismo brasileiro. Isto seria o cristofascismo: a partir da plataforma cristã, da linguagem cristã e da forma discursiva cristã, se constrói uma governança dos corpos e das vidas que está baseada desde ações para se instituir um dia de jejum, até disparar elementos cristãos nas redes sociais para recuperar a base social que estava sendo perdida. Então, cristofascismo seria uma forma de governança baseada no fundamentalismo que pratica o ódio aos diferentes, às minorias e aos pobres. É uma guerra cultural. Ou, como Michael Löwy afirma, está se praticando no Brasil uma “guerra dos deuses” contra as demais divindades afro, indígenas e do cristianismo ecumênico, que aceita as outras tradições em diálogo. Então, o cristofascismo seria esta plataforma: uma intensa “teologia do poder autoritário”. 

IHU On-Line – Esse conceito se aproxima do conceito tradicional de fascismo de algum modo?

Fábio Py – De forma nenhuma. Quando falo de fascismo, não estou considerando que exista uma etapa fascista, mas, sim, que o fascismo faz parte da sociedade democrática liberal desde a formação das sociedades liberais. Assim, existem territórios onde continuamente, desde a colonização brasileira, se espalham táticas fascistas. Sempre é bom lembrar o que o poeta popular grafou: “todo camburão tem um pouco de navio negreiro”. Assim, nas favelas, o estado de sítio é completado por meio das políticas do Estado que não permitem às pessoas circularem. Seus agentes são os algozes que matam, violentam famílias e encarceram seus filhos.

Então, quando falo de cristofascismo, estou usando a noção de fascismo de Walter Benjamin, de que não se trata de uma etapa, mas de uma estrutura dentro do capitalismo atual. Ao mesmo tempo, estou intuindo a noção de neofascismo de Michael Löwy, quando diz que o neofascismo não é mais representado por uma pessoa, mas por práticas de subordinação ao neoliberalismo na sociedade atual, que constrói uma pauta autoritária, a partir do cristianismo, para poder construir e consolidar uma agenda castradora necropolítica, tal como descreve Achille Mbembe.

Não há somente um cristofascismo no Brasil, mas um cristofascismo do Sul, que está se desenvolvendo agora na Bolívia. Também, não podemos deixar de destacar a operação no governo Trump, nos Estados Unidos. 

MICHAEL LÖWY: 82 anos, sociólogo brasileiro de origem judaica, radicado na França

IHU On-Line – Que ameaças o cristofascismo representa à democracia?

Fábio Py – Ele é uma ameaça e percebemos isso ao ver a existência de um grupo chamado 300 do Brasil, que esteve acampado em Brasília, fazendo ameaças à democracia, ameaçando juízes, desembargadores, os ministros do STF, enquanto Bolsonaro tenta desarticular o tempo todo a estrutura do Estado brasileiro. Ele declara guerra, constrói linchamentos públicos aos prefeitos e governadores que não aceitam a sua deliberação de quarentena vertical. Lembre-se de que Bolsonaro foi “treinado” desde sua juventude na ditadura civil-empresarial brasileira, desabrochou seu autoritarismo nos mandatos parlamentares e solidificou o desprezo pela morte dos pobres agora que está na presidência.

Também, estamos assistindo a um aumento drástico de crimes nas roças brasileiras em prol dos latifúndios, com grilagens, assassinatos, queimadas e deliberações contra os índios.

Nesse sentido já estamos vivendo uma nova forma de expressão do fascismo brasileiro que se criou a partir da memória da Ditadura Civil-Empresarial-Militar no Brasil de 1964.

O governo Bolsonaro promove violências, racismos e eugenias a partir das grandes estruturas religiosas cristãs: evangélicas e católicas. Além de grupos organizados, como o 300 do Brasil,...

... deve-se destacar os vínculos da família Bolsonaro com setores das milícias do Rio de Janeiro.

Há também uma caça aos jornalistas e às expressões das mídias. Não se fala isso, de forma tão direta, nas mídias, mas já estamos vivendo um clima tórrido de formas ditatoriais. 

IHU On-Line – Quais são as consequências da apropriação do cristianismo pela política para a participação das religiões no debate público? Há muitos anos se percebe, em diferentes grupos, uma recusa ao discurso feito por grupos religiosos distintos.

Fábio Py – A esquerda e grupos de reflexão mais crítica quase sempre desprezaram a religião e, principalmente, os setores evangélicos. Eles são tratados geralmente como manipulados ou dentro do esquema do senso comum. A presença do bolsonarismo nesses meios é um “pagamento desta falta de diálogo” com esses que são taxados de pouco letrados. Os ditos setores críticos permitiram a construção do bolsonarismo e também internalizam a lógica da elite intelectual brasileira que abusa das artimanhas racistas com esse discurso aos evangélicos, em geral. Isso porque o evangélico, hoje, nada mais é do que o retrato das periferias. Assim, o que acontece é uma nova face do racismo brasileiro a partir do meio letrado, que é dito ser tão aberto às pluralidades e liberdades, mas que tem problemas de diálogo com as comunidades, roças e favelas. 

A religião não foi discutida 

O fato de não trazer a religião para o debate público fez com que ela não fosse discutida! Não foi apresentada outra narrativa a partir da religião, que não fosse a narrativa das grandes corporações religiosas. E isso é um problema. Não se construíram espaços para tensionar as grandes estruturas. Alguns setores evangélicos e católicos tentam fazer isso, mas eles estão ligados também a certo elitismo da intelectualidade brasileira, o que é outro problema. Ou seja, não trouxemos a religião para dentro da arena pública e nos recusamos a discuti-la. Logo, entregamos isso na mão das grandes corporações religiosas e esse foi um pontapé do autoritarismo atual.

Quero “testemunhar” que certa vez fiz uma pregação numa área periférica do Rio de Janeiro a convite de um amigo pastor. À época, soube que a comunidade, majoritariamente, tinha votado em Crivella. Quando perguntei às pessoas por que haviam votado nele, responderam: “Ora, mandaram um ativista político aqui para distribuir panfleto antes das eleições, mas a Universal está aqui há dez anos fazendo trabalho social. Em quem nós vamos confiar?”

Então, há um desprezo pelas linguagens da população periférica, que é, sobretudo, evangélica. Se não soubermos discutir com eles seguiremos entregues ao poder autoritário dos novos cristofascismos. No geral, interessa a eles a discussão da batalha espiritual. Para essa camada sociorreligiosa, a preocupação é pelo pão do dia seguinte. Eles e elas têm de lutar para comer e beber. Logo, essa linguagem de paz e amor pouco diz. O barulho das barrigas é mais forte do que a paz social. Como se vai falar sobre paz, se não se tem o que comer? Por isso, colam o discurso da guerra, da guerra espiritual. Ali é onde eles têm condição de lutar, até, com Deus. É isto que não se entende. Nossas teologias empacam com o grito da fome, da miséria. Quem melhor assimilou esse sintagma foram as grandes corporações evangélicas pentecostais. Temos um problema epistêmico aí. A classe média religiosa está preocupada em falar de paz, contudo os periféricos querem falar de guerra, e da vitória de ter o que comer, de tirar o filho da prisão. Assim, podemos explicar o ajustamento do discurso com a figura de Bolsonaro. Bolsonaro evoca quase sempre o clima de guerra. 

Há uma forte presença evangélica nas periferias do Brasil

IHU On-Line – O Papa fala em uma Igreja mais pastoral e aberta aos pobres. Isso daria conta de acessar as periferias?

Fabio Py – Tem que apostar num diálogo mais amplo a partir de práticas caritativas, como as das pastorais católicas, que sempre tiveram essa preocupação. Mas é preciso entender que aí existe um conflito: a estrutura religiosa que mais cresce, porque admite dentro de si a dinâmica do conflito, é a evangélica. O catolicismo no geral também está muito preocupado com a paz, em trazer a paz interior – não que o evangélico não esteja –, mas o que importa atualmente é o conflito.

O Vaticano II e os grandes concílios católicos indicaram a Bíblia como uma forma de dialogar, de conversar, de sentar ao lado. Trazer os enredos bíblicos e mostrar o que eles dizem para a vida das pessoas pode ser uma forma de diálogo. Portanto, é preciso que se foque no elemento comum entre as tradições religiosas cristãs: a Bíblia.

Nunca se precisou tanto dos debates e estudos teológicos [e bíblicos].

No ano passado, nas noites de quarta-feira, eu ia fazer estudos bíblicos em Santa Rosa, uma comunidade de Campos dos Goytacazes, na Assembleia de Deus do bairro, a pedido das senhoras. 

IHU On-Line – Quais são as diferenças centrais na interpretação da Bíblia entre alguns pentecostais e outros grupos religiosos? Por que os pentecostais leem bastante o Antigo Testamento?

Fábio Py – Porque tem guerra, porque no cotidiano da periferia é este imaginário que importa: Isaac lutar contra o anjo, e o profeta lutar tanto a ponto de ir contra Deus, porque, ao lutar tanto, ele mobiliza Deus. A Universal usa essa linguagem o tempo todo, dizendo: você vai orar tanto, tanto, tanto, que Deus vai abrir mão e vai permitir... É uma nova forma de acesso. É escandaloso na teologia tradicional protestante, Deus se curva diante da luta das pessoas, mas...

A questão da batalha é muito forte, e no Antigo Testamento isso é mais interessante ainda. No Novo Testamento também tem esse elemento, quando se pensa a relação de Jesus, Pedro e a luta dos apóstolos contra os fariseus. Essa caminhada da indicação da guerra cultural e da guerra bíblica é muito importante para a formação social da periferia. Quem conduz as famílias nas periferias são as mulheres periféricas, que têm cinco ou seis filhos, mais a mãe. Imagine se para essa mulher, que todos os dias levanta às 5 horas da manhã, dá comida para os filhos e pensa na comida do dia seguinte, essa discussão de paz e amor funciona. Aí que está a questão: esse discurso está desconectado dessa realidade. Tal como uma senhora da Assembleia de Deus em Santa Rosa me confessou: “meu filho, a vontade que tenho é de dar na cara de Deus, tacar fogo no mundo, aí, venho aqui, orar para que ele volte logo”. 

IHU On-Line – Que leituras do cristianismo outros grupos religiosos poderiam oferecer como alternativa?

Fábio Py – Esta é a grande questão. Talvez trazer para a arena a dinâmica da justiça, destacando que as pessoas não têm o que comer porque está faltando justiça no lugar onde elas moram. É preciso raciocinar munido de outros textos bíblicos. A racionalidade evangélica e católica conservadora pensa a partir do sagrado, isto é, hoje em dia, “com a Bíblia na mão”.

Quando se discutiu a maioridade penal no Rio de Janeiro, muitas igrejas chamaram pessoas para tratar do tema e uma vez me convidaram para participar de um debate sobre a temática. Os dois preletores que falaram antes de mim eram a favor da redução da maioridade penal e citaram textos bíblicos para explicar as razões. Eu lembrei do texto de Josué para tratar a mesma questão, mostrando que Josué só assumiu o reinado com 18 anos, depois de ter sido treinado, educado.

Precisa-se aprender uma forma de dialogar com o setor e isso influencia o catolicismo em alguma medida, que também está baseado em leituras do Antigo Testamento. Devemos tentar entender como essa racionalidade opera. Como já disse, não acho que a discussão de prática do amor resolva a questão. Muito pelo contrário, porque ela é ligada a um discurso de classe média que está preocupada em manter a família; a tão importante: “vida segura da classe média”. As populações mais periféricas não têm tempo de pensar na família. Não que não seja importante. Mas a miséria das favelas e das roças obriga a outras prioridades. 

A forma de se expressar nesse contexto é evocar as lutas do Antigo Testamento. Ora, devemos encontrar mais textos dentro dessa lógica, entender, fazer cursos e formações que apresentem uma visão diferenciada e conflitante com esta. Este é um desafio fundamental para a teologia, dos estudos de religiões. Como a teologia pode nos ajudar agora em termos das políticas das bases? No mínimo, apresentando outras narrativas.

Durante um período, tivemos no Rio de Janeiro um coletivo que fazia mensagens com outras narrativas, ocupávamos as praças públicas e apresentávamos cristãos que eram favoráveis ao diálogo inter-religioso, incentivávamos as pessoas a conhecerem outras religiões, como as afro-brasileiras. Mas esse movimento é feito por um setor de classe média, que tem oportunidade de ir à universidade. Como vamos construir outras possibilidades narrativas, é a grande questão. Primeiro, precisamos ouvir o pessoal da periferia. Por agora, segue-se surdo a eles, os silenciados, com a desculpa de sua falta de estudo ou pelos funks que escutam. 

JOSUÉ o guerreiro do Antigo Testamento - há várias guerras nessa parte da Bíblia 

IHU On-Line - O apoio religioso que Bolsonaro tem recebido permanece o mesmo ou foi se modificando ao longo do mandato?

Fábio Py – A base evangélica e católica conservadora continua sendo a base do governo, tanto é que Bolsonaro posta, em suas redes, convocatórias para vigília em dias de oração. No início do mandato, Bolsonaro havia diminuído o discurso religioso. Contudo, quando iniciou a investigação do seu filho no caso da “rachadinha”, começou a perder apoio popular. A saída que encontrou foi a reutilização de memes da campanha, de que ele é um ungido de Deus, que vinha para defender a nação, ou seja, houve um novo direcionamento.

Ele tentou se descolar um pouco do setor religioso, porque não é possível governar apenas com esse setor, mas depois retomou a aproximação e, em função das crises geradas pela pandemia, retomou ainda com mais força essa aproximação religiosa.

O vínculo do bolsonarismo com os setores religiosos é uma constante, no entanto, parece ser mais impulsionado quando começam a brotar pesquisas sobre a diminuição de sua popularidade e, nesse contexto, seus intelectuais apostam em energizar sua base religiosa evangélica e católica. Na Páscoa, por exemplo, ele lançou uma série de memes e dizeres bíblicos para o seu público perceber que ele é cristão. Esta é uma questão importante para Bolsonaro, porque precisa provar que sabe mais do que aquele texto que ele sempre cita: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. Uma questão para o seu público é saber se ele é realmente evangélico ou católico, porque precisam se reconhecer nele. Muitos dizem que Bolsonaro não é cristão de verdade e, diante das dúvidas, ele sempre tenta se realinhar. 

IHU On-Line – Quais são os interesses que unem, mas também dividem, o presidente e os líderes religiosos da sua base eleitoral? Em que pautas eles estão unidos e quais são os pontos de divergência?

Fábio Py – Um ponto problemático de Bolsonaro em relação aos evangélicos é a pauta do armamento. No geral, o público das igrejas batistas e presbiterianas não aceita essa pauta, como também, para alguns estratos dos pentecostais, essa agenda é um problema. Historicamente, existe um apelo evangélico contra o armamento e essa é uma questão séria em que não há conexão direta entre Bolsonaro e os representantes das grandes corporações católicas e evangélicas.

Agora, o interesse das grandes corporações em apoiar Bolsonaro é simples: elas visam baratear e renovar as concessões públicas de canais de comunicação de rádio e TV. A Canção Nova está rediscutindo seus contratos e apoiando Bolsonaro; Edir Macedo está fazendo a mesma coisa, rediscutindo seus contratos de permissão pública, assim como R.R. Soares. Ou seja, no curto prazo, há o interesse pragmático de beneficiar essas corporações. Vale lembrar que...

... muitas igrejas recebem financiamentos para o desenvolvimento de projetos sociais e ganham dinheiro com isso.

Por exemplo, a Primeira Igreja Batista de Curitiba se desenvolveu assim e muitas igrejas fazem acordos com as prefeituras para prestar serviços sociais. Também, a Igreja Católica historicamente faz isso. Existem interesses midiáticos claros nesses acordos de apoio político. 

Alguns deputados da Frente Parlamentar Evangélica, há forte presença de pastores

Frente Parlamentar Evangélica 

É importante destacar que a grande base política do governo Bolsonaro é a Frente Parlamentar Evangélica, que se diferencia da Bancada Evangélica. A Bancada Evangélica é formada pelos deputados eleitos que compõem essa bancada política. A Frente Parlamentar Evangélica é composta de mais ou menos 200 pessoas que não necessariamente são evangélicas, mas se identificam com pautas conservadoras dos evangélicos, que envolvem basicamente questões ligadas à formação das famílias. Bolsonaro se mobiliza a partir dessa base e participa, com alguma frequência, dos cultos da Frente Parlamentar Evangélica nas quartas-feiras pela manhã. Portanto, existe uma conexão umbilical entre esse setor evangélico fundamentalista e o catolicismo conservador político e Bolsonaro.

A Frente Parlamentar Evangélica é hoje o braço político com mais intenso diálogo com Bolsonaro.

IHU On-Line - O senhor declarou recentemente que o apoio de Malafaia a Bolsonaro é de grande importância para o projeto político do presidente. Pode explicar essa ideia? Qual é o projeto de Bolsonaro e como Malafaia pode ser uma chave importante no seu desenvolvimento?

Fábio Py – Bolsonaro precisa de um articulador mais jovem: Macedo tem 75 anos e Malafaia tem por volta de 60 anos, mas nos últimos anos ele passou a raspar o bigode para parecer mais jovial para o público. Malafaia é um agente quase desprezado, mas tem aproximadamente dois milhões de seguidores nas redes sociais, e o atual presidente da Frente Parlamentar Evangélica, Silas Câmara, foi eleito a partir da campanha feita por Malafaia.

Malafaia tem um faro midiático impressionante e, por dia, publica de dois a três vídeos com comentários. Normalmente faz um sobre algum tema religioso, outro sobre alguma programação de sua igreja e outro sobre alguma questão política. Esses vídeos são compartilhados entre duas e três mil pessoas. Ora, se ele faz isso todos os dias, é algo impressionante – isso dificilmente é dito nos textos científicos sobre religião.

Por volta dos anos 2000, Malafaia se notabilizou quando falava diariamente nas rádios evangélicas do Brasil, que têm as maiores audiências do país, como a rádio Melodia e a 93FM. Nas duas emissoras há debates ao meio-dia e Malafaia fez seu nome a partir desses debates, porque ele começava a discutir temas teológicos, falar sobre igreja, diariamente, de segunda a sexta, e isso deu a ele muita visibilidade. Ele tem uma capacidade midiática diferente da do bispo Macedo, que prega no domingo de manhã e tem uma voz mais mansa. Malafaia prega como os grandes evangelistas americanos e fala através do conflito e das polêmicas.

Se não me engano, ele foi a primeira pessoa com quem Bolsonaro falou depois da eleição. Bolsonaro o indagou sobre a sua eleição e Malafaia respondeu: “Deus gosta de coisas doidas”. No geral, não se percebe a importância de Malafaia para o atual governo, mas ele sempre está presente nos eventos convocados pelo presidente. Já Macedo, nunca está – ele tem outro perfil, que também é de apoio, mas o faz mais pela via institucional. Malafaia é aquele que aparece mais, faz vídeos, grita, xinga, falando sobre política. Quando [Sérgio] Moro saiu do governo, o pastor fez vídeos falando mal de Moro durante duas semanas. Quando Mandetta saiu, ele fez vídeos dizendo que o ex-ministro não era um bom médico. Então, há uma relação umbilical entre Malafaia e Bolsonaro. Ele fez o casamento de Bolsonaro e Michelle, que frequentaram a sua igreja por um tempo. Além disso, Malafaia atrai um público que Bolsonaro não tem: os jovens evangélicos e católicos.

No evento The Send Brasil, que é uma reaproximação dos movimentos evangélicos do sul dos Estados Unidos com o Brasil, Malafaia foi um dos pregadores e Bolsonaro também participou. Este é um evento de renovação espiritual dos jovens brasileiros e ocorreu em três grandes estádios, em três regiões do Brasil, simultaneamente, com mais de cem mil jovens. Imagine o poder desse movimento. Na fala de Malafaia, enfatizou-se que os jovens não deveriam perder de vista a importância de seguir o evangelho de verdade, não se curvando aos humanismos e aos esquerdismos das universidades do Brasil. 

BOLSONARO comparece no "The Send Brasil" - Estádio Nacional de Brasília - fevereiro/2020

IHU On-Line – Como outros grupos religiosos podem fazer frente a esse fenômeno?

Fábio Py – Não sei. De forma sistêmica, precisamos buscar outra forma de fazer a discussão sobre religião nas escolas, por pessoas que tenham formação em Ciências da Religião. Talvez esse seja um caminho, assim como outras formas de narrar a religião. Esse caminho não pode ser feito só por historiadores e antropólogos; tem que ser feito por alguém que entende internamente a linguagem da religião, que saiba o seu modus de pensar, que compreenda as narrativas das religiões e que saiba trabalhar os textos sagrados. Novamente, gostaria de repetir: ...

... se deixarmos os textos sagrados somente nas mãos de alguns líderes religiosos, eles vão transformar tudo isso em guerra cultural, em disputa de deuses, em disputa por dinheiro.

IHU On-Line - Vê possibilidade de a base religiosa que sustenta o presidente hoje se descolar do governo, como ocorreu no governo Dilma? Já há sinais disso?

Fábio Py – Sim, e algumas estruturas tradicionais, como os protestantes tradicionais, já estão fazendo uma crítica do alinhamento com o governo. Os presbiterianos e os metodistas começaram a fazer uma crítica das ações do presidente durante a pandemia, principalmente por não seguir as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS). Eu tenho amigos pastores batistas que apoiavam Bolsonaro e voltaram atrás após o discurso dele sobre a pandemia ser apenas “uma gripezinha”.

Quero crer que essa crítica vai ocorrer. Aos poucos, as grandes estruturas religiosas protestantes tradicionais estão se descolando do governo. Como disse, a linguagem sobre armas no meio evangélico não é positiva. Do início do ano para cá, setores que antes apostavam em Bolsonaro enfrentam certo desgaste, até por causa do modo como ele interpreta a questão da família: ele tirou o diretor da Polícia Federal do governo para salvar a família dele. Ora, Bolsonaro não pensa numa família idealizada, mas, sim, está defendendo a família dele contra a dos demais. Logo, sua família é o elemento central do governo. Embora sua base social seja densa, aos poucos (ao custo de muitas vidas na pandemia) está acontecendo um exercício de crítica desse processo. O interessante é que a periferia não é pró-Bolsonaro, mas a classe média se interessa pelo discurso anticomunista e pela pauta da segurança pública, que são tendências do bolsonarismo. 

É cada vez mais importante a formação bíblica para uma narrativa alternativa àquela dos católicos e evangélicos identificados com o cristofascismo

IHU On-Line - Que cristologia seria capaz de responder ao cristofascismo à brasileira?

Fábio Py – Atualizações e releituras da teologia da libertação latino-americana são traços interessantes. Cristo foi um pobre e fez parte do grande movimento daqueles que não eram vistos no Império Romano; ele constitui ações de insurgência contra o movimento romano. Logo, o movimento de Cristo foi um movimento dos insubordinados ao Império. É preciso reassumir essa razão da cristologia, fincada nas bases sociais, para denunciar os crimes de autoritarismo, assumindo que Cristo foi contra as estruturas governamentais da época. Da mesma forma, ele se preocupou com a construção de uma nova ordem, de uma nova lógica de mundo.

Neste caso, a forma de condução é...

... reafirmar o projeto das teologias da libertação latino-americanas, assumindo Cristo como sendo sujeito das camadas mais baixas, que foi contra o Império, e mostrar que fez parte da luta dele construir um novo projeto de vida.

Bradou que a “paz dele não” era do mundo romano, mas sim, de outro mundo, no qual tem pão, comida e vida para todo mundo. É preciso reafirmar as bases sociais do cristianismo, de uma teologia política a partir dos pobres. Isso é fundamental. Como podemos fazer isso? Dialogando. Para isso, precisamos sair do nosso âmbito acadêmico, intelectual e de formação de classe média e se colocar junto, percebendo que só assim se pode construir uma nova lógica de mundo.

Precisamos reafirmar quem é Cristo, que figura é essa.

Uma cristologia que vai fazer frente à cristologia de Bolsonaro é aquela que afirma Jesus entre os que buscam organizar a vida na lógica do repartir o pão, caminhar junto.

Bibliografia

ALMEIDA, Jheniffer Vieira. Servir e obedecer: política e religião por meio dos cabos eleitorais neopentecostais. Dissertação de mestrado em Sociologia Política, UENF, 2017.

BUTLER, Judith. O mundo deve mudar, e os ideais do socialismo democrático são os que mais deveriam ser estimados. São Paulo: IHU, 2020. Disponível aqui.

GEBARA, Ivone. Rompendo o silêncio: uma fenomenologia feminista do mal. Petrópolis: Vozes, 2000.

LÖWY, Michael. A guerra dos Deuses. Petrópolis: Vozes, 2000.

LÖWY, Michael. O neofascismo de Bolsonaro diante da pandemia. Blog da Boitempo Editoral, 24 de abril de 2020. Disponível aqui.

MBEMBE, A. Crítica da razão negra. São Paulo: Antígona, 2014.

PACHECO, Ronilso. Teologia negra: sopro antirracista do Espírito. Rio de Janeiro, Novos Diálogos, 2019.

PY, Fábio. Lauro Bretones: um protestante heterodoxo no Brasil de 1948 a 1956. Tese de Doutorado em Teologia, PUC-Rio, 2016.

PY, Fábio. A cristologia cristofascista de Jair Bolsonaro, São Paulo: Carta Maior, 2019. Disponível aqui.

PY, Fábio. Jesus e a memória insurgente dos sem rosto. São Paulo: Christian Aid, 2019. Disponível aqui.

PY, Fábio. Pandemia cristofascista. São Paulo: Recriar, 2020.

GRABOIS, Pedro F. Abolir a segurança. Rio de Janeiro: Novos Diálogos, 2018. Disponível aqui.

RANCIERÉ, Jacques. Ódio à democracia. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014.

SCHMITT, Carl. Théologie politique. Paris: Gallimard, 1988.

SÖLLE, Dorothee. Beyond Mere Obedience: Reflections on a Christian Ethic for the Future, Minneapolis: Augsburg Publishing House, 1970. Disponível aqui. 

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Quarta-feira, 1 de julho de 2020 – Internet: clique aqui (acesso em: 29/01/2021).

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Este é um livro a ser lido!

 A MENTE MORALISTA E AS ORIGENS DA POLARIZAÇÃO CONTEMPORÂNEA

 Ladislau Dowbor* 

Majestosamente escrito, sofisticado e estimulante. Pode muito bem mudar a maneira como você pensa e fala sobre política, religião e natureza humana

JONATHAN HAIDT

Estamos falando do livro de Jonathan Haidt, intitulado na edição brasileira: A mente moralista: por que pessoas boas são segregadas por política e religião (título original inglês: The Righteous Mind: Why Good People Are Divided by Politics and Religion. New York: Pantheon Books, 2012, 420 páginas). Foi publicado no Brasil pela Editora Alfa Cult, Rio de Janeiro (RJ), em 9 de dezembro de 2020.

Para melhor compreendermos a importância e atualidade dessa obra, tomo a liberdade de propor-lhes uma ótima resenha sobre este livro, publicada por Ladislau Dowbor, em março de 2014. Tudo, repito, ainda é muito válido e atual para os tempos de hoje! Afinal, somente, agora, essa obra foi publicada em nosso País.

Eis o artigo: 

Mentimos, trapaceamos e justificamos tão bem que passamos a acreditar honestamente que somos honestos.”

Jonathan Haidt 

É difícil traduzir a expressão inglesa self-righteousness. Expressa a profunda convicção de uma pessoa de que domina os outros da altura da sua elevada postura ética. Em geral leva a comportamentos estreitamente moralistas e intolerantes. E frequentemente vemos atos violentos justificados com fins altamente morais. Não há barbárie que não se proteja com argumentos de elevada nobreza. Sentimento que permite soltar as rédeas do ódio, aquele sentimento agradável de odiar com boas razões. A Marcha da Família com Deus pela Liberdade [para saber mais, clique aqui] representou um marco histórico da hipocrisia na defesa de privilégios. Vêm mais marcha por aí, a hipocrisia tem pernas longas. As invasões de países se dão em geral para proteger as populações indefesas, as ditaduras para salvar a democracia, os ataques sexuais são feitos da altura moral de quem usa os buraquinhos como se deve. 

Jonathan Haidt, no seu livro The Righteous Mind, que traduziremos aqui por “a mente moralizante”, para distinguir da pessoa meramente “moral”, parte de um problema relativamente simples: como é que a sociedade americana se divide, de maneira razoavelmente equilibrada, em democratas e republicanos, cada um acreditando piamente ocupar a esfera superior na batalha ética, e considerando o adversário como hipócrita, mentiroso, enfim, desprovido de qualquer sentimento de moralidade? O imoral, é o outro. E, no entanto, de cada lado há pessoas inteligentes, sensíveis, por vezes brilhantes – mas profundamente divididas. Em nome da ética, o ódio impera. 

O tema, evidentemente, não é novo. Um dos livros de maior influência, até hoje, nos Estados Unidos, é O Dilema Americano, de Gunnar Myrdal, dos anos 1940, que lhe valeu o prêmio Nobel. É uma das análises mais finas não dos Estados Unidos, mas do bom americano médio, e de como cabem na mesma cabeça a atitude compenetrada no serviço religioso da sua cidade, a profunda convicção da importância da liberdade e dos direitos humanos, e práticas como a perseguição dos negros? O livro é muito inteligente, e correto. Myrdal adverte que desautoriza qualquer uso da sua análise para um antiamericanismo barato. O objetivo dele não é defender ou atacar, é entender. Mas conclui que “o problema negro”, nos Estados Unidos, “é um problema dos brancos”. A análise, naturalmente, poderia ser estendida para muito além da mente americana. 

O campo de trabalho de Haidt é a disciplina chamada psicologia moral, moral psychology. Estuda justamente como se articulam, em termos psicológicos, as construções dos nossos valores, e em particular os valores que podemos qualificar de políticos.

Com que base real passamos a achar que o que fazemos é moralmente certo, ou correto? Através de quais mecanismos o que era razão se transforma em mera racionalização de emoções subjacentes?

Há as leis, naturalmente, mas estas definem o que é legal, e frequentemente as leis foram elaboradas por quem as manipula, tornando legal o que é moralmente indefensável. Os paraísos fiscais permitem às corporações pagar poucos impostos, o que não é viável para a pequena empresa. Não é ilegal declarar a sua sede no paraíso fiscal, e evitar assim de pagar impostos no país onde a empresa funciona, enquanto os seus empregados naturalmente pagam os impostos normalmente, inclusive porque são deduzidos na folha de pagamento. Basta ser legal para ser ético? Snowden, aos revelar a amplitude da invasão da privacidade e do uso invasivo das tecnologias de rastreamento da NSA [Agência Nacional de Segurança – Estados Unidos], cometeu um ato ilegal, do ponto de vista da justiça americana (ainda que com controvérsias), mas o fez, com risco próprio, por razões éticas. Os que lutavam contra a escravidão eram presos e condenados. Mandela pagou 30 anos da sua vida por combater um regime legal, mas medieval. Os republicanos qualificam Snowden de traidor, como a Máfia considera traidor quem não se solidariza com o grupo, ainda que seja para cometer crimes. A ética pode ser muito elástica. 

Livro que marcou época! Os Estados Unidos passados a limpo!

Há um referencial confiável, um valor absoluto?

Durkheim escreveu que...

... “é moral tudo que é fonte de solidariedade, tudo que leva o homem a regular as suas ações por algo mais do que o seu próprio egoísmo”.

Haidt busca “os mecanismos que contribuem para suprimir ou regular o autointeresse e tornam as sociedades cooperativas”. Paulo Freire, que era um homem simples, mas não simplório, resumia a questão, dizendo que queria “uma sociedade menos malvada”.

Com quais mecanismos psicológicos grupos sociais conseguem justificar, em termos éticos, o que claramente traz danos aos outros, e vantagens para elas?

Chamemos isto de racionalizações, coisa que Haidt chama de raciocínio motivado (motivated reasoning). 

Haidt entra no coração das racionalizações:

A visão é de que buscamos mais parecer bons do que ser bons.

“Mentimos, trapaceamos e dobramos regras éticas frequentemente quando achamos que podemos sair impunes, e então usamos o nosso raciocínio moral para gerir as nossas reputações e justificar-nos junto aos outros. Acreditamos no nosso raciocínio a posteriori tão profundamente que terminamos moralisticamente (self-righteously) convencidos da nossa própria virtude”. Somos tão bons nisto, que conseguimos enganar até a nós mesmos.

A visão geral de Haidt é que o raciocínio serve essencialmente para justificar o que já foi decidido por outros mecanismos, intuitivos:

“É o primeiro princípio: as intuições chegam em primeiro lugar, o raciocínio estratégico em segundo”.

O que resulta é um raciocínio de confirmação, não de análise e compreensão: “Que chance existe que as pessoas pensem de mente aberta, de forma exploratória, quando o autointeresse, a identidade social e fortes emoções as fazem querer ou até necessitar chegar a uma conclusão preordenada?” 

Provavelmente o maior interesse do livro de Haidt, é que nos permite entender um pouco melhor este nosso poço escuro de ódios e identificações políticas, ao detalhar, baseado em pesquisas, a diversidade das motivações. Ele trabalha com uma “matriz moral” de seis eixos, que estão por trás das nossas atitudes de solidariedade ou de indignação, de aprovação ou de ódio. 

A explicação desses seis eixos que constituem a matriz moral social conservadora encontra-se abaixo

Matriz moral de seis eixos 

1º) O primeiro é o “cuidar” (care, em inglês), que nos faz evitar causar danos aos outros, querer reduzir sofrimentos. Está dentro de todos nós. Ao ver um cachorrinho ser maltratado, ficamos indignados, ainda que não gostemos de cachorro. É um motor poderoso, que exige, inclusive, que as pessoas que massacram ou torturam outras precisem “desumanizar” a sua vítima, transformá-la em objeto fictício: É um terrorista, um comunista, um marginal, um gay, uma puta, qualquer coisa que a rebaixe do status de pessoa, permitindo o tratamento desumano. O garotão de classe média que ateia fogo ao mendigo se sente, inclusive, mais “pessoa”. Está “acima”. O mendigo não é pessoa, é mendigo. Vai trabalhar, vagabundo. 

2º) A liberdade (liberty) constitui outro vetor de valores, com o correspondente repúdio à opressão. Naturalmente, para muitos, a liberdade significa também a liberdade de oprimir, mas para isto precisam aqui também reduzir a dimensão humana de quem oprimem. Os doutores do direito canônico resolveram assim o dilema de se defender a liberdade de ter e de caçar escravos: o negro não teria alma. Os vietnamitas foram massacrados para proteger o seu direito à liberdade. Assim todo valor precisa criar as suas hipocrisias para ser violentado. Foi em nome da liberdade que nos Estados Unidos e aqui no Brasil repelimos a limitação das armas de fogo pessoais, ainda que se saiba que os donos são as primeiras vítimas. E, no entanto, reconhecemos sim a aspiração à liberdade como um valor fundamental, que orienta as nossas opções éticas. 

3º) Um terceiro vetor de valores está no que consideramos de tratamento justo, ou não desigual. Em inglês, o conceito utilizado, fairness, fica mais claro. Milhões de brasileiros ficam indignados em cada fim de semana, quando o árbitro dá um cartão amarelo por uma falta, e não dá o mesmo cartão em falta semelhante do outro time. Se o cartão foi merecido ou não, é até secundário, gera indignação o tratamento desigual. Critério ético perfeitamente válido, e têm razão milhões que veem como escandaloso o tratamento desigual na justiça, que ostenta no seu símbolo a balança, a imparcialidade. O sentimento é muito enraizado. Pesquisa com macacos mostram que se um macaco recebe uma comida mais gostosa, os outros que receberam a mesma comida que sempre comeram e gostaram, se recusam a comer. 

4º) Um quarto vetor é o da lealdade (loyalty) que nos faz buscar adotar os valores do nosso grupo, considerando traidor quem não os adota. Muito utilizado nas forças armadas, o esprit de corps, faz com que por exemplo militares jurem com toda tranquilidade que os seus colegas não torturaram, ou não estupraram, porque se sentem leais aos seus companheiros, esta lealdade superando inclusive a consideração ética sobre o crime cometido. Gera, inclusive, um agradável sentimento de pertencimento heroico ao grupo. Um filme famoso, com Al Pacino, Perfume de Mulher, é centrado neste tema: um jovem universitário que constatou uma pequena bandidagem dos seus colegas, recusa-se a denunciá-los, ainda que o ameacem de prejudicar o seu futuro universitário. O sofrimento dele permeia todo o filme, justamente porque é um rapaz profundamente ético. 

5º) Um quinto conjunto de valores está centrado na autoridade (authority) que nos faz considerar ético o que os líderes decidem, e chamar de subversivos os que se rebelam. Esta identificação a priori com a autoridade é profundamente escorregadia, em particular porque nos permite fazer qualquer coisa com a justificativa que estávamos cumprindo ordens. Aqui, o maravilhoso texto de Hannah Arendt [Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, 344 p] nos ajuda muito, pois nos permite entender que não se trata apenas de criminalizar quem se esconde atrás do argumento de autoridade, trata-se de aprofundar como funciona a banalização do mal, e o tipo de ódio que muita gente tem contra quem os priva do que consideram ódio legítimo. Vá dizer a pessoas de direita que o julgamento do STF foi preconceituoso: ficam apopléticos, estamos privando-os do gosto do seu ódio, ainda que só cego não vê as distorções, mas estas exigem o uso da razão, a capacidade de contestação objetiva. Há uma experiência muito conhecida, com estudantes universitários, chamados a dar choques elétricos a pessoas desconhecidas, a pedido de funcionários com batas de médico, que justificavam que se trata de uma experiência científica. A maioria dos estudantes não se fez de rogada. 

6º) O último vetor de justificativas éticas levantado por Haidt é o da santidade (sanctity), ligada a valores sagrados como tradições ou razões religiosas, que nos fazem condenar ao fogo do inferno quem não acredita em outras visões de mundo. Aqui temos um prato cheio. Uma leitura básica é o famoso manual de instruções da inquisição, que ensinava, por exemplo, que as mulheres suspeitas de bruxaria ou de serem possuídas deviam ser torturadas nuas, pois as fragiliza, e de costas, pois as expressões de dor e de desespero causados pela tortura, obra naturalmente do próprio demônio, podiam ser tão fortes que poderiam amolecer o inquisidor. Tudo em nome de Jesus, da caridade, do amor ao próximo. As mutilações de meninas, a quem se corta (sem anestesia) os lábios externos da vagina (clitoridectomia), atingem milhões de crianças [em países africanos e do Oriente Médio]. Estamos no século 21. 

Valores defendidos pela esquerda e pela direita 

Ao comparar as visões em inúmeras entrevistas de pessoas no espectro político completo, da esquerda até os mais conservadores, Haidt constata que há uma graduação muito clara relativamente a quais elementos da matriz se dá mais importância.

Assim, a esquerda dá muito mais importância aos três primeiros eixos, ligados, portanto, a:

* não fazer dano, não machucar, a reduzir o sofrimento e assegurar o cuidado;

* à luta contra a opressão e pela liberdade; e

* às regras limpas do jogo, com igualdade de tratamento, a chamada justiça social.

Inversamente, a direita dá menos valor aos primeiros, e concentra as suas visões:

* na lealdade de grupo (veja-se a Ku Klux Klan – KKK – por exemplo),

* à autoridade e a correspondente obediência, e

* ao respeito de valores considerados sagrados no sentido em boa parte religioso, onde muitas vezes o sagrado mistura o político e o religioso, como no Gott mit Uns dos nazistas, acompanhado do símbolo da suástica. O fato de milhões ficarem fanatizados, num país que não poderia ser considerado de baixo nível educacional, é significativo. Não se trata de educação, e sim de instituições, de cultura política. 

A conclusão interessante de Haidt, que é um confesso liberal, no sentido americano, por tanto correspondente ao que seria um progressista entre nós, é que a direita usa argumentos e sentimentos que calam fundo nas pessoas, pois mais fortemente ancoradas nas emoções, nos sentimentos de grupo, coesão, bandeira, religiosidade, autoridade e obediência. São mensagens que ecoam mais fortemente no emocional do que no raciocínio, e que em particular permitem dar uma aparência de legitimidade ética ao ódio. A direita americana, por exemplo, sempre agitou um demônio – externo naturalmente – para justificar tudo e qualquer coisa: Foram utilizados Khadafi, Saddam Hussein, Osama Bin Laden, até Fidel Castro, e hoje o terrorismo em geral. [No Brasil, de hoje, temos o antipetismo, o anticomunismo, os antiabortistas e outros movimentos de direita.] Funciona. Mas não resolve nada. 

Explicar o drama de pessoas que passam fome (harm) e as estatísticas de mortalidade infantil apela muito mais para o raciocínio, que não tem o mesmo efeito mobilizador do que os argumentos que atingem o fundo emocional. Apelar para o emocional, inclusive quando se utiliza os primeiros eixos que são mais característicos da esquerda – por exemplo nos movimentos antiaborto – dá à direita vantagens de um discurso simplificado e que pega mais no fígado do que na razão, como por exemplo a bandeira dos marajás do Collor, ou da vassourinha de Jânio Quadros. [O antipetismo de Jair Bolsonaro que o ajudou a eleger-se em 2018] 

Haidt busca um mundo mais equilibrado. Não desaparecerão as motivações mais valorizadas na direita.

Mas o essencial do livro é que nos faz entender melhor as raízes emocionais da razão, a facilidade com a qual se constroem pseudorrazões e fanatismos.

Ajuda-nos por exemplo a entender como se constrói uma campanha contra a presença de médicos cubanos em regiões onde médicos nossos não querem ir, projeto inatacável do ponto de vista humanista. Inúmeras razões são apresentadas, mal encobrindo um ódio ideológico que é a verdadeira razão.

O ódio, como fenômeno de massas, é contagioso.

Explicar racionalmente um projeto é muito menos contagiante. 

Haidt se preocupa em particular com o poder que simplesmente não tem contas morais a prestar, o universo das grandes corporações. “Se o passado serve para nos iluminar, as corporações crescerão para se tornarem cada vez mais poderosas com a sua evolução, e elas mudam os sistemas legais e políticos nos países onde se instalam para gerar um ambiente mais favorável. A única força que resta na terra para enfrentar as maiores corporações são os governos nacionais, alguns dos quais ainda mantêm o poder de cobrar impostos, regular, e dividir as corporações em segmentos menores quando se tornam demasiado poderosas”. 

Vem-nos à lembrança a frase de Milton Friedman, da escola de Chicago, de que as empresas, como as paredes, não têm sentimentos morais. Ou a visão proclamada em Wall Street: Greed is Good, a ganância é boa. Parece que uma parte do universo escapa a qualquer ética. O filme O Lobo de Wall Street vem naturalmente à memória. O personagem real da história, deu entrevistas dizendo que o filme não exagerou nada. Chega o denominador comum que assegura a absolvição por atacado: todos fazem, não fizemos nada que toda Wall Street não faça. 

Aqui a dimensão é outra, pois se trata da diluição das responsabilidades nas instituições. Joseph Stiglitz, ex-economista chefe do Banco Mundial, “Nobel” de economia, e insuspeito de esquerdismo, resumia a questão em pronunciamento na ONU sobre direitos humanos e corporações:

“Mas infelizmente, a ação coletiva que é central nas corporações mina (undermines) a responsabilidade individual. Tem sido repetidamente notado como nenhum dos que estavam encarregados dos grandes bancos que trouxeram a economia mundial à borda da ruína foi responsabilizado (held accountable) pelos seus malfeitos. Como pode ser que ninguém seja responsável? Especialmente quando houve malfeitos (misdeeds) da magnitude dos que ocorreram nos anos recentes?”

Quando somos uma massa, e que todos fazem mais ou menos o mesmo: pode ser o linchamento de um rapaz na favela, ou massacres numa guerra, mas muito mais prosaicamente numa gigantesca corporação onde tudo se dilui, a ética se torna tão diluída que desaparece. 

Ninguém gosta de se achar pouco ético. E nossas defesas são fortes. Não posso deixar de citar aqui o texto genial de John Stuart Mill, de 1861, escrevendo sobre a sujeição das mulheres na Grã-Bretanha da época, quando eram reduzidas a palhacinhas decorativas e proibidas de qualquer participação adulta na sociedade e na construção dos seus destinos. Ao ver a dificuldade de penetrar na mente preconceituosa, Mill escreve:

Enquanto uma opinião estiver solidamente enraizada nos sentimentos (feelings), ela ganha mais do que perde estabilidade quando encontra um peso preponderante de argumentos contra ela. Pois se ela tivesse sido construída como resultado de uma argumentação, a refutação do argumento poderia abalar a solidez da convicção; mas quando repousa apenas em sentimentos, quanto pior ela se encontra em termos de argumentos, mais persuadidos ficam os seus defensores de que o que sentem deve ter uma fundamentação mais profunda, que os argumentos não atingem; e enquanto o sentimento persiste, estará sempre trazendo novas barreiras de argumentação para consertar qualquer brecha feita ao velho.”

A mensagem de Haidt não é de passar a mão na cabeça da esquerda ou da direita, e sim de sugerir que tentemos entender melhor como se geram os agrupamentos políticos, as identificações com determinadas bandeiras, os eventuais fanatismos, e as formas primárias como dividimos a sociedade em bons e maus. O maniqueísmo é perigoso. Quando vemos que os mesmos homens podem ser autores de atos abomináveis e heroicos, ...

... o que interessa mesmo é construir instituições que permitam que se valorize as nossas dimensões mais positivas.

Nas palavras de Haidt, criar “os contextos e sistemas sociais que permitam às pessoas pensar e agir bem”. 

* Ladislau Dowbor é formado em Economia Política pela Universidade de Lausanne, Suíça; Doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, Polônia (1976). Atualmente é professor titular no departamento de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, nas áreas de Economia e Administração. Continua com o trabalho de consultoria para diversas agências das Nações Unidas, governos e municípios, além de várias organizações do sistema “S” (Sebrae e outros). Atua como Conselheiro no Instituto Polis, IDEC, Instituto Paulo Freire, Conselho da Cidade de São Paulo e outras instituições. 

Fonte: blog Ladislau Dowbor – Dicas de Leitura – 5 de março de 2014 – Internet: clique aqui (acesso em: 28/01/2021).