Para compreender melhor o cristianismo
Caminho para a paz: a cultura do cuidado
Dom Odilo Pedro Scherer
Cardeal-arcebispo de São Paulo – SP
«Toda
forma de injustiça, desprezo e violência contra o próximo é desaprovada pelo
Criador»
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PAPA FRANCISCO assinando a cópia oficial da encíclica "Fratelli tutti" (Todos sois irmãos), diante do túmulo de São Francisco, na cripta da Basílica Inferior, em Assis, Itália - 03/10/2020 |
A crise sanitária vivida em 2020 revelou grandes e comoventes movimentos de solidariedade e dedicação ao próximo de muitos profissionais e voluntários. Mas preocupam as formas de insensibilidade, discriminação e fechamento diante da dor alheia e das ações que, em vez de construir pontes, levantam muros de ódio, xenofobia e morte. O papa fala da importância da edificação de uma sociedade “alicerçada em relações de fraternidade”.
A fraternidade, como base das relações humanas, foi tema da recente encíclica de Francisco, Fratelli tutti (Todos sois irmãos). A cultura do cuidado é decorrência e manifestação da fraternidade, levando a construir relações de interesse efetivo pelo bem do próximo e a superar a cultura da indiferença e do descarte, conceitos esses também frequentes nos pronunciamentos do pontífice.
Para ler, baixar e imprimir gratuitamente a Encíclica “Fratelli tutti”, clique aqui
Na sua mensagem sobre a
cultura do cuidado como caminho para a paz, Francisco parte de conceitos
teológicos e chega a conclusões para a vida cultural, social e econômica.
Deus
Criador revela-se ao homem como sábio cuidador do universo e de todos os seres,
convidando também o ser humano a participar do zelo e cuidado que tem pela obra
criada.
Em vez de “lobo devorador do próximo” (“homo hominis lupo”, J. Locke), o homem é chamado a ser cuidador do seu semelhante. Por isso, toda forma de injustiça, desprezo e violência contra o próximo é desaprovada pelo Criador. Jesus Cristo deu o exemplo de atenção misericordiosa pelo próximo, colocando-se junto de quem é vítima de qualquer forma de violência, doando sua vida inteiramente pela humanidade.
Dos seus ensinamentos [de
Jesus] aprendemos que o amor a Deus nunca pode ser separado do amor ao próximo. A prática das obras de misericórdia espiritual e
corporal passou ao núcleo central da vida cristã, traduzindo-se em inúmeras
iniciativas de atenção às pessoas e socorro em suas mais diversas necessidades
e em seus sofrimentos.
O
crer corretamente em Deus está vinculado estreitamente ao viver ativamente o
amor ao próximo, fazendo próprios as suas carências e seus sofrimentos.
A figura do bom samaritano, do Evangelho (cf. Lc 10,25-37) é paradigmática para a cultura do cuidado, inerente à própria essência do cristianismo.
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Representação da parábola do "Bom Samaritano" |
Desse núcleo central decorrem
também os princípios do ensino social da Igreja, voltados para orientar
a práxis humana coerente com a fé em Deus e a cultura do cuidado. Primeiros
dentre eles são os da dignidade da pessoa e dos direitos próprios de cada ser
humano. A realidade da pessoa “exige sempre a relação, e não o individualismo,
afirma a inclusão, e não a exclusão, a dignidade singular inviolável, e não a
exploração”, afirma o papa (n.º 6). Francisco recorda um princípio ético do
filósofo alemão Immanuel Kant para destacar a dignidade humana:
“Toda
pessoa humana é sempre um fim em si mesma e jamais um mero instrumento
utilitário para alcançar outros fins”.
Da dignidade de cada pessoa também decorrem os direitos inalienáveis de cada ser humano e os deveres recíprocos do respeito e cuidado de uns pelos outros, especialmente pelos membros mais fracos e vulneráveis da comunidade humana. A pessoa nunca há de ser um mero dado estatístico, ou um meio a usar enquanto há ganho para em seguida descartar.
Da dignidade humana decorre também a noção de BEM COMUM, segundo a qual nossas ações devem sempre levar em conta suas consequências para o próximo e para toda a família humana. Nosso agir deve ser solidário, jamais individualista, fechado e insensível. Por consequência, negócios lucrativos feitos à custa do sofrimento e exploração do próximo, ou que tenham como consequência a doença ou a morte das pessoas, são absolutamente injustos e desumanos.
A cultura do cuidado também inclui o cuidado da natureza e do conjunto do ambiente, como Francisco expôs na sua encíclica Laudato Sì (2015). O mau uso e o descaso em relação à “casa comum” levam a consequências que vão muito além da mera deterioração ou destruição do ambiente: são também fonte de sofrimentos e conflitos, cujo preço maior é pago pelos membros mais vulneráveis da comunidade humana. “Paz, justiça e salvaguarda da criação são três questões completamente ligadas”, recorda o papa (n.º 6).
Para ler, baixar e imprimir gratuitamente a Encíclica “Laudato Sì”, clique aqui
A mensagem para o Dia Mundial da Paz termina com um apelo para que a cultura do cuidado sirva de bússola no caminho da edificação da paz. Esta é uma construção comum de muitos artesãos da paz, membros de comunidades onde se cuida uns dos outros. Não haverá verdadeira paz sem a cultura do cuidado.
Fonte: O Estado de S. Paulo – Espaço aberto / Opinião – Sábado, 9 de janeiro de 2021 – Pág. A2 – Internet: clique aqui (acesso em: 09/01/2021).
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