A fome voltou!
Pelo menos 10 milhões de pessoas passam fome no Brasil. Pandemia piorou quadro já desolador
Patricia Fachin
Entrevista
especial com Francisco Menezes
Graduado em Economia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ e pós-graduado em Desenvolvimento Agrícola pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - UFRRJ. Atualmente é pesquisador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas – Ibase e colaborador de ActionAid
Estimativas apontam
que nos próximos meses, com o fim do Auxílio Emergencial, a situação deve se
agravar muito
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FRANCISCO MENEZES |
E se na cidade a falta de qualquer tipo de trabalho é o início de um caminho inevitável para a fome, no campo o desmonte de políticas à agricultura familiar e pequenos produtores empurra essas pessoas para as mesmas condições daqueles que vagam pelos centros urbanos sem renda. Até mesmo a suspensão das aulas impactou esses produtores, pois também eram grandes fornecedores para programas de merenda escolar. “Criou-se um problema que impactou fortemente sobre a alimentação das famílias com filhos na rede de escolas públicas, por deixarem de contar com o que era servido nas escolas. Do outro lado, a agricultura familiar que tinha a garantia de fornecimento de no mínimo 30% dos alimentos para as escolas, ficou sem esse mercado”, detalha Francisco.
Ele também lembra que já “entre 2017 e 2018 já tínhamos mais de 10 milhões de pessoas vivendo em situação de insegurança alimentar grave, ou seja, em situação de fome”. Assim, sem estarmos em situação favorável ainda sofremos a pandemia que acelera o agravamento desse quadro. “Se projeta que teríamos hoje em torno de 15 milhões de pessoas em situação de fome”, pontua.
Na entrevista, Francisco ainda analisa os desafios para se superar essa realidade. Para ele, é necessário a discussão acerca de uma renda básica. “A renda básica universal é uma aspiração de grande importância para os valores da cidadania e da justiça. Significará garantia de direitos e de dignidade para todos”, observa. Mas, reconhecendo que na atual conjuntura é impensável se discutir uma renda básica de caráter universal ele sugere que se pense no fortalecimento do Bolsa Família, para ele um dos melhores programas já empregados. “É possível se avançar do Bolsa Família para uma renda básica que incorpore um público maior e que transfira mais renda para os que vierem a recebê-la. É muito importante que se impeça que a título de criação de uma renda básica se destrua o sistema de proteção social que vinha sendo construído”, adverte.
Confira a entrevista.
IHU
On-Line – Algumas estimativas apontam que o número de novos miseráveis no país
pode aumentar de 10 milhões a 20 milhões em 2021. Como o senhor interpreta essa
projeção, tendo em vista o retorno do Brasil ao “Mapa da Fome”?
Francisco Menezes –
Essa projeção é absolutamente realista e, provavelmente, já está
acontecendo. O fechamento de postos de trabalho, a crise que se
abateu sobre pequenas e médias empresas que são aquelas que mais empregam,
a suspensão do auxílio emergencial ao se encerrar o ano e a total
ausência de coordenação e iniciativas do governo federal, seja no
enfrentamento da crise sanitária, seja na proposição de medidas
econômico-sociais efetivas conduz o Brasil a um quadro de pobreza e fome de
imensas proporções.
É importante lembrar que o país já vinha trilhando um caminho de retrocessos acentuados, como ficou também demonstrado em setembro do ano passado com a divulgação dos resultados da pesquisa aplicada pelo IBGE, junto com a Pesquisa de Orçamento Familiar, que mostrou que entre 2017 e 2018 já tínhamos mais de 10 milhões de pessoas vivendo em situação de insegurança alimentar grave, ou seja, em situação de fome. E a partir daí o quadro só se agravou.
Assista a este vídeo que nos mostra uma reportagem sobre o retorno do Brasil ao famigerado "Mapa da Fome". Clique sobre a imagem abaixo:
Francisco Menezes –
O Brasil apresentou resultados extraordinários de enfrentamento da
fome, entre 2003 e 2015, combinando:
* o aumento
do poder aquisitivo das camadas mais pobres da população através da
correção avantajada do salário mínimo,
* aumento
da formalização do trabalho,
* transferência
de renda altamente exitosa com o Programa Bolsa Família e
* outros
processos dentro de um contexto de crescimento econômico inclusivo com uma política
pública de segurança alimentar e nutricional que foi internacionalmente
reconhecida como modelo para diversos países no mundo.
E com a participação de
organizações da sociedade civil, por meio do Conselho Nacional de Segurança
Alimentar e Nutricional – Consea e toda uma rede em estados e municípios,
no âmbito de sistema nacional.
Tudo isso veio sendo gradativamente destruído, desde 2016. Embora ainda não tenha sido realizada uma nova pesquisa que quantifique o número de brasileiros nesta situação de insegurança alimentar grave, já se projeta que teríamos hoje em torno de 15 milhões de pessoas em situação de fome. Entre elas estão os que já sofriam um quadro de vulnerabilidade acentuada, seja nas cidades ou nos campos. Mas se juntaram a estes pessoas que antes sobreviviam a partir do trabalho informal, como vendedores ambulantes e diaristas e que passaram a se submeter ao risco de se contaminarem por não poderem ficar em isolamento social mas que, mesmo assim, não conseguem mais obter ganhos mínimos que garantam a eles e suas famílias o necessário para terem de forma contínua sua alimentação.
IHU
On-Line – O quadro de insegurança alimentar e de fome apresenta que diferenças
e similaridades no Brasil urbano e no Brasil rural?
Francisco Menezes –
Existem, de fato, diferenças e similaridades. No Brasil urbano, o
processo de crescimento do desemprego tem sido determinante para o
crescimento da insegurança alimentar e fome. As pessoas ficam desprovidas
de renda, de início se endividam, depois já não tem mais condições de garantir
compras de alimentos, mesmo os de mais baixo valor e pior qualidade.
No campo, o desmonte de
políticas para a agricultura familiar tem um papel de peso no agravamento
dessas carências. Vale aqui assinalar o que nesse período de epidemia da
Covid-19 ocorreu com o Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE. Com
a necessária suspensão das aulas, criou-se um problema que impactou fortemente
sobre a alimentação das famílias com filhos na rede de escolas públicas, por
deixarem de contar com o que era servido nas escolas. Do outro lado, a
agricultura familiar que tinha a garantia de fornecimento de no mínimo 30% dos
alimentos para as escolas, ficou sem esse mercado, que é muito
significativo para ela.
Ao longo do ano passado, muitos municípios conseguiram se ajustar criando mecanismos de fornecimento de cestas de alimentos para as famílias, com produtos da agricultura familiar e outros não. Com o fim do estado de calamidade esses esquemas começam a serem descontinuados e o problema volta a acontecer em grande escala.
Assista a este vídeo que nos mostra uma reportagem sobre a agricultura familiar. Clique sobre a imagem abaixo:
IHU
On-Line – O auxílio emergencial tem sido apontado por alguns pesquisadores como
o melhor e mais eficiente “programa de distribuição de renda” que o país já
teve. Como o auxílio contribuiu para enfrentar os problemas relativos à fome e
à insegurança alimentar?
Francisco Menezes –
O melhor e mais eficiente programa de distribuição de renda que o país já
teve é o Bolsa Família. É certo que sempre teremos o que melhorar nele,
mas se comprovou com o melhor desenho e cobertura, até que viesse a ocorrer
a epidemia da Covid-19. O Auxílio Emergencial, que foi concebido a
partir da mobilização e proposição de organizações da sociedade e levado ao
Congresso Nacional onde foi aprovado, teve um papel importantíssimo no
enfrentamento de uma situação sanitária, social e econômica extremamente
ameaçadora.
Foi perversamente implantado pelo governo, através de um aplicativo de difícil acesso e preenchimento pelos mais vulneráveis. De qualquer maneira, chegou a contemplar quase 70 milhões de pessoas, repassando até agosto um valor de 600 Reais (1.200 reais para mulheres que são as únicas responsáveis pelos domicílios), que depois foi reduzido pelo governo à metade. O impacto sobre a pobreza monetária e a desigualdade de renda foi relevante. Também como consequência esperada, neutralizou a explosão de fome que ocorreria se não existisse. Ressalte-se ainda que foi o principal fator que causou alguma movimentação na economia, evitando uma recessão maior. Encerrou-se em 31 de dezembro, com o fim do estado de calamidade pública.
IHU
On-Line – Que cenário vislumbra caso o Auxílio Emergencial não seja prorrogado?
Francisco Menezes –
É uma grande irresponsabilidade terem deixado de prorrogar o estado de
calamidade e suspendido o Auxílio. Se isso não for corrigido a tempo, teremos
muito proximamente uma situação de caos social e fome, além dos nefastos efeitos
sobre o controle da epidemia. A economia brasileira vai demorar muito até
se recuperar, o desemprego deve ainda crescer e para piorar insiste-se
em não se revogar de nossa Constituição o absurdo teto de gastos,
implantado no final de 2016 sob falsas promessas de reequilíbrio fiscal e que
se tornou o principal instrumento de destruição de políticas de proteção
social, entre outras.
É muito ameaçadora a situação. O país já assiste a um desalento frente à fome e à extrema pobreza, vivido pelos mais vulneráveis.
IHU
On-Line – Voltou à tona a discussão sobre a implementação de uma renda
básica universal. Como o senhor avalia esse tipo de proposta como uma via
para enfrentar o problema da fome no país?
Francisco Menezes –
O Auxílio Emergencial fez retomar muito fortemente o debate sobre
a renda básica e esse foi um ponto muito positivo nesse contexto. A renda
básica universal é uma aspiração de grande importância para os valores da
cidadania e da justiça. Significará garantia de direitos e de dignidade para
todos.
Considera-se, presentemente, que
não há correlação de forças suficiente para garantir seu caráter universal, ou
seja, que contemplaria toda a população. Mas é possível se avançar do Bolsa
Família para uma renda básica que incorpore um público maior e que transfira
mais renda para os que vierem a recebê-la. É muito importante que se impeça
que a título de criação de uma renda básica se destrua o sistema de proteção
social que vinha sendo construído.
Se tivermos uma renda
básica permanente, com um maior número de pessoas nela incluídas e com um
repasse suficiente para a garantia de uma sobrevivência com dignidade,
problemas como o da fome e da extrema pobreza tenderão a desaparecer ou se
reduzir substancialmente.
IHU On-Line – Recentemente, publicamos uma entrevista com o sociólogo José de Souza Martins, em que ele enaltece a agricultura familiar como a única e melhor “invenção” do Brasil desde a abolição da escravidão. O senhor já citou-a acima, mas gostaríamos de reiterar: qual o papel da agricultura familiar no combate a fome no atual contexto brasileiro?
Francisco Menezes –
A agricultura familiar pode e deve cumprir um papel fundamental, que é o
de oferecer alimentos saudáveis e a preços justos para a população
brasileira. Mas para cumprir bem esse papel precisa ser revista a
prioridade em termos de políticas e recursos dada pelo Estado ao agronegócio.
E, também, precisa ser detido o movimento de destruição das políticas voltadas
para a agricultura familiar e a soberania e segurança alimentar e nutricional
promovida pelo atual governo.
Precisa, ainda, encerrar-se a política anti-ambiental praticada pelo mesmo governo e que traz impactos profundos para aqueles que produzem alimentos. E, por fim, dotar o país de uma política nacional de abastecimento. Se tomarmos esse caminho, a luta contra a fome será tremendamente reforçada.
IHU
On-Line – Outra face que o contexto da pandemia revelou é a crise ambiental e
climática. Quais os desafios de associar a produção de alimentos com equilíbrio
ecológico?
Francisco Menezes – A crise ambiental e climática já se apresentava como um grande desafio para o Brasil, que sofre as consequências de ter um governo pactuado com os mais nefastos interesses anti-ambientais. A produção precisa estar associada com o objetivo de preservação da natureza e de condições justas para os que trabalham com os alimentos. O Brasil precisa iniciar uma transição do modelo convencional da agricultura para um modelo agroecológico.
IHU
On-Line – Para matar a fome é preciso alimento e para produzir alimento é
preciso terra. Qual a centralidade dos debates acerca da reforma agrária nas
discussões de formas de combater a fome no país? E porque o Brasil parece ainda
não ter entendido: "Terra é para quem precisa e comida para todos"?
Francisco Menezes – A reforma agrária potencializará a produção de alimentos saudáveis e, ao mesmo tempo, promoverá justiça na distribuição de terras para aqueles que vivem no campo, reduzindo a pobreza no meio rural. No entanto, construiu-se um mito em torno de um tema sobre o qual não se deveria mais reunir tantas dúvidas e questionamentos. Na ausência dela se promove violência e fome. O país precisa fazer uma reflexão sobre isso e superar esse mito, senão continuará fadado a ser notabilizado por sua desigualdade.
Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Quarta-feira, 27 de janeiro de 2021 – Internet: clique aqui (acesso em: 27/01/2021).
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