«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

sábado, 18 de janeiro de 2020

De quem é a culpa?

Análise infeliz e equivocada sobre o
sacerdócio e o celibato

Jean-Miguel Garrigues
Frade e Teólogo Dominicano
Il Sismografo
16-01-2020

“Penso que o livro sobre o sacerdócio ministerial e o celibato representa uma ‘saída’ por parte de seus autores, Bento XVI e o cardeal Sarah, ‘saída’ que considero infeliz e triste tanto na forma como no conteúdo”
FREI JEAN-MIGUEL GARRIGUES

Várias pessoas me perguntam sobre o que penso do livro sobre o celibato sacerdotal assinado por Bento XVI e pelo cardeal Sarah.

A forma “livro” é infeliz – poderiam dizer diretamente ao Papa

Penso que o livro sobre o sacerdócio ministerial e o celibato representa uma “saída” por parte de seus autores, Bento XVI e o cardeal Sarah, “saída” que considero infeliz e triste tanto na forma como no conteúdo. Quanto à forma, ela constitui inegavelmente uma pressão sobre o papa no momento em que está escrevendo a exortação apostólica pós-sinodal depois da realização do Sínodo sobre a Amazônia.

Ora, essa pressão vem de um papa emérito que, no momento de renunciar ao seu cargo, comprometeu-se solenemente a não interferir no ministério de seu sucessor, e de um prefeito de congregação, ou seja, de um ministro do papa que deveria manter a lealdade a ele enquanto estiver no cargo.

Ambos poderiam ter feito suas objeções diretamente ao Papa e, se necessário, ao Colégio dos Cardeais. Essa maneira de tomar a opinião pública como testemunha, surpreendente, se não chocante devido aos compromissos de seus autores, baseia-a na gravidade do perigo que o fundo da questão representa para a Igreja. Por isso, eles assumem o risco de dividir gravemente a Igreja.

Quanto ao conteúdo, a tese teológica de um vínculo “ontológico-sacramental” entre o celibato e o sacerdócio ministerial é muito questionável. Ao contrário do que afirmam os autores do livro, ela nunca foi realizada não apenas pela tradição das Igrejas Orientais (ortodoxas e católica), mas também pelo magistério dos papas recentes, como mostra a ordenação de pastores protestantes casados que entraram em plena comunhão da Igreja Católica de Pio XII a Bento XVI inclusive. É, portanto, uma opinião de escola, a saber, da escola francesa do século XVII, cuja fraqueza doutrinária Maritain já tinha demonstrado em Bérulle (cf. seu capítulo 'Da Escola Francesa' em seu livro De l'Église du Christ: sa personne et son personnel).

Se tomarmos a Tradição no seu conjunto ao longo da história da Igreja, fica claro que, se há incontestavelmente uma altíssima conveniência entre o sacerdócio ministerial e o celibato, de forma alguma essa conveniência, por mais alta que seja, pode constituir um vínculo necessário a ponto de proibir uma ampliação das exceções à disciplina do celibato na Igreja Latina. Outra coisa é a oportunidade pastoral dessa extensão, sobre a qual é normal que existam opiniões prudenciais divergentes.

Traduzido por André Langer.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos (IHU) – Notícias – Sexta-feira, 17 de janeiro de 2020 – Internet: clique aqui.

O que, de fato, aconteceu por detrás do livro do cardeal Sarah?

Robert Mickens
Editor-chefe da Global Pulse
La Croix International
16-01-2020

“Deixando de lado a contribuição de Bento XVI,
o resto da obra deturpa grosseiramente a doutrina da Igreja
sobre a ligação entre o sacerdócio e o celibato.
Também ignora os fatos da história.”
 
Cardeal Robert Sarah e ex-papa Bento XVI
Não deveria ser assim. E, no entanto, poderia ter sido – e pode ainda se tornar – muito pior.

Bento XVI se viu no meio de uma polêmica relativa à sua suposta coautoria de um livro que defende, com unhas e dentes, o celibato sacerdotal. A obra parece uma tentativa de impedir que o Papa Francisco considere a ordenação de padres casados.

O outro autor e que deu início ao projeto de escrita é o cardeal africano Robert Sarah, experiente autoridade vaticana que se tornou um dos heróis dos católicos tradicionalistas opositores a Francisco.

O livro, que já está publicado em francês e em breve ficará pronto em inglês, chama-se Des profondeurs de nos coeurs [Das profundezas dos nossos corações, em tradução livre]. O jornal conservador francês Le Figaro revelou a sua existência em 12 de janeiro ao publicar excertos e uma entrevista com o cardeal.

E que agitação causou! Especialmente pelo momento em que o livro foi lançado.
 
Livro que originou a polêmica - tradução do título:
"Das Profundezas de nossos Corações"
Editora Fayard - Paris
Uma advertência ao Papa Francisco

A obra aparece poucas semanas antes de Francisco publicar um documento em resposta ao Sínodo dos Bispos para a Amazônia realizado em 2019. Uma das propostas desta assembleia sinodal pede que o papa aprove a ordenação sacerdotal de homens casados de virtude comprovada (viri probati).

Dado que um dos autores do livro é um ex-papa, muitos interpretam a obra como um esforço (e mesmo como uma advertência) para dissuadir Francisco de seguir na linha sugerida pelos padres sinodais.

Mas em menos de 48 horas após a notícia do livro aparecer, o secretário pessoal de Bento XVI – Dom Georg Gänswein – disse que o ex-papa nunca chegou a consentir em ser coautor e pediu que seu nome fosse retirado da capa da publicação.

O ex-papa, explicou Gänswein, apenas submeteu um ensaio ao Cardeal Robert Sarah, sem escrever nenhuma outra parte da obra. Informou também que Bento não viu a capa do livro.

Os fóruns de discussão católicos nas redes sociais aventaram todo tipo de especulação quanto ao que teria acontecido de fato.

Será que Sarah manipulou Bento ou o trapaceou para que ambos fossem os autores da obra? Ou será que Gänswein deu permissão ao cardeal para citar a autoria de Bento só para se ver forçado a negar o envolvimento do ex-papa quando Bento ou outros expressassem um descontentamento?
Ex-papa Bento XVI e seu secretário Dom Georg Gänswein

Apenas um mal-entendido

Não está ainda claro exatamente o que se passou. Gänswein afirmou que Bento nunca chegou a concordar em pôr o seu nome no livro. Mas o cardeal mostrou várias cartas assinadas por Bento que sugerem que ele, realmente, sabia da proposta da publicação.

O cardeal – pelo menos por enquanto – aquiesceu, dizendo que o nome de Bento será retirado das futuras edições. No entanto, insistiu que o ex-papa contribuiu para o livro e que seu texto permanecerá inalterado.

Foi um mal-entendido, sem lançar dúvida sobre a boa-fé do Cardeal Sarah”, declarou o Gänswein.

Mesmo assim, o cardeal não saiu bem deste incidente. Alguns tradicionalistas que antes haviam mostrado admiração por ele agora o culpam por tentar manipular Bento.

Outros dizem que foi tudo culpa de Gänswein, quem então jogou a culpa em Sarah quando o caso estourou no Vaticano.

Quanto ao conteúdo do livro

E quanto ao conteúdo factual do livro? Deixando de lado a contribuição de Bento XVI, o resto da obra deturpa grosseiramente a doutrina da Igreja sobre a ligação entre o sacerdócio e o celibato. Também ignora os fatos da história.

Além disso, desonestamente dá a entender que o que está em jogo é o fim do sacerdócio celibatário. Na realidade, ninguém nunca sugeriu a abolição do celibato, apenas que a prática de ordenação de homens casados seja retomada na Igreja – como era no começo.

Os argumentos mal apresentados do livro são, na verdade, de pouca importância. O problema real é que o ex-papa se envolveu (ou foi envolvido) em um esforço para impedir a liberdade de seu sucessor no governo da Igreja universal.
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Dom Georg Gänswein
Secretário Particular do ex-papa Bento XVI e prefeito da Casa Pontifícia

De quem é a culpa?

Há muita culpa a ser lançada por aí. Dom Georg Gänswein certamente deve levar uma parcela dela. O prelado alemão de 63 anos é o secretário pessoal de Bento XVI desde 2003, dois anos antes da eleição de Joseph Ratzinger ao papado.

Apenas dois meses antes de anunciar a sua renúncia como papa (algo que ele decidiu vários meses antes), Bento nomeou Gänswein como prefeito da Casa Pontifícia e o ordenou bispo.

O novo papa, Francisco, o manteve na função. Além de continuar como prefeito, Gänswein continuou sendo o secretário pessoal de Bento.

Os dois, e outras quatro leigas consagradas, vivem na mesma residência nos Jardins do Vaticano. Nos quase sete anos desde sua saída, Bento vem recebendo visitantes quase diariamente. O seu secretário é o “porteiro”, decidindo quem tem acesso a ele e quem não tem.

Nos últimos anos, à medida que a saúde de Bento se fragiliza, o papel do arcebispo de guardião e cuidador torna-se mais importante ainda. Um documentário lançado no começo deste mês na Alemanha mostra o ex-papa em um estágio avançado de declínio.

E a assinatura nas cartas que ele teria escrito (ou ditado) permitindo que Sarah publicasse os seus pensamentos sobre o celibato está quase ilegível.

No mínimo, isso sugere a possibilidade de que alguém – isto é, o secretário de Bento – assumiu a responsabilidade de negociar o projeto do livro com o cardeal [Sarah].
Cardeal Robert Sarah - Guiné Bissau (África)

Che Sarah Sarah
E qual a culpa do cardeal?

Robert Sarah trabalha no Vaticano desde 2001 quando João Paulo II o nomeou secretário da Congregação para a Evangelização dos Povos (Propaganda Fide). Nos 22 anos antes desta nomeação, ele serviu como arcebispo em sua diocese natal, a Diocese de Konakry, na Guiné, posto que ocupou até os 34 anos.

Durante o seu tempo na Propaganda Fide, o então arcebispo era conhecido como uma figura silenciosa e dedicada à oração. Os sinais de um conservadorismo ideológico surgiram só mais tarde, depois que Bento XVI o designou para presidir o hoje inexistente Pontifício Conselho “Cor Unum” em 2010 e o fez cardeal.

Após a eleição do Papa Francisco, o africano participou do primeiro grupo de cardeais a manifestar um descontentamento com as novas reformas pastorais do papa, especialmente aquelas relacionadas às pessoas em situações matrimoniais irregulares. Ele passou então a escrever ensaios e livros que demonstram uma falta completa de confiança em Francisco.

Portanto, surpreendeu quando o papa jesuíta nomeou este cardeal como prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, em novembro de 2014.

Como informado na imprensa à época, a primeira escolha do papa para este cargo era Dom Piero Marini, ex-mestre de cerimônias papal. Mas figuras próximas a Bento (talvez a pedido do papa aposentado) pediram que Francisco não fizesse esta nomeação, advertindo que ela provocaria uma guerra com os católicos tradicionalistas.

Por sugestão deste grupo, o papa nomeia o Cardeal Sarah. E desde então Francisco enfrenta a oposição deste, que tenta minar as tentativas de promover reformas litúrgicas na Igreja. O papa também precisou repreender o prelado africano por apoiar publicamente o pedido de um grupo tradicionalista que pede uma reforma da reforma litúrgica do Vaticano II (isto é, desfazer a reforma conciliar).

Sarah é também tão culpado quanto Gänswein por gerar a atual polêmica com este seu novo livro. Os dois são conservadores em termos políticos e neotradicionalistas em termos eclesiásticos. Ambos têm laços com políticos europeus de direita, com socialites e movimentos retrógrados. [É a eterna saudade do tempo da cristandade, no qual Igreja e poder político, Igreja e riqueza andavam sempre de mãos dadas!]

Os dois estão bem cientes de que estas pessoas e grupos, há tempo, veem Bento XVI como um contrapeso ao Papa Francisco, alguns até mesmo chegando ao ponto de dizer que Bento é o único e legítimo papa.

Ao subscrever o apoio ao papa emérito nas campanhas públicas destes grupos – tal como neste novo projeto de livro –, eles deliberadamente alimentam a oposição a Francisco. [Logo os mais conservadores que, no passado, defendiam uma obediência cega, irrestrita e total ao Sumo Pontífice, ou seja, ao Papa!]
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Ex-papa Bento XVI (Joseph Ratzinger) - bastante debilitado pela idade e saúde

A lista acaba aqui

Mas o maior responsável por esta bagunça que ainda se desdobra no Vaticano não é outro senão o próprio Bento XVI.

Quando renunciou ao papado em 2013, ele também perdeu os seus direitos e deveres como Bispo de Roma. Ele tomou uma decisão ousada, ao fazer algo que nenhum outro papa fizera em quase 600 anos.

Mas ele e seu pequeno grupo de assessores não se deram conta de como esta nova situação seria regulada. Não havia protocolos definidos – a ainda não há – para um papa emérito.

Mesmo assim, com certeza estas pessoas tinham a intuição clara – na verdade, tinham a convicção – de que o arranjo então estabelecido só funcionaria se ele, Bento, tivesse o cuidado de não sugerir que, de alguma forma, ainda tinha ou compartilhava do poder papal.

Assim, o ex-papa prometeu adotar um silêncio autoimposto, dizendo que, de agora em diante, ficaria “escondido do mundo”.

Bento só precisou de seis meses para romper este silêncio, quando entrou em um debate filosófico/teológico com um pesquisador que criticava uma das primeiras obras de Joseph Ratzinger. O ex-papa permitiu que a correspondência entre os dois fosse publicada.

Desde então o religioso tem escrito cartas de apoio a numerosos grupos, a maioria deles tradicionalistas. Por sua vez, tais grupos usam os seus escritos e pensamentos expostos em seus livros, frequentemente de forma distorcida, para travar uma guerra contra Francisco.

Bento poderia ter acabado com tudo isso distanciando-se publicamente destes movimentos. Aqui seria um momento em que romper o silêncio prometido teria plena justificativa.

E agora, em sua fragilidade, ele não mais pode se defender. E aqueles que têm o dever de protegê-lo tentam irresponsavelmente garantir que a sua voz – uma voz que deveria ter se mantido silente – continue a influir nos debates que modelam o futuro da Igreja.

Mas, em última instância, nada disso é culpa destas pessoas. Elas estão apenas continuando o que Bento começou quando passou a ignorar o seu voto de silêncio autoimposto.

O que estamos testemunhando são as consequências incontroláveis de uma promessa quebrada. E se as coisas continuarem como estão, tais consequências podem acabar sendo muito mais nocivas e irreversíveis.

Traduzido do inglês por Isaque Gomes Correa.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Sexta-feira, 17 de janeiro de 2020 – Internet: clique aqui.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

É preciso reorientar a economia do mundo

“Não há razão para haver tanta miséria. Precisamos construir novos caminhos”

Patricia Fachin
IHU On-Line

Entrevista com Ladislau Dowbor
Doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, professor titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Além disso, é consultor de diversas agências da Organização das Nações Unidas (ONU).

O crescimento das desigualdades no mundo,
o agravamento da crise climática,
o caos político generalizado e
a projeção da Organização das Nações Unidas de que em 2050
a população mundial chegará a 9,7 bilhões de pessoas
exigem uma reorientação do sistema político-econômico global
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PAPA FRANCISCO

Na prática, isso significa, entre outras coisas, que é preciso “orientar a economia para o bem-estar das famílias, não para o bem-estar dos mercados que geram mais Wall Street, mais paraísos fiscais e coisas do gênero”, diz o economista Ladislau Dowbor.

Ao propor uma mudança na governança global, ele acentua que um dos principais desafios da economia neste século é resolver o problema das desigualdades. Somente no Brasil, informa, 206 bilionáriosaumentaram as suas fortunas em 230 bilhões de reais” no último ano, em que a economia esteve praticamente estagnada. Enquanto isso, lamenta, programas sociais como o “Bolsa Família consomem 30 bilhões”. No atual estágio do capitalismo, assegura, “não há nenhuma razão para haver miséria no planeta. Se dividirmos os 85 trilhões de dólares que temos de PIB mundial pela população, isso equivale a 11 mil reais por mês, por família de quatro pessoas. Isso é amplamente suficiente para todos viverem de maneira digna e confortável”.

Na entrevista a seguir, concedida por WhatsApp à IHU On-Line, o economista também comenta a proposta do Papa Francisco de que jovens economistas reflitam sobre as possibilidades de desenvolver uma “economia diferente”, que “inclui”, “humaniza” e “cuida da criação”. “Nós temos que ampliar o debate e essa é a motivação central do Papa nesse processo, porque estamos enfrentando um caos político generalizado, e a desigualdade, em particular, gerou uma imensa insegurança nas populações”, pontua.

Confira a entrevista.
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LADISLAU DOWBOR

IHU On-Line — Como o senhor interpreta a convocação do Papa para que jovens economistas reflitam sobre as possibilidades de uma nova economia?

Ladislau Dowbor — O fato de chamar jovens ajuda muito, pois temos que investir na generalização de novas visões. Estão também convidando diversos países, o que é muito bom, pois tem país rico, pobre, e pessoas de diversas áreas que, evidentemente, não são apenas economistas, mas pessoas das ciências sociais, engenheiros, empresários. Ou seja, é um ambiente que permite construir novas visões. Nós temos que ampliar o debate e essa é a motivação central do Papa nesse processo, porque estamos enfrentando um caos político generalizado, a desigualdade, em particular, gerou uma imensa insegurança nas populações e essa insegurança está sendo aproveitada por demagogos do tipo [Donald] Trump, [Jair] Bolsonaro, [Recep Tayyip] Erdoğan, na Turquia, e [Rodrigo] Duterte, nas Filipinas; o caos está se generalizando. Nós precisamos — no sentido mais forte — construir novos caminhos, porque esse sistema não está funcionando.

IHU On-Line — Em que contexto surge a proposta do Papa e quais são as razões que o motivam a discutir uma nova economia no atual momento histórico?

Ladislau Dowbor — Na realidade, não há muitas divergências quanto ao desastre que se criou. Nós somos 7,7 bilhões de habitantes. Todo mundo está querendo consumir mais e isso não está funcionando. Os efeitos disso são o aquecimento global, a liquidação da cobertura florestal do planeta, da vida nos mares e dos insetos, enfim, é só ver o muro das lamentações que os diversos cientistas de diversas áreas estão criando. Em termos ambientais, o fato é que estamos destruindo o planeta.

O segundo ponto é que estamos destruindo o planeta para uma minoria e a desigualdade está atingindo níveis absolutamente insustentáveis. Não há razão para haver tanta miséria, para haver, por exemplo, 850 milhões de pessoas passando fome, porque só de cereais produzimos mais de um quilo por dia por habitante. Então, o nosso problema é de organização social, de governança. Veja bem: não há nenhuma razão para haver miséria no planeta. Se dividirmos os 85 trilhões de dólares que temos de PIB mundial pela população, isso equivale a 11 mil reais por mês, por família de quatro pessoas. Isso é amplamente suficiente para todos viverem de maneira digna e confortável, mesmo sem precisar de uma igualdade opressiva. Basta reduzir um pouco essa desigualdade obscena que existe.

O terceiro elemento dessa situação crítica é que não existe falta de recursos, pois o planeta tem, em paraísos fiscais, cerca de 20 trilhões de dólares. Isso é 200 vezes aqueles 100 bilhões que a Conferência de Paris decidiu alocar para salvar o planeta do desastre ambiental. O problema é de organização social; não é econômico.
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IHU On-Line — O Papa propõe uma economia “que faz viver e não mata, inclui e não exclui, humaniza e não desumaniza, cuida da criação e não a depreda” e afirma que é preciso “realmar a economia”. Ele propõe também a necessidade de “corrigir os modelos de crescimento incapazes de garantir o respeito ao meio ambiente, o acolhimento da vida, o cuidado da família, a equidade social, a dignidade dos trabalhadores e os direitos das futuras gerações”. Em termos econômicos, o que essa iniciativa implica? Que alterações precisam ser feitas nos modelos econômicos para seguir a proposta do Papa?

Ladislau Dowbor — É preciso uma alteração sistêmica, porque estamos organizando as corporações, os governos e todas as atividades em função do enriquecimento de grupos financeiros, os chamados MERCADOS, que geram fortunas, mas não resolvem os problemas. Então, o eixo de orientação é relativamente simples: temos que usar os imensos recursos financeiros que são essencialmente improdutivos e estão nas mãos dos grandes grupos financeiros, como bancos e investidores institucionais, para financiar a mudança da política ambiental. Isso significa:
* mudar a matriz energética,
* a matriz de transporte,
* criar uma agricultura menos destrutiva e também
* reduzir e enfrentar de maneira direta a desigualdade, o que implica, essencialmente, organizar a inclusão produtiva das pessoas.
Nós temos os recursos financeiros, temos as tecnologias, sabemos onde estão os problemas; é uma questão de reorientação.

Para mim, as ações prioritárias são, primeiro, gerar a transparência dos fluxos financeiros, dos estoques em paraísos fiscais e coisas do gênero. Isto é, saber onde estão os recursos e como estão sendo utilizados. Segundo, temos que gerar impostos sobre o capital improdutivo, impostos sobre os capitais parados, sobre os imensos patrimônios acumulados. Por meio de Thomas Piketty e um conjunto de economistas, sabemos precisamente o que deve ser feito.

Quando olhamos os estudos sobre as grandes fortunas no Brasil — 206 bilionários , vemos algo simplesmente ridículo, pois um homem como Joseph Safra tem, por exemplo, 95 bilhões de reais que poderiam ser investidos em uma coisa útil e servem apenas para especulação financeira. Só nos últimos 10, 12 meses, ele aumentou sua fortuna em 19 bilhões. A família Marinho atrasa seus impostos e tem uma fortuna acumulada de 33 bilhões de reais — isso é mais que a totalidade do Bolsa Família para 45 milhões de pessoas.

Então, gerar essa transparência, gerar um imposto sobre o capital improdutivo e descentralizar o financiamento de maneira que em cada cidade, em cada comunidade haja uma reapropriação do controle sobre o uso dos recursos financeiros e tecnológicos, é fundamental. Isso funciona na Alemanha, na China, no Canadá e na Suécia. Não é preciso inventar grandes coisas e nem grandes “ismos ideológicos”; basta simplesmente tornar os recursos úteis.
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THOMAS PIKETTY
Economista francês e autor de um best seller em economia:
"O Capital no Século XXI" - Ed. Intrínseca - 2014

IHU On-Line — O Papa também convida todos nós a revermos “nossos esquemas mentais e morais, para que possam estar mais em conformidade com os mandamentos de Deus e com as exigências do bem comum”. Em relação à economia, quais são os esquemas mentais e morais que a fundamentam e precisam ser superados?

Ladislau Dowbor — Há um deslocamento ético radical que é o seguinte: nós devemos deslocar o conceito de sucesso de quem “arranca mais” e fica demonstrando quantos bilhões tem e passar para algo básico. Luiz Pasteur é reconhecido mundialmente não porque conseguiu “arrancar” mais para si, mas, sim, porque conseguiu contribuir mais para o planeta. Então, o deslocamento de atitude ética fundamental é passarmos dessa ideia de sucesso como capacidade de “arrancar”, de ser mais esperto, para o sucesso visto como a pessoa que mais contribui para a nossa espaçonave Terra, para que vivamos melhor.

Um segundo eixo é que estamos na era da economia do conhecimento e o conhecimento é diferente da máquina ou do produto físico: se passo o conhecimento para alguém, continuo com ele. Por exemplo, toda a pesquisa mundial sobre genoma se faz de maneira colaborativa entre centenas de laboratórios, porque na era do conhecimento os sistemas colaborativos são muito mais produtivos do que a competição, em que cada um tenta esconder sua produção e tenta reinventar a roda; esse deslocamento é fundamental para a sociedade.

A atitude ética básica de que o merecimento se deve para a pessoa que mais contribui e não para a pessoa que mais “arranca”, e que temos que nos deslocar da filosofia da competição e da guerra de todos contra todos para a filosofia da colaboração para o bem-estar das populações e do planeta, é o deslocamento efetivo que precisamos em termos de visão de mundo.

IHU On-Line — Que tipos de critérios determinariam, na sua avaliação, uma sociedade economicamente viável, socialmente justa e ambientalmente sustentável?

Ladislau Dowbor — Os critérios nós já sabemos: é uma sociedade ambientalmente sustentável, socialmente justa e economicamente viável. Para isso, nós tivemos imensas reuniões planetárias com cientistas, políticos e empresas e se chegou aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável - ODS, a chamada Agenda 2030. Esses objetivos são perfeitamente atingíveis, mas exigem a reorganização de como se governa. Em termos práticos, para atingir os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, temos que orientar a economia para o bem-estar efetivo das famílias, e não para o bem-estar dos mercados que geram mais Wall Street [sede da Bolsa de Valores de Nova York, a maior do mundo], mais paraísos fiscais e coisas do gênero. E o que é o bem-estar das famílias? É, de um lado, ter dinheiro no bolso para conseguir pagar o transporte, o aluguel e comprar a camisa e ter, também, acesso aos bens de consumo coletivo: a pessoa não compra seu hospital e sua escola, ela tem que ter acesso a bens públicos de acesso gratuito e universal, porque isso simplesmente é mais produtivo. Isso não é complicado: nós podemos aumentar o bem-estar das famílias sem gerar desastre ambiental, porque aumentar o bem-estar não significa comprar mais pás de plástico e coisas do gênero, mas, sim, ampliar o acesso à saúde, à educação e à cultura, ou seja, todos esses bens que enriquecem as nossas vidas sem destruir o meio ambiente. Isso significa mudar a contabilidade, porque o PIB [Produto Interno Bruto] calcula apenas o ritmo de uso dos recursos no planeta, mas não calcula nem os impactos ambientais nem os impactos em termos de bem-estar das famílias.

O objetivo dessa reorientação nos leva a mudar as contas nacionais, e o melhor exemplo é justamente o trabalho de Kate Raworth, que está publicado no Brasil sob o título Economia Donut: uma alternativa ao crescimento a qualquer custo [1ª edição. Rio de Janeiro: Zahar, 2019. Tradução: George Schlesinger], que é uma forma de contabilização dos resultados e não apenas do ritmo de atividade econômica. No conjunto, saber os ODS, nos orientarmos para o bem-estar das famílias, tanto no que diz respeito à renda como no acesso a bens de consumo coletivo, e adequar o sistema de contabilidade correspondente é o que traça um norte perfeitamente compreensível.
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AS 17 METAS DA AGENDA 2030
Organização das Nações Unidas - ONU

IHU On-Line — Os economistas favoráveis ao capitalismo alegam que ele foi o sistema que mais possibilitou a criação e a distribuição de riquezas. Os críticos, por sua vez, argumentam que esse sistema não consegue distribuir as riquezas e gera inúmeras desigualdades sociais. Como avalia o processo de desenvolvimento da economia capitalista? Quais são seus pontos positivos, limites e desafios?

Ladislau Dowbor — O capitalismo se tornou global, enquanto os governos são nacionais: se um governo decide fazer uma mudança de impostos ou de taxas de juros, os capitais fogem, se movimentam internacionalmente e vão para paraísos fiscais, os governos se desarticulam e essa impotência gera também o caos político. O que temos de compreender é que o capitalismo mudou, porque ainda temos na cabeça a ideia de um investidor de verdade — não o que faz aplicações financeiras, mas o que investe em produtos —, que compra máquinas para produzir sapatos, por exemplo, pega crédito para financiar a produção, contrata mão de obra, portanto está gerando empregos, está produzindo sapatos que poderão ser usados e está pagando impostos com os quais o governo vai poder financiar as infraestruturas e o acesso à saúde, à escola e aos bens públicos de acesso universal — isso é o que as pessoas pensam quando falam em capitalismo. O que elas não veem é que o sistema mudou: não é mais o lucro sobre a produção; é o rentismo sobre a especulação. Os imensos capitais que estão nas mãos de Wall Street, nos grandes paraísos fiscais, como Suíça, Holanda, Ilhas Cayman, no Panamá, rendem para os especuladores.

Tem uma coisa básica que Piketty ajudou a entender claramente: produzir exige esforço, então, o crescimento no mundo de bens e serviços é na ordem de 2%, 2,5% ao ano. Agora, quem aplica seu dinheiro em títulos de dívidas de diversos papéis financeiros, em commodities e coisas do gênero, tem tido um rendimento de 7% a 9% nas últimas décadas.

O que faz o capitalista que enriqueceu? Todos aqueles que têm reservas financeiras hoje em dia, em vez de investir, que é arriscado, trabalhoso, tem que produzir, simplesmente compram papéis. Inúmeras instituições, bancos, holdings, financeiras e todo o sistema Shadow banking ajudam as pessoas a investir, mas isso não é investimento; é aplicação financeira. Na realidade, se desviam os recursos para sistemas especulativos. Esta é uma mudança radical: onde se tinha produção material de bens e serviços e lucro, hoje se tem, essencialmente, especulação e rentismo; isso desfigurou o capitalismo. Ele foi produtivo, sim, mas não está mais sendo produtivo. Hoje temos enriquecimento improdutivo, um crescimento pífio, desigualdade e destruição ambiental, portanto esse sistema não está funcionando.

IHU On-Line — Que desafios as mudanças climáticas impõem ao atual modelo econômico-político-social?

Ladislau Dowbor — A mudança climática é típica dos novos desafios, porque nossos problemas eram locais, regionais ou nacionais, as economias eram nacionais ou locais e tínhamos o comércio exterior para as trocas. Agora não; nós temos um sistema global e as emissões de dióxido de carbono ou gás de efeito estufa dos Estados Unidos ou da China vão impactar o planeta todo. A destruição da Amazônia, a liquidação da vida nos mares e a acidificação dos oceanos impacta todo o planeta. Nós estamos, de certa maneira, desafiados a enfrentar problemas que são globais, enquanto estamos divididos em 193 nações, cada uma tentando puxar para o seu lado. Isso, obviamente, é um disfuncionamento sistêmico. O que precisamos introduzir e o que temos dificuldade como seres humanos, porque temos a tendência de pensar no curto prazo e num problema de cada vez, de forma fracionada, é pensar de maneira sistêmica e no longo prazo. Para nós, 2050 é lá longe; não é. Ou seja, os dados do desastre que será 2050 já estão na rua, já estão irrecuperáveis e, em grande parte, 2050 já está determinado.

Então, essa mudança é absolutamente essencial: é preciso uma visão de longo prazo, que pense de maneira sistêmica e conjuntamente os sistemas e os impactos não só econômicos, mas sociais e culturais. Uma segunda dimensão desse processo é o resgate da governança correspondente para enfrentarmos isso, o que implica, em primeiro lugar, democratizar o processo decisório. Como é que nós, no planeta, decidimos nosso futuro? Por enquanto, são as grandes corporações que fazem o que querem através de movimentações financeiras, mas nós temos que democratizar as decisões, temos que assegurar transparência dos fluxos para que a população possa estar informada e temos que gerar sistemas de comunicação que permitam que se criem processos de produção de consensos democráticos; é o caminho que se tem pela frente, o resto leva ao desastre.
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BRASIL:
O paraíso dos rentistas - aqueles que lucram com papéis, com aplicações,
mas não produzem nada para a sociedade!

IHU On-Line — Ao refletir sobre a proposta do Papa, o senhor disse recentemente que “o grande desafio é o da governança do sistema, desafio sem dúvida técnico, mas sobretudo ético e político”. Pode explicar essa ideia? Por que a governança do sistema é o ponto central a ser enfrentado, na sua avaliação?

Ladislau Dowbor — O ponto central é que temos uma economia mundializada e os governos são nacionais, logo, há um desajuste entre os meios e os fins. Nós não temos um governo planetário, apesar de termos problemas planetários. Um segundo eixo é que o poder dominante, hoje, é corporativo. Quando vemos um desastre em Mariana [Minas Gerais] com a Samarco, se pensa: “Como isso é possível?”. A Samarco é riquíssima, transfere milhões para as empresas controladoras, para os grandes grupos financeiros, seja da BHP Billiton, do Bradesco e da Vale. O Brasil construiu Itaipu, nós temos engenheiros e pessoas que entendem desse processo, mas quem manda não são os engenheiros, são os grupos financeiros que controlam as empresas, e os conselhos de administração das empresas recebem seu bônus em função não de quanto investem no futuro da empresa, mas baseado no quanto conseguem extrair para os acionistas, e em função de quanto os acionistas ganham é que será calculado o bônus.

Esse sistema é disfuncional porque essas grandes corporações, hoje, são dominantes no planeta e são dominadas, essencialmente, por um grupo de 28 bancos, que chamamos internacionalmente de Systemically Important Financial Institution - SIFIs, que têm ativos que se aproximam do PIB mundial, ou seja, quem manda realmente não é o governo, quem manda no governo são os lucros financeiros. Os americanos têm uma excelente expressão para isso: “hoje é o rabo que abana o cachorro”. Antes, as finanças eram um complemento que ajudava a dinamizar e financiar a produção; hoje, tornou-se um sistema extrativo, capitalismo extrativo. O que nós temos — isso é estudado por [Joseph] Stiglitz e vários outros cientistas — não é um embate entre o Estado e as empresas, mas sim uma apropriação do poder político pelas próprias empresas, pelas grandes corporações financeiras. A partir de certo grau de poder financeiro, o poder político tem que se submeter, o que naturalmente está liquidando o pouco que nos resta de democracia.

IHU On-Line — Do ponto de vista das faculdades de economia, que programas podem ser adotados para repensar a economia nos moldes que o Papa propõe?

Ladislau Dowbor — Nós temos uma forma de ensino da economia que é pré-histórica, corresponde a outro tipo de capitalismo, a outro sistema e a outro tempo. Precisamos trabalhar menos por disciplinas e mais de maneira integrada e por problemas. Na Finlândia, na escola secundária, já não se trabalha por disciplina, mas sim por problemas-chave. A resolução de um problema demográfico, cultural ou ambiental tem dimensões políticas, financeiras, jurídicas e sociais. Portanto, aprender a cruzar essas diversas áreas é fundamental. Por exemplo, o direito não estuda a economia e a economia não estuda o direito? O que é o direito? São as regras do jogo e a economia funciona de acordo com as regras do jogo. Então, não faz nenhum sentido separarmos de forma que uns estudem os mecanismos na economia e outros estudem as regras no direito e um não saiba qual se aplica a qual. Nós temos que, inclusive, juntar áreas científicas, como medicina e estudos climáticos, para que a economia passe a ser um instrumento muito mais rico, porque a economia não é uma área em si, não é indústria nem comércio, é uma dimensão de cada área. A segurança tem uma dimensão econômica, assim como construir casas e as transformações do uso do solo têm uma dimensão econômica. De certa forma, temos que reaproximar a economia dos problemas aos quais ela precisa ajudar a responder.

Eu trabalharia, portanto, por problemas, de forma interdisciplinar e interinstitucional. Hoje estamos todos conectados no mundo e podemos perfeitamente organizar cada faculdade, universidade, instituição ou grupo de trabalho sob um problema-chave e ver como esse problema-chave está sendo trabalhado em Tóquio, em Frankfurt ou em qualquer parte do mundo. Inclusive, os tradutores online estão se tornando perfeitamente aceitáveis, ou seja, é uma outra dimensão da construção científica que temos pela frente.
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JOSEPH STIGLITZ
Economista norte-americano - nascido em 1943 (76 anos)

IHU On-Line — Entre os pesquisadores das áreas econômica e ambiental que participarão do evento “Economia de Francisco”, destacam-se nomes como Jeffrey Sachs, Joseph Stiglitz, Amartya Sen, Vandana Shiva, Muhammad Yunus e Kate Raworth. O que esses teóricos têm em comum e que contribuições podem oferecer à proposta do Papa?

Ladislau Dowbor — O que eles têm em comum — não são pessoas de esquerda ou com afinidade ideológica — é que são pessoas de bom senso. Joseph Stiglitz foi economista-chefe do Banco Mundial e do governo [Bill] Clinton e se deu conta de que esse sistema não funciona. Hoje ele tem um Nobel de Economia, mas o essencial é que ele tem uma visão de conjunto. O livro dele chamado “People, Power, and Profits: Progressive Capitalism for an Age of Discontent” [tradução livre: Povo, poder e lucros: capitalismo progressivo para uma era de descontentamento – ainda não publicado no Brasil] redimensiona a articulação das transformações da sociedade.

Jeffrey Sachs trabalha mais os problemas da desigualdade. No início de sua produção, ele não era muito recomendável e hoje se tornou um batalhador extremamente confiável por uma economia que funcione.

Amartya Sen nos trouxe a imensa transformação da compreensão de que não se trata apenas de pobreza e, portanto, de dar um dinheirinho para os pobres, mas de assegurar a cada pessoa a oportunidade para construir a vida que ela deseja. É uma visão muito mais complexa da exclusão que a pobreza está criando; trata-se de gerar essa dimensão humana de direito de construção da sua própria vida.

Vandana Shiva trabalha de maneira extremamente forte o problema do conflito entre as necessidades humanas e o desajuste profundo que as corporações estão criando, que simplesmente querem arrancar o que podem e estão apenas recentemente começando a fazer proclamações de que devem se preocupar com os impactos ambientais, sociais e econômicos do que fazem.

Muhammad Yunus descobriu que um pouco de crédito muito barato — não com juros extorsivos — na base da sociedade dinamiza a economia de maneira radical, inclusive, em particular, ao dinamizar as capacidades econômicas das mulheres. O Grameen Bank é um exemplo mundial. Yunus também recebeu um Prêmio Nobel. Aliás, é característico que deram um Nobel da Paz para ele e não um de Economia, porque nunca os economistas dariam um Prêmio Nobel para alguém que está dizendo que o dinheiro na base da sociedade é mais produtivo do que o dinheiro nos cofres dos banqueiros.
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KATE RAWORTH
Economista inglesa, trabalha em Oxford e Cambridge - nascida em 1970 (50 anos)

Kate Raworth nos traz com o livro “A Economia Donut”, que já existe em português, uma excelente visão de como fazer contas nacionais que façam sentido. Em vez de fazer do PIB uma arma essencialmente ideológica, ela sugere pegar o que são os excessos que precisamos reduzir, por exemplo, emissões de gases de efeito estufa e destruição florestal e, por outro lado, as coisas que são insuficientes, como pessoas subnutridas — temos 850 milhões de pessoas que passam fome —, e reduzir os excessos e compensar as insuficiências. Isso nos permite ter, no conjunto, 23 elementos de contas que põem a contabilidade nacional de pé, porque hoje essencialmente ela está de ponta-cabeça.

Nós temos que criar economistas que entendam não de modelos econômicos, mas da dinâmica complexa que gera os desafios para poder propor soluções e não apenas para explicar, depois do desastre, por que determinado modelo não funcionou.
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JEFFREY SACHS
Economista norte-americano - nascido em 1954 (65 anos)

IHU On-Line — Como o evento proposto pelo Papa tem repercutido entre os economistas que o senhor conhece? O senhor tem visto reações favoráveis e contrárias à proposta?

Ladislau Dowbor — No conjunto, pessoas que estudaram de forma muito clássica ou são muito ligadas aos mercados ou aos interesses do sistema financeiro reagem de maneira ideológica, porque estão muito centradas na ideologia do enriquecimento das grandes fortunas. Agora, no geral, e sobretudo na nova geração, tenho encontrado muita receptividade. Ou seja, há uma redescoberta entre os economistas de que cada problema econômico tem dimensões políticas, sociais, ambientais e éticas. O conceito de função de economia está penetrando e, para muitos na área dos economistas que pensam de maneira tradicional, é um desafio ver personagens como Stiglitz, Jeffrey Sachs e Kate Raworth mudando radicalmente os rumos. Isso porque se sentem, de repente, sem base naqueles modelinhos que estavam baseados, essencialmente, numa simplificação do ser humano, de que o ser humano é um maximizador racional de vantagens individuais e que o enriquecimento significava apenas um objetivo individual. Isto é, esse deslocamento de que os indivíduos são complexos têm dimensões de generosidade, de competição e de colaboração, e temos que trabalhar com as pessoas realmente existentes e com o conjunto de enriquecimento social, porque na realidade hoje ninguém mais vai viver feliz sozinho.
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AMARTYA SEN
Economista indiano, radicado nos Estados Unidos - nascido em 1933 (86 anos)

IHU On-Line — Como podemos repensar a economia brasileira à luz da proposta do papa Francisco?

Ladislau Dowbor — Eu trabalharia justamente elencando os problemas-chave. Quais são os desafios-chave da nossa economia? No Brasil é evidente: a desigualdade. Nós temos 206 bilionários que, nos últimos 12 meses, segundo a revista americana Forbes, aumentaram as suas fortunas em 230 bilhões de reais — isso com a economia parada. Só lembrando: o Bolsa Família consome 30 bilhões de reais.

Logo, não é o Bolsa Família e a aposentadoria dos velhinhos que
estão prejudicando a economia, e sim a enorme extração de recursos
por parte desses grandes grupos financeiros que não produzem,
mas são, essencialmente, aplicadores financeiros.

Em 2012, quando começou o embate contra a Dilma [Rousseff], nós tínhamos 74 bilionários; hoje, são 206. Esse sistema não está funcionando para a economia e para a população, mas para alguém está funcionando. Essas famílias — não estamos falando do valor das empresas, mas dos grupos pessoais, que, aliás, não pagam impostos no Brasil porque lucros e dividendos distribuídos são isentos — tinham uma fortuna, em 2012, de 346 bilhões de reais e, em 2019, passaram a ter uma fortuna de 1 trilhão e 206 bilhões de reais. Isso é um problema ético, porque não foram os pobres que criaram a forma de funcionamento desse sistema. O problema ético está do lado dos ricos, porque os ricos estão enriquecendo sem produzir e sem merecimento. Então, o eixo central é uma reorganização de como usamos os recursos e de como usamos a política.
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VANDANA SHIVA
Estudiosa indiana, física, ecofeminista, ativista ambiental e alter-globalização
Nasceu em 1952 (67 anos)

O enriquecimento improdutivo é a nossa principal deformação econômica, social e política. Por que tiraram a CPMF? Não é pelo ridículo 0,38% sobre as transações financeiras, é porque gerava transparência, mostrava quem transferia para quem, como eram os fluxos de capitais. Nós temos que resgatar o controle dos fluxos, fazer uma reforma tributária porque, por exemplo, eu como professor pago 27,5% sobre o meu salário, já o Joseph Safra, sem produzir nada, ganhou nos últimos 12 meses 19 bilhões de reais e não paga imposto; esse sistema é simplesmente uma aberração. Precisamos:
* taxar as grandes fortunas,
* tornar real o Imposto Territorial Rural - ITR, que é uma ficção, e
* taxar, em particular, o capital improdutivo, coisa que está sendo amplamente discutida hoje no mundo, porque é uma das medidas centrais.
Nós temos que passar a taxar quem acumula um monte de dinheiro sem produzir nada, porque se tem um imposto que começa a reduzir o capital do indivíduo, talvez ele pense em fazer algo útil com o dinheiro porque o capital está sendo reduzido. Essa é a visão para tornar a sociedade produtiva. Com as tecnologias e a riqueza financeira que temos, ter as economias paradas é ridículo.

Além disso, temos, evidentemente, uma dimensão ética. Lembro de um cartaz que vi na Av. Paulista: um senhor curiosamente com uma bandeira do Brasil e com um cartaz dizendo “evasão fiscal não é roubo”. Ele diz que não é roubo, não paga impostos, mas gosta de ter o filho estudando numa [universidade] federal ou na USP, estudando com o dinheiro dos outros, gosta de ter a rua asfaltada com o dinheiro dos outros. Do que se trata? Isso não são ideologias, é realmente pensar a economia que funcione e a própria economia tem que mudar o rumo da forma como é ensinada e aplicada.
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MUHAMMAD YUNUS
Economista e banqueiro bengali - nascido em 1940 (79 anos)

IHU On-Line — Deseja acrescentar algo?

Ladislau Dowbor — Eu acrescentaria algo básico que ajuda as pessoas a entender os processos. Trata-se de algo que sabemos que funciona: funcionou no Brasil de 2003 a 2013, funcionou nos Estados Unidos de Roosevelt com o New Deal, funcionou na Europa com o que se chamou de Estado de bem-estar social (Welfare State), funciona até hoje na China, na Coreia do Sul, no Canadá, na Suécia e na Alemanha. O que têm essas referências em comum? Elas controlam o sistema financeiro, orientam os recursos para o bem-estar das famílias, de um lado, assegurando um bom salário mínimo e a renda no bolso das famílias e, por outro lado, assegurando sistemas públicos, universais e gratuitos de saúde, educação e cultura, porque isso é investimento nas pessoas, não é gasto. Quando um país usa seus recursos para o bem-estar das pessoas, isso gera mais capacidade de compra das famílias, o que gera mais demanda frente às empresas. Isso gera inflação? Não, porque no Brasil, por exemplo, as empresas estão trabalhando com menos de 70% da sua capacidade.

Um empresário estava dizendo que está mais barato e mais fácil contratar hoje,
mas que não tem por que contratar se não tem para quem vender.
Como a empresa funciona?
Para funcionar, a empresa tem que ter mercado para quem vender
e tem que ter juro barato para poder investir;
no Brasil nós não temos nenhuma coisa nem outra.

Agora, como se viu no Brasil entre 2003 e 2013, se investe com aumento de salário, Bolsa Família, Luz para Todos. Foram criados 149 programas sociais. Por que a economia cresceu e não gerou déficit? Porque dinami zou as empresas e o consumo. Para ver o resultado, basta olhar no Banco Central e verificar que nos anos dos governos Lula e Dilma não houve déficit. O déficit é gerado na fase [Michel] Temer e Bolsonaro, quando há a paralisia da economia. O atual governo diz que está consertando a economia, mas quem destruiu o sistema é quem está hoje no poder e isso explica a nossa paralisia. Temos que voltar ao bom senso de orientar a economia para as famílias, para as empresas, e para o Estado poder investir nas infraestruturas e nas políticas sociais.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos (IHU) – Notícias – Quarta-feira, 15 de janeiro de 2020 – Internet: clique aqui.