É preciso reorientar a economia do mundo
“Não
há razão para haver tanta miséria. Precisamos construir novos caminhos”
Patricia Fachin
IHU On-Line
Entrevista
com Ladislau Dowbor
Doutor
em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de
Varsóvia, professor titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo –
PUC-SP. Além disso, é consultor de diversas agências da Organização das Nações
Unidas (ONU).
O crescimento das
desigualdades no mundo,
o agravamento da
crise climática,
o caos político
generalizado e
a projeção da
Organização das Nações Unidas de que em 2050
a população mundial
chegará a 9,7 bilhões de pessoas
exigem uma
reorientação do sistema político-econômico global
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PAPA FRANCISCO |
Na prática,
isso significa, entre outras coisas, que é preciso “orientar a economia para
o bem-estar das famílias, não para o bem-estar dos mercados que geram mais Wall
Street, mais paraísos fiscais e coisas do gênero”, diz o economista
Ladislau Dowbor.
Ao propor
uma mudança na governança global, ele acentua que um dos principais desafios
da economia neste século é resolver o problema das desigualdades.
Somente no Brasil, informa, 206 bilionários “aumentaram as suas
fortunas em 230 bilhões de reais” no último ano, em que a economia esteve
praticamente estagnada. Enquanto isso, lamenta, programas sociais como o “Bolsa
Família consomem 30 bilhões”. No atual estágio do capitalismo, assegura,
“não há nenhuma razão para haver miséria no planeta. Se dividirmos os 85
trilhões de dólares que temos de PIB mundial pela população, isso equivale a 11
mil reais por mês, por família de quatro pessoas. Isso é amplamente suficiente
para todos viverem de maneira digna e confortável”.
Na
entrevista a seguir, concedida por WhatsApp à IHU On-Line, o economista
também comenta a proposta do Papa Francisco de que jovens economistas
reflitam sobre as possibilidades de desenvolver uma “economia diferente”,
que “inclui”, “humaniza” e “cuida da criação”. “Nós temos que ampliar o debate
e essa é a motivação central do Papa nesse processo, porque estamos
enfrentando um caos político generalizado, e a desigualdade, em particular,
gerou uma imensa insegurança nas populações”, pontua.
Confira a entrevista.
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LADISLAU DOWBOR |
IHU On-Line — Como o senhor interpreta a convocação
do Papa para que jovens economistas reflitam sobre as possibilidades de uma
nova economia?
Ladislau
Dowbor — O fato de chamar jovens ajuda muito, pois temos que investir
na generalização de novas visões. Estão também convidando diversos países, o
que é muito bom, pois tem país rico, pobre, e pessoas de diversas áreas que,
evidentemente, não são apenas economistas, mas pessoas das ciências sociais,
engenheiros, empresários. Ou seja, é um ambiente que permite construir novas
visões. Nós temos que ampliar o debate e essa é a motivação central do Papa
nesse processo, porque estamos enfrentando um caos político generalizado, a
desigualdade, em particular, gerou uma imensa insegurança nas populações e
essa insegurança está sendo aproveitada por demagogos do tipo [Donald]
Trump, [Jair] Bolsonaro, [Recep Tayyip] Erdoğan, na Turquia, e [Rodrigo]
Duterte, nas Filipinas; o caos está se generalizando. Nós precisamos —
no sentido mais forte — construir novos caminhos, porque esse sistema não
está funcionando.
IHU On-Line — Em que contexto surge a proposta do
Papa e quais são as razões que o motivam a discutir uma nova economia no atual
momento histórico?
Ladislau
Dowbor — Na realidade, não há muitas divergências quanto ao desastre
que se criou. Nós somos 7,7 bilhões de habitantes. Todo mundo está querendo
consumir mais e isso não está funcionando. Os efeitos disso são o
aquecimento global, a liquidação da cobertura florestal do planeta, da vida nos
mares e dos insetos, enfim, é só ver o muro das lamentações que os diversos
cientistas de diversas áreas estão criando. Em termos ambientais, o fato é
que estamos destruindo o planeta.
O segundo
ponto é que estamos destruindo o planeta para uma minoria e a desigualdade
está atingindo níveis absolutamente insustentáveis. Não há razão para haver
tanta miséria, para haver, por exemplo, 850 milhões de pessoas passando fome,
porque só de cereais produzimos mais de um quilo por dia por habitante. Então, o
nosso problema é de organização social, de governança. Veja bem: não há
nenhuma razão para haver miséria no planeta. Se dividirmos os 85 trilhões de
dólares que temos de PIB mundial pela população, isso equivale a 11 mil
reais por mês, por família de quatro pessoas. Isso é amplamente suficiente para
todos viverem de maneira digna e confortável, mesmo sem precisar de uma
igualdade opressiva. Basta reduzir um pouco essa desigualdade obscena que
existe.
O terceiro
elemento dessa situação crítica é que não existe falta de recursos, pois
o planeta tem, em paraísos fiscais, cerca de 20 trilhões de dólares.
Isso é 200 vezes aqueles 100 bilhões que a Conferência de Paris decidiu alocar
para salvar o planeta do desastre ambiental. O problema é de organização
social; não é econômico.

IHU On-Line — O Papa propõe uma economia “que faz
viver e não mata, inclui e não exclui, humaniza e não desumaniza, cuida da
criação e não a depreda” e afirma que é preciso “realmar a economia”. Ele
propõe também a necessidade de “corrigir os modelos de crescimento incapazes de
garantir o respeito ao meio ambiente, o acolhimento da vida, o cuidado da
família, a equidade social, a dignidade dos trabalhadores e os direitos das
futuras gerações”. Em termos econômicos, o que essa iniciativa implica? Que
alterações precisam ser feitas nos modelos econômicos para seguir a proposta do
Papa?
Ladislau
Dowbor — É preciso uma alteração sistêmica, porque estamos
organizando as corporações, os governos e todas as atividades em função do
enriquecimento de grupos financeiros, os chamados MERCADOS, que geram
fortunas, mas não resolvem os problemas. Então, o eixo de orientação é
relativamente simples: temos que usar os imensos recursos financeiros que
são essencialmente improdutivos e estão nas mãos dos grandes grupos
financeiros, como bancos e investidores institucionais, para financiar a
mudança da política ambiental. Isso significa:
* mudar a
matriz energética,
* a matriz
de transporte,
* criar uma
agricultura menos destrutiva e também
* reduzir e
enfrentar de maneira direta a desigualdade, o que implica, essencialmente,
organizar a inclusão produtiva das pessoas.
Nós temos
os recursos financeiros, temos as tecnologias, sabemos onde estão os problemas;
é uma questão de reorientação.
Para mim,
as ações prioritárias são, primeiro, gerar a transparência dos fluxos
financeiros, dos estoques em paraísos fiscais e coisas do gênero.
Isto é, saber onde estão os recursos e como estão sendo utilizados.
Segundo, temos que gerar impostos sobre o capital improdutivo, impostos sobre
os capitais parados, sobre os imensos patrimônios acumulados. Por meio de
Thomas Piketty e um conjunto de economistas, sabemos precisamente o que deve
ser feito.
Quando
olhamos os estudos sobre as grandes fortunas no Brasil — 206 bilionários
—, vemos algo simplesmente ridículo, pois um homem como Joseph Safra tem, por exemplo, 95 bilhões de reais
que poderiam ser investidos em uma coisa útil e servem apenas para especulação
financeira. Só nos últimos 10, 12 meses, ele aumentou sua fortuna em 19
bilhões. A família Marinho atrasa seus
impostos e tem uma fortuna acumulada de 33 bilhões de reais — isso é mais
que a totalidade do Bolsa Família para 45 milhões de pessoas.
Então,
gerar essa transparência, gerar um imposto sobre o capital improdutivo e
descentralizar o financiamento de maneira que em cada cidade, em cada
comunidade haja uma reapropriação do controle sobre o uso dos recursos
financeiros e tecnológicos, é fundamental. Isso funciona na Alemanha, na China,
no Canadá e na Suécia. Não é preciso inventar grandes coisas e nem grandes
“ismos ideológicos”; basta simplesmente tornar os recursos úteis.
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THOMAS PIKETTY Economista francês e autor de um best seller em economia: "O Capital no Século XXI" - Ed. Intrínseca - 2014 |
IHU On-Line — O Papa também convida todos nós a
revermos “nossos esquemas mentais e morais, para que possam estar mais em
conformidade com os mandamentos de Deus e com as exigências do bem comum”. Em
relação à economia, quais são os esquemas mentais e morais que a fundamentam e
precisam ser superados?
Ladislau
Dowbor — Há um deslocamento ético radical que é o seguinte: nós
devemos deslocar o conceito de sucesso de quem “arranca mais” e fica
demonstrando quantos bilhões tem e passar para algo básico. Luiz Pasteur é
reconhecido mundialmente não porque conseguiu “arrancar” mais para si, mas, sim,
porque conseguiu contribuir mais para o planeta. Então, o deslocamento de
atitude ética fundamental é passarmos dessa ideia de sucesso como capacidade de
“arrancar”, de ser mais esperto, para o sucesso visto como a pessoa que mais
contribui para a nossa espaçonave Terra, para que vivamos melhor.
Um segundo
eixo é que estamos na era da economia do conhecimento e o conhecimento é
diferente da máquina ou do produto físico: se passo o conhecimento para alguém,
continuo com ele. Por exemplo, toda a pesquisa mundial sobre genoma se faz de
maneira colaborativa entre centenas de laboratórios, porque na era do
conhecimento os sistemas colaborativos são muito mais produtivos do que a
competição, em que cada um tenta esconder sua produção e tenta reinventar a
roda; esse deslocamento é fundamental para a sociedade.
A atitude
ética básica de que o merecimento se deve para a pessoa que mais contribui e
não para a pessoa que mais “arranca”, e que temos que nos deslocar da
filosofia da competição e da guerra de todos contra todos para a filosofia da
colaboração para o bem-estar das populações e do planeta, é o deslocamento
efetivo que precisamos em termos de visão de mundo.
IHU On-Line — Que tipos de critérios determinariam,
na sua avaliação, uma sociedade economicamente viável, socialmente
justa e ambientalmente sustentável?
Ladislau
Dowbor — Os critérios nós já sabemos: é uma sociedade ambientalmente
sustentável, socialmente justa e economicamente viável. Para isso, nós tivemos
imensas reuniões planetárias com cientistas, políticos e empresas e se chegou
aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável - ODS, a chamada Agenda
2030. Esses objetivos são perfeitamente atingíveis, mas exigem a
reorganização de como se governa. Em termos práticos, para atingir os Objetivos
do Desenvolvimento Sustentável, temos que orientar a economia para o
bem-estar efetivo das famílias, e não para o bem-estar dos mercados que
geram mais Wall Street [sede da Bolsa de Valores de Nova York, a maior do
mundo], mais paraísos fiscais e coisas do gênero. E o que é o bem-estar das
famílias? É, de um lado, ter dinheiro no bolso para conseguir pagar o
transporte, o aluguel e comprar a camisa e ter, também, acesso aos bens de
consumo coletivo: a pessoa não compra seu hospital e sua escola, ela tem que
ter acesso a bens públicos de acesso gratuito e universal, porque isso
simplesmente é mais produtivo. Isso não é complicado: nós podemos aumentar o
bem-estar das famílias sem gerar desastre ambiental, porque aumentar o
bem-estar não significa comprar mais pás de plástico e coisas do gênero, mas,
sim, ampliar o acesso à saúde, à educação e à cultura, ou seja, todos esses
bens que enriquecem as nossas vidas sem destruir o meio ambiente. Isso
significa mudar a contabilidade, porque o PIB [Produto Interno Bruto] calcula
apenas o ritmo de uso dos recursos no planeta, mas não calcula nem os impactos
ambientais nem os impactos em termos de bem-estar das famílias.
O objetivo
dessa reorientação nos leva a mudar as contas nacionais, e o melhor exemplo é
justamente o trabalho de Kate Raworth, que está publicado no Brasil sob
o título “Economia Donut: uma alternativa ao crescimento a qualquer custo”
[1ª edição. Rio de Janeiro: Zahar, 2019. Tradução: George Schlesinger], que é
uma forma de contabilização dos resultados e não apenas do ritmo de
atividade econômica. No conjunto, saber os ODS, nos orientarmos para o
bem-estar das famílias, tanto no que diz respeito à renda como no acesso a bens
de consumo coletivo, e adequar o sistema de contabilidade correspondente é o
que traça um norte perfeitamente compreensível.
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AS 17 METAS DA AGENDA 2030 Organização das Nações Unidas - ONU |
IHU On-Line — Os economistas favoráveis ao
capitalismo alegam que ele foi o sistema que mais possibilitou a criação e a
distribuição de riquezas. Os críticos, por sua vez, argumentam que esse sistema
não consegue distribuir as riquezas e gera inúmeras desigualdades sociais. Como
avalia o processo de desenvolvimento da economia capitalista? Quais são seus
pontos positivos, limites e desafios?
Ladislau
Dowbor — O capitalismo se tornou global, enquanto os governos são
nacionais: se um governo decide fazer uma mudança de impostos ou de taxas de
juros, os capitais fogem, se movimentam internacionalmente e vão para paraísos
fiscais, os governos se desarticulam e essa impotência gera também o caos
político. O que temos de compreender é que o capitalismo mudou, porque
ainda temos na cabeça a ideia de um investidor de verdade — não o que faz
aplicações financeiras, mas o que investe em produtos —, que compra máquinas
para produzir sapatos, por exemplo, pega crédito para financiar a produção,
contrata mão de obra, portanto está gerando empregos, está produzindo sapatos
que poderão ser usados e está pagando impostos com os quais o governo vai poder
financiar as infraestruturas e o acesso à saúde, à escola e aos bens públicos
de acesso universal — isso é o que as pessoas pensam quando falam em
capitalismo. O que elas não veem é que o sistema mudou: não é mais o lucro
sobre a produção; é o rentismo sobre a especulação. Os imensos capitais que
estão nas mãos de Wall Street, nos grandes paraísos fiscais, como
Suíça, Holanda, Ilhas Cayman, no Panamá, rendem para os especuladores.
Tem uma
coisa básica que Piketty ajudou a entender claramente: produzir exige
esforço, então, o crescimento no mundo de bens e serviços é na ordem de
2%, 2,5% ao ano. Agora, quem aplica seu dinheiro em títulos de dívidas
de diversos papéis financeiros, em commodities e coisas do gênero, tem tido um
rendimento de 7% a 9% nas últimas décadas.
O que faz o
capitalista que enriqueceu? Todos aqueles que têm reservas financeiras hoje em
dia, em vez de investir, que é arriscado, trabalhoso, tem que produzir,
simplesmente compram papéis. Inúmeras instituições, bancos, holdings,
financeiras e todo o sistema Shadow banking ajudam as pessoas a
investir, mas isso não é investimento; é aplicação financeira. Na realidade,
se desviam os recursos para sistemas especulativos. Esta é uma mudança
radical: onde se tinha produção material de bens e serviços e lucro, hoje se
tem, essencialmente, especulação e rentismo; isso desfigurou o capitalismo.
Ele foi produtivo, sim, mas não está mais sendo produtivo. Hoje temos enriquecimento
improdutivo, um crescimento pífio, desigualdade e destruição
ambiental, portanto esse sistema não está funcionando.
IHU On-Line — Que desafios as mudanças climáticas
impõem ao atual modelo econômico-político-social?
Ladislau
Dowbor — A mudança climática é típica dos novos desafios, porque
nossos problemas eram locais, regionais ou nacionais, as economias eram
nacionais ou locais e tínhamos o comércio exterior para as trocas. Agora não;
nós temos um sistema global e as emissões de dióxido de carbono ou gás de
efeito estufa dos Estados Unidos ou da China vão impactar o planeta todo. A
destruição da Amazônia, a liquidação da vida nos mares e a acidificação dos
oceanos impacta todo o planeta. Nós estamos, de certa maneira, desafiados a
enfrentar problemas que são globais, enquanto estamos divididos em 193 nações,
cada uma tentando puxar para o seu lado. Isso, obviamente, é um
disfuncionamento sistêmico. O que precisamos introduzir e o que temos
dificuldade como seres humanos, porque temos a tendência de pensar no curto
prazo e num problema de cada vez, de forma fracionada, é pensar de maneira
sistêmica e no longo prazo. Para nós, 2050 é lá longe; não é. Ou seja,
os dados do desastre que será 2050 já estão na rua, já estão irrecuperáveis e,
em grande parte, 2050 já está determinado.
Então, essa
mudança é absolutamente essencial: é preciso uma visão de longo prazo, que pense
de maneira sistêmica e conjuntamente os sistemas e os impactos não só
econômicos, mas sociais e culturais. Uma segunda dimensão desse processo é o
resgate da governança correspondente para enfrentarmos isso, o que implica, em
primeiro lugar, democratizar o processo decisório. Como é que nós, no
planeta, decidimos nosso futuro? Por enquanto, são as grandes corporações que
fazem o que querem através de movimentações financeiras, mas nós temos que
democratizar as decisões, temos que assegurar transparência dos fluxos
para que a população possa estar informada e temos que gerar sistemas de
comunicação que permitam que se criem processos de produção de consensos
democráticos; é o caminho que se tem pela frente, o resto leva ao desastre.
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BRASIL: O paraíso dos rentistas - aqueles que lucram com papéis, com aplicações, mas não produzem nada para a sociedade! |
IHU On-Line — Ao refletir sobre a proposta do Papa,
o senhor disse recentemente que “o grande desafio é o da governança do sistema,
desafio sem dúvida técnico, mas sobretudo ético e político”. Pode explicar essa
ideia? Por que a governança do sistema é o ponto central a ser enfrentado, na
sua avaliação?
Ladislau
Dowbor — O ponto central é que temos uma economia mundializada e os
governos são nacionais, logo, há um desajuste entre os meios e os fins.
Nós não temos um governo planetário, apesar de termos problemas planetários. Um
segundo eixo é que o poder dominante, hoje, é corporativo. Quando vemos
um desastre em Mariana [Minas Gerais] com a Samarco, se pensa: “Como isso é
possível?”. A Samarco é riquíssima, transfere milhões para as empresas
controladoras, para os grandes grupos financeiros, seja da BHP Billiton, do
Bradesco e da Vale. O Brasil construiu Itaipu, nós temos engenheiros e pessoas
que entendem desse processo, mas quem manda não são os engenheiros, são os
grupos financeiros que controlam as empresas, e os conselhos de administração
das empresas recebem seu bônus em função não de quanto investem no futuro da
empresa, mas baseado no quanto conseguem extrair para os acionistas, e em
função de quanto os acionistas ganham é que será calculado o bônus.
Esse
sistema é disfuncional porque essas grandes corporações, hoje, são dominantes
no planeta e são dominadas, essencialmente, por um grupo de 28 bancos, que
chamamos internacionalmente de Systemically Important Financial Institution
- SIFIs, que têm ativos que se aproximam do PIB mundial, ou seja, quem
manda realmente não é o governo, quem manda no governo são os lucros
financeiros. Os americanos têm uma excelente expressão para isso: “hoje
é o rabo que abana o cachorro”. Antes, as finanças eram um complemento que
ajudava a dinamizar e financiar a produção; hoje, tornou-se um sistema
extrativo, capitalismo extrativo. O que
nós temos — isso é estudado por [Joseph] Stiglitz e vários outros cientistas —
não é um embate entre o Estado e as empresas, mas sim uma apropriação do
poder político pelas próprias empresas, pelas grandes corporações
financeiras. A partir de certo grau de poder financeiro, o poder político tem
que se submeter, o que naturalmente está liquidando o pouco que nos resta de
democracia.
IHU On-Line — Do ponto de vista das faculdades de
economia, que programas podem ser adotados para repensar a economia nos moldes
que o Papa propõe?
Ladislau
Dowbor — Nós temos uma forma de ensino da economia que é
pré-histórica, corresponde a outro tipo de capitalismo, a outro sistema e a
outro tempo. Precisamos trabalhar menos por disciplinas e mais de maneira
integrada e por problemas. Na Finlândia, na escola secundária, já
não se trabalha por disciplina, mas sim por problemas-chave. A resolução de um
problema demográfico, cultural ou ambiental tem dimensões políticas,
financeiras, jurídicas e sociais. Portanto, aprender a cruzar essas diversas
áreas é fundamental. Por exemplo, o direito não estuda a economia e a economia
não estuda o direito? O que é o direito? São as regras do jogo e a economia
funciona de acordo com as regras do jogo. Então, não faz nenhum sentido
separarmos de forma que uns estudem os mecanismos na economia e outros estudem
as regras no direito e um não saiba qual se aplica a qual. Nós temos que,
inclusive, juntar áreas científicas, como medicina e estudos climáticos,
para que a economia passe a ser um instrumento muito mais rico, porque a
economia não é uma área em si, não é indústria nem comércio, é uma dimensão de
cada área. A segurança tem uma dimensão econômica, assim como construir
casas e as transformações do uso do solo têm uma dimensão econômica. De certa
forma, temos que reaproximar a economia dos problemas aos quais ela precisa
ajudar a responder.
Eu
trabalharia, portanto, por problemas, de forma interdisciplinar e
interinstitucional. Hoje estamos todos conectados no mundo e podemos
perfeitamente organizar cada faculdade, universidade, instituição ou grupo de
trabalho sob um problema-chave e ver como esse problema-chave está sendo
trabalhado em Tóquio, em Frankfurt ou em qualquer parte do mundo. Inclusive, os
tradutores online estão se tornando perfeitamente aceitáveis, ou seja, é uma
outra dimensão da construção científica que temos pela frente.
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JOSEPH STIGLITZ Economista norte-americano - nascido em 1943 (76 anos) |
IHU On-Line — Entre os pesquisadores das áreas
econômica e ambiental que participarão do evento “Economia de Francisco”,
destacam-se nomes como Jeffrey Sachs, Joseph Stiglitz, Amartya Sen, Vandana
Shiva, Muhammad Yunus e Kate Raworth. O que esses teóricos têm em comum e que
contribuições podem oferecer à proposta do Papa?
Ladislau
Dowbor — O que eles têm em comum — não são pessoas de esquerda ou
com afinidade ideológica — é que são pessoas de bom senso. Joseph
Stiglitz foi economista-chefe do Banco Mundial e do governo [Bill] Clinton
e se deu conta de que esse sistema não funciona. Hoje ele tem um Nobel de
Economia, mas o essencial é que ele tem uma visão de conjunto. O livro dele
chamado “People, Power, and Profits: Progressive Capitalism for an Age of
Discontent” [tradução livre: Povo, poder e lucros: capitalismo progressivo
para uma era de descontentamento – ainda não publicado no Brasil] redimensiona
a articulação das transformações da sociedade.
Jeffrey
Sachs trabalha mais os problemas da desigualdade. No início de sua
produção, ele não era muito recomendável e hoje se tornou um batalhador
extremamente confiável por uma economia que funcione.
Amartya Sen nos trouxe
a imensa transformação da compreensão de que não se trata apenas de pobreza e,
portanto, de dar um dinheirinho para os pobres, mas de assegurar a cada pessoa
a oportunidade para construir a vida que ela deseja. É uma visão muito mais
complexa da exclusão que a pobreza está criando; trata-se de gerar essa
dimensão humana de direito de construção da sua própria vida.
Vandana
Shiva trabalha de maneira extremamente forte o problema do
conflito entre as necessidades humanas e o desajuste profundo que as
corporações estão criando, que simplesmente querem arrancar o que podem e
estão apenas recentemente começando a fazer proclamações de que devem se
preocupar com os impactos ambientais, sociais e econômicos do que fazem.
Muhammad
Yunus descobriu que um pouco de crédito muito barato — não com
juros extorsivos — na base da sociedade dinamiza a economia de maneira radical,
inclusive, em particular, ao dinamizar as capacidades econômicas das mulheres.
O Grameen Bank é um exemplo mundial. Yunus também recebeu um Prêmio
Nobel. Aliás, é característico que deram um Nobel da Paz para ele e não um
de Economia, porque nunca os economistas dariam um Prêmio Nobel para alguém que
está dizendo que o dinheiro na base da sociedade é mais produtivo do que o
dinheiro nos cofres dos banqueiros.
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KATE RAWORTH Economista inglesa, trabalha em Oxford e Cambridge - nascida em 1970 (50 anos) |
Kate
Raworth nos traz com o livro “A Economia Donut”, que já
existe em português, uma excelente visão de como fazer contas nacionais que
façam sentido. Em vez de fazer do PIB uma arma essencialmente ideológica, ela
sugere pegar o que são os excessos que precisamos reduzir, por exemplo,
emissões de gases de efeito estufa e destruição florestal e, por outro lado, as
coisas que são insuficientes, como pessoas subnutridas — temos 850 milhões de
pessoas que passam fome —, e reduzir os excessos e compensar as
insuficiências. Isso nos permite ter, no conjunto, 23 elementos de contas
que põem a contabilidade nacional de pé, porque hoje essencialmente ela está de
ponta-cabeça.
Nós temos
que criar economistas que entendam não de modelos econômicos, mas da dinâmica
complexa que gera os desafios para poder propor soluções e não apenas para
explicar, depois do desastre, por que determinado modelo não funcionou.
JEFFREY SACHS Economista norte-americano - nascido em 1954 (65 anos) |
IHU On-Line — Como o evento proposto pelo Papa tem
repercutido entre os economistas que o senhor conhece? O senhor tem visto
reações favoráveis e contrárias à proposta?
Ladislau
Dowbor — No conjunto, pessoas que estudaram de forma muito clássica ou
são muito ligadas aos mercados ou aos interesses do sistema financeiro reagem
de maneira ideológica, porque estão muito centradas na ideologia do
enriquecimento das grandes fortunas. Agora, no geral, e sobretudo na nova
geração, tenho encontrado muita receptividade. Ou seja, há uma redescoberta
entre os economistas de que cada problema econômico tem dimensões políticas,
sociais, ambientais e éticas. O conceito de função de economia está
penetrando e, para muitos na área dos economistas que pensam de maneira
tradicional, é um desafio ver personagens como Stiglitz, Jeffrey Sachs e Kate
Raworth mudando radicalmente os rumos. Isso porque se sentem, de repente, sem
base naqueles modelinhos que estavam baseados, essencialmente, numa
simplificação do ser humano, de que o ser humano é um maximizador racional de
vantagens individuais e que o enriquecimento significava apenas um objetivo individual.
Isto é, esse deslocamento de que os indivíduos são complexos têm dimensões de
generosidade, de competição e de colaboração, e temos que trabalhar com as
pessoas realmente existentes e com o conjunto de enriquecimento social, porque
na realidade hoje ninguém mais vai viver feliz sozinho.
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AMARTYA SEN Economista indiano, radicado nos Estados Unidos - nascido em 1933 (86 anos) |
IHU On-Line — Como podemos repensar a economia
brasileira à luz da proposta do papa Francisco?
Ladislau
Dowbor — Eu trabalharia justamente elencando os problemas-chave. Quais
são os desafios-chave da nossa economia? No Brasil é evidente: a desigualdade. Nós temos 206 bilionários
que, nos últimos 12 meses, segundo a revista americana Forbes, aumentaram
as suas fortunas em 230 bilhões de reais — isso com a economia parada. Só
lembrando: o Bolsa Família consome 30 bilhões de reais.
Logo, não é o Bolsa Família e a aposentadoria
dos velhinhos que
estão prejudicando a economia, e sim a enorme
extração de recursos
por parte desses grandes grupos
financeiros que não produzem,
mas são, essencialmente, aplicadores
financeiros.
Em 2012,
quando começou o embate contra a Dilma [Rousseff], nós tínhamos 74 bilionários;
hoje, são 206. Esse sistema não está funcionando para a economia e para a
população, mas para alguém está funcionando. Essas famílias — não estamos
falando do valor das empresas, mas dos grupos pessoais, que, aliás, não pagam
impostos no Brasil porque lucros e dividendos distribuídos são isentos — tinham
uma fortuna, em 2012, de 346 bilhões de reais e, em 2019, passaram a ter uma
fortuna de 1 trilhão e 206 bilhões de reais. Isso é um problema ético, porque
não foram os pobres que criaram a forma de funcionamento desse sistema. O
problema ético está do lado dos ricos, porque os ricos estão enriquecendo sem
produzir e sem merecimento. Então, o eixo central é uma reorganização de como
usamos os recursos e de como usamos a política.
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VANDANA SHIVA Estudiosa indiana, física, ecofeminista, ativista ambiental e alter-globalização Nasceu em 1952 (67 anos) |
O
enriquecimento improdutivo é a nossa principal deformação econômica, social e
política. Por que tiraram a CPMF? Não é pelo ridículo 0,38% sobre as transações
financeiras, é porque gerava transparência, mostrava quem transferia para quem,
como eram os fluxos de capitais. Nós temos que resgatar o controle dos
fluxos, fazer uma reforma tributária porque, por exemplo, eu como
professor pago 27,5% sobre o meu salário, já o Joseph Safra, sem produzir nada,
ganhou nos últimos 12 meses 19 bilhões de reais e não paga imposto; esse
sistema é simplesmente uma aberração. Precisamos:
* taxar
as grandes fortunas,
* tornar
real o Imposto Territorial Rural - ITR, que é uma ficção, e
* taxar,
em particular, o capital improdutivo, coisa que está sendo amplamente
discutida hoje no mundo, porque é uma das medidas centrais.
Nós temos
que passar a taxar quem acumula um monte de dinheiro sem produzir nada,
porque se tem um imposto que começa a reduzir o capital do indivíduo, talvez
ele pense em fazer algo útil com o dinheiro porque o capital está sendo
reduzido. Essa é a visão para tornar a sociedade produtiva. Com as tecnologias
e a riqueza financeira que temos, ter as economias paradas é ridículo.
Além disso,
temos, evidentemente, uma dimensão ética. Lembro de um cartaz que vi na
Av. Paulista: um senhor curiosamente com uma bandeira do Brasil e com um cartaz
dizendo “evasão fiscal não é roubo”. Ele diz que não é roubo, não paga
impostos, mas gosta de ter o filho estudando numa [universidade] federal ou na
USP, estudando com o dinheiro dos outros, gosta de ter a rua asfaltada com o
dinheiro dos outros. Do que se trata? Isso não são ideologias, é realmente
pensar a economia que funcione e a própria economia tem que mudar o rumo da
forma como é ensinada e aplicada.
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MUHAMMAD YUNUS Economista e banqueiro bengali - nascido em 1940 (79 anos) |
IHU On-Line — Deseja acrescentar algo?
Ladislau
Dowbor — Eu acrescentaria algo básico que ajuda as pessoas a entender
os processos. Trata-se de algo que sabemos que funciona: funcionou no Brasil de
2003 a 2013, funcionou nos Estados Unidos de Roosevelt com o New Deal,
funcionou na Europa com o que se chamou de Estado de bem-estar social (Welfare
State), funciona até hoje na China, na Coreia do Sul, no Canadá, na Suécia e na
Alemanha. O que têm essas referências em comum? Elas controlam o sistema
financeiro, orientam os recursos para o bem-estar das famílias, de
um lado, assegurando um bom salário mínimo e a renda no bolso das
famílias e, por outro lado, assegurando sistemas públicos, universais e
gratuitos de saúde, educação e cultura, porque isso é investimento nas
pessoas, não é gasto. Quando um país usa seus recursos para o bem-estar das
pessoas, isso gera mais capacidade de compra das famílias, o que gera mais
demanda frente às empresas. Isso gera inflação? Não, porque no Brasil, por
exemplo, as empresas estão trabalhando com menos de 70% da sua capacidade.
Um empresário estava dizendo que está mais
barato e mais fácil contratar hoje,
mas que não tem por que contratar se não tem
para quem vender.
Como a empresa funciona?
Para funcionar, a empresa tem que ter
mercado para quem vender
e tem que ter juro barato para poder
investir;
no Brasil nós não temos nenhuma coisa nem
outra.
Agora, como
se viu no Brasil entre 2003 e 2013, se investe com aumento de salário, Bolsa
Família, Luz para Todos. Foram criados 149 programas sociais. Por que a
economia cresceu e não gerou déficit? Porque dinami zou as empresas e o consumo.
Para ver o resultado, basta olhar no Banco Central e verificar que nos anos dos
governos Lula e Dilma não houve déficit. O déficit é gerado na fase [Michel]
Temer e Bolsonaro, quando há a paralisia da economia. O atual governo diz
que está consertando a economia, mas quem destruiu o sistema é quem está hoje
no poder e isso explica a nossa paralisia. Temos que voltar ao bom senso de
orientar a economia para as famílias, para as empresas, e para o Estado poder
investir nas infraestruturas e nas políticas sociais.
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