De quem é a culpa?
Análise
infeliz e equivocada sobre o
sacerdócio
e o celibato
Jean-Miguel Garrigues
Frade e Teólogo Dominicano
Il Sismografo
16-01-2020
“Penso que o livro
sobre o sacerdócio ministerial e o celibato representa uma ‘saída’ por parte de
seus autores, Bento XVI e o cardeal Sarah, ‘saída’ que considero infeliz e
triste tanto na forma como no conteúdo”
![]() |
FREI JEAN-MIGUEL GARRIGUES |
Várias pessoas me perguntam sobre o
que penso do livro sobre o celibato sacerdotal assinado por Bento XVI e pelo cardeal
Sarah.
A forma “livro” é infeliz –
poderiam dizer diretamente ao Papa
Penso que o livro sobre o
sacerdócio ministerial e o celibato representa uma “saída” por parte de seus
autores, Bento XVI e o cardeal Sarah, “saída” que considero infeliz e triste
tanto na forma como no conteúdo. Quanto à forma, ela constitui inegavelmente
uma pressão sobre o papa no momento em que está escrevendo a exortação
apostólica pós-sinodal depois da realização do Sínodo sobre a Amazônia.
Ora, essa pressão vem de um papa emérito
que, no momento de renunciar ao seu cargo, comprometeu-se solenemente a não
interferir no ministério de seu sucessor, e de um prefeito de congregação,
ou seja, de um ministro do papa que deveria manter a lealdade a ele enquanto
estiver no cargo.
Ambos poderiam ter feito suas
objeções diretamente ao Papa e, se necessário, ao Colégio dos
Cardeais. Essa maneira de tomar a opinião pública como testemunha,
surpreendente, se não chocante devido aos compromissos de seus autores,
baseia-a na gravidade do perigo que o fundo da questão representa para a
Igreja. Por isso, eles assumem o risco de dividir gravemente a Igreja.
Quanto ao conteúdo, a tese
teológica de um vínculo “ontológico-sacramental” entre o celibato e o sacerdócio
ministerial é muito questionável. Ao contrário do que afirmam os autores do
livro, ela nunca foi realizada não apenas pela tradição das Igrejas Orientais
(ortodoxas e católica), mas também pelo magistério dos papas recentes, como
mostra a ordenação de pastores protestantes casados que entraram em plena
comunhão da Igreja Católica de Pio XII a Bento XVI inclusive. É, portanto,
uma opinião de escola, a saber, da escola francesa do século XVII, cuja
fraqueza doutrinária Maritain já tinha demonstrado em Bérulle (cf. seu
capítulo 'Da Escola Francesa' em seu livro De l'Église du Christ: sa
personne et son personnel).
Se tomarmos
a Tradição no seu conjunto ao longo da história da Igreja, fica claro que, se
há incontestavelmente uma altíssima conveniência entre o sacerdócio ministerial
e o celibato, de forma alguma essa conveniência, por mais alta que seja,
pode constituir um vínculo necessário a ponto de proibir uma ampliação das
exceções à disciplina do celibato na Igreja Latina. Outra coisa é a
oportunidade pastoral dessa extensão, sobre a qual é normal que existam
opiniões prudenciais divergentes.
Traduzido por André Langer.
Fonte: Instituto
Humanitas Unisinos (IHU) – Notícias – Sexta-feira, 17 de janeiro de
2020 – Internet: clique aqui.
O
que, de fato, aconteceu por detrás do livro do cardeal Sarah?
Robert
Mickens
Editor-chefe
da Global Pulse
La
Croix International
16-01-2020
“Deixando de lado a contribuição de Bento
XVI,
o resto da obra deturpa grosseiramente a
doutrina da Igreja
sobre a ligação entre o sacerdócio e o
celibato.
Também ignora os fatos da história.”
Não deveria ser assim. E, no
entanto, poderia ter sido – e pode ainda se tornar – muito pior.
Bento XVI se viu no meio de uma
polêmica relativa à sua suposta coautoria de um livro que defende, com unhas e
dentes, o celibato sacerdotal. A obra parece uma tentativa de impedir que o
Papa Francisco considere a ordenação de padres casados.
O outro autor e que deu início ao
projeto de escrita é o cardeal africano Robert Sarah, experiente
autoridade vaticana que se tornou um dos heróis dos católicos tradicionalistas
opositores a Francisco.
O livro, que já está publicado em
francês e em breve ficará pronto em inglês, chama-se Des profondeurs de
nos coeurs [Das profundezas dos nossos corações, em tradução
livre]. O jornal conservador francês Le Figaro revelou a sua existência
em 12 de janeiro ao publicar excertos e uma entrevista com o cardeal.
E que agitação causou!
Especialmente pelo momento em que o livro foi lançado.
![]() |
Livro que originou a polêmica - tradução do título: "Das Profundezas de nossos Corações" Editora Fayard - Paris |
Uma advertência ao Papa
Francisco
A obra aparece poucas semanas antes
de Francisco publicar um documento em resposta ao Sínodo
dos Bispos para a Amazônia realizado em 2019. Uma das propostas desta
assembleia sinodal pede que o papa aprove a ordenação sacerdotal de homens
casados de virtude comprovada (viri probati).
Dado que um dos autores do livro é
um ex-papa, muitos interpretam a obra como um esforço (e mesmo como uma
advertência) para dissuadir Francisco de seguir na linha sugerida pelos padres
sinodais.
Mas em menos de 48 horas após a
notícia do livro aparecer, o secretário pessoal de Bento XVI – Dom Georg
Gänswein – disse que o ex-papa nunca chegou a consentir em ser coautor e
pediu que seu nome fosse retirado da capa da publicação.
O ex-papa, explicou Gänswein,
apenas submeteu um ensaio ao Cardeal Robert Sarah, sem escrever nenhuma outra
parte da obra. Informou também que Bento não viu a capa do livro.
Os fóruns de discussão católicos
nas redes sociais aventaram todo tipo de especulação quanto ao que teria
acontecido de fato.
Será que Sarah manipulou Bento ou o
trapaceou para que ambos fossem os autores da obra? Ou será
que Gänswein deu permissão ao cardeal para citar a autoria de Bento só para
se ver forçado a negar o envolvimento do ex-papa quando Bento ou outros
expressassem um descontentamento?
![]() |
Ex-papa Bento XVI e seu secretário Dom Georg Gänswein |
Apenas um mal-entendido
Não está ainda claro exatamente o
que se passou. Gänswein afirmou que Bento nunca chegou a concordar em pôr o seu
nome no livro. Mas o cardeal mostrou várias cartas assinadas por Bento que
sugerem que ele, realmente, sabia da proposta da publicação.
O cardeal – pelo menos por enquanto
– aquiesceu, dizendo que o nome de Bento será retirado das futuras edições. No
entanto, insistiu que o ex-papa contribuiu para o livro e que seu texto permanecerá
inalterado.
“Foi um mal-entendido, sem
lançar dúvida sobre a boa-fé do Cardeal Sarah”, declarou o Gänswein.
Mesmo assim, o cardeal não saiu bem
deste incidente. Alguns tradicionalistas que antes haviam mostrado admiração
por ele agora o culpam por tentar manipular Bento.
Outros dizem que foi tudo culpa de
Gänswein, quem então jogou a culpa em Sarah quando o caso estourou no
Vaticano.
Quanto ao conteúdo do livro
E quanto ao conteúdo factual do
livro? Deixando de lado a contribuição de Bento XVI, o resto da obra deturpa grosseiramente
a doutrina da Igreja sobre a ligação entre o sacerdócio e o celibato. Também
ignora os fatos da história.
Além disso, desonestamente dá a
entender que o que está em jogo é o fim do sacerdócio celibatário. Na
realidade, ninguém nunca sugeriu a abolição do celibato, apenas que a
prática de ordenação de homens casados seja retomada na Igreja – como
era no começo.
Os argumentos mal apresentados do
livro são, na verdade, de pouca importância. O problema real é que o ex-papa
se envolveu (ou foi envolvido) em um esforço para impedir a liberdade de seu
sucessor no governo da Igreja universal.
![]() |
Dom Georg Gänswein Secretário Particular do ex-papa Bento XVI e prefeito da Casa Pontifícia |
De quem é a culpa?
Há muita culpa a ser lançada por
aí. Dom Georg Gänswein certamente deve levar uma parcela dela. O
prelado alemão de 63 anos é o secretário pessoal de Bento XVI desde 2003,
dois anos antes da eleição de Joseph Ratzinger ao papado.
Apenas dois meses antes de anunciar
a sua renúncia como papa (algo que ele decidiu vários meses antes), Bento
nomeou Gänswein como prefeito da Casa Pontifícia e o ordenou bispo.
O novo papa, Francisco, o manteve
na função. Além de continuar como prefeito, Gänswein continuou sendo o
secretário pessoal de Bento.
Os dois, e outras quatro leigas
consagradas, vivem na mesma residência nos Jardins do Vaticano. Nos quase sete
anos desde sua saída, Bento vem recebendo visitantes quase diariamente. O
seu secretário é o “porteiro”, decidindo quem tem acesso a ele e quem não tem.
Nos últimos anos, à medida que a
saúde de Bento se fragiliza, o papel do arcebispo de guardião e cuidador
torna-se mais importante ainda. Um documentário lançado no começo
deste mês na Alemanha mostra o ex-papa em um estágio avançado de declínio.
E a assinatura nas cartas que
ele teria escrito (ou ditado) permitindo que Sarah publicasse os seus
pensamentos sobre o celibato está quase ilegível.
No mínimo, isso sugere a
possibilidade de que alguém – isto é, o secretário de Bento – assumiu a
responsabilidade de negociar o projeto do livro com o cardeal [Sarah].
![]() |
Cardeal Robert Sarah - Guiné Bissau (África) |
Che Sarah Sarah
E qual a culpa do cardeal?
Robert Sarah trabalha no Vaticano
desde 2001 quando João Paulo II o nomeou secretário da Congregação para
a Evangelização dos Povos (Propaganda Fide). Nos 22 anos antes desta
nomeação, ele serviu como arcebispo em sua diocese natal, a Diocese de
Konakry, na Guiné, posto que ocupou até os 34 anos.
Durante o seu tempo na Propaganda
Fide, o então arcebispo era conhecido como uma figura silenciosa e dedicada
à oração. Os sinais de um conservadorismo ideológico surgiram só mais
tarde, depois que Bento XVI o designou para presidir o hoje inexistente Pontifício
Conselho “Cor Unum” em 2010 e o fez cardeal.
Após a eleição do Papa Francisco, o
africano participou do primeiro grupo de cardeais a manifestar um
descontentamento com as novas reformas pastorais do papa, especialmente
aquelas relacionadas às pessoas em situações matrimoniais irregulares. Ele
passou então a escrever ensaios e livros que demonstram uma falta completa de
confiança em Francisco.
Portanto, surpreendeu quando o papa
jesuíta nomeou este cardeal como prefeito da Congregação para o Culto Divino
e a Disciplina dos Sacramentos, em novembro de 2014.
Como informado na imprensa à época,
a primeira escolha do papa para este cargo era Dom Piero Marini,
ex-mestre de cerimônias papal. Mas figuras próximas a Bento (talvez a pedido do
papa aposentado) pediram que Francisco não fizesse esta nomeação, advertindo
que ela provocaria uma guerra com os católicos tradicionalistas.
Por sugestão deste grupo, o papa
nomeia o Cardeal Sarah. E desde então Francisco enfrenta a oposição deste,
que tenta minar as tentativas de promover reformas litúrgicas na Igreja. O papa
também precisou repreender o prelado africano por apoiar publicamente o pedido
de um grupo tradicionalista que pede uma reforma da reforma litúrgica do
Vaticano II (isto é, desfazer a reforma conciliar).
Sarah é também tão culpado quanto
Gänswein por gerar a atual polêmica com este seu novo livro. Os dois
são conservadores em termos políticos e neotradicionalistas em termos
eclesiásticos. Ambos têm laços com políticos europeus de direita, com
socialites e movimentos retrógrados. [É a eterna
saudade do tempo da cristandade, no qual Igreja e poder político, Igreja e
riqueza andavam sempre de mãos dadas!]
Os dois estão bem cientes de que
estas pessoas e grupos, há tempo, veem Bento XVI como um contrapeso ao Papa
Francisco, alguns até mesmo chegando ao ponto de dizer que Bento é o único e
legítimo papa.
Ao subscrever o apoio ao papa
emérito nas campanhas públicas destes grupos – tal como neste novo projeto de
livro –, eles deliberadamente alimentam a oposição a Francisco. [Logo os mais conservadores que, no passado, defendiam uma
obediência cega, irrestrita e total ao Sumo Pontífice, ou seja, ao Papa!]
![]() |
Ex-papa Bento XVI (Joseph Ratzinger) - bastante debilitado pela idade e saúde |
A lista acaba aqui
Mas o maior responsável por esta
bagunça que ainda se desdobra no Vaticano não é outro senão o próprio Bento
XVI.
Quando renunciou ao papado em 2013,
ele também perdeu os seus direitos e deveres como Bispo de Roma. Ele tomou
uma decisão ousada, ao fazer algo que nenhum outro papa fizera em quase 600
anos.
Mas ele e seu pequeno grupo de
assessores não se deram conta de como esta nova situação seria regulada. Não
havia protocolos definidos – a ainda não há – para um papa emérito.
Mesmo assim, com certeza estas
pessoas tinham a intuição clara – na verdade, tinham a convicção – de que o
arranjo então estabelecido só funcionaria se ele, Bento, tivesse o cuidado de
não sugerir que, de alguma forma, ainda tinha ou compartilhava do poder papal.
Assim, o ex-papa prometeu adotar
um silêncio autoimposto, dizendo que, de agora em diante, ficaria “escondido do
mundo”.
Bento só precisou de seis meses para
romper este silêncio, quando entrou em um debate filosófico/teológico com
um pesquisador que criticava uma das primeiras obras de Joseph Ratzinger. O
ex-papa permitiu que a correspondência entre os dois fosse publicada.
Desde então o religioso tem escrito
cartas de apoio a numerosos grupos, a maioria deles tradicionalistas. Por sua
vez, tais grupos usam os seus escritos e pensamentos expostos em seus
livros, frequentemente de forma distorcida, para travar uma guerra contra
Francisco.
Bento poderia
ter acabado com tudo isso distanciando-se publicamente destes movimentos.
Aqui seria um momento em que romper o silêncio prometido teria plena
justificativa.
E agora, em sua fragilidade, ele
não mais pode se defender. E aqueles que têm o dever de protegê-lo tentam
irresponsavelmente garantir que a sua voz – uma voz que deveria ter se mantido
silente – continue a influir nos debates que modelam o futuro da Igreja.
Mas, em última instância, nada
disso é culpa destas pessoas. Elas estão apenas continuando o que Bento
começou quando passou a ignorar o seu voto de silêncio autoimposto.
O que
estamos testemunhando são as consequências incontroláveis de uma promessa
quebrada. E se as coisas continuarem como estão, tais consequências podem
acabar sendo muito mais nocivas e irreversíveis.
Traduzido
do inglês por Isaque Gomes Correa.
Comentários
Postar um comentário