«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

Três falas para entender o mundo hoje

Países ricos precisam transferir recursos
aos países pobres

Guilherme Sobota

Entrevista com Yuval Noah Harari*
Historiador e escritor israelense

Sobre o futuro econômico e político, se preocupa muito com os “não empregáveis” (“unemployables”), a força de trabalho de países em desenvolvimento e pobres que não terão condições de se adaptar às novas realidades em que a automação será cada dia mais protagonista
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YUVAL NOAH HARARI

Yuval Noah Harari é um historiador ambicioso: dois de seus livros publicados no Brasil, Homo Sapiens e Homo Deus, levam, respectivamente, os seguintes subtítulos: Uma Breve História da Humanidade e Uma Breve História do Amanhã. No mundo todo, seus títulos foram traduzidos para mais de 50 línguas e venderam mais de 20 milhões de cópias.

O israelense esteve no Brasil em novembro [2019] para uma série de eventos e entrevistas, oportunidade em que a reportagem se encontrou com ele. Vestido em tons claros e com óculos de aros finos, com um timbre seguro na voz, Harari aparenta se sentir à vontade falando tanto do passado quanto do futuro.

Em relação ao clima, acredita que ainda há possibilidades para o mundo, mas que para realizá-las é necessário um esforço de cooperação global. Sobre os Estados Unidos de Trump, ele critica a posição do presidente por decidir se afastar da liderança do mundo livre num momento crítico da história econômica mundial, provavelmente, nas suas palavras, à beira de uma nova crise do sistema financeiro. Sobre o futuro econômico e político, se preocupa muito com os “não empregáveis” (“unemployables”), a força de trabalho de países em desenvolvimento e pobres que não terão condições de se adaptar às novas realidades em que a automação será cada dia mais protagonista. Ele falou ao jornal O Estado de S. Paulo sobre esses e outros assuntos.

Em Homo Deus, você sugere que as coisas estão se movendo tão rápido que é virtualmente impossível saber o que vai acontecer no futuro. Mas com o clima, cientistas têm uma ideia sólida, e mesmo assim é muito difícil convencer alguns governos sobre esse assunto. Por que é tão complicado?

Yuval Noah Harari: Os governos não querem. Demanda muito capital político e investimentos para mudar o curso (dos acontecimentos em relação ao clima). É possível, não acho que seja tarde demais. Há muitas coisas que podemos fazer, mas para fazê-las é preciso mudar o rumo da economia com uma colaboração global maior. Uma vez que a mudança climática é reconhecida como realmente perigosa, também é necessário reconhecer que é preciso uma cooperação global. Não é algo que apenas um governo possa fazer. As pessoas de extrema direita, e gente como Trump, são contra a cooperação. Eles são isolacionistas, se importam apenas com o seu próprio país. Eles precisam negar a mudança climática por isso.

Qual é a responsabilidade de Trump, e dos Estados Unidos, nessa discussão?

Yuval Noah Harari: Ele acredita que a América não tem responsabilidade sobre ninguém no mundo, econômica ou politicamente. O mais incrível sobre os Estados Unidos nos últimos três ou quatro anos é que eles voluntariamente se demitiram da sua posição tradicional de líderes do mundo livre. Essa foi a realidade por décadas. A grande questão sobre 2020 é que se eles realmente votarem novamente por Trump, é como se dissessem:nos esqueçam, só nos importamos com os Estados Unidos”. O que é muito perigoso, porque em muitas frentes precisamos de liderança. Os Estados Unidos ainda são a maior economia e o maior poder militar. Se pensarmos em termos econômicos, quando a crise de 2008 aconteceu, o pior destino possível foi evitado por conta da união das lideranças do mundo, tomando algumas medidas radicais para salvar os mercados e prevenir o colapso financeiro completo. Agora, se uma crise similar acontecer amanhã, penso que estamos condenados. Para evitar o pior resultado é preciso cooperação global. Os bancos centrais, o G7 e o G20… e ninguém seguiria Trump nesse cenário. Quem pode confiar nesse cara? Por três anos, os Estados Unidos nos disseram que não se importam com ninguém. Falando só do sistema financeiro, estamos numa situação extremamente perigosa. Uma crise virá: talvez em seis meses, talvez em três anos. Virá. O mundo está totalmente despreparado agora.
‘Isolacionistas,
Urso polar vasculhando lixo na Rússia - incrível sinal dos tempos!

Em sua obra, o senhor menciona os “não empregáveis”, e diz que será o maior problema econômico e político das próximas décadas. Vê como possível alguma colaboração mais forte entre esses países para combater essa questão?

Yuval Noah Harari: Sim, em duas frentes. A contínua automação vai beneficiar os países líderes em campos como inteligência artificial e robótica, como os Estados Unidos e a China. Os piores efeitos se darão em países em desenvolvimento, que dependem de trabalhos manuais baratos — o tipo de trabalho mais fácil de automatizar. Haverá novos postos, mas será preciso outras formas de treinamento e habilidades. Os países ricos têm os recursos necessários para o retreinamento da força de trabalho. Os países em desenvolvimento e mais pobres serão atingidos duas vezes. Primeiro, pelo choque da automação, e depois pelo fato de não terem os recursos para treinar sua força de trabalho. O que eles podem fazer? Novamente, é um campo em que será preciso cooperação global para salvar os elos mais frágeis da corrente, porque se países na América Central entrarem em colapso econômico, qualquer problema que os Estados Unidos têm hoje com imigração ou situações de instabilidade na região serão muito, muito piores. Precisamos de uma transferência de recursos dos países ricos, que serão beneficiados pela inteligência artificial, para os países que serão mais atingidos por isso. Isso deve começar hoje, não em 20 anos. Que tipo de trabalho as crianças brasileiras que hoje têm 5 ou 6 anos terão em 20 anos? Esperar esse período pode ser tarde demais.

O senhor diz que o nacionalismo não é natural, não tem raízes na biologia ou psicologia.

Yuval Noah Harari: Não quero dizer que seja antinatural, estou dizendo que os Estados-nação que temos hoje não são uma parte da psicologia humana, são um fenômeno bastante recente, de apenas alguns mil anos, muitas vezes menos. Humanos estão por aí há cerca de 2 milhões de anos. Então, não devemos pensar que Estados-nação são parte da natureza humana e, portanto, continuarão para sempre. Quando eles apareceram, em um ponto da história, serviram a um bom propósito. A essência do nacionalismo não é odiar estrangeiros, mas amar seus compatriotas e se importar com milhões de pessoas que você não conhece de verdade. Na maior parte da evolução humana, os humanos apenas se importaram com as pessoas que eles conheciam, a família e os amigos mais próximos. A grande questão sobre o nacionalismo é que ele permite, numa nação como o Brasil, se importar com 200 milhões de estranhos. Ser honesto nesse contexto é estar disposto a pagar impostos para que todos tenham educação e um sistema de saúde. E isso é muito bom. Também não acredito que haja uma disputa entre democracia e nacionalismo, acho que eles andam juntos. O que estamos vendo em várias partes do mundo são democracias se enfraquecendo porque o nacionalismo está se enfraquecendo. Geralmente, quando ele está forte, a indicação é que existem guerras entre as nações. Agora, praticamente não há guerras entre nações. Os conflitos são internos. Seja no Oriente Médio, seja nos Estados Unidos. Americanos, agora, odeiam outros americanos muito mais do que odeiam os russos. Sem o nacionalismo, as democracias não podem funcionar, porque elas se baseiam no fato de que todas as pessoas, ou a imensa maioria, concordam sobre aspectos básicos. Há discordâncias, mas não ódio. Por exemplo: “Acredito que meus adversários políticos estejam enganados, até mesmo que sejam burros, mas eu não os odeio, e eles não me odeiam. É por isso que quando eles vencem as eleições, estou disposto a aceitar o resultado”. Quando não há senso de destino nacional, a nação se parte em tribos rivais, e a longo prazo a democracia não funciona. A questão principal é as pessoas entenderem errado o nacionalismo e pensar que ele é sobre odiar estrangeiros, ou odiar minorias, quando na verdade é sobre amar os seus compatriotas. Ser um bom nacionalista não significa matar outras pessoas. Significa pagar seus impostos de maneira honesta para que outras pessoas na nação tenham boa educação.

É curiosa essa ideia de que o nacionalismo está, na verdade, se enfraquecendo.

Yuval Noah Harari: Trump, por exemplo, não é um nacionalista. Ele é antinacionalista. Um líder nacionalista é alguém que tenta unir uma nação. Trump faz o exato oposto, deliberadamente debilitando a unidade americana, não necessariamente nas suas políticas, mas no seu discurso.

O senhor também comenta que é possível que o cérebro humano seja sobrecarregado de informações a tal ponto que já não consiga processá-las de maneira adequada, e que a luta pela atenção humana é um grande problema atual e do futuro. Quais são os riscos envolvidos nesses aspectos?

Yuval Noah Harari: Um dos problemas é transferir a autoridade humana para algoritmos. Porque apenas os algoritmos seriam capazes de tirar sentido da quantidade imensa de informações. Para dar um exemplo prático, pensando no sistema financeiro: mesmo hoje, quantas pessoas entendem como o sistema financeiro funciona? Para ser muito generoso, eu diria que talvez 1% da população. Em 20 ou 30 anos, o número pode ser exatamente 0. O sistema será tão complexo, e o fluxo de informações tão rápido, que mesmo PhDs em economia não serão capazes de entendê-lo. A autoridade muda para o algoritmo. Mesmo hoje, boa parte dos negócios é fechada por algoritmos, e cada vez mais as decisões econômicas importantes seguirão esse caminho. O Banco Central deve subir ou reduzir a taxa de juros? Essa será uma decisão tomada por algoritmos, porque ninguém vai entender a economia. Isso acontece em diversos campos. Quando alguém está procurando preencher uma vaga em sua empresa, hoje em dia recebe dezenas de currículos, os analisa, pensa sobre quem está mais apto para o trabalho, há uma entrevista, se forma uma impressão e é isso. A autoridade dessa decisão pode mudar para algoritmos, que processam milhares e milhares de informações e não contam com a entrevista. Eles podem explorar todo o seu feed do Facebook, por anos, e encontrar padrões que indicam se você é extrovertido ou fechado, confiável ou não, todo tipo de traço psicológico. O algoritmo vai decidir quem é apto para o trabalho, e quando a pessoa for questionar a empresa por que não foi contratada, a empresa vai dizer que não sabe, foi apenas o algoritmo. É possível que haja leis. A União Europeia já aprovou uma lei em que o ser humano tem direito a uma explicação sobre toda decisão a respeito dele definida por algoritmo. Mas pode ser uma impressão de mil páginas com todos os dados que o algoritmo analisou? Estamos chegando a um ponto que não estamos sendo capazes de processar toda a informação.

* Yuval Noah Harari tem 43 anos, é historiador, filósofo e autor de Sapiens: Uma Breve História da Humanidade, de Homo Deus: Uma Breve História do Amanhã e de 21 Lições para o Século 21 (todos publicados no Brasil pela Companhia das Letras, São Paulo). Nascido em Haifa, Israel, é professor do Departamento de História da Universidade Hebraica de Jerusalém. Publicada em diversos países, sua obra já vendeu mais de 20 milhões de cópias.

Fonte: O Estado de S. Paulo – Dez Visões sobre Temas de 2019 – Domingo, 22 de dezembro de 2019 – Caderno 2 – Pág. C3 – Internet: clique aqui.

Amazônia: uma catástrofe se aproxima

Milton Hatoum*

No século passado, as tentativas de “ocupar” e “desenvolver” a Amazônia foram, além de fracassadas, 
extremamente danosas ao meio ambiente
e aos indígenas, ribeirinhos, quilombolas, pescadores
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MILTON HATOUM

Depois de fazer uma longa e tumultuada viagem de Manaus às cabeceiras do Rio Purus, Euclides da Cunha escreveu uma série de artigos e ensaios sobre a Amazônia, reunidos no livro póstumo À margem da história (1909). Nele, o autor de Os Sertões faz uma crítica aguda à atividade predadora do extrativismo do látex e ao trabalho semiescravo dos seringueiros.

São famosas estas frases euclidianas: “O seringueiro é um homem que trabalha para escravizar-se”. Ou: “Os ‘caucheiros’ aparecem como os mais avantajados batedores da sinistra catequese a ferro e fogo, que vai exterminando naqueles sertões remotíssimos os mais interessantes aborígenes sul-americanos”.

O uso do verbo “exterminar” não é um exagero retórico. Euclides percebeu que o extrativismo predador operava uma dupla destruição: da floresta e dos povos indígenas. Durante o Ciclo da Borracha (1880-1920) mais de 30 mil indígenas da região de La Chorrera (Colômbia) foram escravizados, torturados e assassinados por capatazes da Peruvian Amazon Company. Essas atrocidades – conhecidas como “O massacre do Rio Putumayo” – constam no relatório de Roger Casement, um diplomata britânico nascido na Irlanda. Em 1910, Casement, que era cônsul em Belém, viajou a La Chorrera, onde testemunhou e depois divulgou as barbaridades cometidas por capangas de barões da borracha.

No século passado, as tentativas de “ocupar” e “desenvolver” a Amazônia foram, além de fracassadas, extremamente danosas ao meio ambiente e aos indígenas, ribeirinhos, quilombolas, pescadores. Alguns exemplos conhecidos:
* Fordlândia, no Vale do Tapajós (1927-45);
* a Rodovia Transamazônica e
* o Projeto Jari (empreendimento agroflorestal e industrial de Daniel Ludwig), ambos realizados no começo dos anos 1970.

A partir desta década:
* a grilagem de áreas de proteção ambiental, terras da União e territórios indígenas, e
* a ação predadora de mineradoras, madeireiras e grandes fazendeiros, se intensificaram, e nunca foram interrompidas.

Esses “empreendimentos”, nefastos aos povos da floresta, estimularam um fluxo enorme de migração interna, gerando mais miséria e violência em municípios e capitais da região.

Desde a redemocratização do País, nenhum governo refletiu seriamente sobre a diversidade social, econômica, geográfica, cultural e antropológica da Amazônia. Obras megalômanas – como construções de hidrelétricas – afetam duramente indígenas e moradores de vilas, comunidades e cidades. Uma crítica lúcida e bem argumentada a essas edificações faraônicas foi feita pelo premiado jornalista Lúcio Flávio Pinto no livro A Amazônia em questão: Belo Monte, Vale e outros temas (B4 editores, 2012).

Um governo cúmplice com a destruição

Mas é também verdade que nenhum governo anterior a este foi tão cúmplice da destruição do bioma amazônico. O ministro do Meio Ambiente [Ricardo Salles], incapaz de entender a complexidade da Amazônia, nem sequer se interessa pelos anseios e pelas expectativas de sua população. Além disso, ignora estudos de cientistas e pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), Museu Goeldi, Instituto Butantan (Belterra), Fiocruz e de universidades brasileiras. Nesse aspecto, o ministro é coerente com as correntes do governo que desprezam o conhecimento científico, as humanidades e a tecnologia.

São inúmeros os diagnósticos, análises, pesquisas científicas e antropológicas feitos por estudiosos brasileiros e estrangeiros. Um exemplo notável é o volume Amazônia: do discurso à práxis (Edusp, 2.ª ed., 2004), do saudoso geógrafo Aziz Ab’Sáber. Os ensaios reunidos nessa coletânea são importantíssimos para a compreensão da Amazônia. Mas nada disso parece sensibilizar o primeiro mandatário e sua equipe ministerial, cujo desprezo por um mínimo de racionalidade terá consequências desastrosas, senão trágicas, para todo o País.

A tragédia não se limita ao desmatamento e à invasão de terras indígenas. É preciso lembrar que nas cidades da Amazônia, onde vive a grande maioria de seus habitantes, a desigualdade é brutal. Em 1905, Euclides da Cunha já alertava para o contraste social e econômico em Manaus, que crescia “à gandaia”. Hoje, mais de 60% dos domicílios dessa cidade não têm acesso ao saneamento básico, e 30% ao abastecimento de água. Esses índices – também alarmantes quanto à violência em Manaus, Belém e outras capitais – refletem a miséria e a degradação urbana na região mais rica em recursos naturais do planeta.
‘Desde
Plantação de eucalipto queimada

Perguntar não ofende:

Mas quem de fato usufrui dessa riqueza?
Quem realmente se beneficia com a exportação de minérios, madeira e
com a construção de hidrelétricas?
Para que serviu a construção, em Manaus, da Arena da Amazônia?
Ou da Arena Pantanal, em Cuiabá?

Vários artigos publicados em revistas científicas sérias já alertaram para a alta concentração de gases de efeito estufa sobre a floresta tropical, o que certamente será desastroso para o Brasil e para todo o planeta. Uma catástrofe se aproxima. Mesmo assim, o presidente está interessado em exportar troncos de árvores nativas.

Se argumentos científicos não convencem os que professam uma fé fervorosa na irracionalidade, é o caso de perguntar: quais ambições estão ocultas nessa sanha devastadora da Amazônia? Ou: o que há por trás de tantos atos irracionais? Sem dúvida, um alucinado projeto de poder. Mas esse projeto tem aliados poderosos, dentro e fora do Congresso. O empenho do governo federal em perdoar multas ambientais e fragilizar a fiscalização de atividades predadoras é uma carta branca aos grandes grileiros e incendiários. Não se trata de política liberal. O nome disso é barbárie mesmo.

* Milton Hatoum nasceu em 1952, em Manaus (AM). Formado em Arquitetura pela USP, trabalhou como jornalista cultural e foi professor universitário de História da Arquitetura e depois de Literatura Francesa. Seu romance de estreia, Relato de um certo Oriente, ganhou o Prêmio Jabuti em 1989. Sua obra já foi traduzida para 12 línguas e publicada em 14 países. É colunista do jornal O Estado de S. Paulo.

Fonte: O Estado de S. Paulo – Dez Visões sobre Temas de 2019 – Domingo, 22 de dezembro de 2019 – Caderno 2 – Pág. C3 – Internet: clique aqui.

Estamos em crise cultural?

Leandro Karnal*

Precisamos reaprender que o contraditório é positivo e parar de
conjugar o péssimo verbo “lacrar”
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LEANDRO KARNAL

Começamos a nos despedir da segunda década do século 21. Historicamente, existe uma tendência antiga de se considerar o momento em que se vive como de crise profunda e de decadência. Com raros momentos de otimismo, o mundo está em declínio desde a inauguração das pirâmides de Gizé. De Boécio no século 6º a Freud no 20, sempre houve quem alertasse seus contemporâneos sobre ruínas, desilusões, fim de utopias ou um mal-estar na civilização. O rastro vai longe. O segundo Templo de Jerusalém, reconstruído após a tragédia da invasão da Babilônia, era pálida sombra do anterior construído por Salomão. O projeto de obras de Herodes, o grande, tinha um sentido de cooptação política, mas sempre seria um Santo dos Santos sem a Arca da Aliança. O passado sempre foi e será visto como mais glorioso, opulento, pacífico e, acima de tudo, mais culto.

A polarização chegou à cultura

Estabelecido o fundo moral da construção de uma ideia de decadência, sejamos objetivos. Estamos diante de um imenso e necessário debate sobre financiamento cultural. Os modelos oficiais com renúncias fiscais, apoios públicos e a participação (outrora dominante) de empresas estatais, como a Petrobrás, estão sob ataque ou com dificuldades para obter recursos. Mesmo os tradicionais centros culturais de bancos públicos sofrem investidas. O episódio da exposição do Santander em Porto Alegre (2017) mostrou que o debate também envolve, além do financiamento, a ideia de decidir que tipo de arte ou expressão cultural pode e deve ser trazida ao público (e para qual público). No fundo, sempre a mesma questão:
* quem controlaria a orientação cultural?
* Seria uma crise de política cultural ou um exercício de poder?

Houve algo similar há 30 anos. O presidente Collor extinguiu a Embrafilme e tivemos uma seca violenta na produção cinematográfica. O mercado cinematográfico teve de se reorganizar. Algumas lacunas foram preenchidas pelas já citadas estatais. O grande amparo, desde 1991, tornou-se a Lei Rouanet, hoje igualmente sob invectiva frontal.

A polarização está no campo cultural também. Temas como:
* o Prêmio Camões atribuído a Chico Buarque,
* a biografia da atriz Fernanda Montenegro,
* o filme Bacurau e
* a cinebiografia de Marighella
trouxeram o duplo debate sobre recursos de financiamento e visão política da produção da arte. A participação do poder público atingiu até a mais popular festa do Rio, o carnaval. A Flip de 2019 viveu momentos de polarização política e a escolha do nome da poeta americana Elizabeth Bishop como homenageada de 2020 já incendiou os meios literários e da internet. O debate é sempre bem-vindo. Precisamos reaprender que o contraditório é positivo e parar de conjugar o péssimo verbo “lacrar”.
Sala
SALA SÃO PAULO - São Paulo, capital
Uma "vela poderosa" em meio a trevas assustadoras, aponta Karnal

A música resiste, mas sofre

O ano foi pesado para a música, pois as orquestras foram atingidas em cheio pela falta de financiamento. Iniciativas importantes como o Projeto Guri sofreram abalos e incertezas. A crise é anterior a 2019. A Banda Sinfônica do Estado de São Paulo foi dissolvida em 2017. A brilhante Jazz Sinfônica resiste, aumenta sua popularidade e mostra como alguns abnegados podem manter algo tão belo. A Osesp, melhor sinfônica do Brasil e entre as melhores do mundo, é uma ilha de produtividade em meio ao mundo Mad Max que a cerca, literalmente. No esplendor da Sala São Paulo produzem-se concertos didáticos, milhares de ofertas gratuitas e noites inacreditáveis, como foi no dia 12 de dezembro, com a Nona Sinfonia de Beethoven marcando a abertura do ano jubilar 250 do mestre. Com a tradução em português a cargo de Arthur Nestrovski e inserções de músicas em diálogo com a obra, a plateia foi mesmerizada pela batuta de despedida da regente Marin Alsop. Ali fulgiu uma vela poderosa em meio a trevas assustadoras.

Nos deixaram

O ano de 2019 levou lendas como Bibi Ferreira e talentos no apogeu da criatividade como Fernanda Young. O diretor Antunes Filho, pilar de uma revolução teatral, também se foi. Em todos os campos desponta uma moçada muito interessante. Precisamos de outro texto para indicar alguns nomes.

Crise das livrarias

A crise das livrarias continua a fazer estragos. Temos autores e leitores, falta dinheiro para livros e faltam lugares para vender os livros. Há reações, com ressurgimento de pequenos espaços. Como em toda época de crise, as editoras apostam em obras com grande apelo e autores já famosos em mídias digitais. Escasseiam os experimentalismos, explodem os títulos com palavrões. O debate é infindável: o nariz torcido de alguns diante do sucesso popular de outros. O preço da sobrevivência será sempre o da vulgarização?

Será o fim da cultura como a conhecemos? Sim, sempre, pois emergem novas formas culturais. O término do meu mundo não é o término do mundo. Mesmo sem ter consciência da crise de financiamento da cultura, o jovem que frequenta um baile funk de São Paulo descobrirá que a visão da cultura atinge a todos, alguns de forma fatal. No fundo, 2019 continua com o dilema, agora chaga aberta: quem tem direito de definir o que é cultura? As exposições sobre “arte degenerada” ainda rondam nossas consciências no campo estético e evocam memórias autoritárias.

Eu desejo um 2020 sem donos da cultura, sem vozes únicas, sem comissários do povo ou guardiões da pureza da cultura nacional. Desejo um ano-novo múltiplo, com Beethoven e funk, música lírica e Anitta dançando. Que toda arte transgrida, desinstale, agite e perturbe. Que morra todo Ministério da Verdade.

* Especializado em história da América, Leandro Karnal é hábil, no entanto, em tratar de qualquer assunto. Nascido em 1963 em São Leopoldo (RS), tem formação jesuítica e é dono de uma invejável erudição, que transmite com clareza seja na escrita, seja nos inúmeros debates dos quais participa pelo País. Apesar da variedade, não esconde sua predileção pela história das religiões. É colunista do jornal O Estado de S. Paulo.

Fonte: O Estado de S. Paulo – Dez Visões sobre Temas de 2019 – Domingo, 22 de dezembro de 2019 – Caderno 2 – Pág. C5 – Internet: clique aqui.

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