Três falas para entender o mundo hoje
Países
ricos precisam transferir recursos
aos países
pobres
Guilherme Sobota
Entrevista
com Yuval Noah Harari*
Historiador
e escritor israelense
Sobre o futuro
econômico e político, se preocupa muito com os “não empregáveis”
(“unemployables”), a força de trabalho de países em desenvolvimento e pobres
que não terão condições de se adaptar às novas realidades em que a automação
será cada dia mais protagonista
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YUVAL NOAH HARARI |
Yuval Noah
Harari é um historiador ambicioso: dois de seus livros publicados no Brasil, Homo
Sapiens e Homo Deus, levam, respectivamente, os seguintes
subtítulos: Uma Breve História da Humanidade e Uma Breve História do
Amanhã. No mundo todo, seus títulos foram traduzidos para mais de 50
línguas e venderam mais de 20 milhões de cópias.
O
israelense esteve no Brasil em novembro [2019] para uma série de eventos e
entrevistas, oportunidade em que a reportagem se encontrou com ele. Vestido em
tons claros e com óculos de aros finos, com um timbre seguro na voz, Harari
aparenta se sentir à vontade falando tanto do passado quanto do futuro.
Em relação
ao clima, acredita que ainda há possibilidades para o mundo, mas que para
realizá-las é necessário um esforço de cooperação global. Sobre os Estados
Unidos de Trump, ele critica a posição do presidente por decidir se afastar da
liderança do mundo livre num momento crítico da história econômica mundial,
provavelmente, nas suas palavras, à beira de uma nova crise do sistema
financeiro. Sobre o futuro econômico e político, se preocupa muito com os
“não empregáveis” (“unemployables”), a força de trabalho de países em desenvolvimento
e pobres que não terão condições de se adaptar às novas realidades em que a
automação será cada dia mais protagonista. Ele falou ao jornal O Estado de S.
Paulo sobre esses e outros assuntos.
Em Homo
Deus, você sugere que as coisas estão se movendo tão rápido que é virtualmente
impossível saber o que vai acontecer no futuro. Mas com o clima, cientistas têm
uma ideia sólida, e mesmo assim é muito difícil convencer alguns governos sobre
esse assunto. Por que é tão complicado?
Yuval
Noah Harari: Os governos não querem. Demanda muito capital político e
investimentos para mudar o curso (dos acontecimentos em relação ao clima). É
possível, não acho que seja tarde demais. Há muitas coisas que podemos fazer,
mas para fazê-las é preciso mudar o rumo da economia com uma colaboração
global maior. Uma vez que a mudança climática é reconhecida como realmente
perigosa, também é necessário reconhecer que é preciso uma cooperação global.
Não é algo que apenas um governo possa fazer. As pessoas de extrema direita,
e gente como Trump, são contra a cooperação. Eles são isolacionistas,
se importam apenas com o seu próprio país. Eles precisam negar a mudança
climática por isso.
Qual
é a responsabilidade de Trump, e dos Estados Unidos, nessa discussão?
Yuval
Noah Harari: Ele acredita que a América não tem responsabilidade sobre
ninguém no mundo, econômica ou politicamente. O mais incrível sobre os Estados
Unidos nos últimos três ou quatro anos é que eles voluntariamente se
demitiram da sua posição tradicional de líderes do mundo livre. Essa foi a
realidade por décadas. A grande questão sobre 2020 é que se eles realmente
votarem novamente por Trump, é como se dissessem: “nos esqueçam, só
nos importamos com os Estados Unidos”. O que é muito perigoso, porque em
muitas frentes precisamos de liderança. Os Estados Unidos ainda são a maior
economia e o maior poder militar. Se pensarmos em termos econômicos, quando a
crise de 2008 aconteceu, o pior destino possível foi evitado por conta da união
das lideranças do mundo, tomando algumas medidas radicais para salvar os
mercados e prevenir o colapso financeiro completo. Agora, se uma crise similar
acontecer amanhã, penso que estamos condenados. Para evitar o pior resultado
é preciso cooperação global. Os bancos centrais, o G7 e o G20… e ninguém
seguiria Trump nesse cenário. Quem pode confiar nesse cara? Por três anos, os Estados
Unidos nos disseram que não se importam com ninguém. Falando só do sistema
financeiro, estamos numa situação extremamente perigosa. Uma crise virá:
talvez em seis meses, talvez em três anos. Virá. O mundo está totalmente
despreparado agora.
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Urso polar vasculhando lixo na Rússia - incrível sinal dos tempos! |
Em
sua obra, o senhor menciona os “não empregáveis”, e diz que será o maior
problema econômico e político das próximas décadas. Vê como possível alguma
colaboração mais forte entre esses países para combater essa questão?
Yuval
Noah Harari: Sim, em duas frentes. A contínua automação vai beneficiar os
países líderes em campos como inteligência artificial e robótica, como os Estados
Unidos e a China. Os piores efeitos se darão em países em desenvolvimento,
que dependem de trabalhos manuais baratos — o tipo de trabalho mais fácil de
automatizar. Haverá novos postos, mas será preciso outras formas de
treinamento e habilidades. Os países ricos têm os recursos necessários para
o retreinamento da força de trabalho. Os países em desenvolvimento e mais
pobres serão atingidos duas vezes. Primeiro, pelo choque da automação, e depois
pelo fato de não terem os recursos para treinar sua força de trabalho. O que
eles podem fazer? Novamente, é um campo em que será preciso cooperação
global para salvar os elos mais frágeis da corrente, porque se países na
América Central entrarem em colapso econômico, qualquer problema que os Estados
Unidos têm hoje com imigração ou situações de instabilidade na região serão
muito, muito piores. Precisamos de uma transferência de recursos dos países
ricos, que serão beneficiados pela inteligência artificial, para os países que
serão mais atingidos por isso. Isso deve começar hoje, não em 20 anos.
Que tipo de trabalho as crianças brasileiras que hoje têm 5 ou 6 anos terão em
20 anos? Esperar esse período pode ser tarde demais.
O senhor
diz que o nacionalismo não é natural, não tem raízes na biologia ou
psicologia.
Yuval
Noah Harari: Não quero dizer que seja antinatural, estou dizendo que os
Estados-nação que temos hoje não são uma parte da psicologia humana, são um
fenômeno bastante recente, de apenas alguns mil anos, muitas vezes menos.
Humanos estão por aí há cerca de 2 milhões de anos. Então, não devemos pensar
que Estados-nação são parte da natureza humana e, portanto, continuarão para
sempre. Quando eles apareceram, em um ponto da história, serviram a um bom
propósito. A essência do nacionalismo não é odiar estrangeiros, mas amar
seus compatriotas e se importar com milhões de pessoas que você não conhece de
verdade. Na maior parte da evolução humana, os humanos apenas se importaram
com as pessoas que eles conheciam, a família e os amigos mais próximos. A
grande questão sobre o nacionalismo é que ele permite, numa nação como o
Brasil, se importar com 200 milhões de estranhos. Ser honesto nesse contexto
é estar disposto a pagar impostos para que todos tenham educação e um sistema
de saúde. E isso é muito bom. Também não acredito que haja uma disputa
entre democracia e nacionalismo, acho que eles andam juntos. O que estamos
vendo em várias partes do mundo são democracias se enfraquecendo porque o
nacionalismo está se enfraquecendo. Geralmente, quando ele está forte, a
indicação é que existem guerras entre as nações. Agora, praticamente não há
guerras entre nações. Os conflitos são internos. Seja no Oriente Médio, seja
nos Estados Unidos. Americanos, agora, odeiam outros americanos muito mais
do que odeiam os russos. Sem o nacionalismo, as democracias não podem
funcionar, porque elas se baseiam no fato de que todas as pessoas, ou a imensa
maioria, concordam sobre aspectos básicos. Há discordâncias, mas não ódio.
Por exemplo: “Acredito que meus adversários políticos estejam enganados, até
mesmo que sejam burros, mas eu não os odeio, e eles não me odeiam. É por isso
que quando eles vencem as eleições, estou disposto a aceitar o resultado”.
Quando não há senso de destino nacional, a nação se parte em tribos rivais, e a
longo prazo a democracia não funciona. A questão principal é as pessoas
entenderem errado o nacionalismo e pensar que ele é sobre odiar estrangeiros,
ou odiar minorias, quando na verdade é sobre amar os seus compatriotas. Ser
um bom nacionalista não significa matar outras pessoas. Significa pagar
seus impostos de maneira honesta para que outras pessoas na nação tenham boa
educação.
É
curiosa essa ideia de que o nacionalismo está, na verdade, se enfraquecendo.
Yuval
Noah Harari: Trump, por exemplo, não é um nacionalista. Ele é antinacionalista.
Um líder nacionalista é alguém que tenta unir uma nação. Trump faz o
exato oposto, deliberadamente debilitando a unidade americana, não
necessariamente nas suas políticas, mas no seu discurso.
O
senhor também comenta que é possível que o cérebro humano seja sobrecarregado
de informações a tal ponto que já não consiga processá-las de maneira adequada,
e que a luta pela atenção humana é um grande problema atual e do futuro. Quais
são os riscos envolvidos nesses aspectos?
Yuval
Noah Harari: Um dos problemas é transferir a autoridade humana para
algoritmos. Porque apenas os algoritmos seriam capazes de tirar sentido
da quantidade imensa de informações. Para dar um exemplo prático, pensando no
sistema financeiro: mesmo hoje, quantas pessoas entendem como o sistema
financeiro funciona? Para ser muito generoso, eu diria que talvez 1% da
população. Em 20 ou 30 anos, o número pode ser exatamente 0. O sistema será
tão complexo, e o fluxo de informações tão rápido, que mesmo PhDs em economia
não serão capazes de entendê-lo. A autoridade muda para o algoritmo. Mesmo
hoje, boa parte dos negócios é fechada por algoritmos, e cada vez mais as
decisões econômicas importantes seguirão esse caminho. O Banco Central deve
subir ou reduzir a taxa de juros? Essa será uma decisão tomada por algoritmos,
porque ninguém vai entender a economia. Isso acontece em diversos campos.
Quando alguém está procurando preencher uma vaga em sua empresa, hoje em dia
recebe dezenas de currículos, os analisa, pensa sobre quem está mais apto para
o trabalho, há uma entrevista, se forma uma impressão e é isso. A autoridade
dessa decisão pode mudar para algoritmos, que processam milhares e milhares de
informações e não contam com a entrevista. Eles podem explorar todo o seu feed
do Facebook, por anos, e encontrar padrões que indicam se você é extrovertido
ou fechado, confiável ou não, todo tipo de traço psicológico. O algoritmo
vai decidir quem é apto para o trabalho, e quando a pessoa for questionar a
empresa por que não foi contratada, a empresa vai dizer que não sabe, foi
apenas o algoritmo. É possível que haja leis. A União Europeia já aprovou
uma lei em que o ser humano tem direito a uma explicação sobre toda decisão a
respeito dele definida por algoritmo. Mas pode ser uma impressão de mil páginas
com todos os dados que o algoritmo analisou? Estamos chegando a um ponto que
não estamos sendo capazes de processar toda a informação.
* Yuval Noah Harari tem
43 anos, é historiador, filósofo e autor de Sapiens: Uma Breve História da
Humanidade, de Homo Deus: Uma Breve História do Amanhã e de 21
Lições para o Século 21 (todos publicados no Brasil pela Companhia das
Letras, São Paulo). Nascido em Haifa, Israel, é professor do Departamento de
História da Universidade Hebraica de Jerusalém. Publicada em diversos países,
sua obra já vendeu mais de 20 milhões de cópias.
Fonte: O
Estado de S. Paulo – Dez Visões sobre Temas de 2019 – Domingo,
22 de dezembro de 2019 – Caderno 2 – Pág. C3 – Internet: clique aqui.
Amazônia:
uma catástrofe se aproxima
Milton Hatoum*
No século passado, as tentativas de “ocupar”
e “desenvolver” a Amazônia foram, além de fracassadas,
extremamente danosas ao
meio ambiente
e aos indígenas, ribeirinhos, quilombolas,
pescadores
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MILTON HATOUM |
Depois de
fazer uma longa e tumultuada viagem de Manaus às cabeceiras do Rio Purus, Euclides
da Cunha escreveu uma série de artigos e ensaios sobre a Amazônia, reunidos
no livro póstumo À margem da história (1909). Nele, o autor de Os
Sertões faz uma crítica aguda à atividade predadora do extrativismo
do látex e ao trabalho semiescravo dos seringueiros.
São famosas
estas frases euclidianas: “O seringueiro é um homem que trabalha para
escravizar-se”. Ou: “Os ‘caucheiros’ aparecem como os mais avantajados
batedores da sinistra catequese a ferro e fogo, que vai exterminando naqueles
sertões remotíssimos os mais interessantes aborígenes sul-americanos”.
O uso do
verbo “exterminar” não é um exagero retórico. Euclides percebeu que o
extrativismo predador operava uma dupla destruição: da floresta e dos povos
indígenas. Durante o Ciclo da Borracha (1880-1920) mais de 30 mil indígenas da
região de La Chorrera (Colômbia) foram escravizados, torturados e assassinados
por capatazes da Peruvian Amazon Company. Essas atrocidades – conhecidas
como “O massacre do Rio Putumayo” – constam no relatório de Roger
Casement, um diplomata britânico nascido na Irlanda. Em 1910, Casement, que era
cônsul em Belém, viajou a La Chorrera, onde testemunhou e depois divulgou as barbaridades
cometidas por capangas de barões da borracha.
No século
passado, as tentativas de “ocupar” e “desenvolver” a Amazônia foram, além de
fracassadas, extremamente danosas ao meio ambiente e aos indígenas,
ribeirinhos, quilombolas, pescadores. Alguns exemplos conhecidos:
* Fordlândia,
no Vale do Tapajós (1927-45);
* a Rodovia
Transamazônica e
* o Projeto
Jari (empreendimento agroflorestal e industrial de Daniel Ludwig), ambos
realizados no começo dos anos 1970.
A partir
desta década:
* a grilagem
de áreas de proteção ambiental, terras da União e territórios indígenas, e
* a ação
predadora de mineradoras, madeireiras e grandes fazendeiros, se
intensificaram, e nunca foram interrompidas.
Esses
“empreendimentos”, nefastos aos povos da floresta, estimularam um fluxo
enorme de migração interna, gerando mais miséria e violência em municípios
e capitais da região.
Desde a
redemocratização do País, nenhum governo refletiu seriamente sobre a diversidade
social, econômica, geográfica, cultural e antropológica da Amazônia. Obras
megalômanas – como construções de hidrelétricas – afetam duramente indígenas e
moradores de vilas, comunidades e cidades. Uma crítica lúcida e bem argumentada
a essas edificações faraônicas foi feita pelo premiado jornalista Lúcio Flávio
Pinto no livro A Amazônia em questão: Belo Monte, Vale e outros temas
(B4 editores, 2012).
Um
governo cúmplice com a destruição
Mas é
também verdade que nenhum governo anterior a este foi tão cúmplice da
destruição do bioma amazônico. O ministro do Meio Ambiente [Ricardo Salles],
incapaz de entender a complexidade da Amazônia, nem sequer se interessa pelos
anseios e pelas expectativas de sua população. Além disso, ignora estudos de
cientistas e pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia
(Inpa), Museu Goeldi, Instituto Butantan (Belterra), Fiocruz e de universidades
brasileiras. Nesse aspecto, o ministro é coerente com as correntes do
governo que desprezam o conhecimento científico, as humanidades e a tecnologia.
São
inúmeros os diagnósticos, análises, pesquisas científicas e antropológicas
feitos por estudiosos brasileiros e estrangeiros. Um exemplo notável é o volume
Amazônia: do discurso à práxis (Edusp, 2.ª ed., 2004), do saudoso
geógrafo Aziz Ab’Sáber. Os ensaios reunidos nessa coletânea são
importantíssimos para a compreensão da Amazônia. Mas nada disso parece
sensibilizar o primeiro mandatário e sua equipe ministerial, cujo desprezo
por um mínimo de racionalidade terá consequências desastrosas, senão trágicas,
para todo o País.
A tragédia
não se limita ao desmatamento e à invasão de terras indígenas. É preciso
lembrar que nas cidades da Amazônia, onde vive a grande maioria de seus
habitantes, a desigualdade é brutal. Em 1905, Euclides da Cunha já
alertava para o contraste social e econômico em Manaus, que
crescia “à gandaia”. Hoje, mais de 60% dos domicílios dessa cidade não têm
acesso ao saneamento básico, e 30% ao abastecimento de água. Esses índices
– também alarmantes quanto à violência em Manaus, Belém e outras capitais –
refletem a miséria e a degradação urbana na região mais rica em recursos
naturais do planeta.
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Plantação de eucalipto queimada |
Perguntar
não ofende:
Mas quem de fato usufrui dessa riqueza?
Quem realmente se beneficia com a exportação de
minérios, madeira e
com a construção de hidrelétricas?
Para que serviu a construção, em Manaus, da
Arena da Amazônia?
Ou da Arena Pantanal, em Cuiabá?
Vários
artigos publicados em revistas científicas sérias já alertaram para a alta
concentração de gases de efeito estufa sobre a floresta tropical, o que
certamente será desastroso para o Brasil e para todo o planeta. Uma
catástrofe se aproxima. Mesmo assim, o presidente está interessado em exportar
troncos de árvores nativas.
Se
argumentos científicos não convencem os que professam uma fé fervorosa na
irracionalidade, é o caso de perguntar: quais ambições estão ocultas nessa
sanha devastadora da Amazônia? Ou: o que há por trás de tantos atos
irracionais? Sem dúvida, um alucinado projeto de
poder. Mas esse projeto tem aliados poderosos, dentro e fora do
Congresso. O empenho do governo federal em perdoar multas ambientais e
fragilizar a fiscalização de atividades predadoras é uma carta branca aos
grandes grileiros e incendiários. Não se trata de política liberal. O nome
disso é barbárie mesmo.
* Milton Hatoum
nasceu em 1952, em Manaus (AM). Formado em Arquitetura pela USP, trabalhou como
jornalista cultural e foi professor universitário de História da Arquitetura e
depois de Literatura Francesa. Seu romance de estreia, Relato de um certo
Oriente, ganhou o Prêmio Jabuti em 1989. Sua obra já foi traduzida para 12
línguas e publicada em 14 países. É colunista do jornal O Estado de S. Paulo.
Fonte: O
Estado de S. Paulo – Dez Visões sobre Temas de 2019 – Domingo,
22 de dezembro de 2019 – Caderno 2 – Pág. C3 – Internet: clique aqui.
Estamos
em crise cultural?
Leandro Karnal*
Precisamos reaprender que o contraditório é
positivo e parar de
conjugar o péssimo verbo “lacrar”
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LEANDRO KARNAL |
Começamos a
nos despedir da segunda década do século 21. Historicamente, existe uma
tendência antiga de se considerar o momento em que se vive como de crise
profunda e de decadência. Com raros momentos de otimismo, o mundo está em
declínio desde a inauguração das pirâmides de Gizé. De Boécio no século 6º a
Freud no 20, sempre houve quem alertasse seus contemporâneos sobre ruínas,
desilusões, fim de utopias ou um mal-estar na civilização. O rastro vai
longe. O segundo Templo de Jerusalém, reconstruído após a tragédia da invasão
da Babilônia, era pálida sombra do anterior construído por Salomão. O projeto
de obras de Herodes, o grande, tinha um sentido de cooptação política, mas
sempre seria um Santo dos Santos sem a Arca da Aliança. O passado sempre foi
e será visto como mais glorioso, opulento, pacífico e, acima de tudo, mais
culto.
A
polarização chegou à cultura
Estabelecido
o fundo moral da construção de uma ideia de decadência, sejamos objetivos.
Estamos diante de um imenso e necessário debate sobre financiamento cultural.
Os modelos oficiais com renúncias fiscais, apoios públicos e a participação
(outrora dominante) de empresas estatais, como a Petrobrás, estão sob ataque ou
com dificuldades para obter recursos. Mesmo os tradicionais centros
culturais de bancos públicos sofrem investidas. O episódio da exposição do
Santander em Porto Alegre (2017) mostrou que o debate também envolve, além do
financiamento, a ideia de decidir que tipo de arte ou expressão cultural
pode e deve ser trazida ao público (e para qual público). No fundo, sempre
a mesma questão:
* quem
controlaria a orientação cultural?
* Seria uma
crise de política cultural ou um exercício de poder?
Houve algo
similar há 30 anos. O presidente Collor extinguiu a Embrafilme e tivemos
uma seca violenta na produção cinematográfica. O mercado cinematográfico teve
de se reorganizar. Algumas lacunas foram preenchidas pelas já citadas estatais.
O grande amparo, desde 1991, tornou-se a Lei Rouanet, hoje igualmente
sob invectiva frontal.
A polarização
está no campo cultural também. Temas como:
* o Prêmio
Camões atribuído a Chico Buarque,
* a
biografia da atriz Fernanda Montenegro,
* o filme Bacurau
e
* a
cinebiografia de Marighella
trouxeram o
duplo debate sobre recursos de financiamento e visão política da produção da
arte. A participação do poder público atingiu até a mais popular festa do Rio,
o carnaval. A Flip de 2019 viveu momentos de polarização política e a escolha
do nome da poeta americana Elizabeth Bishop como homenageada de 2020 já
incendiou os meios literários e da internet. O debate é sempre bem-vindo. Precisamos
reaprender que o contraditório é positivo e parar de conjugar o péssimo verbo
“lacrar”.
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SALA SÃO PAULO - São Paulo, capital Uma "vela poderosa" em meio a trevas assustadoras, aponta Karnal |
A
música resiste, mas sofre
O ano foi
pesado para a música, pois as orquestras foram atingidas em cheio pela
falta de financiamento. Iniciativas importantes como o Projeto Guri
sofreram abalos e incertezas. A crise é anterior a 2019. A Banda Sinfônica
do Estado de São Paulo foi dissolvida em 2017. A brilhante Jazz
Sinfônica resiste, aumenta sua popularidade e mostra como alguns abnegados
podem manter algo tão belo. A Osesp, melhor sinfônica do Brasil e entre
as melhores do mundo, é uma ilha de produtividade em meio ao mundo Mad Max
que a cerca, literalmente. No esplendor da Sala São Paulo produzem-se
concertos didáticos, milhares de ofertas gratuitas e noites inacreditáveis,
como foi no dia 12 de dezembro, com a Nona Sinfonia de Beethoven
marcando a abertura do ano jubilar 250 do mestre. Com a tradução em português a
cargo de Arthur Nestrovski e inserções de músicas em diálogo com a obra, a
plateia foi mesmerizada pela batuta de despedida da regente Marin Alsop. Ali
fulgiu uma vela poderosa em meio a trevas assustadoras.
Nos
deixaram
O ano de
2019 levou lendas como Bibi Ferreira e talentos no apogeu da
criatividade como Fernanda Young. O diretor Antunes Filho, pilar
de uma revolução teatral, também se foi. Em todos os campos desponta uma moçada
muito interessante. Precisamos de outro texto para indicar alguns nomes.
Crise
das livrarias
A crise
das livrarias continua a fazer estragos. Temos autores e leitores, falta
dinheiro para livros e faltam lugares para vender os livros. Há reações,
com ressurgimento de pequenos espaços. Como em toda época de crise, as editoras
apostam em obras com grande apelo e autores já famosos em mídias digitais. Escasseiam
os experimentalismos, explodem os títulos com palavrões. O debate é
infindável: o nariz torcido de alguns diante do sucesso popular de outros. O
preço da sobrevivência será sempre o da vulgarização?
Será o fim
da cultura como a conhecemos? Sim, sempre, pois emergem novas formas culturais.
O término do meu mundo não é o término do mundo. Mesmo sem ter
consciência da crise de financiamento da cultura, o jovem que frequenta um
baile funk de São Paulo descobrirá que a visão da cultura atinge a todos,
alguns de forma fatal. No fundo, 2019 continua com o dilema, agora chaga
aberta: quem tem direito de definir o que é cultura? As exposições sobre
“arte degenerada” ainda rondam nossas consciências no campo estético e evocam
memórias autoritárias.
Eu desejo
um 2020 sem donos da cultura, sem vozes únicas, sem comissários do povo ou
guardiões da pureza da cultura nacional. Desejo um ano-novo múltiplo, com
Beethoven e funk, música lírica e Anitta dançando. Que toda arte transgrida,
desinstale, agite e perturbe. Que morra todo Ministério da Verdade.
* Especializado em história da América, Leandro
Karnal é hábil, no entanto, em tratar de qualquer assunto. Nascido em 1963
em São Leopoldo (RS), tem formação jesuítica e é dono de uma invejável
erudição, que transmite com clareza seja na escrita, seja nos inúmeros debates
dos quais participa pelo País. Apesar da variedade, não esconde sua predileção
pela história das religiões. É colunista do jornal O Estado de S. Paulo.
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