A idolatria no século XXI
Deuses
estranhos
William T. Cavanaugh
Commonweal
“Criamos novos
ídolos. A adoração do antigo bezerro de ouro encontrou uma nova e cruel versão
no fetichismo do dinheiro e na ditadura duma economia sem rosto e sem um
objetivo verdadeiramente humano.”
Papa Francisco
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WILLIAM T. CAVANAUGH |
Introdução
“Weber
explica a necessidade básica humana de adorar em termos da necessidade de
significado, uma necessidade que nos leva inevitavelmente a fazer deuses.
Ele é pessimista na ideia de que podemos superar esta situação. Por outro lado,
Marx está convencido de que as pessoas cessarão de fazer deuses após
a revolução”, escreve William T. Cavanaugh.
William T.
Cavanaugh é professor de estudos católicos e diretor do Centro de
Catolicismo Mundial e Teologia Intercultural da Universidade DePaul, em Chicago
(Estados Unidos). O presente artigo foi adaptado de uma palestra proferida por
ele em 2019 sobre fé e cultura, em evento organizado pelo Centro Cultural
Crossroads e pelo Fórum Albacete.
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MAX WEBER (1864-1920): Economista e jurista alemão, considerado um dos fundadores da Sociologia |
Artigo
Há cem
anos, o famoso sociólogo alemão Max Weber publicava uma edição revisada
de sua obra clássica. Inseridos na nova edição estavam alguns poucos usos da
palavra Entzauberung, termo que não aparecia na primeira edição. Essa
palavra procurava descrever a condição geral do mundo ocidental moderno. Zauber
é a palavra para “magia”; Entzauberung significa algo como o “desfazer
a magia”. Normalmente é traduzida por “desencantamento”.
Mesmo o
próprio Weber empregando-o com moderação, o termo acabou ganhando vida própria.
Muitos acreditam que ele captura algo essencial da nossa tradição presente. Na
investigação que faz das causas da secularização no Ocidente, o filósofo
Charles Taylor escreve: “Todos podemos concordar que uma das grandes
diferenças entre nós e os nossos ancestrais de cinco séculos atrás é que eles
viviam em um mundo ‘encantado’ e nós não”. Os nossos ancestrais viviam em
um mundo habitado por deuses e demônios, fantasmas e anjos, duendes e santos. As
fronteiras entre o material e o espiritual eram permeáveis, e o mundo imanente
era feito de contato frequente com o transcendente.
O mundo
pré-moderno era cheio daquilo que Taylor chama “objetos carregados”,
tais como relíquias dos santos, que tinham o poder de alterar a
realidade. Hoje, vivemos em um mundo desencantado, desprovido de espíritos
divinos ou demoníacos, desprovido de mistério, um mundo sem um significado
ordenado. Ou assim nos dizem.
Na opinião
de Weber, o desencantamento era o resultado final de um longo processo de
racionalização, do qual a ciência e o capitalismo eram os principais
impulsionadores. O próprio Weber se considerava um racionalista, alguém que se
descrevia como não tendo “ouvido musical para a religião”.
«Como intuem Weber, Marx e a Bíblia, evitar a idolatria
não é tão simples quanto fazer uma escolha pessoal
para mudar as nossas atitudes de adoração.»
Mas ele não
celebrava simplesmente o processo de racionalização e desencantamento. Achava
que os avanços técnicos da modernidade tinham um preço e temia que as pessoas
modernas se tornassem “especialistas sem espírito, gozadores sem coração:
esse Nada imagina ter chegado a um grau de humanidade nunca antes alcançado”.
O livro A
ética protestante e o “espírito” do capitalismo conclui com uma descrição
melancólica da “crosta de aço” da modernidade, máquina sem coração
eficiente a partir da qual todo o encantamento fora impiedosamente eliminado,
para melhor ou para pior.
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Principal obra de Max Weber mencionada pelo autor deste artigo Esta é a última edição brasileira |
Exemplo
de como funciona a sociedade capitalista e racional atual
Um exemplo
de como esta máquina funciona na prática: consideremos um “centro de
atendimento”, ou armazém, da Amazon. Nem mesmo Weber poderia
prever a extensão a que a Amazon tem levado a racionalização.
Em um
centro de atendimento da Amazon, “associados” mal remunerados, que
muitas vezes são trabalhadores temporários sem benefícios, apressam-se entre
caixas pegando e empacotando praticamente tudo o que podemos imaginar. Um
dispositivo portátil mantém o registro dos movimentos que fazem. Depois que
ele direciona um funcionário para o próximo item de mercadoria, um marcador de
tempo começa a marcar: 27 segundos para escanear o próximo item a quatro
corredores adiante, por exemplo.
O
dispositivo adverte os trabalhadores se eles estiverem se atrasando e mantém um
registro de seus desempenhos. Ficar para trás, ligar avisando
que adoeceu e outros delitos podem custar a vaga de emprego dessas pessoas. Alguns
“associados” recorrem à prática de urinar em garrafas de forma a não precisar
ir até o banheiro nos intervalos.
Em janeiro
de 2018, a Amazon recebeu as patentes de uma pulseira que pode
rastrear os movimentos do braço de um trabalhador no armazém. Um porta-voz
da empresa apresentou a pulseira como um benefício aos associados: “Essa
ideia, se implementada no futuro, melhoraria o processo dos nossos associados.
Ao movermos o equipamento para o pulso dos associados, estaríamos liberando
suas mãos dos escâneres e seus olhos das telas dos computadores”.
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Tradução livre do título e subtítulo: "Contratado: seis meses disfarçado na Grã-Bretanha de baixos salários" |
Mas segundo
James Bloodworth, que trabalhou em um centro de atendimento da Amazon
por seis meses e descreveu suas experiências em “Hired: Six Months
Undercover in Low-Wage Britain” [tradução livre: Contratado: Seis meses
disfarçado na Grã-Bretanha de baixos salários] (2018), o verdadeiro
objetivo da empresa não era facilitar a vida dos trabalhadores. “A
obsessão toda tinha a ver com produtividade. (…) Eles começaram a tratar
os seres humanos como máquinas, essencialmente. Se se mostrar mais barato
substituir os humanos por máquinas, suponho que farão”. No armazém da
Amazon, a descrição de Weber sobre a “crosta de aço” parece plenamente
justificada.
Mas esse é
só um lado da história. Para o consumidor, a compra de praticamente tudo via
Amazon não deixa de ser mágico. Imagens de milhões de produtos podem ser
invocadas em uma tela. Podemos passar horas perdidos em um ambiente virtual de
abundância infinita. Uns poucos cliques depois e o produto desejado aparece em
nossa porta, como mágica.
O processo
inteiro de produção – o fornecimento de matéria-prima, a manufatura e
produção, o empacotamento e entrega – está invisível ao consumidor, como
estão as pessoas envolvidas nesse processo. Tudo o que vemos são imagens de
produtos brilhantes finalizados em uma tela e, então, os próprios produtos em
nossos endereços.
um lado racionalizado, desencantado, tipificado por
uma eficiência sem coração,
uma eficiência sem coração,
e um lado encantado ainda preenchido com objetos carregados e de
magia.
São dois lados de uma mesma moeda.»
Portanto parece
que existem dois lados em nossa economia:
1º) um lado
racionalizado, desencantado, tipificado por uma eficiência sem coração, e
2º) um lado
encantado ainda preenchido com objetos carregados e de magia.
Na verdade,
estes são realmente dois lados de uma mesma moeda. Cada um deles implica o
outro.
Existem
dois lados em nossa economia
Weber
argumentava que a religião é o agente original da racionalização, mas
também que a racionalização acabaria retirando a religião da esfera pública.
Muitos resumos do argumento weberiano param aí, no desencantamento do mundo.
Mas Weber também sugeriu que a racionalização produz uma nova forma de
encantamento, uma espécie de “politeísmo” de deuses
impessoais, que inclui o Estado e o mercado.
Comecemos
com a primeira parte do que ele diz. Weber considera a magia como uma forma
primitiva de religião.
As culturas
primitivas praticavam a magia para tentar controlar a natureza e mitigar os
seus variados perigos; se realizarmos uma certa dança, choverá em nossas
lavouras. A magia era isto: mundano – não ético, mas transacional. Ela
tentava coagir ou subornar os espíritos que viviam nas coisas materiais.
Há uma
espécie de racionalidade nesta troca de favores. No entanto, quando as grandes
religiões salvacionistas surgiram na era axial, elas introduziram um tipo
novo de racionalização. Os deuses eram, agora, pessoais e de um outro mundo,
transcendendo o mundo material e, assim, as interações com eles assumiram um
aspecto ético.
Tais deuses
eram universais ao invés de locais, e isso fez surgir a noção de leis
estáveis e universais que governam a natureza e a sociedade. Uma ordem
social racional era complementada por uma ordem intelectual que
respondia à necessidade humana de significado coerente.
As pessoas
necessitavam de uma forma de lidar com o sofrimento sem sentido. Portanto
as religiões salvacionistas desenvolveram o mito de um salvador e um sistema
ético em que os deuses poderiam punir os injustos e recompensar os justos.
Dado que os
justos frequentemente sofrem nesta vida, enquanto os injustos muitas vezes
prosperam, as explicações foram buscadas do lado de fora do presente mundo. Explicava-se
sofrimento presente pelos pecados de uma vida anterior ou pelos ancestrais da
pessoa, ou se postulava uma pós-vida para garantir que os culpados fossem
punidos e os justos recompensados após a morte.
Para Weber,
isso põe as religiões salvacionistas em estado de tensão permanente com o
mundo, o que leva à segunda parte de sua discussão: quanto mais a religião
torna-se racionalizada, mais ela se torna uma religião de um outro mundo,
enquanto as esferas mundanas da política, da economia, da família, do sexo
etc., assumem uma autonomia cada vez maior.
As
atividades mundanas como os negócios e a guerra não conseguem satisfazer os
altos padrões éticos das grandes religiões salvacionistas; então a
pessoa religiosa ou foge do mundo para dentro de um misticismo, ou se torna um
asceta mundano, como os puritanos.
De acordo
com Weber, os puritanos aceitam a inexistência ulterior de significado
deste mundo, mas tentam conseguir a salvação em um diálogo interno com Deus
enquanto seguem suas vocações mundanas como homens de negócio. É assim que o protestantismo levou ao capitalismo.
Para os puritanos, os sacramentos católicos eram simples magias, tentativas de
manipular a Deus. A Reforma varreu do mundo tais ídolos, para que Deus fosse
tudo em todos.
Mas remover
Deus do mundo material para proteger a santidade divina acabaria levando a um
desencantamento de todas as atividades mundanas. Por exemplo, a ciência lida
somente com fatos; ela não pode produzir significado. O capitalismo responde a
tudo o que o mercado dita; os valores são irrelevantes para ele. A burocracia
do Estado busca eficiência; ela não responde à vontade de Deus.
Para muitas
pessoas, o que elas conhecem de Weber termina aí, um desencantamento. Mas o
próprio Weber deu um terceiro passo, escrevendo não só sobre a ausência do
divino no mundo moderno, mas também sobre o “politeísmo”.
Weber
estava convencido de que os seres humanos têm uma
necessidade elementar por sentido. Para ele, a divisão entre o fato,
de um lado, e o significado (ou valor), de outro lado, é tanto uma realidade
quanto um sério problema, porque nós ainda urgentemente queremos saber qual
o sentido da vida.
Segundo
Weber, “A ciência não tem sentido porque não responde à nossa pergunta, a
única pergunta para nós: o que devemos fazer e como devemos viver?” Weber
rejeita a ideia de que podemos retornar à religião; ele considera este caminho
como sendo apropriado somente para a pessoa demasiada fraca para encarar “o
fato fundamental de que estamos destinados a viver numa época sem deus e sem
profetas”.
Mas Weber
traduz a pergunta “o que devemos fazer e como devemos viver?” na questão: “Que
deuses devemos servir dentre os muitos que (combatem entre si)? Devemos,
talvez, servir um outro deus, mas qual?” O politeísmo é uma consequência
direta da racionalização.
O divórcio
entre o FATO e o VALOR significa que “as esferas de valor do mundo estão em
conflito irreconciliável entre si”, sem base factual alguma para adjudicar
as declarações rivais. Não há maneira racional de resolver tais conflitos.
Devemos dar o passo irracional de simplesmente escolher alguns valores ao invés
de outros. Weber escreve:
“Vivemos como os antigos, quando o seu mundo ainda não
havia sido desencantado de seus deuses e demônios, e apenas vivemos num sentido
diferente. Tal como o homem helênico por vezes fazia sacrifícios a Afrodite e
outras vezes a Apolo e, acima de tudo, como todos faziam sacrifícios aos deuses
da cidade, assim fazemos nós, ainda hoje, tendo apenas a atitude do homem sido
desencantada e despida de sua plasticidade mística, mas interiormente autêntica”.
Importa
notar aqui que Weber parece não ver diferença entre o comportamento
observável das pessoas no mundo antigo e aquele das pessoas no mundo moderno.
Ele
continua: “Muitos deuses antigos ascendem de seus túmulos; desencantaram-se
e tomaram, por isso, a forma de forças impessoais. Lutam para conseguir poder
sobre nossa vida e retomam novamente sua luta eterna entre si”.
Na visão do
sociólogo alemão, Apolo foi substituído por forças impessoais como o
capitalismo, mas “deuses” não é uma metáfora casual. Como diz Weber: “[Eles]
lutam para conseguir poder sobre nossa vida”.
Weber
acreditava que o indivíduo tem a liberdade de escolher entre os vários deuses
em oferta, mas que esta escolha é feita no contexto de restrições não
escolhidas. Os novos deuses que podemos escolher devem combater não somente
entre si, mas contra os deuses que não escolhemos. Weber escreve que o
ascetismo puritano “contribuiu [com sua parte] para edificar esse
poderoso cosmos da ordem econômica moderna ligado aos pressupostos técnicos e
econômicos da produção pela máquina, que hoje determina com pressão
avassaladora o estilo de vida de todos os indivíduos que nascem dentro dessa
engrenagem – não só dos economicamente ativos – e talvez continue a determinar
até que cesse de queimar a última porção de combustível fóssil”.
«Os bens materiais ganharam um poder
crescente e finalmente inexorável sobre as vidas humanas
como em nenhum outro período anterior da história.»
(Max Weber)
O autor
conclui que “os bens materiais ganharam um poder crescente e finalmente
inexorável sobre as vidas humanas como em nenhum outro período anterior da
história”.
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KARL MARX (1818-1883): nascido na Prússia (Alemanha, atualmente), foi um filósofo, sociólogo, historiador, economista, jornalista e revolucionário socialista |
No século
XIX, figuras como Karl Marx e Friedrich Nietzsche acharam que se
relacionar dessa forma com Deus ou deuses levaria à libertação dos seres
humanos. A humanidade finalmente tomaria as rédeas de seu próprio destino.
Weber era
bem mais pessimista. Ele enfatizava a natureza fragmentada do
significado humano no mundo moderno e do poder e da inércia das grandes
instituições sociais. Juntos, estes impossibilitam a libertação completa.
Weber
parece concordar com Marx e Nietzsche em que inexiste uma ordem pré-dada, que
nós humanos criaríamos na medida em que avançamos. Para Weber, no entanto, a
proeza técnica humana produz maravilhas que acabam nos dominando. Como diz
o monstro ao Dr. Frankenstein: “Você é meu criador, mas eu sou seu mestre –
obedeça!”
Assim os
deuses eliminados pela racionalização retornam sob uma forma diferente para nos
governar.
Na esfera
política, Weber descreve como os Estados-nação empregam a violência
racionalizada para proteger as fronteiras, empurrando os escrúpulos religiosos
– como o pacifismo do Sermão da Montanha – para dentro da esfera privada dos
valores. Mas a guerra então põe de lado a religião, criando uma forma renovada
de devoção ao Estado-nação.
A guerra,
escreve Weber, “promove (…) uma comunhão incondicionalmente dedicada
e pronta ao sacrifício, entre os combatentes, e libera uma compaixão de massa
ativa e um amor pelos que estão sofrendo necessidades. (…) Em geral, a
religião só pode mostrar realizações comparáveis nas comunidades heroicas que
professam uma ética da fraternidade”.
Weber passa
a argumentar que o Estado faz um melhor trabalho do que a religião em dar um
significado à morte. Na esfera econômica, o autor descreve o capitalismo
como o auge da racionalização, exatamente em sua despersonalização das
transações.
O dinheiro
é “o elemento mais abstrato e ‘impessoal’ que existe na vida humana”. Weber
acrescenta: “Por esse motivo fala-se do governo do ‘capital’ e não dos
capitalistas”.
Fazer
dinheiro não é mais apenas um meio para servir a vida das pessoas: “O homem
é dominado pela produção de dinheiro, pela aquisição encarada como finalidade
última da sua vida”.
«O sagrado não desapareceu,
mas migrou da igreja para o Estado e o mercado.»
Em suma, continuamos
a servir aos deuses de forma transcendente e irracional, tal qual servíamos
aos deuses de antigamente. O sagrado não desapareceu, mas migrou da igreja para
o Estado e o mercado.
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FRIEDRICH NIETZSCHE (1844-1900): foi um filósofo, filólogo, crítico cultural, poeta e compositor prussiano, nascido na atual Alemanha |
O
sagrado não desapareceu, mas migrou da igreja para o Estado
E quanto
aos pacotes da Amazon que chegam aos nossos endereços? Pertencem eles ao reino
do desencantamento, do materialismo racionalizado? Marx achava que não.
Quando se
faz uma mesa para usar, nada há de misterioso. Mas quando ela muda para mercadoria
de troca, escreve Marx, “ela se transforma numa coisa sensível
(suprassensível)”.
Ela se
torna em uma coisa intrincada, “plena de sutilezas metafísicas e melindres
teológicos”. Como mercadorias, as coisas flutuam livremente desde as
condições materiais de produção até suas propriedades metafísicas como valores
de uso:
“Desse modo, para encontrarmos uma analogia, temos de nos
refugiar na região nebulosa do mundo religioso. Aqui, os produtos do cérebro
humano parecem dotados de vida própria, como figuras independentes que travam
relação umas com as outras e com os homens. Assim se apresentam, no mundo das
mercadorias, os produtos da mão humana. A isso eu chamo de fetichismo,
que se cola aos produtos do trabalho tão logo eles são produzidos como
mercadorias”.
Por fetichismo, Marx quer dizer mais do que a obsessão
humana pelas coisas materiais. Ele quer dizer que as coisas materiais se
tornam encantadas e assumem vida própria.
Quando um
objeto se transforma em MERCADORIA, o seu valor depende não da utilidade que
tem, mas daquilo pelo qual pode ser trocado.
Um exemplo
contemporâneo: apesar da fome generalizada, agricultores despejam leite fora e
o governo estoca queijo visando manter o preço dos laticínios. O que importa
é o valor de troca – o preço –, não o valor de uso.
O queijo
não é primordialmente um alimento para as pessoas consumirem, mas uma
mercadoria a ser trocada por dinheiro. Porque o valor dele é expresso
relativamente a outras mercadorias, diz Marx, as mercadorias estabelecem as
relações sociais entre elas.
«E na medida em que as mercadorias ganham vida própria,
a vida é canalizada para longe das pessoas reais.»
E na medida
em que as mercadorias ganham vida própria, a vida é canalizada para longe das
pessoas reais. Os famintos não contam no mercado, a menos que tenham
dinheiro; e os trabalhadores são considerados como “custos de mão de obra”, que
precisam ser minimizados. A mercadorização também esconde as condições de
trabalho.
Tudo o que
o consumidor enxerga na loja ou no sítio eletrônico da Amazon é a mercadoria
e seu preço. É preciso um esforço hercúleo para descobrir as pessoas que
de fato fizeram o produto e o entregaram, e as condições nas quais trabalharam.
Antes da
Revolução Industrial [1760 – 1820/1840], as pessoas produziam quase tudo que
possuíam em suas casas, e aquilo que não faziam era normalmente feito por
pessoas conhecidas. As coisas estavam estreitamente ligadas a seus produtores e
ao valor de uso.
Hoje
fazemos quase nada por nós mesmos, e compramos quase tudo que usamos. É difícil
avaliar a mudança que isso significa na maneira como nos relacionamos com o
mundo material e com os outros.
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Centro de Distribuição de mercadorias da AMAZON no Brasil Município de Barueri (SP) |
Criando
desejos e necessidades – o papel da publicidade
Quando o
volume enorme de coisas no mundo deu um passo quântico no século XIX por causa
da produção em massa, as pessoas precisaram ser ensinadas, como dizia um
manual publicitário em 1901, segundo o qual “as pessoas têm desejos que
elas não reconheciam antes”.
Se olharmos
para a história da publicidade, veremos como as mercadorias partiram do
mundo material e entraram para o reino da transcendência.
No século XIX, a publicidade era grandemente
informativa: Você pode comprar sapatos na loja de John H. Johnson.
No começo do século XX, a publicidade havia se
tornado mais persuasiva do que informativa, mas ainda mantinha uma
relação estreita com o produto físico. Um comercial poderia mostrar a foto de
um sapato e, então, descrever suas virtudes. O objetivo era convencer o leitor
de que o produto é um calçado confortável, com um preço razoável, bem produzido
e estiloso.
Uma
propaganda assim recorreria tanto ao sentido racional de valor de uso por parte
do consumidor – os calçados seriam fáceis de pôr e não cairiam dos pés com
facilidade – e também ao sentido mais intangível de moda dos compradores, de
serem reconhecidos pelos demais como estilosos e como se tendo um bom senso
para adquirir uma marca respeitável.
Em meados do século XX, houve uma mudança que se
distanciou ainda mais do valor de uso e no sentido das aspirações mais
intangíveis e espirituais dos consumidores por liberdade, sexo, prestígio,
reconhecimento, e outras formas de transcendência.
Um sapato
ainda apareceria no comercial de sapatos, mas não haveria mais menção alguma a
seu valor de uso.
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IVAN PAVLOV (1849-1936): foi um fisiologista russo conhecido principalmente pelo seu trabalho no condicionamento clássico. Foi premiado com o Nobel de Fisiologia ou Medicina de 1904 |
Com efeito,
poderia não haver menção alguma ao próprio sapato. Sob a influência de Freud,
Pavlov e outros psicólogos, os publicitários começaram a apelar não
ao eu consciente, mas ao subconsciente. Tais comerciais não mentiam, porque
não faziam nenhuma afirmação explícita. Simplesmente associavam uma
mercadoria física com aspirações não físicas.
Como nos
experimentos de Pavlov com cães, duas coisas completamente diferentes – carne e
um sino, dominação e vestir calçados – eram associadas no subconsciente.
E da mesma
forma como Pavlov teria usado um apito em lugar de um sino, o sexo podia
facilmente ser associado a carros ou um xampu, um refrigerante ou calçados.
Os objetos materiais reais começaram a importar menos do que o mundo fantástico
associado a eles.
A
marca passa a valer mais que o produto
Na medida
em que o consumismo se tornava uma aspiração, a marca passou a ter mais
importância do que os objetos materiais. A partir da década de 1940, as
empresas começaram a explorar aquilo que as marcas significam para uma cultura
e para a vida das pessoas. Cada vez mais, as marcas se tornavam meios de
marcar a identidade individual.
Profissionais
de marketing corporativo como Bruce Barton passaram a buscar com que as
empresas descobrissem a sua “alma”.
Cada vez
mais as empresas usariam uma linguagem teológica para
se descrever. Como disse certa vez um gerente empresarial: “Na
realidade, as marcas corporativas têm a ver com a gestão de crenças em nível
mundial”.
No começo
do século XXI, o produto real desapareceria completamente. Um
recente comercial da Nike nada mostra senão o seu logotipo e as palavras: “Escreva
o futuro”. Hoje, as principais empresas preocupam-se mais com a produção
de marcas do que com a produção de produtos. Fazem-se os produtos na
fábrica; fazem-se as marcas na mente.
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Publicado, no Brasil, pela Editora Record, 2002 |
De acordo com
Naomi Klein, o momento-chave veio em 1988, quando a Philip Morris
adquiriu não a empresa Kraft, mas a marca Kraft por U$ 12,6 bilhões.
No livro Sem
logo: a tirania das marcas em um planeta vendido, Klein escreve: “No
novo mercado (...) o produto sempre assume uma posição secundária em
relação ao produto real, a marca, e a venda da marca adquiria um componente
extra que só se pode ser descrito como espiritual. As marcas, em sua encarnação
mais verdadeira e avançada, têm a ver com a transcendência empresarial”.
Pesquisas empíricas corroboram o que Klein diz.
Numa série
de estudos publicados sob o título “Brands: The Opiate of the Nonreligious
Masses?” [tradução livre: Marcas: O ópio das massas não-religiosas?], na
revista Marketing Science, pesquisadores dos Estados Unidos e de Israel
descobriram que os sujeitos com fortes laços religiosos tradicionais eram
muito menos propensos a escolher marcas de nome para produtos que são usados
como uma forma de autoexpressão. Os autores concluem que a lealdade a
uma marca funciona como um substituto para a religião tradicional.
«O fetichismo da mercadoria não é meramente uma obsessão com
as coisas.
Quando o uso toma um lugar secundário à troca,
as mercadorias se transformam em veículos para um voo em direção
à transcendência.»
O
fetichismo da mercadoria não é meramente uma obsessão com as coisas. Não se
trata de um materialismo, e sim uma forma de desmaterialização. Quando o
uso toma um lugar secundário à troca, as mercadorias se transformam em veículos
para um voo em direção à transcendência.
As
mercadorias ganham vida
Todos estes
temas podem ser encontrados na crítica bíblica da idolatria. Tendemos a
evitar as críticas da idolatria porque elas parecem intolerantes: “Não
adoras como adoramos, és, portanto, um idólatra”.
E, todavia,
o conceito de idolatria parece capturar algo
importante a respeito do cenário contemporâneo. Muito embora seja conhecido
pelo seu otimismo e amor por todos, o Papa Francisco frequentemente recorre
à linguagem da idolatria.
Na sua
primeira encíclica Lumen Fidei, ele afirma que o oposto da fé não é
uma simples falta de crença, mas idolatria.
Quando
alguém deixa de crer em Deus, a pessoa não apenas deixa de
acreditar; pelo contrário, passa a acreditar em todo o tipo de coisa.
Francisco descreve isso como um “movimento sem meta de um senhor para outro.
(...) Quem não quer confiar-se a Deus, deve ouvir as vozes dos muitos ídolos
que lhe gritam: ‘Confia-te a mim!’”. Francisco tem usado a linguagem da
idolatria quando descreve o sistema econômico contemporâneo.
Em Evangelii
Gaudium, declara: “Criamos novos ídolos. A adoração do antigo bezerro de
ouro (cf. Ex 32,1-35) encontrou uma nova e cruel versão no fetichismo
[na versão inglesa, ‘idolatria’] do dinheiro e na ditadura duma economia sem
rosto e sem um objetivo verdadeiramente humano”.
Conforme
Francisco emprega o termo, a idolatria aqui não se refere à adoração explícita
de deuses com nomes próprios.
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PAPA FRANCISCO |
Embora
muitas vezes use o termo nesse sentido – por exemplo, em sua descrição dos
sacrifícios ao deus Baal –, a Bíblia trata a idolatria principalmente como
uma questão de comportamento, não de crença.
A idolatria é considerada não exatamente como um erro metafísico, mas uma traição
da lealdade ao Deus de Israel. Por essa razão, as principais imagens
bíblicas para a idolatria são o adultério e a deslealdade política.
A imagem do
adultério exemplifica-se com a história de Oseias, que é instruído a se casar
com uma prostituta para simbolizar os flertes de Israel com outros deuses.
A imagem
política exemplifica-se com 1 Samuel 8, quando os israelitas pedem que um rei
reine sobre eles. Deus diz a Samuel: “Atenda a voz do povo em tudo o que
eles pedirem, pois não é a você que eles estão rejeitando, mas a mim; não
querem mais que eu reine sobre eles. Assim como eles têm feito desde o dia em
que os tirei do Egito até hoje, abandonando-me e servindo outros deuses” (1
Samuel 8,7-8). Ainda que o rei não seja adorado explicitamente como um deus,
os israelitas confiaram no rei e não em Deus para que os protegessem, e isso é
idolatria.
Observemos,
entretanto, que Deus permite que Israel tenha reis desde que eles não o
substituam. Em sentido geral, a idolatria é quando as pessoas dão uma
quantidade “desordenada” de confiança ou lealdade a algo outro que não Deus.
Por exemplo, Isaías acusa os israelitas de idolatria por colocarem a confiança
em uma aliança com o exército egípcio.
«A ideia de Weber e Marx de que nos tornamos dominados pelas nossas
próprias criações está embutida na crítica bíblica da idolatria.»
“Ai
daqueles que vão até o Egito em busca de ajuda e procuram apoio nos cavalos.
Eles confiam nos carros porque são numerosos e nos cavaleiros porque são muito
fortes, em vez de levar em consideração o Santo de Israel, em vez de consultar
a Javé” (Isaías 31,1). Isaías associa este afastamento para com Deus à confiança
idolátrica naquilo que se cria ao invés de se confiar no Criador: “O
egípcio é um homem e não um deus, seus cavalos são carne e não espírito”
(Isaías 31,3). Na visão bíblica, qualquer coisa criada pode ser um objeto de
idolatria.
Assim,
Paulo critica aqueles cujo “o deus deles é o ventre (...) e seus
pensamentos em coisas da terra” (Filipenses 3,19), e adverte contra a “cobiça
de possuir, que é uma idolatria” (Colossenses 3,5).
A ideia de Weber
e Marx de que nos tornamos dominados pelas nossas próprias criações
está embutida na crítica bíblica da idolatria.
Em 1 Samuel
8, quando o povo pede um rei para substituir a Deus, Samuel adverte-os de que o
rei levará os seus filhos para o exército e suas filhas as tomará como servas,
confiscará suas terras, cultivos e animais para o seu próprio benefício, e
finalmente “vocês mesmos serão transformados em escravos dele. Quando isso
acontecer, vocês se queixarão do rei que escolheram. Nesse dia, porém, Javé não
dará nenhuma reposta a vocês” (1 Samuel 8,17-18).
Dessa
forma, Jesus conta com uma longa tradição da idolatria como dominação ao
alertar: “Vocês não podem servir a Deus e às
riquezas” (Mateus 6,24). As
escrituras gregas deixam aqui sem tradução o termo aramaico “mamon” para
personificar o dinheiro como um deus, um deus que demanda serviço.
A ideia em Weber
e Marx de que objetos inanimados se tornam vivos ao tomar a vida de
nós também se encontra primeiramente na Bíblia.
O Salmo 115
diz: “Os ídolos deles são prata e ouro, obras de mãos humanas: têm boca e
não falam, têm olhos e não veem (...) Aqueles que os fazem ficam como
eles, todos aqueles que neles confiam!”
A
preocupação bíblica com a idolatria implica que os humanos são criaturas
espontaneamente adoradoras. Em Êxodo, os israelitas conseguiram ficar
somente um pouco menos que seis semanas com a ausência de Moisés antes de solicitarem
novos deuses para adorar: “Quando o povo notou que Moisés estava demorando
para descer da montanha, reuniu-se em torno de Aarão, e lhe disse: ‘Vamos! Faça
para nós um deus que caminhe à nossa frente’” (Êxodo 32,1).
O relato
do bezerro de ouro não é apenas um relato da capacidade humana de se
enganar, mas também da necessidade humana inerente de adorar. Este
reconhecimento permite uma descrição simpática da idolatria. Quando Paulo está
em Atenas, o Livro de Atos informa que ele “ficou revoltado ao ver a cidade
cheia de ídolos” (Atos 17,16). Mas ele também reconhece a idolatria dos
atenienses como prova de que estão em busca de sentido e, em última instância,
do verdadeiro Deus.
Weber explica a
necessidade básica humana de adorar em termos da necessidade de significado,
uma necessidade que nos leva inevitavelmente a fazer deuses. Ele é
pessimista na ideia de que podemos superar esta situação. Por outro lado, Marx
está convencido de que as pessoas cessarão de fazer deuses após a
revolução.
Uma vez que
os trabalhadores controlarem os meios de produção, o trabalho não mais estará
alienado de seus próprios produtos. Mas a revolução veio e fez do Estado
comunista um novo deus, ao qual dezenas de milhões de vidas foram sacrificadas.
Diferentemente de Weber e Marx, a Bíblia insiste que existe um Deus real, diferente de todos os deuses fabricados.
Não
precisamos criar deuses porque existe um Deus que nos criou, um Deus que
nos ama e que quer que construamos um reino de paz e justiça aqui na terra.
«Adoremos o dinheiro, e jamais teremos o suficiente.
Adoremos o nosso corpo, e sempre nos sentiremos feios.
Adoremos o poder, e sempre estaremos receosos.
E assim por diante.»
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DAVID FOSTER WALLACE (1962-2008): foi um romancista, contista e ensaísta norte-americano |
Em seu
famoso discurso de 2005 proferido na Kenyon College, o romancista David
Foster Wallace contou aos formandos: “Nas trincheiras diárias da vida
adulta, inexiste isso que se chama ateísmo. Não há essa coisa de não adorar. Todo
mundo adora. A única escolha que temos é o que adorar”. Wallace passa
então a dizer que o motivo que podemos ter para adorar um Deus verdadeiro
é que “praticamente todo o resto que adoramos irá nos devorar vivos”.
Adoremos o
dinheiro, e jamais teremos o suficiente. Adoremos o nosso corpo, e sempre nos
sentiremos feios. Adoremos o poder, e sempre estaremos receosos. E assim por
diante.
Como intuem
Weber, Marx e a Bíblia, evitar a idolatria não é tão simples quanto
fazer uma escolha pessoal para mudar as nossas atitudes de adoração.
A idolatria está inserida nos sistemas
econômicos, sociais e políticos inteiros que nos prendem. Em
um sistema injusto, somos todos idólatras e é preciso haver uma
transformação sistêmica para libertar as pessoas da falta de adoração.
Se não
existe o Deus verdadeiro, essa tarefa parece impossível. Mas como diz Jesus aos
discípulos: “Para os homens isso é impossível, mas para Deus tudo é possível”
(Mateus 19,26).
Referências usadas pelo tradutor:
BÍBLIA
SAGRADA: Edição Pastoral. São. Paulo: Paulus, 1990.
KLEIN,
Naomi. Sem logo: a tirania das marcas em um planeta vendido. Rio de
Janeiro: Record, 2002.
MARX, Karl.
Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2008.
MARX, Karl.
O capital. Livro I. São Paulo: Boitempo, 2013.
MAX, Weber.
A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. 6. reimpressão. São
Paulo: Companhia das Letras, 2004.
PAPA
FRANCISCO. Carta encíclica Lumen Fidei do sumo pontífice Francisco aos
bispos (…). Disponível aqui.
Acesso em: 9 jan. 2020.
PAPA FRANCISCO.
Exortação apostólica Evangelii Gaudium do Santo Padre Francisco ao
episcopado (…). Disponível aqui.
Acesso em: 9 jan. 2020.
WEBER, Max.
A ciência como vocação. In: Gerth,
H.; MILLS, C.W. From Max to Weber. Nova York: Free Press, 1946.
WEBER, Max.
Ensaios de sociologia. 5. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1982.
WEBER, Max.
A ciência como vocação. In: WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. 3. ed.
Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1974. p. 154-83.
Traduzido do inglês por Isaque Gomes Correa da reprodução
feita por La Croix International, em 08-01-2020.
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