«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

domingo, 31 de março de 2019

Quem com ferro fere, com ferro...

Auto de fé e linchamento

Roberto Romano*

Que não joguem livros à fogueira, como Savonarola,
sobretudo o volume da Constituição
GIROLAMO SAVONAROLA (1452-1498)
Padre dominicano que atou em Florença - ficou conhecido por suas profecias,
pela destruição de objetos de arte e artigos de origem secular e seus apelos
de reforma da Igreja Católica

Quem deseja salvar a Pátria deve pesar as próprias forças e fraquezas. Caso contrário pode acabar nas fogueiras. Após impor em Florença [Itália] um regime de medo para vencer os corruptos, Savonarola foi às chamas sob vaias. No afã de eliminar todo o luxo, o frade jogou livros ao fogo e abriu sendas para fatos espantosos do século 20 na Alemanha. Profeta cuja arma era o terror, ele não contou com o cansaço popular em sua higiene política.

Quem condena sem as regras do Direito morre sem direitos. Maquiavel fala contra os justiceiros: a corrupção é fato constante mesmo entre pessoas educadas para o bem. “Em todas as cidades e povos há e sempre houve os mesmos desejos e humores, sendo fácil para quem examina com diligência o passado prever o futuro de toda república e aplicar os remédios empregados pelos antigos ou, caso não se encontre nenhum usado por eles, imaginar outros novos segundo os acontecimentos” (Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio, livro I).

Ética é o sistema de atitudes e hábitos que se tornam “naturais”. O povo adere a valores positivos ou negativos. Ainda segundo Maquiavel, para mudar hábitos arraigados o governante deve fingir que o costume permanece mesmo quando a sua mudança é querida nos palácios. “Quem deseja reformar o estado de uma cidade, ser aceito e manter a satisfação de todo mundo, necessita manter pelo menos a sombra dos modos antigos, de tal jeito que possa parecer ao povo que não houve mudança nas ordens, embora as novas sejam inteiramente distintas das velhas. A grande maioria dos homens se contenta com as aparências como se fossem realidades e amiúde se deixa influenciar mais pelas coisas que parecem do que por aquelas que são” (Discursos, livro I).

Gabriel Naudé usa a mesma tese para justificar os golpes de Estado.

No Brasil surgem fogueiras acesas por êmulos de Savonarola. Real ou imaginária, a corrupção é amaldiçoada por hábito, não pelos fatos. Quem estuda o empreendimento italiano chamado Mãos Limpas sabe do que falo. De tanto exorcizar a corrupção, a massa hipnotizada se contenta em moer pessoas, sem buscar novas saídas políticas e jurídicas. Brasileiros em massa assumem costumes hostis à democracia e ao Estado de Direito. Um deles é o vezo de atacar, antes do julgamento legal, reputações de acusados.

Lembremos o caso da Escola Base. A lei de Lynch cresce nas redes “sociais”, atos vis ocorrem sem informações corretas e prudência. Na internet se cumpre agora a profecia de Diderot, o grande enciclopedista do século 18:

“Temos na sociedade tantos impertinentes papagaios que falam, que falam,
que falam sem saber o que dizem, e mostram tanto prazer quando expandem o mal, que o maledicente ou caluniador consegue num dia mil cúmplices”
(Apologia do Padre Raynal).

Não devemos mascar as palavras: quem banaliza as doutrinas sobre o bem gera o mal.
DENIS DIDEROT (1713-1784):
Filósofo e escritor francês, notabilizou-se por ser o cofundador, editor chefe e contribuidor
da famosa Encyclopédie (Enciclopédia) no período do Iluminismo

O costume faz dos indivíduos impiedosas bocas do Destino. O dogmatismo das massas sustenta as piores ditaduras, à direita e à esquerda. “Nos últimos 60 anos, aproximadamente 1,5 milhão de brasileiros tomaram parte em linchamentos. No Brasil, as massas rebeladas matam, ou tentam matar, mais de um suspeito por dia” (Latin America, Awash in Crime, Citizens Impose Their Own Brutal Justice, em The Wall Street Journal, dezembro, 2018).

Os desonestos retiram das mesas o alimento necessário à vida. Larápios públicos ou particulares merecem punições. Movimentos surgiram para a luta contra o roubo dos erários. O Instituto Não Aceito Corrupção, liderado por Roberto Livianu, reúne um programa livre de partidos ou ideologias. Trata-se, naquele coletivo, de pesquisar os fatos em amplas dimensões, além de empreender análises para reduzir a sua efetividade social e política. Temos ali um esforço que merece apoio, pois combate os malefícios da corrupção sem preconceitos. Para vencer qualquer doença é preciso estudo, técnica médica, diálogo respeitoso entre o clínico e a pessoa por ele assistida. Diagnósticos parciais ou apressados causam mais dores ou mortes. Mazelas exigem cuidados não genéricos. Apelar para um só remédio significa piorar o malefício.

O ressentimento das massas é desafio, impede soluções.
Lutar contra a corrupção requer o contributo dos três Poderes e
de setores lúcidos na sociedade.
Isoladas, a promotoria ou polícia produzem resultados parciais, inoperantes.

Certas iniciativas da Justiça têm falhas na busca de combater as práticas corrosivas. A entrevista sobre a prisão de Michel Temer concedida pelo Ministério Público e pela Polícia Federal me preocupa. Antes do julgamento definitivo os acusados nela recebem epítetos infamantes, como “líderes de quadrilha”, e adjetivos depreciativos. Se posteriores à condenação definitiva, tais palavras já seriam indevidas. Até contra cidadãos de quem foi retirado o livre movimento é vetada a injúria. Acusados servem como bode expiatório para os acusadores. As falas com apodos aos políticos mostram o costume de mover ressentimentos populares.
HERÁCLITO FONTOURA SOBRAL PINTO (1893-1991):
jurista brasileiro, árduo defensor dos direitos humanos, especialmente durante a ditadura do
Estado Novo e a ditadura militar de 1964 em diante

Não é de hoje que tal hábito torce ações judiciais no Brasil. Sobral Pinto e demais causídicos, nas ditaduras do século 20, enfrentaram parquets ágeis na hora de acusar, lentos ao corrigir erros. Recordo o tratamento cruel aplicado ao magnífico reitor da Universidade de Santa Catarina dr. Luiz Carlos Cancellier, sem provas contra ele. A UFMG foi invadida e seus dirigentes, humilhados, sem provas. A corrupção (lembro Savonarola) não é vencida com autos de fé, mas com pesquisas minuciosas, cautela, respeito à Carta Magna. O linchamento impera se existe a guerra de todos contra todos.

No Estado de Direito a ira das multidões é afastada e nunca seguida pelos que têm o múnus de zelar por todos e cada um dos cidadãos. Que eles não joguem livros à fogueira, como o dominicano, sobretudo o volume da Constituição.

* ROBERTO ROMANO DA SILVA possui graduação em Filosofia pela Universidade de São Paulo (1973) e doutorado na mesma área pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (1978 – Paris, França). Atualmente é professor titular da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em Filosofia Ética e Política, além de História da Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: ética, democracia- ciência política, crise universitária, crise política, religião e universidade pública.

Fonte: O Estado de S. Paulo – Espaço aberto/Opinião – Domingo, 31 de março de 2019 – Pág. A2 – Internet: clique aqui.

Jovens sem futuro!

Desalento triplica entre os mais jovens
devido o desemprego

Douglas Gavras

Total de trabalhadores com até 24 anos que desistiram de procurar emprego saltou de 600 mil, em 2014, para 1,8 milhão no ano passado

O mercado de trabalho após a crise atingiu em cheio os jovens brasileiros. Além de o desemprego dessa faixa etária ter batido em 27,2% no fim do ano passado, o número de desalentados, os que desistiram de buscar emprego, triplicou desde 2014, entre os que têm até 24 anos. No fim de 2018, mais de 1,76 milhão de jovens estavam nessa condição.

Os números, da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad-Contínua), do IBGE, e compilados pela consultoria LCA, apontam que o desalento atingia 600 mil pessoas nessa faixa etária até setembro de 2015. A partir daí, quando a recessão já tinha se agravado e minado os empregos, os jovens desalentados subiram para a casa do milhão.

Para o economista Cosmo Donato, da LCA, o aumento expressivo do desalento entre os brasileiros mais jovens é um sinal preocupante, porque o trabalhador que está entrando no mercado seria um dos últimos a desistir de procurar emprego, se a economia estivesse em uma situação melhor. “Há um número crescente de pessoas que não acredita que irá encontrar um emprego, por isso desiste até mesmo de procurar.”

[Comentário pessoal: Isso é um verdadeiro crime! Retirar da juventude a esperança, a crença em um futuro melhor, em uma realização pessoal... Jovens desmotivados são o terreno mais fértil para a ociosidade, o acesso ao álcool e às drogas! Estamos desperdiçando o maior tesouro de uma nação: seus jovens!!! E não adiante, em nada, ficar buscando os “culpados” pela situação no passado! É preciso iniciar, urgentemente, uma política de recuperação do emprego, visando, especialmente, os mais jovens.]

Ele lembra que as condições para os mais jovens no mercado acabam sendo mais difíceis. Se no ano passado, a desocupação para todos os trabalhadores ficou em 11,6%, a dos jovens era de 27,2%, mesmo resultado de 2017. Até quando a taxa de desocupação, antes da crise, estava em 6%, a dos mais jovens não ficou abaixo de 14%.

A paulistana Thaiane Giovanini, de 18 anos, só queria começar a faculdade. Mas, para cursar Biomedicina, ela precisa de um emprego. “Fiquei um ano e meio em uma loja, como menor aprendiz, que era o único tipo de vaga que eles tinham para oferecer. Depois de completar 18 anos e o contrato acabar, fiquei sem rumo”, conta.

Ela diz que até tem conseguido ser chamada para entrevistas de emprego nos últimos meses, mas sempre esbarra na falta de experiência e de formação.
Parece que estou andando em círculos.
Não me contratam, por não ter continuado estudando,
e não consigo fazer faculdade, por não ter emprego.”
Sem emprego, Thaiane Giovanini não consegue estudar
Foto: Douglas Gavras/Estadão

“O que aconteceu é que a crise fragilizou ainda mais esse grupo. A crise atingiu chefes de família, corroeu a renda das famílias e jogou para o mercado diversas pessoas que antes poderiam se dar ao luxo de só estudar”, diz Donato. Pela falta de experiência, eles acabam formando a faixa em que o desemprego mais vai demorar a cair.

O desalentado gostaria de trabalhar, mas acha que não vai conseguir um emprego por diversos motivos: pela idade, pela baixa experiência, pela impressão de que o mercado de trabalho ainda está muito ruim.

E tem a questão do custo de procurar emprego. O jovem tem de gastar com transporte, estar disponível para bater perna e fazer entrevistas. É uma atividade que demanda tempo e dinheiro e, se ele não acredita que vai encontrar, acaba nem procurando”, lembra Daniel Duque, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getúlio Vargas (Ibre/FGV).

Salário menor

Além do impacto no desalento, a renda dos trabalhadores com até 24 anos caiu quase 8% nos últimos quatro anos – uma perda maior do que a das demais faixas, já considera a inflação, pelo Índice de Preços ao Consumidor - Amplo (IPCA). Em 2014, antes da recessão e quando a taxa de desemprego para os jovens era quase a metade do nível atual, esses trabalhadores ganhavam, em média, R$ 110 a mais do que hoje.

Com a crise, os trabalhadores mais experientes se viram obrigados a buscar vagas com remuneração que antes era paga para os iniciantes. Para os mais jovens, quando a oportunidade aparecia, o salário era ainda menor do que antes, diz Duque.

“Eu nem espero mais conseguir um emprego do mesmo nível de quem entrou antes no mercado”, diz Bruno Santos, de 19 anos. Ele, que trabalhou por dois anos e meio como empregado informal em um depósito de material de construção. Agora, que terminou o ensino médio, busca uma oportunidade com a carteira assinada. “Não desisto, mas desanimo a cada dia.”

Dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) ajudam a entender a situação difícil de quem busca o primeiro emprego. Eles apontam que houve uma queda de 41% no número de vagas formais abertas para quem nunca tinha trabalhado antes.

Duque lembra que os jovens que tentam entrar no mercado de trabalho desde 2015 terão mais dificuldade de se equiparar a quem começou a trabalhar em períodos de economia aquecida. “É como largar em uma maratona no último pelotão.”

Fonte: O Estado de S. Paulo – Economia – Sábado, 30 de março de 2019 – Pág. B4 – Internet: clique aqui.

Em fevereiro, número de desempregados sobe
e volta a romper patamar de 13 milhões

Daiane Costa

Taxa de desemprego ficou em 12,4%.
Quantidade de pessoas fora da força de trabalho é recorde
No Vale do Anhangabau, em São Paulo, fila gigantesca de pessoas em busca de
uma vaga de emprego durante um mutirão que durou quatro dias.
Foram oferecidas seis mil postos de trabalho - 26 de março de 2019
Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

No momento em que as projeções para a expansão da economia brasileira em 2019 são reduzidas e as sondagens mostram que empresários estão menos dispostos a investir e contratar, o número de desempregados voltou a romper o patamar dos 13 milhões em fevereiro - desde o trimestre encerrado em maio do ano passado o desemprego não atingia tantas pessoas. As informações são da Pnad Contínua, divulgada pelo IBGE nesta sexta-feira.

A taxa de desemprego ficou em 12,4% no trimestre encerrado em fevereiro. Nos três meses de setembro a novembro, que servem como base de comparação, a taxa havia ficado em 11,6% e o desemprego atingido 12,2 milhões de pessoas. Há um ano, a taxa estava mais alta: era de 12,6%.

A população ocupada, estimada em 92,1 milhões de pessoas, caiu 1,1% ou menos um milhão em relação ao trimestre encerrado em novembro. Mas cresceu no mesmo ritmo na comparação com o trimestre encerrado em fevereiro do ano passado. Dos trabalhadores ocupados, 39,676 milhões estavam na informalidade. Isso representa 43% do total da força do trabalho no país.

[Comentário pessoal: os números acima, sobre a informalidade dos trabalhadores brasileiros revela algo preocupante: o mercado de trabalho brasileiro está precarizado! É um mercado incapaz de gerar empregos de boa qualidade, bons salários e carteira assinada, isto é, empregos onde os direitos do trabalhador sejam respeitados. Desse modo, é difícil vislumbrar uma real melhoria nas condições de vida da maioria da população do Brasil.]

Cimar Azeredo, coordenador de Trabalho e Rendimento do IBGE, explica que a alta da taxa já era esperada porque janeiro e fevereiro são dois meses de dispensa dos trabalhadores temporários contratados no fim do ano anterior.

Essas dispensas, este ano, ocorreram igualmente no setor público e no privado. No caso do público, a maioria das demissões foi de professores que não eram concursados. No setor privado, houve muitos desligamentos na indústria (-198 mil pessoas empregadas) em relação ao trimestre encerrado em novembro.

— Tal como a carteira de trabalho assinada, a indústria é um indicativo da atividade econômica. E houve dispensa significativa nesse setor, de trabalhadores homens e de baixa instrução — disse Cimar.

Por outro lado, o único grupo que cresceu foi o de transportes, alta de 133 mil pessoas em relação a novembro, puxada pelo setor de transporte de aplicativo, como Uber e Cabify.

— Basta você ter um carro para poder trabalhar, não disputa vaga com ninguém — explica o coordenador do IBGE.

Segundo o IBGE, no trimestre encerrado em fevereiro, um total de 65,7 milhões de pessoas não estavam trabalhando nem buscando uma vaga. Esse número representa uma alta de 1,2% de brasileiros nessas condições em relação ao mesmo trimestre de 2018. É um número recorde de pessoas fora da força de trabalho.

A taxa de subutilização da força foi de 24,6%, outra alta em relação ao trimestre anterior, quando havia ficado em 23,9%. A população subutilizada, estimada em 27,9 milhões de pessoas, é recorde para a série histórica da pesquisa, iniciada em 2012.

Fonte: O Globo – Economia – Sexta-feira, 29 de março de 2019 – 17h29 (Horário de Brasília – DF) – Internet: clique aqui.

sábado, 30 de março de 2019

4º Domingo da Quaresma – Ano C – Homilia

Evangelho: Lucas 15,1-3.11-32

Naquele tempo:
1 Os publicanos e pecadores aproximavam-se de Jesus para o escutar.
2 Os fariseus, porém, e os mestres da Lei criticavam Jesus. «Este homem acolhe os pecadores
e faz refeição com eles.»
3 Então Jesus contou-lhes esta parábola:
11 «Um homem tinha dois filhos.
12 O filho mais novo disse ao pai: “Pai, dá-me a parte da herança que me cabe”. E o pai dividiu os bens entre eles.
13 Poucos dias depois, o filho mais novo juntou o que era seu e partiu para um lugar distante. E ali esbanjou tudo numa vida desenfreada.
14 Quando tinha gasto tudo o que possuía, houve uma grande fome naquela região, e ele começou a passar necessidade.
15 Então foi pedir trabalho a um homem do lugar, que o mandou para seu campo cuidar dos porcos.
16 O rapaz queria matar a fome com a comida que os porcos comiam, mas nem isto lhe davam.
17 Então caiu em si e disse: “Quantos empregados do meu pai têm pão com fartura, e eu aqui, morrendo de fome.
18 Vou-me embora, vou voltar para meu pai e dizer-lhe: “Pai, pequei contra Deus e contra ti;
19 já não mereço ser chamado teu filho. Trata-me como a um dos teus empregados”.
20 Então ele partiu e voltou para seu pai. Quando ainda estava longe, seu pai o avistou e sentiu compaixão. Correu-lhe ao encontro, abraçou-o, e cobriu-o de beijos.
21 O filho, então, lhe disse: “Pai, pequei contra Deus e contra ti. Já não mereço ser chamado teu filho”.
22 Mas o pai disse aos empregados: “Trazei depressa a melhor túnica para vestir meu filho. E colocai um anel no seu dedo e sandálias nos pés.
23 Trazei um novilho gordo e matai-o. Vamos fazer um banquete.
24 Porque este meu filho estava morto e tornou a viver; estava perdido e foi encontrado”. E começaram a festa.
25 O filho mais velho estava no campo. Ao voltar, já perto de casa, ouviu música e barulho de dança.
26 Então chamou um dos criados e perguntou o que estava acontecendo.
27 O criado respondeu: “É teu irmão que voltou. Teu pai matou o novilho gordo, porque o recuperou com saúde”.
28 Mas ele ficou com raiva e não queria entrar. O pai, saindo, insistia com ele.
29 Ele, porém, respondeu ao pai: “Eu trabalho para ti há tantos anos, jamais desobedeci a qualquer ordem tua. E tu nunca me deste um cabrito para eu festejar com meus amigos.
30 Quando chegou esse teu filho, que esbanjou teus bens com prostitutas, matas para ele o novilho cevado”.
31 Então o pai lhe disse: “Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu.
32 Mas era preciso festejar e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto e tornou a viver; estava perdido, e foi encontrado”.»
"O RETORNO DO FILHO PRÓDIGO"
Pintura à óleo do holandês Rembrandt Harmensz van Rijn, 1669
Museu Hermitage - São Petersburgo (Rússia)

JOSÉ MARÍA CASTILLO
Teólogo espanhol

EM QUAL DEUS EU CREIO?

Esta parábola quer nos ensinar até que ponto a bondade de Deus não tem limites. Porém, além disso, a parábola é a crítica que Jesus faz ao «Deus dos fariseus». E também ao farisaísmo. Porque existem duas maneiras de compreender Deus e de relacionar-se com Ele:
a) O «Deus dos fariseus» e o
b) o «Deus dos perdidos».

O Deus dos fariseus é o «Deus-patrão». O Deus dos perdidos é o «Deus-acolhedor». O Deus-patrão está representado no pai, tal como sentia o filho mais velho, o complicador, o obediente. O Deus-acolhedor está representado no pai, tal como sentiu o filho mais novo, o perdido, o fracassado, o arruinado.

Se alguém vê Deus como um «patrão», relaciona-se com Ele com a mentalidade daquele que vive cumprindo um contrato com seu patrão (do ut des = dou para que tu dês – é uma norma de contrato oneroso bilateral), que se traduz em «obediência» perfeita. É a mentalidade do que se submete ao patrão para obter dele a devida recompensa. É isso que o filho mais velho (o fariseu) joga na cara do pai quando vê o filho perdido recebido com abraços, festa e banquete, depois das muitas sem-vergonhices que cometeu.

Há pessoas que «creem» em Deus para «obter» desse Deus aquilo que pode. É o tipo de pessoa que «se submete» a Deus para que Deus lhe ajude nesta vida (quando isso seja necessário) e para ter sempre a esperança de que a morte seja vista como algo suportável. De um Deus assim, brota um perfeito fariseu: observante e, até, exemplar, porém sem coragem de bondade.

Isso explica por que há tantos cristãos tão observantes de normas e ritos sagrados, porém com muito pouca sensibilidade aos sofrimentos dos outros.

JOSÉ ANTONIO PAGOLA
Biblista espanhol

QUEM ENTRARÁ NA FESTA?

Poucas vezes, um título mal orientado desfocou tanto um relato como o desta incomparável parábola mal intitulada de «filho pródigo».

Na realidade, trata-se da parábola de um pai bondoso que deseja conseguir um verdadeiro lar, mas não obtém sucesso. Às vezes, porque o filho mais novo vai embora para viver sua aventura. Outras, porque o filho mais velho não quer entrar e acolher o irmão. Esta é a história dos seres humanos. A tragédia de um lar que parece impossível construir.

O peso de uma leitura tradicional unilateral e o desacerto de um mal título atraíram nossa atenção sobre a fitura do filho mais novo. No entanto, na dinâmica do pensamento de Jesus, é, sem dúvida, a conduta do mais velho que deve, sobretudo, interpelar-nos.

A parábola nos decreve um forte contraste. Ao final do relato, o filho mais novo, o pecador que se havia distanciado do lar, termina celebrando uma grande festa junto do pai. Ao contrário, o filho mais velho, o homem reto e observante que jamais fugiu de casa e jamais desobedeceu uma ordem de seu pai, fica fora do lar, sem participar da festa.

O ensinamento de Jesus é desconcertante. O verdadeiramente decisivo para entrar na festa final é saber reconhecer os nossos erros, crer no amor de um Pai e, consequentemente, saber amar e perdoar os irmãos e irmãs.

 Esta é a tragédia do irmão mais velho. Faz tudo bem. Não foge de casa. Sabe cumprir todas as ordens de seu pai. Porém, não sabe amar. Não sabe compreender o amor de um pai. Não sabe compreender e amar o irmão. Incapacita a si mesmo para celebrar uma festa fraternal.

Um homem ou mulher pode entrar em uma vida de pecado, sentir a escravidão do mal, viver a experiência do vazio da vida e descobrir novamente a necessidade de uma vida nova, diferente e melhor, sempre possível pelo perdão gratuito de Deus.

E, ainda que pareça paradoxal, pode-se viver uma vida rotineira de prática e observância religiosa, sem verdadeira fé em Deus Pai e sem amor fraterno aos irmãos.

Aqueles que creem não deveriam esquecer jamais a crítica constante de Jesus a uma «prática religiosa», falsamente entendida como acumulação de méritos que nos dá segurança perante o juízo de Deus e que nos permite julgar os outros de maneira depreciativa e autossuficiente, desprezando sua conduta e negando-lhes acolhida e perdão.

Uma coisa é clara. Somente entrará na festa final quem compreender que Deus é Pai de todos e quem souber acolher, compreender e perdoar seus irmãos e irmãs.

Traduzido do espanhol por Telmo José Amaral de Figueiredo.

Fontes: CASTILLO, José María. La religión de Jesús: comentario al Evangelio diario – ciclo C (2018-2019). Bilbao: Desclée De Brouwer, 2018, páginas 142-143; Sopelako San Pedro Apostol Parrokia – Sopelana – Bizkaia (Espanha) – J. A. Pagola – Ciclo C (Homilías) – Internet: clique aqui.

sexta-feira, 29 de março de 2019

Mais pobres pagarão a conta!

Reforma da Previdência de Bolsonaro sacrifica
os mais pobres

Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
CNBB

Reunidos entre os dias 26 e 28 de março na sede provisória da
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em Brasília (DF),
os bispos que integram o CONSELHO PERMANENTE da entidade
emitiram uma mensagem na qual demonstram preocupação com a
Reforma da Previdência – PEC 06/2019
Conselho Permanente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) reunido
Brasília - DF

No texto, os bispos reafirmam que o sistema da Previdência Social possui uma intrínseca matriz ética. “Ele é criado para a proteção social de pessoas que, por vários motivos, ficam expostas à vulnerabilidade social (idade, enfermidades, acidentes, maternidade…), particularmente as mais pobres. Nenhuma solução para equilibrar um possível déficit pode prescindir de valores ético-sociais e solidários” (Nota da CNBB, março/2017).

Eles reconhecem que o sistema da Previdência precisa ser avaliado e, se necessário adequado à Seguridade Social. Alertam, no entanto, que as mudanças contidas na PEC 06/2019:
* sacrificam os mais pobres,
* penalizam as mulheres e os trabalhadores rurais,
* punem as pessoas com deficiência e
* geram desânimo quanto à seguridade social, sobretudo, nos desempregados e nas gerações mais jovens.

Apontam também que o discurso de que a reforma corta privilégios precisa deixar claro:
* quais são esses privilégios,
* quem os possui e
* qual é a quota de sacrifício dos privilegiados, bem como
* a forma de combater a sonegação e de cobrar os devedores da Previdência Social.

“A conta da transição do atual regime para o regime de capitalização, proposto pela reforma, não pode ser paga pelos pobres”, reforçam.

Ainda na mensagem, os bispos fazem um apelo ao Congresso Nacional para que favoreça o debate público sobre esta proposta de reforma da Previdência que incide na vida de todos os brasileiros. “Conclamamos as comunidades eclesiais e as organizações da sociedade civil a participarem ativamente desse debate para que, no diálogo, defendam os direitos constitucionais que garantem a cidadania para todos, dizem em um dos trechos.

Eis a mensagem.
Presidência da CNBB (da direita para a esquerda):
Dom Leonardo Ulrich Steiner, Dom Sergio da Rocha e Dom Murilo Krieger

Mensagem do Conselho Permanente da CNBB

Serás libertado pelo direito e pela justiça” (cf. Is 1,27)

Nós, bispos do Conselho Permanente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil-CNBB, reunidos em Brasília-DF nos dias 26 a 28 de março de 2019, assistidos pela graça de Deus, acompanhados pela oração da Igreja e fortalecidos pelo apoio das comunidades eclesiais, esforçamo-nos por cumprir nossa missão profética de pastores no anúncio da Boa Nova de Jesus Cristo e na denúncia de acontecimentos e situações que se opõem ao Reino de Deus.

A missão da Igreja, que nasce do Evangelho e se alimenta da Eucaristia, orienta-se também pela Doutrina Social da Igreja. Esta missão é perene e visa ao bem dos filhos e filhas de Deus, especialmente, dos mais pobres e vulneráveis, como nos exorta o próprio Cristo: “Todas as vezes que fizestes isso a um destes pequeninos que são meus irmãos, foi a mim que o fizestes” (Mt 25,40). Por isso, nosso olhar se volta constantemente para a realidade do país, preocupados com propostas e encaminhamentos políticos que ameacem a vida e a dignidade dos pequenos e pobres.

Dentre nossas atuais preocupações, destaca-se a reforma da Previdência – PEC 06/2019 – apresentada pelo Governo para debate e aprovação no Congresso Nacional. Reafirmamos que “o sistema da Previdência Social possui uma intrínseca matriz ética. Ele é criado para a proteção social de pessoas que, por vários motivos, ficam expostas à vulnerabilidade social (idade, enfermidades, acidentes, maternidade…), particularmente as mais pobres. Nenhuma solução para equilibrar um possível déficit pode prescindir de valores ético-sociais e solidários” (Nota da CNBB, março/2017).

Reconhecemos que o sistema da Previdência precisa ser avaliado e, se necessário, adequado à Seguridade Social. Alertamos, no entanto, que as mudanças contidas na PEC 06/2019 sacrificam os mais pobres, penalizam as mulheres e os trabalhadores rurais, punem as pessoas com deficiência e geram desânimo quanto à seguridade social, sobretudo, nos desempregados e nas gerações mais jovens. O discurso de que a reforma corta privilégios precisa deixar claro quais são esses privilégios, quem os possui e qual é a quota de sacrifício dos privilegiados, bem como a forma de combater a sonegação e de cobrar os devedores da Previdência Social. A conta da transição do atual regime para o regime de capitalização, proposto pela reforma, não pode ser paga pelos pobres. Consideramos grave o fato de a PEC 06/2019 transferir da Constituição para leis complementares regras previdenciárias como idades de concessão, carências, formas de cálculo de valores e reajustes, promovendo desconstruções da Constituição Cidadã (1988).

Fazemos um apelo ao Congresso Nacional que favoreça o debate público sobre esta proposta de reforma da Previdência que incide na vida de todos os brasileiros. Conclamamos as comunidades eclesiais e as organizações da sociedade civil a participarem ativamente desse debate para que, no diálogo, defendam os direitos constitucionais que garantem a cidadania para todos.

Ao se manifestar sobre estas e outras questões que dizem respeito à realidade político-social do Brasil, a Igreja o faz na defesa dos pobres e excluídos. Trata-se de um apelo da espiritualidade cristã, da ética social e do compromisso de toda a sociedade com a construção do bem comum e com a defesa do Estado Democrático de Direito.

O tempo quaresmal, vivido na prática da oração, do jejum e da caridade, nos leva para a Páscoa que garante a vitória, em Jesus, sobre os sofrimentos e aflições. Anima-nos a esperança que vem de Cristo e de sua cruz, como ensina o papa Francisco: “O triunfo cristão é sempre uma cruz, mas cruz que é, simultaneamente, estandarte de vitória, que se empunha com ternura batalhadora contra as investidas do mal” (Evangelii Gaudium, 85).

Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, interceda por todos os brasileiros e brasileiras!

Brasília-DF, 28 de março de 2019

Cardeal Sergio da Rocha
Arcebispo de Brasília
Presidente da CNBB

Dom Murilo S. R. Krieger
Arcebispo de Salvador
Vice-Presidente da CNBB

Dom Leonardo Ulrich Steiner
Bispo Auxiliar de Brasília
Secretário-Geral da CNBB

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Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Sexta-feira, 29 de março de 2019 – Internet: clique aqui.

quinta-feira, 28 de março de 2019

Bolsonaro manda festejar o crime

E nós, vamos assistir passivos?

Eliane Brum
Repórter, documentarista e Escritora

Ao determinar a comemoração do golpe militar de 1964, o antipresidente busca manter o ódio ativo e barrar qualquer possibilidade de justiça
Bolsonaro bate continência aos militares
ESTEBAN FELIX (AP)

O próximo domingo, 31 de março, marca 55 anos do golpe militar de 1964. Em nenhum outro momento depois da retomada da democracia essa data encontrou o Brasil sob tanta tensão quanto neste ano. A memória da ditadura está sob ataque. E uma tentativa de fraudar a história, apagando os crimes cometidos pelos agentes do Estado, está em curso. Não mais como uma ofensiva pelos subterrâneos, que nunca cessou de existir, mas como ato de governo, o que faz toda a diferença. Toda.

Jair Bolsonaro (PSL) já determinou “comemorações devidas” nos quartéis. No 31 de março passado, quando ainda era só candidato a candidato, ele publicou um vídeo no Facebook: as imagens o exibiam estourando um rojão em frente ao Ministério da Defesa, com uma faixa agradecendo os militares “por não terem permitido que o Brasil se transformasse em Cuba”. “O 7 de Setembro nos deu a independência e o 31 de Março, a liberdade”, afirmou.

Sim, o atual presidente defende que a tomada do poder pela força pelos militares:
* deixando o Brasil sem eleições diretas para presidente de 1964 a 1989;
* rasgando a Constituição e estabelecendo a censura;
* obrigando alguns dos melhores quadros do Brasil a amargar o exílio;
* prendendo,
* sequestrando e
* torturando, inclusive crianças,
* e matando opositores é motivo de comemoração.
E, como presidente da República, determinou que os crimes contra a humanidade, portanto imprescritíveis, que já deveriam ter sido devidamente punidos, sejam agora comemorados oficialmente pelas Forças Armadas.
Técnica de tortura conhecida como "pau de arara", utilizada no Brasil
durante a ditadura militar

Parem de ler agora. E pensem no que significa para um país comemorar o sequestro, a tortura e o assassinato de civis por agentes do Estado, assim como o que significa comemorar um golpe infligido por parte das Forças Armadas. É possível isso acontecer, como ato de Governo, e o Brasil seguir reconhecido como uma democracia?

Não. Simplesmente não é possível. Bolsonaro, é preciso dizer, nunca fingiu ser o que não é. Há vídeos dele dizendo que os militares mataram foi pouco. “Tinham que ter matado pelo menos uns 30 mil” e “se morrerem inocentes tudo bem”, afirma num deles. Seu herói declarado, Carlos Alberto Brilhante Ustra, é um torturador, reconhecido pela justiça brasileira como torturador, que chegou a levar crianças para ver os pais nus e arrebentados. Bolsonaro, quando candidato, ameaçou mandar opositores para a “ponta da praia”, referindo-se a uma base da Marinha usada como local de tortura e desova de cadáveres pelo regime de exceção. Disse também que faria uma “faxina” e que os opositores de seu Governo ou “vão para fora ou vão para a cadeia”.
Carlos Alberto Brilhante Ustra
coronel que chefiou o DOI-CODI de São Paulo durante a ditadura militar e foi
torturador - herói na opinião de Jair  Bolsonaro!

Pelo menos três opositores já afirmaram publicamente que foram obrigados a deixar o Brasil por ameaças de morte. Polícia, Ministério Público e judiciário se mostraram incapazes de protegê-los e garantir a sua segurança. Nesta área, Bolsonaro está fazendo exatamente o que disse que faria. Ele nunca deu motivos para que a população duvide do que diz que fará com os opositores.

A questão, agora, é o que as instituições vão fazer com o anúncio de Bolsonaro, apresentado pelo seu porta-voz, general Otávio Rêgo Barros. É possível ainda esperar algo das instituições amedrontadas, quando não coniventes? Como esperar algo quando o Supremo Tribunal Federal é presidido por Dias Toffoli, que no ano passado corrompeu a história ao declarar que o que aconteceu em 1964 e cassou os direitos da população brasileira foi um “movimento”, não um golpe?

A Defensoria Pública da União e a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão já se manifestaram. Mas ainda é pouco. E ainda é tímido, diante da enormidade do que significa comemorar o crime como ato de Governo. Não apenas um crime comum, mas aquele que é considerado crime contra a humanidade. A Comissão da Verdade concluiu que:
* a ditadura matou ou desapareceu com 434 suspeitos de dissidência política e com mais de 8.000 indígenas.
* Entre 30 e 50 mil pessoas foram torturadas.

Se as instituições e a sociedade brasileiras assistirem apáticas ao presidente, Governo e Forças Armadas comemorarem o golpe militar que sequestrou a democracia por 21 anos e deixou um rastro de mais de 200 pessoas desaparecidas, cujos pais e filhos não têm sequer um corpo para enterrar, alcançaremos um outro nível de nosso trajetória acelerada rumo ao autoritarismo. Daí em diante, qualquer pessoa que ousar dizer que esse país vive numa democracia estará desrespeitando a inteligência e a dignidade de uma nação inteira. Daí em diante, qual será o limite para aqueles que fazem apologia do crime ocupando cargos públicos? Qual será o limite para um presidente que faz golden shower na lei? [= mijar em cima da lei!]

Uma pesquisa do Ibope mostrou que Bolsonaro já é o presidente mais impopular em início de primeiro mandato desde 1995. Os 89 milhões de brasileiros que não votaram em Bolsonaro, seja porque votaram no candidato de oposição, seja porque se abstiveram de votar ou votaram branco ou nulo, somados ao expressivo contingente que já se arrependeu do voto no capitão reformado, terá que compreender que a luta pela democracia é difícil – e não pode ser terceirizada. É isso. Ou aceitar que a exceção, que já se infiltrou no cotidiano e avança rapidamente, siga tomando conta da vida até o ponto em que já se tenha perdido inclusive o direito aos fatos, como Bolsonaro e os militares pretendem neste 31 de Março.

Não queiram viver num país em que a autoverdade, aquela que dá a cada um a prerrogativa de inventar seus próprios fatos, impere. Bolsonaro e suas milícias digitais criaram a autoverdade, mas ela só será imposta a um país inteiro se a população brasileira se submeter a ela. Afirmar que o golpe de 1964 não foi um golpe é mentira de quem ainda teme responder pelos crimes que cometeu, como seus colegas responderam em países que construíram democracias mais fortes e onde a população conhece a sua história. Não há terror maior do que ser submetido a uma realidade sem lastro nos fatos, uma narrativa construída por perversos. O corpo de cada um passa a pertencer inteiramente aos carcereiros.
Conflito entre estudantes da Universidade Federal de Brasília (UnB)
no período eleitoral em 2018: pró e contra a candidatura de Jair Bolsonaro

Bolsonaro precisa manter o país queimando em ódio. Essa foi sua estratégia para ser eleito, essa segue sendo a sua estratégia para se manter no poder. Ele não tem outra. Se deixar de ser o incendiário que é e virar presidente, ele se arrisca a perder sua popularidade. Sua estratégia é governar apenas para as suas milícias, capazes de manter o terror, parte delas somente por diversão.

Depois de ser o candidato “antissistema”, Bolsonaro é agora o antipresidente. Esta novidade, a do antipresidente, é inédita no Brasil.
O antipresidente Bolsonaro é aquele que boicota seu próprio programa
e enfraquece seu próprio ministério, mantendo,
também dentro do Governo, como definiu o jornalista Afonso Benites,
a guerra do todos contra todos.

Bolsonaro só pode existir num país mergulhado numa guerra interna. Então, trata de alimentar essa guerra. A determinação oficial de comemorar o golpe de 1964 é parte dessa estratégia. Vamos ver o quanto os generais estrelados do seu governo são capazes de enxergar a casca de banana. Ou se, ao contrário, escolherão deslizar por ela apenas como desagravo aos anos em que ficaram acuados, temendo que o Brasil finalmente fizesse justiça, julgando os crimes da ditadura como fizeram os países vizinhos.

O atual presidente do Brasil é o mesmo político que, em 2009, botou um cartaz na porta do seu gabinete:Desaparecidos do Araguaia. Quem procura osso é cachorro”. A imagem era a de um cachorro com um osso atravessado entre os dentes. Na época, uma década atrás, o ato de Bolsonaro era noticiado com o aposto: o único parlamentar do Congresso que defende abertamente a ditadura. Não mais, como é possível constatar.

A frase foi lembrada por manifestantes no Chile, na semana passada. Os chilenos protestavam contra a visita de Bolsonaro ao seu país e queriam despachá-lo imediatamente de volta para casa. Essa casa é o Brasil, onde defensores da ditadura não só são aceitos como também são eleitos e chamados de “mito”.

Os chilenos, que mandaram seus ditadores e torturadores para a cadeia, consideraram inaceitável que um defensor da ditadura fosse recebido pelo presidente Sebastián Piñera. Deputados chilenos pediram que Bolsonaro fosse declarado “persona non grata”. O presidente do Senado, Jaime Quintana Leal, recusou-se comparecer a um almoço em homenagem ao brasileiro. “Admiradores de Pinochet não são bem-vindos no Chile”, afirmou. Bolsonaro já disse no passado que o general ditador Augusto Pinochet “fez o que devia ter feito”. Ou seja: assassinar 3.000 civis.

[Comentário pessoal: como uma pessoa dessas, ainda, pode se autodenominar católico ou evangélico ou cristão, que seja?! É uma aberração! E, mais incrível que isso, é o fato de pastores evangélicos, padres e religiosos católicos terem apoiado, abertamente, uma figura dessas para Presidente do Brasil!!! Somente a cegueira política, histórica e ética pode explicar algo desse tipo!]
Mulheres e ativistas LGBT fazem protesto em Santiago contra a visita de Bolsonaro ao Chile 
Foto: MARTIN BERNETTI/AFP

Diante dos protestos, Bolsonaro afirmou: “Protestos assim existem onde quer que eu vá, mas o importante é que, no meu país, fui eleito por milhares de brasileiros”. Milhões, já que devemos respeitar os números. Para os brasileiros que o elegeram, a sugestão de que os ossos das mais de 200 pessoas desaparecidas do regime estão na boca de um cachorro foi – e continua sendo – aceitável. Não sentem nenhuma empatia pelos pais, mães, maridos, esposas e filhos que não têm sequer um túmulo onde chorar suas perdas. E que foram torturados por essa imagem de absoluto desrespeito. Mostram-se incapazes de compreender que um dia poderão ser os ossos de suas mães ou de seus filhos na boca do cachorro. Já os chilenos têm espanto. E têm vergonha. Vergonha por nós que aceitamos o inaceitável.

Sebastián Piñera, um presidente de direita, buscou manter distância das declarações pró-ditadura de Bolsonaro. “Essas frases são tremendamente infelizes”, afirmou. Sua posição política, como prefere, é assim definida por ele: “centro-direita mais diversa, mais tolerante, mais moderna e sintonizada com a cidadania”.

A parcela dos brasileiros que se declara “antiesquerdista” precisa compreender algo com urgência. O ponto do bolsonarismo não é ser de esquerda ou ser de direita. O que Bolsonaro faz seguidamente é apologia ao crime e incitação à violência. Isso não tem nada a ver com ser de esquerda ou ser de direita. Uma pessoa de direita, mas com decência e respeito à lei, não faz apologia ao crime nem incitação à violência. Uma pessoa de esquerda, mas com decência e respeito à lei, também não faz apologia ao crime nem incitação à violência.

O que Bolsonaro pratica é de outra ordem – e não é do jogo democrático. É essa diferença que o presidente chileno, reconhecidamente de direita, fez questão de marcar antes de ser contaminado pela truculência de uma ideologia com a qual não se identifica. No Brasil, infelizmente, parte da direita tem aceitado o inaceitável e demora a perceber que pagará caro por isso.

Os brasileiros adoecem também de apatia. Só assim para explicar como o ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, pode fazer apologia do crime duas vezes numa só semana, assim como ameaçar e chantagear uma nação inteira, e rigorosamente nada acontecer. Ao defender a reforma da Previdência, o ministro de Bolsonaro afirmou: “O Chile lá atrás teve que dar um banho de sangue para aprovar princípios macroeconômicos”.
Onyx Lorenzoni, Ministro da Casa Civil de Bolsonaro, elogia a ditadura militar chilena
e provoca forte reação contrária de políticos do Chile

Os chilenos se revoltaram. Ivan Flores, presidente da Câmara dos Deputados do Chile, afirmou que as declarações de Onyx são “um desatino sem paralelo” e uma grave ofensa às vítimas da ditadura de Pinochet. “A menção deste porta-voz do presidente Bolsonaro, um personagem importante do Governo brasileiro, a um ‘banho de sangue’ no Chile, é uma afronta a todas as pessoas que perderam familiares, a todos que sofreram com as violações de direitos humanos”. O parlamentar, que também se recusou a almoçar com Bolsonaro, afirmou que acreditava jamais “ter experimentado algo parecido” antes.

Os brasileiros não se ofendem. Convivem. À direita e à esquerda, a população tem se submetido à administração do ódio praticada pelo bolsonarismo. É esta a maior derrota. Não para a direita ou para a esquerda, mas para a civilização, para que qualquer um possa dar bom dia para o vizinho sem temer ser agredido. Ou para que um estudante possa ir à escola e ter certeza que vai sair dela vivo.

A cada agressão do presidente ou de sua turma, um espasmo.
E outra agressão. E outro espasmo.
E tudo vai se banalizando.
O que é uma anomalia vira normal.

Bolsonaro é sintoma dessa normalização da exceção que é muito anterior a ele. Ele soube crescer e se tornar útil dentro dela e a ampliou a níveis inéditos. Ele e sua turma sabem também usar a deformação da democracia brasileira a seu favor e, ao governar pela administração do ódio, justificar tanto a incompetência demonstrada nos primeiros três meses no poder quanto criar inimigos para se manter necessários ao país. Enquanto não arranjarem uma guerra externa, vão mantendo a guerra viva aqui dentro.

O discurso dos pesos e contrapesos é bonito, soa bem nos salões. Parece até funcionar razoavelmente bem em alguns países. No Brasil, porém, as instituições já demonstraram ser incapazes de proteger a democracia. Bolsonaro, que se elegeu fazendo apologia ao crime e incitando o ódio às minorias, é a prova mais enfática da fragilidade das instituições.

A oposição, por sua vez, submeteu-se ao jogo de guerra do bolsonarismo e parece estar dominada por ele. Como a população, a oposição parece só conseguir reagir com outro espasmo. E reagir sem organização mínima, ocupada com suas próprias brigas internas. A esquerda, e também a direita que não é bandida, precisam responder com projetos, precisam convencer as pessoas que sua ideia é melhor para a vida, precisam mostrar qual é a diferença.
TATIANA ROQUE
Filósofa, matemática e professora da UFRJ

Como apontou a filósofa Tatiana Roque, em entrevista a este jornal, é preciso contrapor à reforma da Previdência de Bolsonaro uma outra reforma da Previdência que reforme o que precisa ser reformado, sem tornar a vida dos mais pobres ainda pior. Não adianta ficar apenas gritando contra a reforma da Previdência. É preciso, sim, fazer uma reforma da Previdência. Mas não essa que está aí. Então qual? O que as pessoas querem saber é como a vida pode ficar melhor. Parte da crise global das democracias se deve à incapacidade de democratas e de governos democráticos de tornar melhor a vida da população ou de apontar claramente como podem fazer isso.

Com instituições fracas e uma oposição sem projeto, diante de um governo em que o mais moderado é um general que já defendeu um autogolpe com o apoio das Forças Armadas, a barbárie dos dias se acentua. Tudo indica que vai piorar. Porque está piorando. A incompetência explícita do bolsonarismo faz com que a necessidade de ampliar a violência “contra todos os que não são iguais a mim”, com o objetivo de ampliar a sensação de guerra interna, também aumente. Sem projeto consistente, o governo que aí está só pode apostar no ódio para se manter. E vai seguir apostando.

O ódio não é o oposto do amor, mas sim da justiça.
É justiça que Bolsonaro não quer.

Os brasileiros vão precisar compreender que a democracia terá que ser defendida por cada um, se colocando junto com o outro. Às vezes só dá mesmo para gritar. Mas é preciso fazer um esforço maior para responder com projetos, com propostas, com ação que não seja apenas uma reação, mas uma alternativa que permita a vida e promova vida no espaço público. Será assim, ou não será. Não é que tenha outro. Só tem você mesmo. Com o outro.

Podemos aprender algo com a artista russa Nadya Tolokonnikova:

“A ação não deve ser uma reação, mas uma criação”, ela escreveu.
NADYA TOLOKONNIKOVA
artista e ativista russa

Nadya é uma das integrantes da banda Pussy Riot que foi presa em 2012 pelo Governo do déspota Vladimir Putin. Entre as músicas tocadas em suas intervenções de ação direta, em espaços públicos de Moscou, uma delas era: “Putin se mijou na calça”. Não há nada que os déspotas temem mais do que aqueles que riem deles. Para manter o medo e o ódio ativos é preciso banir o riso e o humor. Nadya aprendeu a rir de seus carcereiros nos dois anos em que ficou na prisão por ousar confrontar o autoritarismo do regime, provocando um movimento de solidariedade global.

Na abertura do livro Pussy Riot, um guia punk para o ativismo político, a artista de 29 anos parece estar escrevendo para os brasileiros que vivem sob a administração do ódio de Bolsonaro e de suas milícias digitais. O livro, traduzido para o português por Jamille Pinheiro Dias e Breno Longhi, com ilustrações de Roman Durov, será lançado no Brasil em 22 de abril, pela editora Ubu. Antes, a banda fará dois shows no Brasil, em 19 (Recife) e 20 (São Paulo).

Nadya se refere a Donald Trump, que tem Bolsonaro como um pet exótico do sul do mundo:

“Quando Trump ganhou a eleição presidencial, as pessoas ficaram profundamente chocadas. Na verdade, o que aconteceu no dia 8 de novembro de 2016 foi a ruptura do paradigma do contrato social – a ideia de que podíamos viver confortavelmente sem sujar as mãos nos envolvendo com política, de que bastava um voto a cada quatro anos (ou voto nenhum: o pressuposto de que se está acima da política) para resguardar as próprias liberdades. Essa crença – a de que as instituições estão aqui para nos proteger e zelar por nós, e de que não precisamos nos preocupar em proteger essas instituições da corrupção, de lobistas, dos monopólios, do controle corporativo e governamental sobre nossos dados pessoais – veio abaixo. Nós terceirizávamos a luta política da mesma forma que terceirizávamos as vagas de trabalho mais mal remuneradas e as guerras.

Os sistemas atuais não conseguiram oferecer respostas aos cidadãos, de modo que as pessoas começaram a buscar soluções fora do espectro político dominante. Essas insatisfações estão agora sendo usadas por políticos de direita, xenófobos, oportunistas, corruptos e cínicos. Os mesmos que ajudaram a criar e a agravar esse cenário vêm agora nos oferecer salvação. Esse é o jogo deles. É a mesma estratégia de cortar os fundos de um programa ou uma agência reguladora dos quais eles queiram se livrar e depois usar a ineficácia resultante disso como prova de que essas iniciativas ou órgãos precisam ser desfeitos”.

Basta trocar a data para 28 de outubro de 2018, dia da eleição de Bolsonaro, e o nome do presidente. E a análise segue com alta precisão, ainda que Bolsonaro seja muito mais autoritário do que Trump e as instituições brasileiras muito mais frágeis do que as americanas.
Banda Pussy Riot - desafiando o déspota Putin

Bolsonaro é tão tosco que até mesmo a ultradireitista Fox News achou melhor tornar explícito que não compactuava com o pensamento do antipresidente brasileiro: afirmou que os comentários de Bolsonaro sobre a comunidade LGBTQI eram “incompatíveis com os valores americanos”. Ao entrevistar o antipresidente brasileiro, perguntou diretamente sobre o assassinato de Marielle Franco e a ligação da bolsomonarquia com as milícias cariocas. Ou seja: Bolsonaro é um constrangimento mesmo nos redutos mais direitistas do país que mais ama, os Estados Unidos. Seu suposto nacionalismo, como a visita aos Estados Unidos provou, é de chorar de rir.

Em outro trecho do livro, a artista também parece falar diretamente com os brasileiros que pensam em desistir ou acham que já chegaram ao seu limite:

As condenações de ativistas políticos foram naturalizadas na opinião pública. Quando pesadelos se tornam constantes, as pessoas param de agir. É assim que a apatia e a indiferença triunfam”. Em seguida, finca as unhas:
As dificuldades e os fracassos não são razão suficiente para renunciarmos ao ativismo. Sim, porque as mudanças sociais e políticas não se dão de forma linear. Às vezes é preciso lutar por anos para obter um resultado mínimo”.

A autoridade de suas palavras é conferida por um dos mais fortes ativismos deste século. Quase dois anos de prisão e trabalhos forçados não a fizeram recuar nem perder a ingenuidade, para ela um valor ético e também estético. “Se tivéssemos que apontar um inimigo, eu diria que nosso maior inimigo é a apatia. Se não estivéssemos de mãos atadas pela ideia de que é impossível mudar as coisas, seríamos capazes de alcançar resultados fantásticos. O que nos falta é a confiança de que as instituições podem realmente funcionar melhor e de que nós somos capazes de fazê-las funcionar melhor. As pessoas não acreditam no enorme poder que elas têm. Este poder que, por algum motivo, não usam”.

Neste momento, a novíssima geração, a que nasceu depois da geração das integrantes da Pussy Riot, está criando um movimento global espantoso. A juventude pelo clima, inspirada por uma sueca de 16 anos com diagnóstico de Asperger, colocou 1,5 milhão de estudantes secundaristas nas ruas de cidades do mundo em 15 de março para denunciar a falta de ação dos governos diante da crise climática. Oito meses antes, nada disso existia. Em agosto de 2018, Greta Thunberg fez greve da escola e se postou sozinha diante do parlamento sueco. Agora, o movimento é uma potência.

Brasileiros de todas as idades precisam aprender, pra ontem, com as gerações mais novas. É isso ou seguir condenado a assistir à queda de braço entre Jair Bolsonaro e Rodrigo Maia. Sério que é este o ponto alto do debate nacional, antes de vir outro do mesmo nível ou pior? É este mesmo o nosso destino? Sério mesmo que o maior crítico da militarização do governo é Olavo de Carvalho, por motivos bem outros em sua calculada disputa de poder? E é ele o maior crítico porque parte dos que poderiam criticar a militarização do governo por motivos legítimos e urgentes começam a achar que Hamilton Mourão, o vice general, é uma graça? É assim mesmo que vamos viver, esperando o que virá depois, caso exista um depois?

Como diz a Pussy Riot Nadya Tolokonnikova, “a esperança virá dos desesperados”. Espero que ela tenha razão.

Fonte: El País – Brasil / Opinião – Quarta-feira, 27 de março de 2019 – 22h52 (Horário de Brasília – DF) – Internet: clique aqui