«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

sexta-feira, 30 de abril de 2021

É tudo tão claro!

 A CPI do óbvio

 Editorial

Jornal «O Estado de S. Paulo» 

Os fatos estão claros para todos, restando à comissão o trabalho de organizá-los, para que o País entenda quais foram os erros e quem deve responder por isso

MESA DIRETOR DA CPI DA COVID-19: da esquerda para a direita, temos Randolfe Rodrigues (REDE-AP), Omar Aziz (PSD-AM) e Renam Calheiros (MDB-AL)

O histórico das Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) mostra que o sucesso das investigações costuma depender do surgimento de alguma testemunha bombástica. No caso da recém-instalada CPI da Pandemia isso não será necessário:

... os fatos essenciais são abundantes e estão claros para todos, restando à comissão o duro trabalho de organizá-los, para que o País entenda quais foram os terríveis erros que resultaram em tantas mortes evitáveis e quem deve responder por isso.

Do ponto de vista estritamente institucional, a CPI terá cumprido seu papel se dela resultarem medidas legislativas destinadas a impedir que esses erros se repitam e, também, se encaminhar às autoridades competentes os elementos necessários para a responsabilização civil e criminal dos infratores. 

Mas a CPI é também um foro político, em que a oposição exerce seu direito constitucional de fiscalizar o governo. Por isso, é inevitável que, ao longo dos trabalhos da comissão, os depoimentos e provas trazidos ao escrutínio público sirvam para constranger o presidente Jair Bolsonaro – cuja patente irresponsabilidade inspirou, quando não determinou, o comportamento omisso e inconsequente das autoridades sanitárias federais no combate à pandemia. 

Ciente dos estragos que a CPI causará a seu projeto de reeleição, Bolsonaro tratou de mobilizar boa parte de seus ministros para organizar sua defesa.

Se o presidente tivesse usado no combate à pandemia a mesma energia que está gastando para se safar da CPI, o País não teria quase 400 mil mortos e um sistema de saúde em frangalhos.

Mas a incompetência, produto da mediocridade que é a segunda pele do governo Bolsonaro, mais uma vez se impôs. A título de se antecipar aos questionamentos da CPI, os ministros produziram uma lista de acusações mais completa e detalhada do que a formulada por integrantes da comissão. 

Além disso, no afã de tentar impedir que o senador Renan Calheiros, desafeto de Bolsonaro, fosse nomeado relator da CPI, bolsonaristas recorreram à Justiça e obtiveram uma liminar absurda que interferia em decisão exclusiva do Congresso. Enquanto a liminar vigorou, os governistas a usaram para tumultuar a CPI. 

Mas a desarticulação da base governista, já célebre, mais uma vez cobrou a conta. O senador independente Omar Aziz (PSD-AM), apoiado pela oposição, elegeu-se presidente da CPI inclusive com o voto de um governista, o senador Ciro Nogueira (Progressistas-PI). Ato contínuo, o senador Aziz escolheu Renan Calheiros como relator. 

Profundo conhecedor dos desvãos do Congresso e expert em chicanas para esquivar-se da Justiça, Renan é o nome ideal para a relatoria. Sua notória competência servirá para inibir manobras governistas destinadas a tirar o foco da CPI, isto é,...

... a administração delinquente do Ministério da Saúde sob as ordens de Bolsonaro.

O fato é que a perspectiva de uma CPI dominada pela oposição e com relatoria de Renan Calheiros preocupa muito o governo. E isso fica claro diante do nervosismo de Bolsonaro, que voltou a fazer ameaças citando as Forças Armadas e a ofender governadores. Essas declarações reafirmam o autoritarismo de Bolsonaro, mas, sobretudo, expõem a tática manjada de desviar a atenção do que realmente importa: a desídia e a inépcia do governo diante do vírus. 

“Por que tanto medo?”, perguntou o senador Renan Calheiros nas redes sociais ante a inquietação bolsonarista. A pergunta, claro, é retórica. Quando os muitos ministros da Saúde de Bolsonaro forem questionados na CPI, o País afinal saberá como foram tomadas as decisões cruciais que resultaram:

* no atraso da vacinação,

* na falta de campanha nacional para a adoção de medidas preventivas,

* na sabotagem do distanciamento social e

* no desabastecimento de equipamentos e drogas para o atendimento de doentes. 

IMAGEM DA IRRESPONSABILIDADE!!! O ex-ministro da Saúde, isso mesmo (!!!), entrou em um shopping de Manaus sem máscara desrespeitando recomendações sanitárias de combate à pandemia e as normas do próprio estabelecimento - Domingo, 25 de abril de 2021

A rigor, nem seria necessária uma CPI. Quando Bolsonaro escarnece da inteligência alheia, dizendo que o intendente Eduardo Pazuello “fez o dever de casa” ao não comprar vacinas em 2020, ou quando o próprio ex-ministro da Saúde faz chacota dos brasileiros ao aparecer sem máscara e todo pimpão, num shopping de Manaus, a responsabilidade pela tragédia nacional fica óbvia. 

Fonte: O Estado de S. Paulo – Notas & Informações – Quarta-feira, 28 de abril de 2021 – Pág. A3 – Internet: clique aqui (acesso em: 30/04/2021).

quinta-feira, 29 de abril de 2021

Como vencer em 2022?

 Por que não mudar de estratégia?

 Josué Medeiros e Tatiana Roque* 

Defendemos tanto a Frente de Esquerda para as eleições de 2022 como a Frente Ampla para as mobilizações que precisamos construir desde já

Crédito: Renato Caetano

A crise da democracia tornou-se consenso, tanto no debate intelectual como na análise dos eventos que nos aterrorizam cotidianamente. Parece haver uma lacuna, porém, entre essas constatações e as ações efetivas para conter a crise. As esquerdas brasileiras, apesar de convergirem no diagnóstico de que vivemos uma regressão democrática, cuja ameaça mais grave é destruir o pacto social da Constituição de 1988, seguem sem agir de maneira consequente, ou seja, não dão respostas à altura da gravidade destes tempos. 

A defesa de frentes democráticas encontra resistência em todos os partidos progressistas. A postura do PT chega a surpreender, diante de sua experiência na Presidência ou de sua atuação nos estados em que governa. Na Bahia, no Piauí e no Ceará, o PT lidera amplas coalizões com partidos de direita; em Pernambuco e no Maranhão, faz parte de coligações igualmente abrangentes. No PDT, assistimos à reiterada disposição do ex-ministro Ciro Gomes para atacar aliados. O Psol insiste em uma identidade purista, embora Edmilson Rodrigues, seu único prefeito de capital (Belém), tenha feito acordo com o MDB. No PCdoB, lideranças como Manuela D’Ávila e Flávio Dino se retraem diante das dificuldades partidárias; o PSB não dá nenhuma demonstração de que pretenda ter um projeto nacional; e Marina Silva segue sem demonstrar força para construir uma alternativa. As esquerdas partidárias continuam agindo, portanto, como se o pacto de 1988 estivesse vigente. Seus cálculos são justificados por movimentos de autopreservação, que são legítimos e até compreensíveis em tempos de normalidade democrática, mas hoje levam a posturas irresponsáveis. Tudo indica que, nas eleições de 2022, a esquerda se dividirá em várias candidaturas, mesmo com Jair Bolsonaro tendo boas chances de se reeleger. 

Sair desse impasse é a ideia deste artigo. Acreditamos que a democracia precisa estar no centro das reflexões e das estratégias da esquerda. Essa prioridade não é nova em nossa história e marcou a experiência virtuosa de construção do PT. Com esse horizonte, defendemos tanto a Frente de Esquerda para as eleições de 2022 como a Frente Ampla para as mobilizações que precisamos construir desde já. Mostramos que essas iniciativas são distintas e complementares na restauração do pacto democrático. Mais ainda: essa é uma condição para o fortalecimento, na esquerda, de projetos que visem aprofundar e radicalizar a democracia. 

EDUARDO CUNHA preside sessão da Câmara Federal na qual se votou pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff - Brasília, 17 de abril de 2016

A regressão democrática: de Cunha a Bolsonaro

A eleição de Eduardo Cunha para a presidência da Câmara, em 2015, iniciou a reversão do pacto democrático, com o avanço da pauta punitivista (redução da maioridade penal) e os ataques à diversidade (Estatuto da Família). Naquele ano, consolidou-se a ampla coalizão social, partidária, empresarial, jurídica e midiática que sustentou o golpe parlamentar de 2016 contra Dilma Rousseff. O impeachment significou uma ruptura com a possibilidade de que as classes populares, organizadas de modo autônomo em um partido, pudessem disputar eleições livres e governar. Tratou-se de um primeiro ataque à democracia, um golpe neoliberal que criminalizou qualquer política econômica contra a austeridade, intenção reforçada pela aprovação do teto de gastos no mesmo ano. 

Em 2018, o cerco contra a democracia se fechou. Em março, o assassinato da vereadora Marielle Franco anunciou que a violência contra os pobres e contra a população negra, que sempre agiu nas periferias e favelas, passava a ser uma arma política. Em abril, a prisão do ex-presidente Lula, candidato que liderava as pesquisas, instaurou a violência jurídica – um segundo golpe contra a competição eleitoral pactuada em 1988. Por fim, em outubro, Bolsonaro foi eleito presidente. 

De lá para cá, Bolsonaro tem tentado atacar a democracia de várias maneiras:

* estimula a violência material (facilitando o acesso às armas),

* incita a perseguição simbólica (com milícias digitais e defesa da tortura) e

* incentiva a criminalidade ambiental (apoiando ações que levam às queimadas no Pantanal e na Amazônia e ataques aos povos indígenas).

* Na pandemia, sua postura negacionista sabotou medidas de isolamento social que salvariam vidas.

Nunca sentimos tanto a necessidade de pactos democráticos.

Ao impossibilitar acordos mínimos, Bolsonaro gerou um quadro de abandono e um sentimento de que a população está largada à própria sorte, sem orientação, tendo de encontrar saídas individuais. Isso aprofundou a divisão social entre os que podem se proteger e aqueles que, pela necessidade de sobreviver, seguem se expondo ao vírus. Com um governo democrático, nada disso precisava ter acontecido: poderíamos ter coordenado a ocupação do espaço público e das escolas, unificado as orientações à população e organizado a aquisição e a aplicação das vacinas. Ou seja, faria muita diferença. 

JAIR BOLSONARO conseguiu uma popularidade inédita, no Nordeste brasileiro, graças ao auxílio emergencial concedido em 2020

2021: a consolidação do bolsonarismo

Até agora, o governo Bolsonaro apresentou momentos de paralisia, desorganização e até certa fragilidade política, o que diminuiu o impacto de suas intenções. As consequências já foram terríveis, mas poderiam ter sido piores. O problema é que o ano de 2021 pode marcar a consolidação do bolsonarismo como fenômeno político enraizado na sociedade e nas instituições, o que aumentará suas chances de reeleição. Tal consolidação se apresenta em sete dimensões:

1ª) A concessão de um novo auxílio emergencial, que pode fidelizar parte do eleitorado mais pobre.

2ª) O avanço da vacinação, que possibilita a recuperação de parte da classe média conservadora que abandonou Bolsonaro pelo modo como lidou com a pandemia.

3ª) O controle dos preços dos combustíveis, da luz residencial e do botijão de gás, amenizando a inflação entre os pobres e informais.

4ª) A proteção institucional no Congresso e no Judiciário (com a indicação de mais um ministro do STF e de mais um membro do STJ), inviabilizando as investigações contra Bolsonaro e sua família.

5ª) A organização de um partido (próprio ou já existente), o que permite a rearticulação do voto conservador, que esteve disperso em 2020.

6ª) O avanço da pauta de valores e de ataques aos direitos, que (mesmo que não passe no Congresso) mobiliza o bolsonarismo mais radical.

7ª) A atração de lideranças e partidos da direita tradicional, pavimentando uma nova aliança com parte do sistema político e econômico (o que inviabiliza uma frente ampla no segundo turno contra Bolsonaro).

Diante dessas tendências, Bolsonaro tem vaga garantida no segundo turno em 2022, com boas possibilidades de vencer. A crise dos partidos da direita tradicional – DEM e PSDB, rachados e com pré-candidatos pontuando pouco nas pesquisas – reforça um cenário em que ele se afirma como candidato do campo conservador. As frentes democráticas são essenciais, portanto, para evitar a repetição do que aconteceu em 2018. 

A campanha das DIRETAS JÁ, exigindo eleições livres e diretas para escolher o Presidente da República, reuniu uma frente ampla de políticos e forças políticas, como se observa, nesta foto acima, que retrata a participação em uma passeata, desde Leonel Brizola (à esquerda), passando por Ulysses Guimarães, Tancredo Neves, Franco Montoro, Fernando Henrique Cardoso entre outros. São Paulo, 16 de abril de 1984. Crédito: Matuiti Mayezo/Folhapress

A urgência da Frente de Esquerda e da Frente Ampla Democrática 

No debate público, tem havido certa confusão entre as propostas da Frente de Esquerda e da Frente Ampla, como se alianças pontuais com setores da direita resultassem na defesa de uma coligação eleitoral. Mas é preciso separar as duas coisas.

Tanto a UNIDADE DA ESQUERDA quanto o DIÁLOGO COM SETORES DA DIREITA são necessidades urgentes, que devem organizar a estratégia dos partidos.

Cada uma tem seu papel, porém. 

A Frente Ampla é um processo social e institucional cujo objetivo é barrar o autoritarismo de Bolsonaro. Para ser efetiva, precisa unir setores que pensam de modo diferente em outros temas. As Frentes Amplas se constituem em torno de pautas específicas, associadas a uma dinâmica de mobilização social que pode impulsionar coalizões momentâneas nas instituições, mesmo entre setores que se enfrentarão nas eleições. 

A história recente da esquerda brasileira mostra que isso é possível e tem resultados significativos, como no processo político e social que levou ao fim do regime militar, graças à centralidade da luta democrática.

A formação de uma FRENTE AMPLA foi essencial nas a) greves de 1978-1980 no ABC, que projetaram Lula como nova liderança de esquerda. Políticos de vários espectros, juristas de ideologias distintas, a Igreja Católica, grande parte da mídia e até mesmo setores do empresariado consideraram legítimas as reivindicações grevistas, rechaçando a repressão ao movimento. Desde o início, o PT entendeu que o partido só poderia existir de fato em um regime democrático. b) No movimento das Diretas Já, ninguém perguntava aos aliados de ocasião qual era sua posição sobre outros temas, como a política econômica. O diferencial do PT nesse processo foi não permitir que o debate ficasse restrito aos gabinetes, afirmando que mobilização social é essencial para uma democracia de fato. O mesmo ocorreu durante c) a Constituinte, com a luta para viabilizar emendas populares, buscando virar votos de deputados de direita sobre um tema específico (sem questionar sua posição em outras questões). O objetivo mais importante era garantir o máximo de direitos sociais na Carta Constitucional. Nos anos 1990, d) a Campanha contra a Fome, protagonizada por Betinho, nada mais foi do que uma grande frente ampla que conseguiu colocar a causa no centro do debate público, conquistando apoios que atravessavam todo o espectro político.

Muita gente, no campo da esquerda, acha impossível repetir essa estratégia, mas a aprovação do auxílio emergencial e do Fundeb são exemplos recentes de frentes amplas vitoriosas. 

A FRENTE DE ESQUERDA é uma construção política e eleitoral para unificar o campo progressista no pleito de 2022. Seu objetivo é diminuir as tensões entre os partidos e permitir acordos eleitorais na chapa presidencial e nos estados, aumentando as chances de vitória. Em nossa história recente, paralelamente às frentes amplas, a unidade das esquerdas nas eleições foi se afirmando. É verdade que jamais conseguimos ter apenas uma candidatura, mas não foram poucos os esforços para diminuir a fragmentação. Em 1989, Lula foi apoiado pelo PSB e pelo PCdoB. Em 1994, vieram se somar PCB, PPS, PV e PSTU. O pleito seguinte, de 1998, foi o grande momento de unidade entre Lula e Brizola, líder do PDT. A fragmentação cresceu em 2002, com três candidaturas de esquerda, o que se justificava diante da desmoralização dos governos neoliberais, aumentando a força da esquerda naquelas eleições. Hoje vivemos um quadro inverso, com o eleitorado de direita fortalecido. Isso torna ainda mais decisiva a unidade no campo da esquerda. Mesmo que o neoliberalismo esteja desmoralizado, é a extrema direita que tem conseguido galvanizar esse descontentamento (mesmo aliada a setores neoliberais, como veremos adiante). 

Muitas lideranças de esquerda dizem que não é necessário unir as esquerdas no primeiro turno, pois estaremos juntos no segundo. Mas esse é um erro do ponto de vista eleitoral, porque geralmente o candidato que lidera na primeira votação confirma a vitória na segunda. São raras as viradas no resultado. O risco é ainda mais forte se o candidato mais votado quase vence no primeiro turno, como foi o caso de Bolsonaro em 2018 (o que parece ter sido esquecido por muita gente). Chegamos ao segundo turno isolados, sem palanques fortes nos estados e com muitas mágoas internas.

É fundamental evitar esse quadro em 2022, construindo uma chapa de esquerda unificada, tanto para a Presidência quanto nas disputas dos estados.

A energia gasta disputando os votos entre nós precisa ser usada para convencer os indecisos, para reverter a opção de quem deseja anular o voto e para dialogar com setores da direita (os que querem derrotar Bolsonaro). A Frente de Esquerda serve para isso, aumentando a capacidade de articular apoios que serão essenciais no segundo turno. 

WENDY BROWN professora de Ciência Política estadunidense, que leciona na Universidade da Califórnia, em Berkeley, onde ela também está associada do Departamento de Retórica

O neoliberalismo e a democracia hoje 

Uma crítica recorrente à abertura de diálogo com parte da direita aponta que o neoliberalismo é nosso maior inimigo. Como possíveis aliados são defensores de políticas de austeridade, não poderíamos nos unir a eles em nenhuma situação. De fato, o neoliberalismo deve ser combatido. Mas essa análise menospreza o fato de que esse regime está em crise, abrindo fraturas que podem ser exploradas. 

Assim como o capitalismo, o neoliberalismo transforma suas formas de governo com frequência e já fez isso várias vezes desde os anos 1980. Mas a crise de 2008 foi um teste definitivo.

Ficou óbvio, desde então, que políticas de austeridade são incompatíveis com qualquer ideal democrático.

É o fim do “neoliberalismo progressista”, como disse Nancy Fraser. Boa parte dos neoliberais resolveu se juntar abertamente a políticos autoritários e conservadores. É essa aliança explícita e desavergonhada que o casamento de Paulo Guedes e Bolsonaro expressa. 

Os neoliberais do século XX desdenhavam do poder do voto; os do século XXI tentam usar a potência eleitoral da extrema direita a seu favor. Nos anos 1990, parte importante da estratégia consistia em manter a economia neoliberal protegida da democracia. Foi assim que se criaram instâncias de poder – aparentemente técnicas – com o objetivo de blindar as escolhas econômicas, tornando-as impermeáveis à vontade popular. Contra esse esvaziamento da política, e sem encontrar outras formas de expressar sua insatisfação, parte da população mundial transformou o voto em arma, escolhendo governantes como Donald Trump e Bolsonaro (ou apoiando medidas como o Brexit). Essa foi uma reação às promessas não cumpridas da globalização e das elites tecnocráticas. Ora, com base nesse diagnóstico, é possível enxergar uma contradição na aliança do neoliberalismo com governantes autocráticos. Por exemplo, a maior parte dos eleitores de Bolsonaro não quer a política econômica de Guedes. Mas isso significa que votarão na esquerda? Não necessariamente. Esse é o ponto.

Diante da corrosão da democracia, a esquerda não consegue conquistar os votos dos descontentes com o neoliberalismo, como fez no passado.

Para enxergarmos isso, contudo, precisaremos ir além de uma caracterização puramente econômica do neoliberalismo, mostrando que ele também instituiu formas de governo que esvaziaram a cidadania, a esfera pública e as instituições, ou seja, enfraqueceram a política. Os efeitos desse desmonte são mais negativos para a esquerda do que para a direita – já que os valores públicos são inseparáveis dos ideais da esquerda. 

Wendy Brown explica bem o processo de “economicização da política” operado pela lógica neoliberal, que acabou por desfazer o demos e inviabilizar a democracia (antes mesmo que políticos autoritários começassem a vencer eleições). [1] Os Estados neoliberais criaram uma cidadania parecida com “direitos de consumidor”, transformando o Estado de bem-estar social em prestações privadas, que transferem aos indivíduos o ônus de correr atrás de sua própria segurança e de alguma proteção.

Nesse processo, os valores democráticos foram se dissolvendo e o papel das famílias e da religião se fortaleceu – o que explica o casamento do neoliberalismo com o neoconservadorismo.

O impacto dessas mudanças, operadas ao longo das últimas décadas, tem uma capilaridade maior do que podemos imaginar. Todas as ideias-chave da política foram traduzidas em um idioma econômico e individualista:

* a inclusão foi transformada em competição;

* o pertencimento, em valores familiares;

* a liberdade, em desregulação dos mercados.

Publicado no Brasil, em outubro de 2019, pela editora Politeia. Leitura fundamental!

Assim, os valores públicos e a participação na vida política perderam apelo. Um efeito disso é que o modo neoliberal de governar conseguiu “esvaziar tanto a razão democrática liberal quanto um imaginário democrático que desejava ultrapassá-la”. Esse é um traço original de Brown: notar que a desdemocratização – agora reforçada pelo neoconservadorismo – não ameaça apenas a democracia liberal. O atual esfacelamento da democracia bloqueia também a possibilidade de imaginários democráticos mais radicais.

Ao não perceberem essa relação, setores da esquerda acabam desprezando a defesa das atuais instituições e dos pactos democráticos que conquistamos.

Essas posições esquecem que um ambiente democrático e minimamente igualitário (como começou a ser conquistado nos governos do PT) é condição para o aprofundamento da democracia. Com efeito, se fosse apenas para salvar as instituições liberais, como enfatizado em tantos livros da moda sobre a morte da democracia, o mote de “defesa a democracia” seria vago. Mas o maior perigo é o fato de que a ofensiva autoritária é o meio mais eficaz que o neoliberalismo encontrou para esvaziar a política, atingindo em cheio as possibilidades – práticas e simbólicas – de renovação da esquerda. 

Hoje, temos visto a esquerda se dedicar mais a estratégias de autoconstrução do que à renovação política. Essa escolha tende a afastar quem precisa de novas organizações para se constituir como sujeito político – é o caso da juventude, que inicia sua vida militante, de trabalhadoras dos cuidados e de informais de vários tipos. Como esses novos personagens poderão entrar em cena enquanto as camadas populares estiverem capturadas pelo conservadorismo da nova direita? Alguns dizem que as chamadas “pautas identitárias” seriam culpadas pela dificuldade da esquerda em dialogar com essas pessoas. Ora, essa tentativa parece querer atacar os mensageiros pela evidente fragilidade – da própria esquerda – em organizar novos trabalhadores e trabalhadoras sociais. Sem falar que não há nada mais identitário do que as atuais disputas entre as esquerdas para avaliar quem é mais “verdadeiramente de esquerda”. 

Sem novas bases sociais não conseguiremos reconstruir o demos, logo não haverá democracia. Precisamos renovar a política e as organizações de esquerda para voltar a imaginar e produzir uma democracia que seja, de fato, mais radical do que as experiências liberais do último século. Mas não se combate a tentativa de fragilização da democracia com desdém pelos procedimentos democráticos, como as eleições ou os pactos sociais entre diferentes setores da sociedade. A Frente de Esquerda responde ao primeiro problema e a Frente Ampla é a estratégia para abordar o segundo. Ambas são fundamentais para derrotar o autoritarismo e refundar a democracia brasileira. Só assim uma esquerda – renovada – terá condições de apresentar uma alternativa popular e eficaz ao neoliberalismo. 

* Josué Medeiros é professor de Ciência Política da UFRJ e do PPGCS/UFRRJ e coordenador do Núcleo de Estudos sobre a Democracia Brasileira (NUDEB); e Tatiana Roque é professora titular da UFRJ, onde atua nas pós-graduações de Filosofia e História da Matemática, e coordena o Fórum de Ciência e Cultura. Também é vice-presidente da Rede Brasileira de Renda Básica. 

NOTA 

[1] Undoing the Demos: Neoliberalism’s Stealth Revolution [Desfazendo o demos: a revolução camuflada do neoliberalismo], Zone Books, 2015; e Nas ruínas do neoliberalismo, Politeia, 2019. 

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil – A Democracia Agoniza – Março de 2021 – Edição 164 – Páginas 18 a 20 – Internet: clique aqui (acesso em: 29/04/2021).

quarta-feira, 28 de abril de 2021

Lições do caso Henry

 Como identificar crianças que sofrem violência

 Rosely Sayão

Psicóloga, consultora educacional e autora do livro “Educação sem blá-blá-blá” 

Maioria dos episódios de agressão ocorre dentro de casa; escuta dos pais e relação de confiança com filhos são importantes para perceber problemas

A polícia suspeita que Henry Borel, de 4 anos, tenha morrido depois de ser submetido por Dr. Jairinho a uma sessão de torturas. Foto: Reprodução/Instagram

O caso do menino Henry, garoto de 4 anos que morreu, provavelmente em decorrência de violência física que sofreu do padrasto, nos permite refletir a respeito de como identificar se crianças, principalmente na primeira infância, sofrem algum tipo de violência. 

Isso é importante porque a maioria dos casos de violência contra crianças ocorre dentro de casa! E o número de casos de morte entre crianças não é tão pequeno, não.

De acordo com levantamento realizado pela Sociedade Brasileira de Pediatria, mais de 100 mil crianças e adolescentes (!) morreram vítimas de agressões nos últimos dez anos. Desses, pelo menos 2 mil tinham menos de 4 anos. Não é assustador?

Bem, vamos lembrar quando nasce um bebê. Os primeiros dias em casa costumam ser um sufoco para os pais – principalmente para a mãe – porque eles têm a consciência de que são totalmente responsáveis por aquele ser que não se comunica e depende dos adultos para sobreviver e viver. 

O bebê chora: só chora porque esse é o único recurso que tem para expressar algo:

* fome,

* sede,

* se precisa ser trocado,

* se quer colo,

* se tem dor ou se, simplesmente,

* quer chorar etc. 

Aos poucos, à medida em que se cria um vínculo estreito entre a mãe – e o pai – do bebê, eles passam a interpretar o choro do filho. “Esse choro é de fome”, “Ah, esse é um choro pra me chamar”, “Nossa, esse choro é de dor”, e assim por diante. É assim que os pais começam a conhecer o filho e essa é uma jornada sem fim, não é? 

O choro é, portanto, um sinal de algo e, se os pais escutam verdadeiramente o filho, serão capazes de descobrir o que aquele choro comunica. Acertam sempre? Não. Mas essa estratégia é tão boa que já foi até criado um dispositivo que indica o provável motivo deste ou daquele choro. 

ESCUTAR A CRIANÇA significa mais que ouvir! É saber interpretar o que está por detrás das palavras, gestos, atitudes e estado de humor da criança

A questão é que, quando o filho começa a se comunicar verbalmente, esse canal ganha prioridade para os pais, que deixam de interpretar e passam a escutar. E escutar não significa, necessariamente, ouvir. Sabemos que as crianças, na primeira infância, vivem mais no mundo imaginário que no real. E é preciso ter cuidado para considerar o que falam pelas palavras. 

Uma mãe me contou que a filha, de apenas 3 anos, chegou da escola dizendo, chorosa, que a professora havia batido nela. Ela estranhou porque confiava muito na escola, e foi conversar com a professora. Ouviu que a filha havia precisado de um limite verbal firme por quase morder um colega. Vejam: aquela criança traduziu em palavras o que sentira. 

Outra mãe, num local onde havia outras famílias, disse que o filho vomitava quando se encontrava com um vizinho. Levou a criança a um atendimento de saúde e foi constatado que sofrera abuso. 

Essas duas mães ouviram de fato os filhos e souberam interpretar os sinais que apontaram. Nos fatos noticiados pela imprensa, soubemos que o menino Henry vomitava e tremia ao ver o padrasto, mas esses sinais não foram considerados, lamentavelmente. 

Outro ponto importante para proteger os filhos é oferecer condições para que confiem nos pais. Costumamos ouvir muitos pais dizerem que confiam nos filhos pela educação dada a eles. 

Acontece que crianças e adolescentes, quando em grupo, costumam adotar a moral do grupo. Por isso, não confiar nos filhos é ter o bom senso de lembrar que eles nem sempre terão autonomia para agir de modo diferente do grupo. Um pouco crescida, se a criança conta aos pais algo que fez que não deveria ter feito e leva uma bronca, isso pode levá-la a perder parte da confiança nos pais.

Primeiro é preciso acolher, apoiar, confortar. E, só depois, fazer a criança arcar com as consequências de seu ato.

Fonte: O Estado de S. Paulo – Educação – Domingo, 25 de abril de 2021 – Pág. A17 – Internet: clique aqui (acesso em: 28/04/2021).

terça-feira, 27 de abril de 2021

Gravíssimo!!!

 O desmonte do Estado brasileiro

 Felipe Salto

Diretor executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI) e professor do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) 

Reduz-se cada vez mais a despesa essencial para o funcionamento da máquina pública

FELIPE SALTO

É sintomático que o Orçamento de 2021 tenha sido sancionado em bases irrealistas.

Os cortes promovidos pelo Poder Executivo devem permitir o cumprimento do teto, mas ao preço de desmontar o Estado brasileiro.

Na ausência de mudanças estruturais no gasto obrigatório, reduz-se cada vez mais a despesa essencial para o funcionamento da máquina pública. 

O chamado shutdown não acontece da noite para o dia. Na verdade, políticas públicas essenciais estão sendo desidratadas ao longo dos últimos anos. Dada a opção pelo teto de gastos, mas sem avanços para conter a despesa mandatória, a fatura vai recaindo sobre o gasto discricionário (mais exposto à tesoura). 

Não teremos censo demográfico – um país às cegas 

Em 2021, o caso do censo demográfico é emblemático. Em pleno ano de pandemia, quando se processam mudanças sociais e econômicas profundas, o Ministério da Economia anunciou que a pesquisa não será realizada. Motivo? Falta de orçamento. 

O último censo realizado foi em 2010 e custou R$ 1,1 bilhão. Atualizado pelo IPCA e pelo aumento do número de domicílios, o orçamento do programa deveria ser de R$ 2,8 bilhões em 2021.

O censo fundamenta a análise, o planejamento e a formulação de uma miríade de políticas sociais, econômicas, educacionais, etc.

Os cortes anunciados levaram o orçamento dessa pesquisa a cerca de R$ 53 milhões. Na verdade, esse gasto não será sequer suficiente para preparar a realização do censo em 2022. 

As despesas discricionárias do Executivo estão orçadas em R$ 74,6 bilhões para 2021. É o menor nível da série. 

Desmonte em setores prioritários: Educação e Saúde 

O Ministério da Educação ficou com R$ 8,9 bilhões. Somando as emendas de relator-geral, vai a cerca de R$ 10 bilhões. Em 2016 as despesas discricionárias executadas nessa área totalizaram R$ 21,8 bilhões. Isto é, o valor de 2021 corresponde à metade do observado cinco anos atrás. Isso sem considerar a inflação do período. Isto é, uma redução brutal. 

Na pasta da Saúde, as discricionárias do Executivo ficaram em R$ 15,5 bilhões, apenas meio bilhão acima do valor observado em 2016. Somando as emendas de relator-geral remanescentes (após os cortes do presidente da República), esse valor sobe para R$ 23,3 bilhões. Ainda assim, é um patamar muito baixo, sobretudo quando comparado a 2020 (o dobro), que também foi um ano de pandemia. 

O governo argumenta que os recursos adicionais necessários à saúde serão executados por meio dos chamados créditos extraordinários, que de fato estão sendo autorizados por medidas provisórias. Aliás, alterou-se o texto da Lei de Diretrizes Orçamentárias para deixar essas e outras despesas novas de fora da meta fiscal de déficit primário fixada em lei (receitas menos despesas, exceto juros da dívida). 

Em benefício da transparência, o ideal seria ter mudado a meta de déficit (R$ 247,1 bilhões). A outra regra fiscal, o teto de gastos, já estaria resolvida, porque todo crédito extraordinário – desde que justificadas a imprevisibilidade e a urgência – não é contabilizado nas despesas sujeitas ao limite constitucional. Estimo, preliminarmente, que o déficit primário efetivo, o que afeta a dívida pública, poderá ficar em torno de R$ 290 bilhões neste ano. 

Em plena pandemia de Covid-19, com gastos altíssimos com vacinas, insumos, pessoal, UTIs, hospitais de campanha e outras iniciativas, o orçamento 2021 do Ministério da Saúde foi REDUZIDO em 30 bilhões de reais!

Mais um exemplo de situação crítica 

Mais um exemplo da situação crítica das despesas de custeio e manutenção da máquina e de programas essenciais está no Ministério das Relações Exteriores. Após os cortes e bloqueios, o Itamaraty contará com despesas discricionárias de R$ 551 milhões. Em 2016, o orçamento foi quase três vezes maior (R$ 1,5 bilhão). 

Na verdade, o remanejamento de verbas promovido via vetos ao Orçamento e bloqueios de despesas por decreto promoveu um corte geral de cerca de R$ 29 bilhões. Esse valor é próximo das contas feitas pela Instituição Fiscal Independente (IFI), R$ 31,9 bilhões, em março. No início da semana passada o governo soltou na imprensa que R$ 20 bilhões seriam suficientes para cumprir o teto de gastos. Errou. 

Quem menos perdeu nesse orçamento 2021 

Os cortes realizados mantiveram um orçamento elevado para áreas como Desenvolvimento Regional, cuja discricionária total (Executivo) será de R$ 1,5 bilhão mais R$ 6 bilhões [total: R$ 7,5 bilhões] em emendas de relator-geral não atingidas pelos vetos presidenciais. Em 2016 gastou-se R$ 1,3 bilhão e em 2020, R$ 4,4 bilhões. 

Se o risco de paralisação de políticas essenciais se materializar, como é provável que continue a ocorrer, o governo sofrerá pressões para desbloquear o que foi tesourado por decreto. Os vetos, vale dizer, só poderiam ser revertidos pelo Congresso. Esses cortes deverão preservar o teto, mas de maneira perigosa e ineficiente. 

No ano passado o governo não planejou o Orçamento público de 2021 para um cenário de recrudescimento da crise pandêmica.

O plano deveria ser realista e coerente com a responsabilidade fiscal.

Já se sabia das dificuldades a serem enfrentadas neste ano, dos riscos de novas ondas da covid-19 e da precariedade social, econômica e fiscal. 

O “deixa como está para ver como é que fica” custou caro. Após os cortes, pode-se até cumprir o teto, mas não sem um desmonte do Estado brasileiro. Ou isso ou vão acumular uma montanha de contas a pagar para 2022. 

Fonte: O Estado de S. Paulo – Espaço Aberto – Terça-feira, 27 de abril de 2021 – Pág. A2 – Internet: clique aqui (acesso em: 27/04/2021).

segunda-feira, 26 de abril de 2021

A religião em meio à polarização

 Igrejas devem ficar de fora de guerras culturais, diz téologo de Yale

 Anna Virginia Balloussier 

Entrevista com Miroslav Volf

Professor de teologia da Faculdade de Divindade da Universidade Yale (Estados Unidos), fundou e dirige o Centro de Fé e Cultura na mesma instituição. Escreveu mais de 20 livros, entre eles “Exclusão e Abraço” (1996, revisado em 2019) e “Allah: A Christian Response” (Alá: Uma Resposta Cristã, em tradução livre; 2011) 

Para Miroslav Volf, não há nada de cristão em pensar, sobretudo, em si mesmo, tipo “America first” (América primeiro)

MIROSLAV VOLF - teólogo croata radicado nos Estados Unidos

As guerras culturais espalharam bárbaros por toda parte, e as igrejas cometem um grande erro ao se envolverem nessas batalhas, diz o teólogo croata Miroslav Volf, fundador do Centro de Fé e Cultura da Universidade Yale. Volf atualiza um clássico seu, “Exclusão e Abraço”, lançado primeiro em 1996 e reeditado para caber no espírito do nosso tempo. No Brasil, está publicado pela editora Mundo Cristão. 

À Folha de S. Paulo o teólogo fala sobre o bom samaritanismo que, hoje, significa abrir mão de reuniões religiosas presenciais para deter a Covid. “Insistir em adorar pessoalmente é insistir em prejudicar nossos vizinhos.” 

O sr. lançou “Exclusão e Abraço” há 25 anos. De lá para cá, que metade desse binômio prevaleceu?

Miroslav Volf: Quando escrevi o livro, o mundo se globalizava rapidamente após a queda do mundo bipolar [da Guerra Fria]. Conflitos identitários não eram raros, mas aconteciam nas bordas. Quando descambaram para confrontos abertos, o Ocidente muitas vezes os vivenciou como barbárie subcivilizacional. Hoje a política identitária é uma realidade global. “Bárbaros” estão por toda parte, para usar o vocabulário que geralmente desaprovo. 

Por quê?

Volf: Não quero cravar que a maior parte da política identitária de direita seja expressão de uma luta anticivilizacional. Exceto pelo extremo disso, é um ponto de vista moral. Discordo profundamente, mas não quero desumanizar quem acredita nisso. 

Publicado em março de 2021 pela editora Mundo Cristão

O sr. levantou em 1996 meios para evitar o extremismo. O mundo teve sucesso nesse ponto?

Volf: O extremismo abunda. Os Estados Unidos, que desde a sua fundação foram um farol de democracia, tiveram até recentemente um presidente profundamente antidemocrático, o sr. [Donald] Trump, que perseguia não apenas políticas do tipo “América primeiro”, mas “América branca primeiro”. O país continua dividido. 

O que o slogan trumpista “Make America Great Again” (= Torne a América grande novamente), que o sr. cita no prefácio, diz sobre nossos tempos?

Volf: Que nos preocupamos apenas conosco. Não é tão supremacista quanto “Deutschland über alles” [Alemanha acima de tudo, adotado pelo nazismo], mas não está muito atrás. Não há nada de cristão nisso, embora muitos devotos o tenham abraçado. A fé cristã é um credo universalista, o que significa que Deus cuida de cada humano igualmente. Um cidadão não é como um operador de Wall Street que exige o melhor negócio para si e para seus acionistas, não importa o que aconteça com as outras pessoas. 

E quanto ao Brasil?

Volf: Visitei o país apenas uma vez, em 2018. Você pode imaginar que minha percepção do que está acontecendo política, econômica e culturalmente por aí é limitada. Mas, vendo de fora, parece estranhamente semelhante à situação nos Estados Unidos [sob Trump]. 

Neste contexto polarizado, a religião pode semear discórdia?

Volf: Ao longo dos séculos, as religiões desempenharam papéis contraditórios. O cristianismo, por exemplo, deu origem ao humanitarismo como o conhecemos, mas também legitimou a colonização de povos, abençoou guerras e agiu de formas que entram em contradição com a missão de Jesus Cristo. O argumento do meu livro é que no cerne dessa fé estão os recursos para uma “política de abraço”. 

Qual seria ela?

Volf: Uso abraçar como metáfora para a parábola do filho pródigo, que ilustra tanto o caráter de Deus que cristãos devem emular quanto a maneira como Ele se relaciona com os rebeldes e os “cidadãos de bem”.

Existe um senso de que os inimigos também devem ser amados, mesmo se, e especialmente quando, devemos resistir a eles.

O sr. acha que templos devem continuar abertos em fases mais críticas da pandemia?

Volf: Quem frequenta serviços presenciais não se coloca apenas em risco. Infectados nos cultos carregam a Covid para fora. Insistir em adorar pessoalmente é insistir em prejudicar nossos vizinhos. Sei que alguns líderes afirmam que não se reunir causa dano espiritual, o que seria pior do que a morte. Mas persistir nas reuniões quando o vírus está aumentando é moralmente errado. É análogo à justificativa que o sacerdote, na história bíblica do bom samaritano, poderia ter dado para não ajudar o homem ferido à beira do caminho: suas necessidades espirituais urgentes eram mais importantes do que a vida do outro.

Jesus, porém, elogiou o samaritano, aquele que deixou de lado suas prioridades por causa do necessitado.

Se a pandemia se agravar, vamos ficar em casa e fazer o mesmo. 

Quando o Supremo Tribunal Federal determinou que as igrejas permanecessem fechadas se assim governadores e prefeitos decretassem, pastores disseram que a decisão feria a liberdade religiosa. Concorda?

Volf: Não acredito. É, ou ao menos deveria ser, uma questão de segurança pública. Para virar discriminação religiosa, um estado ou uma cidade teriam que impor restrições mais rigorosas a missas e cultos do que a outras atividades públicas ou comerciais comparáveis em relevância. Mas, mesmo sem decretos, as igrejas devem fazer suas próprias deliberações morais guiadas pelo amor ao próximo. 

A crise causou muitos cismas na sociedade, em temas como vacina, lockdown e até o uso de máscara. Que lição tiraremos disso?

Volf: Espero que seja a de que somos os guardiões de nossos irmãos e irmãs. A atual pandemia é um caso claro em que, trabalhando para o bem dos outros, eu trabalho para o meu. 

Publicado em dezembro de 2017 pela editora Mundo Cristão

Qual é a participação dos grupos religiosos na polarização?

Volf: Nos Estados Unidos, e em parte da Europa, as igrejas têm se envolvido fortemente em guerras culturais. Acho um grande erro. A liderança religiosa pensa que vencer essas batalhas impedirá a secularização e manterá a nação inteira ligada à herança cristã.

Estou convicto de que isso não leva ao ressurgimento da religião, mas à secularização.

O engajamento político dos cristãos só faz sentido quando temos uma VISÃO SOCIAL DE INSPIRAÇÃO CRISTÃ, e não quando selecionamos algumas questões [morais] e batalhamos por elas.

O senhor está otimista com o mundo pós-pandemia?

Volf: Prefiro não pensar em otimismo e pessimismo, e sim na compreensão judaica e cristã de “esperança” e “desespero”. O otimismo legítimo é baseado na crença de que o presente está grávido de futuro e o dá à luz. Se assim for, temos motivos para nos preocupar. Já a esperança pode existir mesmo nas circunstâncias mais sombrias, mesmo se estamos no marco zero. Quando Jesus estava pendurado na cruz em agonia e vergonha, não havia razão para otimismo. Mas então veio o milagre da ressurreição, e os seguidores de Jesus aprenderam a ter esperança de que coisas impossíveis são possíveis. Bem entendida, a esperança é “uma xícara de café” no momento. 

Fonte: Folha de S. Paulo – Mundo – Domingo, 25 de abril de 2021 – Pág. A15 – Internet: clique aqui (acesso em: 25/04/2021).