Não é hora de brincadeira

 Democracia civil no fio da navalha

 Maud Chirio

Historiadora francesa, é professora na Universidade Gustave Eiffel e especialista em história das Forças Armadas e da ditadura militar brasileiras; autora, entre outros, de “A Política nos quartéis: revoltas e mobilizações de oficiais na ditadura brasileira” (Zahar Editora) 

Degradado, sistema está prisioneiro de suas Forças Armadas

MAUD CHIRIO

O espanto com que o mundo observa o Brasil nestes últimos meses não se deve somente ao abismo sanitário no qual o presidente Jair Bolsonaro mergulhou o país. 

O atordoamento é também estarrecedor posto que a maneira pela qual se via o Brasil, desde o início do século 21, foi estilhaçada. À época, o país remetia ao mundo a imagem de ser uma democracia consolidada, produto de uma transição irreversível. A Europa, subitamente consciente de sua condição de velho continente, viu no Brasil a tradução bem-sucedida do “fim da história”: o advento definitivo de uma democracia civil sólida, capaz de encarar séculos de desigualdades e de discriminações, além de uma posição subalterna no cenário internacional. 

Tal leitura teve pesadas consequências, tanto aí quanto aqui, sobre a capacidade de compreender o país. Ela levou a ignorar sinais de uma degradação da Nova República:

* Os protestos de oficiais frente à Comissão da Verdade [que investigava crimes cometidos durante a ditadura militar no Brasil],

* o crescimento do número de candidatos militares às eleições e

* as intervenções de generais no cenário público foram consideradas anacrônicas e não como indícios de um projeto de poder no seio da instituição militar.

* O mesmo se aplica para a explosão de discursos anticomunistas, impregnados de um clima de guerra cultural.

Por sua vez, a crise política pós-2014 foi lida como a manifestação de um aperfeiçoamento da democracia, não obstante o descaso flagrante tanto com a Constituição quanto com o devido processo legal. 

Foi ainda mais difícil conservar esse discurso sereno após a eleição de um candidato neofascista e saudosista dos tempos da ditadura militar.

Porém, muitos, tanto aí quanto aqui, quiseram continuar a acreditar em um mero monstro político acidental que não abalaria uma democracia assim tão resiliente.

As altas instâncias legislativas e judiciárias, que já não eram conhecidas por seu rigor na garantia de um Estado de Direito, foram tidas como sua salvaguarda. A presença de generais no coração do governo assegurou: a “ala militar” irá moderar a “ala ideológica”.

Jair Bolsonaro é fruto, entre outros fatores, de um projeto de poder dos militares, os quais estão mais envolvidos do que nunca com o poder

No lugar de ver aí sinais de uma democracia já fragilizada, produzimos um mecanismo autossugestivo, repetindo:A Constituição está sendo respeitada”. “As instituições funcionam.” “As Forças Armadas estão distantes da política.”

Hoje, o discurso de uma democracia inabalável nos impede de perceber claramente os perigos que a ameaçam.

As pretensões autoritárias de Bolsonaro não foram levadas a sério por muito tempo. O ex-capitão foi tido por Pai Ubu, um rei burlesco, absurdo e ridículo da peça de Alfred Jarry, personagem quase que fictício no centro daquilo que permanecia enquanto a única realidade: a normalidade democrática. 

No meio da tragédia sanitária organizada por ele próprio, todos nós percebemos que Bolsonaro parece agora disposto a implementar seu projeto de embrutecimento da sociedade brasileira, no qual mobiliza as suas milícias e tenta moldar “o seu Exército”.

Para enfrentá-lo, o Brasil não dispõe mais de uma democracia intocada, mas, sim, de um sistema degradado e prisioneiro de suas Forças Armadas.

Quanto mais o Planalto se empenha em uma corrida desenfreada autoritária e mortífera, mais o Exército se posiciona em garantia à ordem e às instituições. 

Os futuros possíveis do país —destituição, eleições livres, respeito ao resultado das urnas— estão por ora suspensos sob o parecer de generais engajados, há décadas, em um projeto de conquista do Estado. 

Millôr dizia: “O mal do mundo é que Deus e o Diabo envelheceram, mas o Diabo fez plástica”. No Brasil, a democracia civil está enrugada ou, até mesmo, desvirtuada —e foi o militarismo quem fez a cirurgia plástica. Contudo, o caminho já é sabido: leva ao autoritarismo, à violência do Estado e ao desterro das nações. 

O Brasil possui, porém, os meios para reconstruir uma democracia plural e pacificada, cujas pedras angulares devem ser:

* a desmilitarização do poder e

* as eleições livres.

O mundo precisa de modelos brasileiros. Da superação da personagem Jéssica no filme “Que Horas Ela Volta?”. Da coragem e da resistência de Marielle Franco. Da prova de que, após o abismo bolsonarista, um futuro de progresso é possível. 

Fonte: Folha de S. Paulo – TENDÊNCIAS / DEBATES – Domingo, 18 de abril de 2021 – Pág. A3 – Internet: clique aqui (acesso em: 19/04/2021).

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