Dois fatos que mostram o que é o Brasil de hoje
Aumento
de mortalidade no país está diretamente ligado a corte de verbas no SUS
Marina Amaral
O Sistema Único de Saúde (SUS) apesar de
sofrer com a falta de recursos desde a fundação, é responsável por uma das
maiores coberturas públicas de saúde no mundo
DR. GASTÃO WAGNER DE SOUSA CAMPOS |
Quando as
bases do Sistema Único de Saúde (SUS) foram lançadas, em 1986, na 8a
Conferência Nacional de Saúde, o dr. Gastão Wagner
de Sousa Campos concluía o mestrado em medicina preventiva. O título
de sua dissertação – “Os médicos e a política de saúde: entre a
estatização e o empresariamento dos serviços de saúde” – coincide com o
caminho profissional que traçaria a partir dali; sua tese de doutorado foi
defendida um ano depois da criação do SUS, regulamentado em 1990, dois anos
depois da Constituição cidadã.
Desde
então, o dr. Gastão acumula os afazeres de médico e professor da Unicamp
com a militância pela saúde pública. Presidente da Associação Brasileira de
Saúde Coletiva (Abrasco) até o ano passado, ele continua a lutar pela
permanência do SUS, que, apesar de sofrer com a falta de recursos desde a
fundação, é responsável por uma das maiores coberturas públicas de saúde no mundo.
«Se a sociedade brasileira não pelejar
pelo SUS no cotidiano,
quando for votar e escolher quem é a favor do
SUS,
se os profissionais não defenderem o
SUS, ele fica muito mais ameaçado.
Nos estudos que os políticos e sociólogos fazem
– por exemplo, do sistema inglês, bem mais velho que o nosso, tem 90 anos já –,
quem fez a defesa principal do SUS inglês foram os profissionais, os
trabalhadores da saúde,
que buscam apoio na sociedade e encontram.
Se deixar por conta dos governantes, aí eu sou
pessimista»,
diz quando indagado sobre o futuro do sistema
de saúde que
atende 160 milhões de brasileiros e
universalizou as vacinas e
o tratamento contra a aids e contra alguns
tipos de câncer.
Leia a
entrevista feita e descubra por que o aumento da mortalidade de adultos nos
últimos cinco anos e o da mortalidade infantil nos últimos três estão
diretamente ligados à queda de recursos para o SUS, o que tende a se
agravar neste governo, com as medidas propostas pelo ministro da Economia,
Paulo Guedes.
Observação:
a entrevista foi feita na semana passada, antes das medidas anunciadas ontem
pelo governo Bolsonaro.

Eis a
entrevista.
Qual
a atual situação do SUS e que impactos as medidas de Paulo Guedes podem ter
sobre a saúde?
Dr.
Gastão: Ao longo dos seus 32 anos, o SUS sempre foi subfinanciado,
ou seja, já havia recursos insuficientes para o tamanho da necessidade de
saúde da população, da extensão da cobertura do SUS. Mas isso se
agravou, principalmente a partir da aprovação da emenda constitucional do teto
de gastos, porque há mais ou menos cinco anos o orçamento federal para
saúde, para o SUS, não repõe nem o valor da inflação, e aí ficamos com o
fixo em torno de 210, 216, 220 bilhões [de reais], o que, na prática, é uma
redução do gasto em saúde. Isso, evidentemente, tem consequências; a gente
já tem investigação epidemiológica indicando o aumento da mortalidade de
adultos nesses cinco anos, inclusive com artigos publicados em revistas
internacionais da área de saúde. Por quê? O SUS reduziu a capacidade de
compra de insulina para diabetes, de remédio para hipertensão. E as pessoas
que dependem do SUS, que são 70% da população brasileira, têm aumentado o risco
de internação, de agravamento dessas enfermidades crônicas e de morte. A
gente já tem objetivamente a diminuição da expectativa de vida de adultos.
E já tinha uma análise dos últimos três anos mostrando o aumento da mortalidade
infantil depois de 25 anos de queda rápida. A gente tem uma inversão da
curva na mortalidade das faixas menor de 1 ano e, também, menor de 5 anos. Então,
o problema do financiamento é muito grave, é concreto.
E o
objetivo do ministro Paulo Guedes é diminuir ainda mais o gasto em saúde e
educação. Ele teve que retirar da proposta que o Ministério da Economia
mandou ao Congresso a inclusão do gasto com aposentadorias de trabalhadores, de
profissionais da saúde, no gasto obrigatório [com saúde], porque os presidentes
da Câmara Federal e do Senado avisaram que não iriam apoiar. Isso reduziria em
torno de 18% a 20% do gasto, que já é insuficiente. Mas eles insistem na
proposta de desindexação do gasto municipal com saúde e educação, o que também
vai ser um desastre; o volume de investimentos no SUS vai ficar ao arbítrio
de cada prefeito e de cada governador. Porque o previsto é que, nesse mínimo
de 15% do orçamento que eles são obrigados a gastar em saúde, não pode entrar o
pagamento de funcionários aposentados, coleta de lixo, apesar de tudo isso
indiretamente ter a ver com a saúde. São 15% estritamente no SUS, na
atenção à saúde, preventiva e assistencial. E os estados são obrigados a gastar
10% do orçamento estadual. E é isso que o ministro da Economia, com essa
ideia de redução a qualquer custo dos gastos públicos, à custa da vida das
pessoas, quer mudar. O problema para ele – e a solução para nós – é que ele
precisa de emenda para mudar a Constituição, dois terços de aprovação no
Congresso, o que é bem mais difícil.

Você
acha que está em curso uma campanha contra a saúde pública, a favor da
privatização, em que se diz que o SUS é um elefante branco, que não funciona…
Dr.
Gastão: Há um movimento geral de desconstrução de políticas públicas. A ideia é
que cada um que se vire no mercado. Isso é uma tragédia anunciada num
país muito desigual, e o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. O SUS
tem tido uma capacidade de resistência maior, apesar de todos os problemas que
tem, do que outras políticas públicas. As universidades públicas, a política de
ciência e tecnologia têm sido muito mais atacadas proporcionalmente do que a
área da saúde. É que a desconstrução do SUS produz o que a gente chama de
barbárie sanitária: num tempo muito curto, muita gente morre. Toda a
vacinação do Brasil, 80% do tratamento de câncer das pessoas são através do
SUS. Então reduzir isso, politicamente, é muito delicado.
A
gente vê reportagens mostrando as filas dos hospitais, a dificuldade de fazer
exames e cirurgias. Isso não leva os brasileiros a acreditar que o SUS é um
sistema que não funciona?
Dr.
Gastão: Eu acho que é um paradoxo: a força do SUS é a sua
existência e a debilidade do SUS são os vazios assistenciais, a burocracia, a
desigualdade: numa cidade tem fila para tal tipo de câncer, em outra cidade
tem outra, em outra região não tem acesso ao tratamento de câncer. O SUS é
muito heterogêneo e tem muitos problemas. O necessário seria investir para
corrigir essas falhas, mas estamos agravando esses problemas. Só que é
uma desconstrução lenta, sabe? Os políticos municipais, federais e
estaduais não têm muita coragem de viver com isso de fechar hospital; eles
fazem de forma estratégica, usando meios que dificultam a compreensão da
população, como essa proposta do ministro da Economia. E todo esse
radicalismo liberal contra política pública, servidor público, contra
universidade, está atingindo o SUS. E aí vira só resistência, a política
pública não consegue avançar, se renovar. Então, o SUS tem essa situação
ambígua. As pessoas se queixam muito, mas não querem que retirem o que já
têm.

Comparado
a outros países que têm sistemas de saúde privados, como se sai um serviço
público como o SUS? É de fato ineficiente? Como é em relação a países como a
Inglaterra, que tem sistemas públicos também?
Dr.
Gastão: Na comparação, os países com os sistemas privados de saúde
predominantes, como os Estados Unidos, perdem: são caros, têm menor
produtividade. Ao contrário de outras áreas – na telefonia, por exemplo –, o
mercado produz mais barato e com mais produtividade; na saúde e educação, já
há pesquisas indicando que não é assim. Os sistemas públicos gastam
melhor e têm uma cobertura maior, uma inclusão maior, um acesso maior a
medicamentos, vacinas. E comparar o SUS a sistemas públicos de saúde de
outros países é difícil. Tem 160 milhões de pessoas que só usam o SUS no
Brasil. É muita coisa, é maior que a população da Inglaterra. Na
Inglaterra, 96% das pessoas – ou em Portugal, 98% dos portugueses – usam o
sistema nacional de saúde, o SUS deles. No Brasil, regularmente é 60% a 70% que
usam o SUS, mas, como a gente tem pouco recurso, a nossa cobertura é menor e é
muito heterogênea.
Nas cidades do Nordeste, o acesso ao SUS é pior do que
aqui no SUS do Sudeste. Se no SUS do Sudeste você pegar uma cidade como São
Paulo, os centros e os bairros intermediários têm um acesso muito melhor do que
as pontas, do que as periferias, onde moram 40% da população de São Paulo, onde
moram 40% da população de Campinas.
O SUS é um sistema público que devia se
voltar aos mais carentes e vulneráveis, mas isso acontece muito lentamente.
Eu estava vendo essas estatísticas da mortalidade por câncer no Brasil: quanto
mais pobre, maior a mortalidade; quanto menor a renda, maior a mortalidade por
câncer. É assim.
E
isso é por falta de acesso a medicamento, a terapia, a cirurgia? Qual é o nó?
Dr.
Gastão: Falta de acesso à atenção em saúde. Quem tem acesso? O SUS
garante a quimioterapia, garante medicamentos, não têm faltado. Mas, se a
pessoa é pobre, ela vai no posto de saúde na periferia, e a equipe lá, o
médico, a enfermeira, desconfia de câncer de mama: o acesso à mamografia é
difícil, desorganizado, não dá para você sair com a consulta marcada como
deveria ser. A expansão do SUS não se dá conforme a vulnerabilidade da
população; se dá conforme a capacidade de pressão política. A gente tem
concentração de hospitais em algumas cidades e, dentro das cidades, em algumas
regiões. Na parte preventiva, o SUS universalizou algumas coisas,
independentemente da renda, da classe social. Vacinas, por exemplo, o SUS
universalizou e democratizou: a cobertura de vacinas é alta, e hoje em dia
são os setores da classe média e da classe alta que estão se recusando a tomar
a vacina. Agora, há 30 milhões de pessoas no Brasil que não têm a água
tratada até hoje, 50% da população sem saneamento – esgoto a céu aberto –,
e não é só na zona rural, nas cidades também, em ocupações, favelas. Então,
acaba tendo diferença na prevenção também.
Essa
desigualdade econômica, social, cultural, política interfere. Outra área que
é preventiva e é assistencial ao mesmo tempo e que o SUS universalizou: as
políticas em relação à aids. A gente não vê diferença de mortalidade de
pessoas que vivem com aids entre as que têm renda baixa e a população de classe
média ou com maior poder de renda. Porque o SUS foi atrás de acesso, do
diagnóstico e tratamento e orientação de prevenção, quase que universal. Em
relação ao câncer, isso já não acontece, embora alguns [tipos de câncer] quase
tenham se universalizado, como o câncer de útero, de colo de útero, que depende
do tratamento de prevenção, de fazer Papanicolau. E poderia se
universalizar porque a gente briga no SUS para as enfermeiras poderem fazer
também, mas os médicos não querem. Mesmo os médicos proibindo, as enfermeiras
fazem, e assim cerca de 70% ou 80% das mulheres brasileiras fazem Papanicolau.
E a gente tem uma queda em todo o Brasil, mais acentuada em algumas regiões,
que tem levado quase ao desaparecimento de câncer de útero através da prevenção
e do tratamento logo no comecinho. O câncer, quanto mais cedo tratar melhor,
então precisa universalizar o acesso. A desigualdade prejudica na área
preventiva e na área assistencial.
[...]
Alguns
dados apontam também para um aumento de mortalidade materna. O senhor tem
alguma notícia sobre isso?
Dr.
Gastão: Então, a mortalidade materna está caindo devagar, e já estava
caindo devagar antes. Ou seja, não se avançou. A mortalidade infantil caiu
rapidamente, mas a mortalidade neonatal, que é o primeiro mês de vida, também
cai muito devagar no Brasil. Tanto a mortalidade de crianças de até 1 mês
quanto a de mulheres no parto e pós-parto são altas porque estão ligadas ao
atendimento hospitalar, onde o SUS tem um impacto menor. Os hospitais não
seguem muito as normas do SUS, principalmente pelo corporativismo médico.
Aí cada um faz o que quer, do jeito que quer e entende. E, apesar de 80% das
mulheres no Brasil fazerem o pré-natal regularmente com mais de sete
atendimentos durante os nove meses de gravidez, o que é o mínimo necessário, o
parto e a assistência ao parto são muito ruins no Brasil, e a gente tem
esse problema que é a epidemia de cesarianas.
E
isso está diretamente ligado à mortalidade materna? A cesariana é mesmo mais
perigosa para a mãe?
Dr.
Gastão: O risco de se fazer uma cirurgia de anestesia geral, de ter
infecção hospitalar é muito maior. Por incrível que pareça, se você pegar
por classe social, a mortalidade materna é tão alta entre os ricos da classe
média alta quanto entre a população mais pobre, porque no setor privado 96% dos
partos são cesarianas, no SUS é 46% – e ainda é muito alto. A recomendação
mundial da OMS é de no máximo 20%. Ou seja, há uma mistura de mercado com
dificuldades de atendimento no parto normal – a mortalidade é menor, mas não é
simples. Apesar de o SUS pagar, os médicos não fazem analgesia em quem é
negra e pobre – e eu estou falando em bases estatísticas que mostram que
eles se recusam muito mais a fazer analgesia em mulheres negras do que em
mulheres brancas.
Eles
se recusam a fazer analgesia nas mulheres negras?
Dr.
Gastão: Tem uma pesquisa da Fiocruz, “Nascer no Brasil”, com
dados que indicam isso, sim (clique aqui para ver essa parte da pesquisa). O que falei sobre o aumento da mortalidade
adulta no Brasil nos últimos cinco anos está em um artigo que saiu em
novembro agora no Lancet [acesse, clicando, aqui].
São vários autores, mas o autor brasileiro mais conhecido é Maurício Barreto. E
há um ano e meio foi publicado um artigo sobre mortalidade infantil que mostrou
o efeito positivo da expansão da estratégia de saúde da família de atenção
primária e do Bolsa Família.
Os
efeitos são assim rápidos, então? Quando há queda de renda, aumento do
desemprego, quanto tempo demora para a gente perceber isso na saúde pública?
Dr.
Gastão: É o que eu estou te falando: o efeito é bem rápido.
Pode piorar em cinco, mesmo em três anos. Quando tem uma crise no
crescimento econômico com repercussão social, aumento do desemprego, diminuição
do salário mínimo real, da capacidade de compra das pessoas, é muito rápido o
aumento da morte de idosos e de crianças. Essa história de que o
crescimento da economia por si só garante o bem-estar, de que é necessário a
economia crescer para se ter política pública como a do SUS, salário
desemprego, Bolsa Família, é falsa.
O crescimento do mercado tende a concentrar
renda
se não houver a política pública que impõe
limites
através de impostos e do redirecionamento dos
gastos.
Precisa ter um Estado democrático, aberto e
transparente,
porque, se tiver corrupção, politicagem e
apadrinhamento,
as políticas públicas entram no orçamento, mas
não têm efetividade.
Temos que
garantir uma gestão do governo adequada. Tudo depende de política. O
governo brasileiro atual e grande parte da imprensa dizem que, se houver
crescimento econômico, será tudo resolvido, transporte público, habitação. Mas
não é assim.
[...]
Uma
última pergunta só para fechar. O SUS tem salvação? O senhor acha que é
possível a gente manter esse sistema público de saúde e num funcionamento mais
eficiente? É uma questão de vontade política, uma questão de orçamento…
Dr.
Gastão: Estamos nisso, em garantir a sobrevivência do SUS. Se vai
sobreviver ou não, só Deus sabe. Mas há muitas possibilidades e a
necessidade do país também é muito grande. Parece que a sobrevivência do
SUS – eu queria chamar atenção para isso – depende muito do governo. E depende
do governo, do orçamento público, do Estado brasileiro, das leis. Mas depende
muito, talvez até mais, da população e da sociedade e, particularmente dentro
da sociedade, dos profissionais de saúde. Se a sociedade brasileira não
pelejar pelo SUS no cotidiano, quando for votar e escolher quem é a favor do
SUS, se os profissionais não defenderem o SUS, ele fica muito mais ameaçado.
Nos estudos que os políticos e sociólogos fazem – por exemplo, do sistema
inglês, bem mais velho que o nosso, tem 90 anos já –, quem fez a defesa
principal do SUS inglês foram os profissionais, os trabalhadores da saúde, que
buscam apoio na sociedade e encontram. Se deixar por conta dos governantes,
aí eu sou pessimista.
Desmatamento
já reduz chuvas e pode
afetar
safra no sul da Amazônia
Bruno Lupion
Estudo aponta que substituição em larga
escala da floresta por pasto
ou áreas de plantio tem provocado a redução
do período de chuvas. Desmatamento indiscriminado pode colocar
em risco prática de dupla safra na região
![]() |
A região sul da Amazônia, perdeu, de 1998 a 2012 uma área de floresta equivalente ao tamanho da Áustria |
Somado ao
efeito das mudanças climáticas e outros fatores de larga escala, o período
de chuvas na região, que compreende Rondônia, sul do Amazonas, norte do Mato
Grosso e sul do Pará, foi encurtado em 27 dias no período de 1998 a 2012,
com impacto na dupla safra, quando agricultores plantam no mesmo terreno soja
e, depois, milho.
Os números
estão em pesquisa realizada por dois pesquisadores da Universidade Federal de
Viçosa, em Minas Gerais, e um da Universidade da Califórnia, nos Estados
Unidos, publicada em setembro pela Royal Meteorological Society.
O trabalho
se baseou em dados de um satélite da Nasa dedicado a medir chuvas tropicais e
em informações sobre o uso da terra na região, uma das fronteiras agrícolas
que mais avançaram nos últimos anos no mundo. No período estudado, de 1998 a
2012, foram desmatados 82.260 km2 na área — 68% para pasto e os
outros 32% para agricultura — equivalente ao tamanho da Áustria.
Um dos
autores do estudo, Argemiro T. Leite-Filho afirmou à DW Brasil que a pesquisa comprova e
mede a relação entre desmatamento e chuvas na região.
Segundo ele, a cada 10% de uma determinada área
desmatada,
a estação chuvosa no mesmo local se encurta em
0,9 dias, em média,
sem considerar o efeito das mudanças
climáticas.
Ele alerta
que as mudanças provocadas pela substituição da floresta, somada a outras
dinâmicas climáticas, podem inviabilizar o plantio do milho após a colheita
da soja, prática hoje corrente na região.
Eis a
entrevista.
![]() |
Argemiro Teixeira Leite-Filho |
Como
vocês mediram o período da estação chuvosa?
Argemiro
T. Leite-Filho: Usamos os dados coletados pelo satélite TRMM [Tropical
Rainfall Measuring Mission, missão de medição de chuvas tropicais, em
tradução livre], que entrou em órbita em 1998. Usamos imagens de setembro de
1998 até o final de 2012.
Processamos
os dados pixel a pixel, cada um cobrindo uma área de 28 km por 28 km, para
medir a chuva que ocorria diariamente e marcar o início e o fim da estação
chuvosa, usando um método já consagrado e ideal para dados provenientes de
satélites.
E como vocês mediram o desmatamento?
Argemiro:
Usamos uma base de dados sobre o uso da terra na região, feita a partir
de imagens de sensoriamento remoto e do censo agrícola realizado por IBGE e
IPEA. E medimos o percentual de desmatamento em cada pixel, também de 28 km por
28 km, ano a ano.
Por
que vocês usaram essa metodologia?
Argemiro:
Identificamos uma lacuna nos estudos sobre o tema, que em geral são
baseados em modelagem [quando pesquisadores criam modelos matemáticos sobre o
ciclo das chuvas e a ocupação do solo e simulam o efeito do desmatamento].
Nosso
estudo foi feito com dados observados, pixel a pixel, para identificar como o
desmatamento dentro de cada pixel afeta a estação chuvosa no mesmo pixel. Não
avaliamos como o desmatamento em outras regiões influencia aquela área, pois
para isso teríamos que rodar modelos climáticos.
Selecionamos
a região do sul da Amazônia porque lá é possível notar um acoplamento
forte entre o clima e a floresta, há uma estação seca e uma estação chuvosa bem
marcadas, e é uma área onde o desmatamento agrícola avançou bastante nas
últimas décadas.
O que
vocês encontraram?
Argemiro:
A mensagem principal é que o desmatamento afeta todas as métricas da
estação chuvosa. Além de atrasar o início da estação, acelera seu fim e,
consequentemente, reduz o período de chuvas.
Existem
algumas suposições, não baseadas em dados científicos, de que esse efeito seria
simplesmente resultado das mudanças climáticas, não relacionado ao
desmatamento.
Para provar
que o desmatamento também afeta as chuvas na região, retiramos os efeitos de
larga escala ligados às mudanças climáticas e fatores de larga escala e
isolamos o efeito do desmatamento.
Quão
menor ficou a estação chuvosa no sul da Amazônia?
Argemiro:
Se somarmos o efeito do desmatamento às dinâmicas climáticas de larga
escala, houve uma redução da estação chuvosa de, em média, 27 dias desde
1998. Ou seja, o produtor perdeu praticamente um mês de janela climática
para plantar.
Se
consideramos apenas o efeito do desmatamento, identificamos 0,9 dias de
redução da estação chuvosa a cada 10% de área desmatada. Se um pixel tiver
80% de área desmatada, a estação chuvosa naquela área será, em média, 7,2 dias
menor, com variação de 2,4 dias para mais ou para menos.
Isso pode
parecer pouco, mas daí vem a importância de incluir também os mecanismos de
larga escala. Somados, o resultado se torna ainda mais preocupante.

Como
os efeitos do desmatamento e de larga escala se relacionam?
Argemiro:
A estação chuvosa é controlada por fatores remotos, como a
temperatura do mar, a umidade que vem do oceano e o El Niño, e fatores
locais, como a evaporação de água da própria floresta, que depois se
precipita na forma de chuva. O desmatamento reduz a injeção de vapor de água
na atmosfera e altera o balanço de energia e, consequentemente, modifica os
padrões de precipitação na região.
Em alguns
anos, fenômenos globais como o El Niño já tendem a fazer as chuvas
durarem menos. Se temos condições remotas desfavoráveis e a ocorrência do
desmatamento, os efeitos se somam para reduzir a estação chuvosa.
O
que esses resultados dizem sobre a legislação ambiental em vigor?
Argemiro:
O Código Florestal exige que, na região da Amazônia, 80% da
área das propriedades deve ser preservada como floresta. O objetivo do
legislador foi, entre outros objetivos, proteger a biodiversidade, mas nossos
resultados mostram que, se a lei for seguida, ela também ajuda a conter a
modificação de chuvas na região.
Manter a
floresta de pé não é só uma questão de seguir a legislação para não receber
multa e não perder aceso ao crédito agrícola. Manter a floresta de pé é uma
questão de sobrevivência para a agricultura praticada ali.
Qual
é o impacto da redução da estação chuvosa na agricultura?
Argemiro:
O mais comum na região é os agricultores plantarem a soja primeiro e,
logo depois da colheita, plantarem o milho, que eles chamam de milho
safrinha. Essa safrinha é tão comum que responde hoje por mais da metade
do milho produzido no Brasil, e é fundamental para o agronegócio. Hoje
os produtores conseguem plantar duas culturas na mesma estação chuvosa, mas
quanto mais desmatar, mais prejudicamos a segunda.
No Mato
Grosso, por exemplo, e estimativa é que são necessários no mínimo 200 dias de
estação chuvosa para que a cultura da soja possa se desenvolver e ser colhida,
e depois o produtor ainda plantar o milho e o milho se desenvolver. Um total de
27 dias a menos pode tornar inviável a segunda safra.
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