Para ler... E pensar!
1º) Por que não falei de flores
Miguel Reale Júnior*
Pelas manifestações do presidente,
vê-se
estar no ar a tentação autoritária
diante do empobrecimento e decadência de
nossa sociedade
MIGUEL REALE JÚNIOR |
O Chile
foi convulsionado por protestos detonados pelo aumento da passagem de metrô. A
população repeliu a elevação de 800 para 830 pesos, correspondentes a R$ 4,73.
O salário mínimo é de 301 mil pesos, cerca de R$ 1.715,70, mas a maior parte
da população recebe por volta de 400 mil pesos, ou seja, R$ 2.280, bem mais
que o percebido por imensa parcela dos brasileiros.
Comentaristas
políticos ponderam ser o preço da passagem apenas a ponta do iceberg, pois é
a desigualdade social o pano de fundo da insatisfação popular, em face do custo
da eletricidade, da água e da crise nos setores de saúde e
educação. Acrescem as injustiças do sistema privatizado de previdência,
que onera o trabalhador e proporciona proventos irrisórios.
O presidente
Piñera decretou o estado de emergência, com interferência das Forças Armadas, o
que resultou em confrontos com a morte de 19 pessoas, uma criança entre elas,
além de milhares de detenções.
Diante da
revolta surgida de modo espontâneo, o presidente do Chile veio a público, com
humildade, reconhecer ter faltado visão para entender a dimensão dos problemas, pedindo
perdão por ter demorado a agir para corrigir a situação. Anunciou a adoção de
agenda social para promover reformas do sistema previdenciário e de saúde,
elevar o salário mínimo e reduzir as tarifas de energia. Mesmo assim, na
sexta-feira, dia 25, mais de 1 milhão de pessoas foram às ruas em pacífica
marcha de protesto.
Manifestações no Chile - o povo não aguenta mais tanta desigualdade, penúria para viver e a indiferença do Estado e dos "ganhadores" endinheirados |
Modelo
neoliberal é insensível às penúrias do povo
As
dificuldades cotidianamente sofridas pela população, fruto de um modelo
neoliberal insensível às penúrias e ao malogro no acesso ao bem-estar,
foram reconhecidas pelo presidente chileno.
Em
contraste, o nosso presidente, Jair Bolsonaro, que gosta de palpitar
sobre os países vizinhos, voltou a elogiar a ditadura de Pinochet ao
dizer que a crise de hoje decorre do fim do regime militar, com interferências
de Cuba e governos de esquerda. Com considerações em nada fundamentadas, disse
Bolsonaro sobre a crise chilena: “O problema do Chile foi gravíssimo. Aquilo
não é manifestação nem reivindicação. São atos terroristas”. Vendo terrorismo
nos movimentos de reivindicação social, disse o capitão presidente ser preciso,
em vista de protestos semelhantes, além do monitoramento, ter as tropas
“preparadas” para reprimi-los.
Mais ainda:
revelou o mandatário brasileiro ter conversado com o Ministério da Defesa, pois
“a tropa tem que estar preparada porque, ao ser acionada por um dos três
Poderes, de acordo com o artigo 142 (da Constituição), deve ter condição de
fazer a manutenção da lei e da ordem”.
O
sofrimento do povo brasileiro só aumenta
O
sofrimento vivido pelo povo brasileiro desde o desastre econômico do
irresponsável governo Dilma apenas se tornou mais grave até o segundo trimestre
do ano em curso, como mostra pesquisa recente da FGV [Fundação Getulio
Vargas]. O quadro é desesperador. A Escalada da Desigualdade, estudo da
FGV divulgado em meados de agosto, indica serem há quatro anos arrasadoras
as condições socioeconômicas, com grande perda da renda dos mais pobres,
havendo, na outra ponta, elevada concentração de riqueza. A partir de dados
da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, do IBGE, mostrou-se pelo
Gini – indicador que mede a diferença de renda – que a concentração de renda
alcançou seu máximo histórico: 0,6291, no segundo trimestre de 2019.
Medindo o
bem-estar da população, o estudo da FGV indica, do quarto trimestre de 2.014 ao
segundo deste ano:
1) a
metade mais pobre experimentou variações reais acumuladas de -17,1% [de
sua renda] desde o início da crise;
2) os 40%
intermediários seguintes, isto é, a classe média, tiveram perdas de
4,16%;
3) os 10%
mais ricos – espécie de classe média tradicional, mais alinhada aos padrões
americanos –, apresentaram ganhos de 2,55% no período;
4) o 1%
mais rico, incluído no grupo anterior, obteve ganhos de dois dígitos, de
10,11%.
Em resumo, a
desigualdade entre o 1% mais rico e os 50% mais pobres cresceu 41,7% desde o
fim de 2014 até o presente momento. Mas para Bolsonaro a evidente questão
social é a priori enquadrada como questão de polícia. Eventuais protestos
serão vistos como ato de terroristas a serem enfrentados pelas Forças Armadas,
a estarem preparadas para a repressão.
O
que está faltando ao atual governo
Se a
penúria não foi criada por este governo – e por isso lutei pelo impeachment
–, é bem verdade, no entanto, que a crise deveria ter sido enfrentada
prioritariamente com medidas de cunho econômico-social, pois soluções não
brotam por obra da mão invisível do mercado. A cada semana o Ministério da
Economia lança balões de ensaio, agora corre atrás de providências que não
teriam sido implementadas por causa da votação da reforma da Previdência.
Desculpa esfarrapada. Na verdade, a questão social foi secundária ao longo
de dez meses.
Fora o 13.º
salário do Bolsa Família, durante 300 dias o jovem desempregado, a mãe no
subemprego, os universitários na informalidade ainda não receberam acenos do
governo. Bolsonaro e seu filho, feito líder do PSL, perigosamente
qualificam possível protesto por melhores condições de vida, nesta sociedade
desigual, como ato terrorista, justificando antecipadamente o uso das Forças
Armadas contra movimentos de rua.
Em maio de
2018 escrevi nesta página artigo intitulado A volta da ditadura pelo voto.
Era previsão baseada na vida pregressa do capitão adorador da tortura.
Hoje, diante de manifestações do presidente, se vê estar no ar a tentação
autoritária, conforme ressalta editorial do Estado domingo passado.
Bolsonaro
gosta do confronto e forja inimigos:
* vislumbra
a ONU, a CNBB, o STF e a OAB como hienas a devorá-lo;
*
usa fake news e o poder em favor do seu clã;
* ameaça não
renovar a concessão à Globo por notícia que lhe desagrada.
É bem
possível, portanto, esperar caminho antidemocrático ao se
admitir a volta do AI-5 e a convocação das Forças Armadas perante reclamo
social.
* MIGUEL REALE JÚNIOR é
advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia
Paulista de Letras; foi Ministro da Justiça.
Fonte: O
Estado de S. Paulo – Espaço aberto / Opinião – sábado, 2 de novembro de
2019 – Página A2 – Internet: clique aqui.
2º) Vivandeiras
Editorial
Ao invocar a possibilidade de edição de um
“novo AI-5”,
Eduardo Bolsonaro externou o que pensa o
grupo
que ora está no poder, a começar pelo seu
pai,
o presidente Jair Bolsonaro
EDUARDO E JAIR BOLSONARO Atrás do filho, está sempre o pai, principalmente, nas ideias |
O arroubo
do deputado Eduardo Bolsonaro, que invocou a possibilidade de edição de
um “novo AI-5” para enfrentar opositores, não foi um exagero retórico.
Ele externou o que pensa o grupo que ora está no poder, a começar pelo pai, o
presidente Jair Bolsonaro, que passou toda a sua vida como político a
lamentar o fim da ditadura.
O objetivo
é claro: dar vida ao que deveria estar morto e enterrado. O bolsonarismo
desde sempre pretende acostumar os ouvidos da sociedade a ideias autoritárias
como solução para os problemas nacionais. O método é escorar-se na
liberdade de expressão e na imunidade parlamentar, dois dos pilares da
democracia liberal, para acalentar a possibilidade de instalação de um regime
de exceção, em que essas mesmas liberdades, entre outras tantas, são
sumariamente cassadas.
De certa
forma, a eleição de Jair Bolsonaro à Presidência da República, mesmo depois de
décadas defendendo reiterada e inequivocamente o regime militar, a tortura, o
banimento (e até o fuzilamento) de opositores e o silenciamento da imprensa, é
um preocupante indicativo de que parte da sociedade já se deixou seduzir
pelo discurso antidemocrático.
Para a
parcela mais radical dos eleitores de Bolsonaro, que o trata como “mito” e o
segue fanaticamente, o pacto pela transição para a democracia foi imperdoável
traição aos ideais da ditadura militar. Graças ao sucesso eleitoral de
Bolsonaro, essas vivandeiras [= indivíduo que leva víveres para vender
às feiras e tropas militares] não se sentem mais constrangidas em demandar
abertamente:
* o
fechamento do Congresso, sob o argumento de que se trata de um valhacouto de
corruptos que tramam contra o Brasil;
* exigir a interdição
do Supremo Tribunal Federal, visto como um antro de advogados que defendem
petistas e minorias em geral; e
* torcer
pela asfixia da imprensa livre, considerada veículo de esquerdismo e
imoralidade.
Em resumo, nutrem
a esperança delirante de que o presidente Bolsonaro se aventure num golpe de
Estado e consequentemente estabeleça uma ditadura.
Nesse
sentido, a ordem do presidente Bolsonaro para que o
filho pedisse desculpas por suas declarações não tem valor nenhum. É
o presidente, afinal, quem desde sempre incita essa retórica autoritária,
elogiando ditadores, fazendo apologia de torturadores e ameaçando
sistematicamente a imprensa. Os filhos, entre eles Eduardo, só agem – e só
existem politicamente – em nome do pai.
Não se
trata de relativizar a responsabilidade do deputado Eduardo Bolsonaro por seu discurso
antidemocrático – que ademais, enquanto repugna o País, serve também para
desviar a atenção da ainda nebulosa menção ao nome do presidente no caso do
assassinato da vereadora Marielle Franco. Trata-se, sim, de perceber que o
problema vai muito além do palavrório autoritário de um político medíocre.
O
grave perigo que ronda o nosso país
Há hoje no
País uma atmosfera cada vez mais pesada, fruto do extremismo, à esquerda e à
direita, que tenta inviabilizar a política e, consequentemente, a democracia. É contra
essa ameaça, cada vez mais concreta, que as forças democráticas devem se
mobilizar. Laivos golpistas não podem ser tratados como manifestações
anedóticas ou inconsequentes. Devem ser denunciados de forma resoluta por
todos aqueles que prezam a liberdade.
Por esse
motivo, é alvissareiro que as lideranças institucionais do País tenham
se manifestado tão prontamente para condenar, de forma cristalina e nos mais
duros termos, a manifestação irresponsável do deputado Eduardo Bolsonaro, mostrando
rejeição absoluta a qualquer possibilidade de retrocesso em nossa democracia.
Que a
Câmara dos Deputados, ao lidar com o caso, não reaja com a pusilanimidade
demonstrada em 1999, quando apenas advertiu o então deputado Jair Bolsonaro
depois que este defendeu o fechamento do Congresso, disse que “o erro do
regime militar foi torturar, e não matar” e lamentou que a ditadura não
tivesse fuzilado vários políticos, a começar por Fernando Henrique Cardoso,
então presidente da República.
Na ocasião,
exatamente como agora, Jair Bolsonaro, ante a repercussão negativa, disse que
havia “exagerado”. Mas a mensagem já estava dada – e, ante a complacência
dos democratas, ajudou a manter vivo o ânimo reacionário que tantos votos
rendeu e, lamentavelmente, continua a render aos liberticidas.
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